RESUMO: A Magna Carta de 1988 promoveu substanciais mudanças no Direito de Família, não só para harmonizá-lo com os preceitos ali consagrados, como também para consubstanciar o processo de recepção da realidade social pelo ordenamento. As diretrizes jurídicas que norteiam as relações familiares foram constitucionalmente delineadas, dentre as quais se destacam os princípios da solidariedade e da dignidade da pessoa humana. A família, até então sinônimo de casamento, passou por profundas alterações em sua vocação e modo de constituição, em virtude de fatores sociais e econômicos. Novos arranjos familiares nasceram, desafiando a ordem jurídica. O afeto conquistou importância frente ao Direito, desencadeando vínculos, direitos e deveres no âmbito familiar. Nesse contexto, o presente trabalho tem o objetivo de evidenciar que, no que tange à filiação, a afetividade representa a verdadeira força da construção do ideal de parentalidade.
Palavras-chaves: Parentalidade. Socioafetividade. Direito de Família. Família Contemporânea.
ABSTRACT: The 1988 Magna Carta promoted substantial changes in Family Law, not only to harmonize it with the precepts therein, but also to substantiate the process of receiving social reality through the order. The legal guidelines that guide family relationships were constitutionally outlined, among which the principles of solidarity and human dignity stand out. The family, until then synonymous with marriage, has undergone profound changes in its vocation and form of constitution, due to social and economic factors. New family arrangements were born, challenging the legal order. Affection gained importance in the face of Law, triggering bonds, rights and duties in the family sphere. In this context, the present work aims to show that, when it comes to affiliation, affection represents the true strength of the construction of the ideal of parenting.
Palavras-chave: Parenting. Socioaffectivity. Family right. Contemporary Family.
1 INTRODUÇÃO
A Magna Carta de 1988 trouxe o princípio da dignidade da pessoa humana como objeto contrário ao viés patrimonialista das relações familiares até então existentes. Buscou-se abordar as tendências conceituais de filiação no mundo jurídico, através da importância no direito nacional e da filiação socioafetiva.
As relações de parentesco passaram por substanciais reestruturações por intermédio dos novos paradigmas da filiação. O fenômeno intitulado “paternidade socioafetiva” modela a realidade das famílias brasileiras nos presentes dias.
O processo de formação da atual família brasileira sofreu influências diretas do direito germânico, romano e canônico.
A família romana era baseada nas relações de consangüinidade e não na ligação e no afeto entre os integrantes da família. O culto com os antepassados e a religião também eram elementos de suma importância na constituição da família. Por este motivo, era fundamental que um “descendente homem” desse continuação à proliferação da espécie familiar.
Os vínculos religiosos se sobrepunham aos laços sanguíneos e a autoridade máxima familiar era desempenhada pelo chefe de família – pater familias. Por sua vez, no direito canônico, o parentesco moderno tinha como característica a consanguinidade. Já o direito germânico reconhecia a instituição familiar como um grupo de pais e filhos.
O Código Civil de 1916 só reconhecia as famílias formadas através do casamento, assim, outras formas de união ficavam à margem da lei. O vínculo afetivo não importava, exatamente por não ter reconhecimento no âmbito jurídico. Vale salientar que o Código Civil de 1916 tutelava somente a “família legítima”.
O parentesco era dividido em: legítimo ou ilegítimo (a depender ou não da celebração do casamento) e o natural ou civil (fruto da consanguinidade ou da adoção).
A Constituição Cidadã conferiu um novo tratamento jurídico às relações familiares, rompendo a estrutura instituída pelo ordenamento civil de 1916. Ao aplicar suas normas na própria família, com o propósito de tutelá-la, para alcançar sua finalidade social, a Constituição inovou, trazendo uma ressignificação dos institutos fundamentais do Direito Civil.
O diploma civil de 2002 influenciado pelos ditamos da Magna Carta de 1988, trazendo diversas mudanças em matéria de direito de família. A família passa a ter como alicerce o amor e não mais os vínculos sanguíneos e de autoridade.
