Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise da favela como fato social, sob o prisma do direito urbanístico. Toma-se como ponto de partida da pesquisa e como referencial teórico, Emile Durkheim e o comportamento humano como fator de construção do fato social. A metodologia empregada foi a qualitativa, bibliográfica, em uma busca dedutiva da ocupação urbana e, a partir disso, ter como resultado teórico o fato social favela, forjando uma interpretação sobre o caráter e o significado social da regulação do espaço que nela se materializa.
Palavras-Chave: Favela. Fato social. Direito urbanístico. Ocupação.
Abstract: The present work aims to analyze the favela as a social fact, under the prism of urban law. Emile Durkheim and human behavior as a factor of construction of the social fact are taken as the starting point of the research and as a theoretical reference. The methodology used was qualitative, bibliographic, in a deductive search for urban occupation and, based on that, having as a theoretical result the favela social fact, forging an interpretation on the character and the social meaning of the regulation of the space that materializes in it.
Keywords: Favela. Social fact. Urban law. Occupation.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Direito Urbanístico e a Favela. 3. Conclusão. 4. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Partindo da concepção de que o Direito evolui de acordo com o fato social e as necessidades da sociedade em que é aplicado, este trabalho busca demonstrar que as normas jurídicas e a sua forma de aplicação devem coadunar com o fato social que lhe move. Assim, o presente trabalho busca, não somente, descrever o fato social favela, mas perceber que do passado, advém o futuro (SKINNER, 2003).
Em relação ao método, este trabalho se define como uma pesquisa exploratória. Adotando a natureza bibliográfica, visa a abordar a condição a qual a figura favela é submetida na sociedade, fazendo referência às formas de positivação instituídas no direito urbanístico. Desse modo, o estudo apresenta concepções doutrinárias acerca de conceitos necessários para o entendimento do fato social, pelos ensinamentos de Emile Durkheim. O desenvolvimento da pesquisa se deu pela seleção e esquematização das informações obtidas por meio da análise sistemática das fontes utilizadas.
Ante o exposto, a presente pesquisa busca responder a seguinte questão: sob o prisma do direito urbanístico, a favela é um fato social?
Dessa forma, em um primeiro momento, buscou-se compreender os comportamentos humanos para a construção do fato social.
Em direito urbanístico, apresenta-se uma análise geral de sua composição, sobre a desigualdade socioespacial que é legitimada pela legislação em seu conteúdo de apropriação, ocupação e relacionado à propriedade.
Desse modo, é possível entender que existem características do modelo de ocupação que influenciam nas relações sociais atuais, principalmente na atual determinação da favela.
2 O DIREITO URBANÍSTICO E A FAVELA
Inicialmente, é importante ressaltar que o termo urbanização é utilizado pela doutrina como transferência de massa populacional, mas não como mero aumento das cidades, mas sim como um fenômeno de concentração urbana.
É o que ensina Nathália Guimarães: “O urbanismo apresenta-se, assim, como uma ciência compósita, que vai buscar conhecimentos a várias ciências, tais como a geografia, a arquitetura e a técnica de construção, a estatística, a ciência económica, a ciência política, a ciência administrativa, a sociologia, a história, a ecologia humana, e, inclusive, à própria medicina, com o objetivo de possibilitar um desenvolvimento harmonioso e racional dos aglomeramentos humanos” (GUIMARÃES, 2003).
A medida que o mundo jurídico tenta adequar o espaço físico às necessidades e à dignidade da moraria humana, demonstra-se como a população urbana cresce em proporção elevada em relação à população rural. É nesse sentido que José Afonso da Silva infere a ligação entre a urbanização e o direito, demonstrando que o Direito Urbanístico é “(...) conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistemáticos e informados por princípio apropriados, que tenha pôr fim a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis” (DA SILVA, 1981).
Assim, a análise dos espaços habitáveis deve coadunar com o comportamento humano de aglomerar em grandes centros e suas consequências jurídicas (SKINNER, 2003). José Afonso da Silva (1981) infere ainda que o estudo do fenômeno urbano moderno da sociedade industrializada deve se preocupar com a sistematização e o desenvolvimento da cidade, buscando determinar grandes centros, aglomerações, fábricas e serviços. Nota-se que a ponderação da favela pelo direito urbanístico deve ir além das algemas do positivismo e considerar o espaço e, em especial, o comportamento humano (VALLADARES, 2016).
Nesse sentido, Burrhus Frederic Skinner acrescenta que: “Muitas pessoas interessadas no comportamento humano não sentem a necessidade de padrões e critérios de prova, característicos de uma ciência exata; as uniformidades no comportamento seriam "óbvias" mesmo sem eles. Ao mesmo tempo, relutam em aceitar as conclusões que tais provas inevitavelmente apontam, se não ‘sentirem’ por si próprias a uniformidade. Mas essas idiossincrasias são um luxo dispendioso. Não é preciso defender os métodos da ciência na sua aplicação ao comportamento” (SKINNER, 2003).
