TICIANNE ARAÚJO SILVA[1]
ME. JOÃO SANTO DA COSTA[2]
(Orientador)
RESUMO: Utilizando-se de método dedutivo e o procedimento bibliográfico, buscou-se inicialmente, analisar a evolução histórica dos conceitos de família, afeto e filho, para só então, analisar o parentesco socioafetivo e a presença da multiparentalidade nas famílias atuais. O presente artigo tem como objetivo geral analisar as consequências jurídicas do reconhecimento da multiparentalidade, destacando os seus efeitos sucessórios e como objetivos específicos: apontar os conceitos referentes à multiparentalidade e verificar as decisões judiciais acerca do tema; abordar o posicionamento de doutrinadores no que diz respeito aos fatores que determinam a entidade familiar e o reconhecimento da multiparentalidade; pesquisar decisões, interpretações jurisprudências acerca do registro da multiparentalidade no Registro Civil das Pessoas Naturais. A princípio, analisa-se a evolução histórica dos conceitos de família, afeto e filho para, posteriormente, analisar o parentesco socioafetivo e a presença da multiparentalidade nas famílias atuais. É também nesses princípios e na ausência de impeditivos legais que o estudo fundamenta o devido reconhecimento de todos os direitos e deveres ao filho multiparental, inclusive o direito sucessório.
Palavras-chave: Filhos, família, multiparentalidade, socioafetivo
SUMÁRIO: 1. Família: análise conceitual e princípios norteadores 1.1 A análise conceitual de família. 1.2 Dos princípios norteadores das relações familiares2. A filiação no direito civil constitucional da origem e tutela jurídica à socioafetividade 3. Sucessão e a multiparentalidade. 3.1 Multiparentalidade: incidência e reconhecimento 3.2 Capacidade sucessória: limites à sucessão legítima no CC/2002. 3.2 A sucessão legítima na multiparentalidade: alcance e limites de incidência. 4. Conclusão. Referências.
A filiação foi o tema, que no ramo de direito da família, mais sofreu influência dos valores consagrados na Constituição Federal de 1988, que em sua síntese conceitual trata de descendência direta de primeiro grau. Sobre a perspectiva de uma ótica tradicional, a filiação era vista através de um reconhecimento que é resultado de uma dual parentalidade, em primeiro grau, ou seja, que os filhos se vinculavam a um pai e uma mãe. Um dogma, que com o passar do tempo necessitou de uma visão mais abrangente, principalmente quando se trata das relações de família.
A multiparentalidade trata justamente sobre esta nova visão, em que um indivíduo possa apresentar mais de um pai, ou mais de uma mãe, produzindo efeitos jurídicos a todos eles, tornando-se tema de grande relevância no âmbito jurídico, buscando no código civil brasileiro, especificamente, no direito de família, em conjunto com o direito sucessório, tratar mais claramente sobre o tema, seus efeitos, direitos e obrigações.
Constantemente, foi vista a família como retrato de sucesso pessoal, como representação da conquista da meta imposta pela sociedade: crescer, casar e reproduzir. Assim, era instituto estático e formal no qual, por muito tempo, prevalecia apenas a vontade do homem. No decorrer do tempo, as pessoas passaram a ser consideradas em sua particularidade e o bem-estar de cada um dos integrantes da família individualmente atraiu interesse e passou a ser o verdadeiro foco das famílias e do direito.
Com a chegada da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, todos os filhos passaram a ser constitucionalmente iguais e a terem os mesmos direitos e deveres, independentemente de sua origem. Permitiu-se e facilitou-se o divórcio, os casamentos passaram a ocorrer entre pessoas mais maduras e deixaram de ser pré-requisito para o fim obrigatório da maternidade/paternidade. Desapareceu “a família” para surgirem “as famílias”. As mais diversas possíveis: monoparental, anaparental, homossexual, ou seja, famílias.
Utilizando-se de método dedutivo e o procedimento bibliográfico, buscou-se inicialmente, analisar a evolução histórica dos conceitos de família, afeto e filho, para só então, analisar o parentesco socioafetivo e a presença da multiparentalidade nas famílias atuais.
O alicerce do presente trabalho pautou-se em princípios constitucionais, como a igualdade entre filiações de diferentes origens, igualdade entre irmãos e o livre planejamento familiar, para demonstrar o firme respaldo constitucional do fenômeno. Foi também nesses princípios e na ausência de impeditivos legais, que o estudo embasou o devido reconhecimento de todos os direitos e deveres ao filho multiparental, inclusive o direito sucessório, buscando analisar o reflexo prático do estudo realizado por meio de julgados.
Diante do pressuposto o presente artigo tem como objetivo geral analisar as consequências jurídicas do reconhecimento da multiparentalidade, destacando os seus efeitos sucessórios e como objetivos específicos: apontar os conceitos referentes à multiparentalidade e verificar as decisões judiciais acerca do tema; abordar o posicionamento de doutrinadores no que diz respeito aos fatores que determinam a entidade familiar e o reconhecimento da multiparentalidade; pesquisar decisões, interpretações jurisprudências acerca do registro da multiparentalidade no Registro Civil das Pessoas Naturais.
1. Família: análise conceitual e princípios norteadores
1.1 A análise conceitual de família.
Constantemente, a família foi vista como símbolo de sucesso pessoal, como representação da conquista da meta imposta pela sociedade: crescer, casar e reproduzir. Assim, era instituto estagnado e convencional no qual, por muito tempo, prevalecia apenas a vontade do homem (pai/marido), o patriarcado. Com o tempo, as pessoas passaram a ser consideradas em sua individualidade; e o bem-estar e interesse individual de cada membro da família passou a ser o verdadeiro foco das famílias e do direito.