O presente estudo tem relevância por reafirmar a importância do reconhecimento do parentesco afetivo em prol do melhor interesse da criança e do adolescente e em conformidade com os novos arranjos familiares decorrentes da relação de amor, carinho e cuidado.
Neste contexto, apresentam-se duas questões inquietantes: Qual a multiplicidade de vínculos juridicamente admissíveis, aqueles fundados na socioafetividade, ou também seria admissível a simultaneidade entre os vínculos socioafetivo e biológicos? Quais seriam os efeitos jurídicos dessa relação?
Através dos questionamentos levantados, objetiva-se com o presente estudo demonstrar que o cerne do reconhecimento da pluriparentalidade gira em torno dos laços da afetividade. Deste modo, é perfeitamente possível o reconhecimento deste modelo de família através da simultaneidade de vínculos socioafetivos e biológicos. Exemplos disso são os contratos de filiação, filiações decorrentes de relações homoafetivas e etc.
Em linhas gerias os efeitos decorrentes do reconhecimento da relação de multiparentalidade refletem os mesmo deveres que os pais têm em relação aos seus filhos, tanto sob a ordem existencial quanto material, conforme será explanado com no decorrer deste trabalho.
Para fundamentar o presente trabalho, serão utilizadas coletas de dados, através de documentação indireta, ou seja, pesquisas bibliográficas (fonte secundária). O material a ser utilizado para o desenvolvimento da pesquisa está disponível em livros, revistas, artigos científicos referentes ao assunto em questão.
O método de abordagem a ser empregado será o dedutivo, já que parte do geral para o particular. E o tipo de procedimento, ou seja, o meio ao qual a investigação se dará será através do método histórico que visa investigar acontecimentos, processos e instituições do passado para analisar os reflexos na atual sociedade.
2 DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA
Nos presentes dias, o direito pátrio tem aceitado vários modelos de família. Seja ela proveniente de matrimônio entre homem e mulher e sua prole; seja a família monoparental, em que só existe a mãe ou pai e seus filhos; dentre outras formas que insurgim com o desenvolvimento da sociedade.
Evidentemente já se deixou de lado aquela concepção de que a família é unicamente constituída a partir do matrimônio, em que a mulher cuida dos afazeres domésticos e dos filhos e o homem sustenta a casa (CASSETTARI, 2016).
Notadamente, com a evolução da sociedade, passou-se a reconhecer a formação das famílias afetivas, nesta esteira, Jédison Daltrozo Maidana mencionou em um de seus artigos que:
a ampliação moderna do conceito de família adotado pela Constituição Federal de 1988 (CF), pela Lei do Concubinato e pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) amplia os horizontes do conceito de paternidade e faz fulgurar a noção de filiação afetiva (MAIDANA, 2004, p.60).
A Carta Constitucional de 1988 estabelece em seu art. 227, como direito fundamental, a convivência familiar e comunitária, a partir daí depreende-se que é dever do ente estatal proteger a família e conferir a elas as condições básicas de existência (BRASIL, 1988).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) confirma tal preceito dispondo em um capítulo inteiro sobre a matéria, e ainda em seu art. 19 determina que:
Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes (BRASIL, 1990).
Observa-se, assim que com o decorrer do tempo, as variadas formas de família estão se ampliando e modernizando, o que em épocas passadas estava pautado na religião, atualmente já consegue trilhar caminhos diversos e se moldar a realidade da sociedade e as suas necessidades.
A proteção à família passou a ser consagrada tanto pelas originárias do matrimônio, como as decorrentes de uniões estáveis, ou ainda da família formada por qualquer dos pais e sua prole, segundo a Constituição Cidadã.
No que tange aos filhos, sob a ótica do direito nacional, a filiação pode ser biológica ou não biológica, e também a eles o texto constitucional estabeleceu a impossibilidade de discriminação, independente de sua origem (TEIXEIRAS; RODRIGUES, 2010). E conferiu tanto ao homem quanto à mulher, os mesmos deveres e direitos para com estes. Como bem assevera Gerard Cornu, citado por Paulo Lôbo (2011, p. 216), “a verdade biológica não reina absoluta sobre o direito da filiação, porque esta incorpora, necessariamente, um conjunto de outros interesses e valores”.