O comportamento humano, expressado pelo fenômeno do crescimento das cidades, produz o fato social (DURKHEIM, 1978): favela[1], que é representada por um conjunto de habitações populares, conhecidas como morro, comunidade, maloca, gueto, dentre outros (VALLADARES, 2000). O fato social favela é composto por características distintivas de sua exterioridade em relação às consciências individuais e a ação coerciva que ele exerce sobre o indivíduo. Assim, exterioridade e coerção compõem a essência do fato social (DURKHEIM, 1978).
A favela não é um fato social isolado, pois sua existência depende de condições jurídicas estruturais da sociedade global para desenvolvê-la e a manter. São características organizacionais, com relações pessoais transversais que influenciam as atividades e o comportamento dos seus ocupantes (DA SILVA, 2011). Ressalta-se que as estruturas de poder (FAORO, 2001) fazem parte do arcabouço do comportamento do favelado, ou seja, existem semelhanças de costumes de comportamento entre a burguesia favelada e a burguesia não favelada, e o imperativo de conservar uma organização que resguarde a viabilidade da exploração econômica dos recursos internos (DA SILVA, 2011).
Por outro lado, deve-se atentar ao fato de que essa estrutura é reforçada por órgãos públicos e privados e legitimados pela legislação urbanística. Para ilustrar, pode-se selecionar Paraisópolis — a segunda maior favela da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) — com sua densa aglomeração populacional, acompanhada da notória descontinuidade das ações governamentais, que gera problemas habitacionais que vão desde a construção da casa à regularização da posse do terreno, demonstrando a supressão do direito à comunidade (DE ALMEIDA; D'ANDREA, 2004).
Para além dessas características, em contrapartida, materializado e simbolizado pela arquitetura da segregação no Rio de Janeiro, Copacabana, com forte esquema de segurança e vigilância em seus condomínios, isola seus moradores do contato com a vizinhança ao lado, do morro do Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Babilônia e Chapéu Mangueira (GONÇALVES, 2016), locus do perigo e da violência (DA SILVA, 2011).
Conhecer essas forças coercitivas que remontam o fato social favela auxilia a ciência jurídica a se manifestar pontualmente, ao adotar os conceitos, as normas e as abordagens do fenômeno urbano com o fim de adequá-lo aos seus desígnios e aos objetivos dos que lhe legitimam.
É o que ensina Burrhus Frederic Skinner: “O ponto de vista alternativo insiste em reconhecer forças coercivas na conduta humana, que podemos preferir ignorar. Ameaça nossas aspirações, quer materiais, quer espirituais. Apesar do quanto possamos ganhar ao admitir que o comportamento humano é objeto próprio de uma ciência, nenhuma pessoa que seja um produto da civilização ocidental pode assim pensar sem uma certa luta interior. Nós, simplesmente, não queremos esta ciência” (SKINNER, 2003).
Da favela-problema para a favela-solução (MAGALHÃES, 2014), o direito e o fato social se coadunam para perceber a favela como um todo emaranhado de características próprias e que podem ser repensadas em seu próprio espaço, mudando o conceito de ordem urbanística. O Estatuto da Cidade, Lei Federal n. 10.257/2001, consolida a “Ordem Urbanística” como ramo autônomo em um conjunto de normas de direito urbanístico. Denota-se que, em primeiro olhar, é notável a vontade do legislador de ordenar o uso e a propriedade do solo. Maria Bernadete Miranda justifica essa preocupação do direito urbanístico pela aglomeração urbana, necessitando de uma ordenação jurídica (MIRANDA, 2009). Segundo a autora, a ordenação e o planejamento do uso do solo é imperativo para alcançar um equilíbrio entre a oferta e a demanda.
O fato social favela leva a um dualismo, do reconhecimento da situação de subordinação a qual as coletividades favelizadas se encontram submetidas às mais complexas e tradicionais comportamentos. Esse fato social cria uma ordem jurídica interna à favela que não significa que ela seja necessariamente melhor ou pior, mais ou menos democrática do que a ordem legal oficial, mesmo essa sendo desigual (MAGALHÃES, 2014).
Nesse sentido, válidas são os ensinamentos de Durkheim: “Se suas relações são tradicionalmente estreitas, os segmentos tendem a se confundir; no caso contrário, tendem a se distinguir. O tipo de habitação a nós imposto não é senão a maneira pela qual todo o mundo, em nosso redor - e em parte as gerações anteriores -, se acostumaram a construir as casas (DURKHEIM, 1978).
O construir casas de forma desigual implica no exercício de reconhecimento das ordens jurídicas de ocupação das favelas em um exercício estratégico, quer do ângulo teórico-jurídico, quer do ângulo das suas implicações sociopolíticas (MAGALHÃES, 2009). Essa disparidade aqui ressaltada, no ângulo sociopolítico, pode colaborar para a afirmação da cidadania e da condição de sujeito de direito, em um contexto de desigualdade socioespacial (RODRIGUES, 2007).
Ao contrário do aqui enfatizado, o princípio da igualdade, positivado no art. 5 da Constituição Federal, deve se manifestar na elaboração e aprovação de planos que constituem regras à ocupação, uso e transformação do solo urbano ou rural. A todo cidadão deve estar garantido em respeito à Constituição, igualitariamente, o acesso à cidade.
Em continuidade normativa, a matéria de direito urbanístico, longe de se esgotar no artigo 182 da Constituição, demonstra que o desenvolvimento urbano deve ter por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
É sobre isso que fala Durkheim (1978): “Não podemos escolher a forma de nossas casas, nem a de nossas roupas; pois uma é tão obrigatória quanto a outra. As vias de comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido em que se fazem as migrações interiores e as trocas, e mesmo até a intensidade de tais trocas e tais migrações, etc., etc. Por conseguinte, haveria, no máximo, possibilidade de acrescentar à lista de fenômenos que enumeramos como apresentando o sinal distintivo do fato social uma categoria a mais, a das maneiras de ser; e corno aquela enumeração nada tinha de rigorosamente exaustiva, a adição não era indispensável”.
Dessa forma, o dualismo apresentado diz respeito à favela e ao Direito Urbanístico de modo geral, e que tem sido historicamente marcado pela crônica falta de efetividade.
3 CONCLUSÃO
O fenômeno urbano moderno de uma sociedade industrializada e desenvolvimentista, com grandes centros de aglomerações, fabricas e serviços, deixou de lado o pensar a cidade em forma de ocupação urbana e de cidadania. Nota-se que a análise da favela pelo direito urbanístico deve ir além das amarras do positivismo e considerar o espaço e os seus territórios.
Esses territórios denotam estruturas de poder de uma estrutura organizacional, com relações pessoais transversais que influenciam as atividades e comportamento dos seus ocupantes, construindo o fato social favela.
Nesse sentido, pode-se concluir que este fato social cria uma ordem jurídica interna à favela, que não significa que ela seja necessariamente melhor ou pior, mais ou menos democrática do que a ordem legal oficial, mesmo essa sendo desigual. Deve-se buscar a efetivação plena da legislação com a elaboração e aprovação de planos que constituam regras à ocupação, uso e transformação do solo urbano ou rural que garantam, igualitariamente, o acesso à cidade.
4 REFERÊNCIAS
DA SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.
DA SILVA, Luiz Antônio Machado. A política na favela. Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 4, p. 699-716, 2011.
DE ALMEIDA, Ronaldo; D'ANDREA, Tiaraju. Pobreza e redes sociais em uma favela paulistana. 2004.
DO PRADO VALLADARES, Licia. A invenção da favela: do mito de origem a favela. com. FGV, 2016.
DURKHEIM, Emile. O que é fato social. DURKHEIM, Emile (org). As regras do método sociológico. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 87-109.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. v. 3. São Paulo: Globo, 2001.
GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2016.
GUIMARÃES, Nathália Arruda. O direito urbanístico e a disciplina da propriedade. Revista Magister de Direito Imobiliário, Registral, Urbanístico e Ambiental, n. 1, p. 27, 2003.
MAGALHÃES, Alex Ferreira. O direito das favelas no contexto das políticas de regularização: a complexa convivência entre legalidade, norma comunitária e arbítrio. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 11, n. 1, p. 89, 2009.
MAGALHÃES, Alex. O direito das favelas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.
MIRANDA, Maria Bernadete. Princípios Constitucionais do Direito Urbanístico. Revista Virtual Direito Brasil, São Paulo, v. 3, n. 1, 2009.
RODRIGUES, Arlete Moysés. Desigualdades socioespaciais – a luta pelo direito à cidade. Revista Cidades, v. 4, n. 6, 2007.
SKINNER, Burrhus Frederic. Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista brasileira de ciências sociais, v. 15, n. 44, p. 05-34, 2000.
[1] No primeiro capítulo de As regras, Durkheim indaga o que seria fato social. E traz como definição: “é um fato social toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior; ou ainda, que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 1978, 92-93).
Doutoranda em Direito Constitucional pela UNB. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2015), com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). Especialista em Direito Constitucional. Advogada com experiência na área de Direito Público e de Direito Privado. Foi pesquisadora e bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em projetos com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). É pesquisadora e Líder do Grupo de Pesquisas Interdisciplinares em Direito (GEPID), registrado no Diretório de Pesquisas do CNPq. É professora na Faculdade Evangélica de Goianésia (FACEG), mantida pela Associação Educativa Evangélica (AEE), onde desempenha as funções de membro do Núcleo Docente Estruturante (NDE) do curso de graduação em Direito; É coordenadora de estágio do curso de graduação em Direito; coordenadora do projeto de extensão Faculdade Aberta da Terceira Idade (FATI); e coordenadora de monitoria acadêmica do curso de Direito. É, ainda, professora na Faculdade Metropolitana de Anápolis (FAMA) na disciplina de Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSIS, Luana Bispo de. Fato social-favela: uma análise da favela sob o prisma do Direito Urbanístico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 abr 2020, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54423/fato-social-favela-uma-anlise-da-favela-sob-o-prisma-do-direito-urbanstico. Acesso em: 23 dez 2024.
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