Atualmente, no arcabouço jurídico brasileiro, a “posse de estado de filiação” tem sido a diretriz para a caracterização das entidades familiares que nascem. Isto é, a boa convivência evidencia que aquela relação existe e que merece ser respeitada como família. Na posse de estado de filho, o comportamento dos envolvidos sedimenta a presença de um vínculo independente de laços sanguíneos ou qualquer documento comprobatório de filiação (CASSETARI, 2016).
Corroborando com esse entendimento o Código Civil prevê em seu art. 1.605 o seguinte: “Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito: (…) II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos” (BRASIL, 2002).
Segundo Paulo Lôbo (2011, p. 236) “a posse de estado de filiação refere à situação fática na qual uma pessoa desfruta do status de filho em relação à outra pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade legal”.
A verdade é que o vínculo genético é somente um dos diversos elementos das relações de paternidade. E o afeto passa a representar elemento extremamente válido e importante na formação de vínculos.
Assim como a União Estável é reconhecida e equiparada à entidade familiar, a posse de estado de filho também deve ser reconhecida como constituidora de parentesco.
Observa-se então que a característica mais preponderante das famílias modernas é a socioafetividade. Este termo tem sido frequentemente empregado para caracterizar as relações afetivas que nascem a partir do envolvimento entre dois ou mais indivíduos, sejam eles crianças, adolescentes ou adultos, mulheres ou homens (SOUZA, 2015).
A socioafetividade conquistou um espaço antes nunca imaginado, pois a partir destas relações de afeto, diversos vínculos têm sido reconhecidos várias famílias têm surgido. O que faz com que o princípio mater semper certa est seja facilmente adulterado, como preleciona Jédison Daltrozo Maidana (2004), em seu artigo sobre a filiação.
A relação socioafetiva caracteriza a paternidade como função social, sendo determinante para criar laços, portanto, ela por si só já é suficiente para afastar o caráter biológico como fator exclusivo. Noutras palavras, a boa convivência passa a ter relevância extrema, afasta-se o viés biológico e colaca-se o afetivo. Jédison Daltrozo Maidana (2004, p.58) afirma que “ao passo que o sistema jurídico redefine os conceitos de família, a questão da paternidade sobreleva-se como uma mera concepção jurídica, e, adotado este diapasão, torna-se possível o reconhecimento do vínculo afetivo como caracterizador, por si, da filiação”.
O próprio diploma civil, em seu art. 1593 dá espaço para a aceitação da socioafetividade, visto que dispõe do seguinte modo: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Assim, esta expressão “outra origem” acaba por admitir outras modalidades de parentesco, além das tradicionais, como a consanguinidade ou a adoção (BRASIL, 2002).
De acordo com Rose Melo Vencelau (2004, p.112), o “genitor não é necessariamente o pai”, visto que, citando Paulo Lôbo (2004, p. 113), ela defende que a filiação “emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade”.
O princípio que serve de norte no momento é a dignidade da pessoa humana, que deixa de lado a autoridade patriarcal, e coloca em evidencia a proteção da entidade familiar, igualando-se filhos biológicos e adotivos. E com isso, passando os direitos fundamentais a serem garantidos, atingindo mais crianças e adolescentes (CASSETARI, 2016).
No que tange ao princípio da dignidade humana, Netto Lôbo (2003, p. 139), cita Immanuel Kant, o qual afirma que
no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
Assim, infere-se que, o ente estatal passou a reconhecer que a criança e o adolescente deve receber integral proteção, visto que isso reflete no desenvolvimento do país, devendo estes serem resguardados de quaisquer atos que os impeçam de atingir o crescimento sadio; e é a família a responsável por garantir o interesse do menor.
De acordo com Tânia da Silva Pereira (2008, p. 281), “como base da sociedade, a família deve ser elemento de coesão social e deverá participar ativamente dos projetos sociais da comunidade”. Portanto, a família tem uma função essencial na sociedade, a de formar as gerações futuras, e por este motivo as suas formas de manifestação, das mais simples às mais complexas, devem ser reconhecidas e protegidas pelo ordenamento jurídico.
A família não é mais considerada somente uma instituição, é enxergada como o ponto de partida para o desenvolvimento dos ser humanos, e aqui se frisa mais uma vez o aspecto da dignidade da pessoa humana, uma vez que um ambiente familiar constitui a base para se desenvolver e é nesse ambiente que cada indivíduo obtém características de sujeitos de direito.
Ademais, para o filho, independente de ser biológico ou não, a única coisa que irá importar é a afetividade, serão as boas relações do cotidiano, não sendo relevante saber como o ato que o levou ao status de filho se deu. Assim sendo, deverá prevalecer o melhor interesse do menor.
3 RELAÇÕES DE PARENTESCO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
A evolução do direito de família, no decorrer da história, perdeu várias de suas funções fundamentais. No Código Civil anterior ela era patriarcal, e pautava-se exclusivamente no matrimônio, bem como pelos filhos gerados neste. Qualquer “instituição” estabelecida fora deste padrão não era reconhecida pelo ordenamento jurídico.
De maneira acertada, esta concepção não prevalece mais, pois a família contemporânea é constituída pelos laços de relacionamento e pela afetividade. A constitucionalização do Direito Civil, através da Carta Constitucional exerceu grandes influências nas relações de parentesco (FACHIN, 2011).
O Código Civil de 2002 estabelece o parentesco, recepcionando tanto o consanguíneo como o civil. Essa legislação trouxe uma forma mais abrangente para as relações de parentesco, visto que o afeto e a responsabilidade passaram a ser considerados os pontos mais importantes na formação da estrutura das famílias, isto é, a base sólida.
A filiação pode ser entendida como a relação de parentesco consanguíneo, em linha reta e em primeiro grau, que liga o indivíduo àqueles que o geraram, ou o receberam como se os tivessem gerado.
Como visto anteriormente, o texto constitucional equiparou os filhos, afastando qualquer espécie de designação discriminatória em relação a estes. O art. 1.593 do CC deixa claro o reconhecimento da paternidade socioafetiva, convalidando que pais e filhos não são unidos somente pelos laços sanguíneos, mas também pelo amor, afeto, carinho, respeito: “Art. 1.593: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (BRASIL, 2002).
O Estado buscou proteger os indivíduos que integram a família constituída com base nos laços de afeto e direcionada à realização espiritual e ao desenvolvimento da personalidade de seus componentes.
Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira (2018) foi um dos primeiros doutrinadores a tratar a “paternidade socioafetiva” definindo-a como aquela que se pauta na construção e aprofundamento dos laços afetivos entre o pai e o filho, entendendo-se que a real legitimação dessa relação se dá não pelo fator sanguíneo, nem pelo jurídico. Dá-se pelo amor vivido e construído por pais e filhos.
O estado de filho afetivo detém as mesmas atribuições do estado de filho biológico, já que a filiação deveria ser uma imagem refletida entre pais e filhos, sem discriminações, sem identificar-se com o aspecto sanguíneo mas sim com a voz do coração.
Os laços de amor, solidariedade e carinho nascem da convivência e não somente do sangue. Compete a ambos os cônjuges (ou somente a um deles) as funções de educar, dar moradia, proteger a criança, independente do vínculo biológico ou jurídico existente entre eles.
Prova disso é que o afeto tem conquistado cada vez mais reconhecimento no âmbito jurídico, e a sociedade se mostra favorável a esse ato por colocar em primeiro lugar o bem-star do menor que passa a ser inserido no seio de uma entidade familiar (PEREIRA, 2018).
4 AFETIVIDADE NO CENÁRIO JURÍDICO
O instituto da filiação teve sua proteção ampliada, não mais se atrelando somente ao matrimônio ou a hierarquização de vínculos, conforme dispõe o art. 227, § 6º, do texto constitucional: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 1988).
Deste modo, a paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por admitir que uma pessoa tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além das questões formais, a regular adoção, a verdade real das circunstâncias.
As relações afetivas podem ser identificadas pelos filtros do Direito, desde que manifestadas, servindo como embasamento para o processo judicial que trate da temática.
A socioafetividade se manifesta pelo reconhecimento no meio social de uma dada manifestação de afetividade, percebida pela coletividade. A afetividade, para o Direito, deve ser vista através da percepção de fatos concretos que permitam sua constatação no campo fático, sendo concretizada pela forma como se instalam as relações.
O princípio jurídico da afetividade, apesar de não ter sido positivado na Constituição Federal, pode ser reconhecido como um princípio jurídico, na medida que sua definição é construída através de uma interpretação sistemática do texto constitucional (art. 5º, § 2ºCF): Art. 5.º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988).
O papel atribuído à afetividade tem crescido no Direito de Família, que não mais pode menosprezar de suas considerações a qualidade dos vínculos presentes entre os membros de uma família. Talvez, atualmente, a maior das conquistas da família modera seja a reciprocidade de sentimentos. Assim, torna-se possível concluir que a socioafetividade representa o reconhecimento no meio social de concretas manifestações afetivas. Nesse sentido, o STJ foi um dos principais precursores na edificação do sentido de socioafetividade para o Direito de Família brasileiro ao recepcionar, há muito tempo, essa característica, mesmo sem legislação expressa que tratasse sobre a matéria (PEREIRA, 2018).
5 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
A definição de filiação de Paulo Lobo envolve o vínculo proveniente da socioafetividade, manifestada por meio da noção da posse de estado:
Filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga (LÔBO, 2008, 192).
O progresso da afetividade na definição das relações familiares é observado também no direito comparado, como se observa nas palavras de Pietro Perlingieri (2002, p. 44):
O sangue e o afeto são razões autônomas de justificação para o momento constitutivo da família, mas o perfil consensual e a affectio constante e espontânea exercem cada vez mais o papel de denominador comum de qualquer núcleo familiar. O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às relações de sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas que se traduzem em comunhão espiritual e de vida.
Para o renomado jurista Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2003, p. 25):
[...] a manutenção da filiação socioafetiva, mesmo que comprovada a ausência do vínculo biológico está de acordo com o sentido civil-constitucional de filiação apurado pelo direito de família contemporâneo, que é unânime em afirmar que a paternidade não decorre apenas da descendência genética.
O reconhecimento da socioafetividade como vínculo parental suficiente possibilita perceber que nem sempre a filiação estará vinculada à descendência biológica, quando em sua maior parte não está. Os vínculos paterno-filiais possuem distinção entre o direito ao reconhecimento da linhagem genética e o direito de ter reconhecida uma relação parental. Tanto jurisprudência como doutrina comungam desta ideia.
As relações socioafetivas são formadas a partir do carinho, do afeto, do cuidado que, no decorrer dos anos, se dilui na convivência familiar, apoio moral e compromisso por ventura, patrimonial.
O relacionamento socioafetivo sólido vai eivado de responsabilidades entre os entes envolvidos, tendo reconhecimento externado perante a sociedade. O estado de filiação também pode restar presente, por meio de um vínculo registral, socioafetivo, adotivo, em virtude da incidência das presunções legais ou ainda pelas situações de reprodução assistida, entretanto, nem todas as paternidades devem estar consubstanciadas em vínculos genéticos.
A ideia é de que o estado de filiação detém um sentido civil-constitucional plural que não pode ser ignorado, visto que os vínculos de filiação podem ser genéticos, presuntivos, registrais, adotivos ou socioafetivos.
O direito de família traçou os contornos das relações de parentesco, nem sempre perpassando pelas questões sanguíneas. O conhecimento da origem genética (poder a qualquer tempo ter ciência da sua ancestralidade biológica), questão que faz parte do direito de personalidade, não se estende necessariamente aos efeitos de parentesco.
Desta forma, é cabível a todos averiguar judicialmente seu ascendente biológico, porém, não necessariamente qualquer relação de parentesco, máxime quando esta já estiver estabelecida com outrem.
O vínculo genético pode ou não, influenciar na relação de filiação, sempre condicionado as particularidades da situação concreta. Conforme bem observa Paulo Luiz Netto Lôbo (2004, p. 523), “pai é quem cria, ascendente quem gera”. O status de filiação, aquele que advém da estabilidade dos laços afetivos constituídos no dia a dia de pai e filho, constitui, como fundamento basilar, a atribuição de paternidade e também de maternidade.
Muito além do que somente um dado objetivo (sanguíneo), consolidou-se o entendimento de que a parentalidade consubstancia um dado sociológico (cultural) e, por conseguinte, ser mãe ou pai nos presentes dias é uma função.
Assim, a filiação socioafetiva é uma figura típica das famílias hodiernas. Desde que os modelos familiares ganharam múltiplas facetas, com a constituição de famílias recompostas (com pais, padrastos, enteados e filhos), convivendo de maneira harmoniosa e com amor nas suas relações, observou-se a necessidade de alguma regulamentação para viabilizar o reconhecimento da afetividade como forma de legitimação de situações de posse do estado de filho.
O ECA já estabelecia em seu art. 41, § 1º, a possibilidade de adoção do enteado por sua madrasta ou padrasto, contudo, não reconhecia a pluriparentalidade. Havia a obrigatória destituição do poder familiar do genitor que seria substituído.
A afetividade entre padrastos, madrastas e enteados é real. Diversas vezes a criança ou o adolescente se identifica mais com seu padrasto do que com o próprio genitor biológico. Para sanar esta necessidade dos enteados de se identificarem como parte integrante da família da madrasta ou do padrasto houve uma mudança, no ano de 2009, na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), permitindo a averbação, no assento de nascimento, do apelido de família da madrasta ou padrasto, acrescidos aos apelidos dos genitores (art. 57, § 8º). Não ocorreu o reconhecimento da pluriparentalidade, mas a possibilidade de identificação da posse do estado de filho pelo enteado.
Entretanto, para fins civis, enteado não é filho, ou seja, não possui os mesmos direitos e obrigações. Vale salientar que, para fins previdenciários, desde o ano de 1991, o enteado é equiparado ao filho, concorrendo com este na obtenção de benefícios, desde que comprovada a dependência financeira com o segurado (art. 16, § 2º, da Lei 8.213/1991).
Retomando a cláusula de parentesco por “outra origem”, a afetividade é um desses fatores que podem ser ponderados para acarretar esse vínculo de filiação. A respeito dessa questão, Nery e Nery Junior (2014, p. 1820) ensinam que:
A afetividade é um desses fatos que podem gerar efeitos jurídicos de, até mesmo, criar o parentesco civil por “outra origem”. A norma comentada abre para o sistema curiosa e nova forma de identificação de parentesco em linha reta. A afetividade “se institucionaliza” como conceito legal indeterminado e, como tal, necessita de interpretação integrativa do juiz, de modo a completar o sentido da norma no caso concreto e, por conseguinte, criar laço de parentesco por outra origem.
Em 29 de setembro de 2016, o STF apreciou a questão da filiação socioafetiva em sede do Recurso Extraordinário 898.060-SC, submetido ao procedimento da repercussão geral, fixando a seguinte tese jurídica para aplicação a situações similares: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (STF, 2016, p.01).
O Ministro Edson Fachin divergiu em seu voto e deu provimento parcial ao recurso, ao reconhecer que o vínculo socioafetivo “‘é o que se impõe juridicamente no caso dos autos, tendo em vista que existe vínculo socioafetivo com um pai e vínculo biológico com o genitor” (STF, 2016, p.01)
Para o respeitável Ministro existe distinção entre o ascendente genético (genitor) e o pai, ao salientar que a realidade do parentesco não se confunde exclusivamente com o aspecto biológico. “O vínculo biológico, com efeito, pode ser hábil, por si só, a determinar o parentesco jurídico, desde que na falta de uma dimensão relacional que a ele se sobreponha, e é o caso, no meu modo de ver, que estamos a examinar” (STF, 2016, p.01).
À época, julgando o mesmo recurso, o Ministro Teori Zavascki ratificou o posicionamento do Ministro Fachin, acrescentando o seguinte: “[...] a paternidade biológica não gera necessariamente a relação de paternidade do ponto de vista jurídico e com as consequências decorrentes. No caso há uma paternidade socioafetiva que persistiu, persiste e deve ser preservada” (STF, 2016, p.01).
Noutras palavras, o STF reconheceu que uma situação fatídica (filiação socioafetiva, poderia ser reconhecida independentemente da emanação da vontade prévia do suposto pai afetivo, assegurando a pluriparentalidade.
Deste modo, um mesmo indivíduo poderia possuir em seu registro de nascimento os nomes de seus pais biológicos ao lado dos seus pais socioafetivos, possuindo, assim, mais do que dois vínculos filiais.
Nesse sentido, o Código Civil da Argentina proíbe a possibilidade de existência simultânea de mais de dois vínculos simultâneo, em seu art. 558.
Assim, o entendimento do STF é diametralmente contrário à legislação da argentina, visto que reconhece a possibilidade da pluriparentalidade “com os efeitos jurídicos próprios”. Efeito jurídico próprio do reconhecimento de estado de filho significa ser tratado de maneira igual aos demais filhos, sendo sucessor legítimo. Surge a possibilidade de um mesmo filho fazer jus a mais do que duas heranças de seus pais.
A possibilidade de um mesmo indivíduo receber mais de uma herança em virtude do mesmo vínculo de filiação já foi analisada pelo STJ nos casos da denominada “adoção à brasileira”. Nessa categoria, os pais socioafetivos registram o menor como seu, omitindo o nome dos genitores.
O referido Tribunal sedimentou jurisprudência reconhecendo o direito do adotado em buscar suas raízes biológicas e todos os direitos daí provenientes, inclusive sucessórios.
Desse modo, como já reconhecida a possibilidade de sucessão de um mesmo indivíduo por mais de um vínculo filial na mesma espécie (mãe ou pai) abre-se a possibilidade de um filho socioafetivo ser herdeiro tanto de seus genitores quanto de seus pais afetivos.
6 CONCLUSÃO
O conceito de família sofreu substancias modificações nos últimos anos, muitas dessas alterações estão intimamente relacionadas com as novas tecnologias.
Diversos direitos já preservados na Magna Carta aos poucos estão sendo efetivados, conforme os conflitos se proliferam em nossos tribunais, e a cada nova decisão ocorrem reflexos de maneira ampla, abarcando temas que até pouco tempo seriam improváveis objetos de discussões jurídicas.
Considerada a entidade familiar como capaz de consolidar a felicidade de cada um dos sujeitos que nela convivem, a parentalidade socioafetiva surge nesse cenário dotada de tal potência, pois, longe de se amoldar nos padrões convencionais de família, conforta-se tal arranjo no reconhecimento da pluralidade.
Sob o prisma do melhor interesse da criança e do adolescente, infere-se que não se adequar nos referidos padrões de família, por si só, não significa prejuízo para os filhos que passam a ter múltiplas filiações. Ao contrário, privá-lo desta presente condição resultaria em efeitos reversos na realização de seu melhor interesse, cujo alvo central é assegurar um seio familiar amparado no amor, no cuidado, no exercício efetivo da maternidade ou paternidade em seu sentido mais puro. Assim, em relação à filiação, a afetividade representa a verdadeira força da construção do ideal de parentalidade.
Data de elaboração: 14/04/2020 17:02
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NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil Comentado. 11. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014.
Bacharelanda em Direito pelo Instituto Damásio Educacional .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRISTALINO, Gabrielly Passiano. Parentesco socioafetivo no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 abr 2020, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54448/parentesco-socioafetivo-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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