Na civilização Romana a família era regida sob o princípio da autoridade sendo direcionada pelo “chefe de família” (pater) dominando todos os que estavam sob sua autoridade, possuía o direto da vida e da morte destes, assim podia comercializar e impor castigos aos entes familiares se estes não obedecessem a suas ordens (GONCALVES, 2018, p.31).
Sob a influência da igreja cristã o direito romano passou a restringir a autoridade exercida pelo pater poder.
Com o tempo, a severidade das regras foi atenuada, conhecendo os romanos o casamento sinemanu, sendo que as necessidades militares estimularam a criação de patrimônio independente para os filhos. Com o Imperador Constantino, a partir do século IV, instala-se no direito romano a concepção cristã da família, na qual predominam as preocupações de ordem moral. Aos poucos foi então a família romana evoluindo no sentido de se restringir progressivamente a autoridade do pater, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos, passando estes a administrar os pecúlios castrenses (vencimentos militares). (GONÇALVES, 2018, p. 31).
No entendimento romano a falta de afeto, convivência e afeição era motivo suficiente para que se desfizesse a união, esse entendimento, no entanto não era aceito pelo direito canônico, pois a união representava um sacramento que não poderia ser desfeito.
No entendimento do direito canônico as famílias só poderiam ser oficializadas a partir do culto religioso se tornando assim mais forte e de grande relevância para a sociedade, não sendo possível uma vez constituído ser desfeito (GONÇALVES, 2018, p.31).
Neste período a igreja interferia significativamente nas decisões referentes a família, a partir de então a igreja buscou eliminar o que pudesse causar a divisão familiar.
O aborto, o adultério, e principalmente o concubinato, nos meados da Idade Média, com as figuras de Santo Agostinho e Santo Ambrósio; até então o concubinatus havia sido aceito como ato civil capaz de gerar efeitos tal qual o matrimônio. Os próprios reis mantiveram por muito tempo esposas e concubinas e até mesmo o clero deixou-se levar pelos desejos lascivos, contaminando-se em relações carnais e devassas, sendo muito comum a presença de mulheres libertinas dentro dos conventos. (PEREIRA, 2017, p. 16-17).
A mulher ganhou independência e passou a parte influenciadora na instituição familiar, ainda longe de grandes decisões. Por ter se tornado uma instituição sagrada para a igreja o casamento passou a ter grande força social religiosa o que constituiu o adultério como uma condição criminosa perante as leis e costumes da igreja.
Foi pela concepção da igreja que se determinou o que seria uma instituição familiar normal para os padrões sociais, não sendo aceito nenhuma outra instituição familiar que não fosse à união entre homem e mulher. Chegando ao período moderno e pós-moderno a constituição mesmo que por influência da igreja passou a ser formada pela afeição, e não mais para a finalidade de manter os bens e a honra. Perdeu sua característica de autoritarismo.
Na idéia de família, o que mais importa - a cada um de seus membros, e a todos a um só tempo - é exatamente pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças e valores, permitindo, a cada um, se sentir a caminho da realização de seu projeto pessoal de felicidade. (KEHL, 2010, p. 8).
A família agora é instituída pelo afeto e a busca constante pela felicidade existindo comumente a demonstração de solidariedade, fraternidade, amor compartilhado entre os membros.
De acordo com Dias (2015) a instituição familiar tida como contemporânea teve início com a inserção da mulher no mercado de trabalho (1950) na busca pela igualdade entre os pares. Com a introdução da medicação anticoncepcional no mercado (1967) a formação da família perdeu o caráter econômico criando seu alicerce no vínculo afetivo.
A evolução sofrida pelo conceito de família no ordenamento jurídico sofreu grande influência do direito romano, canônico e germânico, essa influência ocorreu devido a colonização sofrida pelo povo brasileiro, conforme ressalta Gonçalves (2018).
Com a chegada da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, todos os filhos passaram a ser constitucionalmente iguais e a terem os mesmos direitos e deveres, independentemente de sua origem, permitindo-se e facilitando o divórcio, os casamentos passaram a ocorrer entre pessoas mais maduras, deixando de ser pré-requisito para o fim obrigatório da maternidade/paternidade.
Em virtude disso, levando-se em consideração que a sociedade contemporânea é pluralista, a família também o deve ser para todos os fins. Assim surge um novo fato determinante para as relações familiares, que é o fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação do vínculo familiar.
As mudanças que ocorreram no conceito e a evolução de família ao longo dos anos produziram grandes efeitos sócios histórico na instituição familiar atual. Assim as mudanças são significativas, no entanto tornou-se difícil acompanhar as transformações.
Para Gonçalves (2018, p.17), os direitos relacionados à família são os que mais se relacionam com a vida, na concepção do autor família é um instituto de realidade sociológica que forma a base do Estado, sendo ela o núcleo de qualquer organização social. Ainda, na visão do referido autor numa concepção mais normativa entende que direitos de família são aquele em que uma pessoa está inserida em uma família e ainda sendo denominado como pai, mãe ou filho, diferentemente dos direitos patrimoniais. Os direitos de família tratam tanto das relações entre parentes, ascendentes e descendentes quanto das relações estritamente patrimonial.
Conforme a sua finalidade ou o seu objetivo, as normas do direito de família ora regulam as relações pessoais entre os cônjuges, ou entre os ascendentes e os descendentes ou entre parentes fora da linha reta; ora disciplinam as relações patrimoniais que se desenvolvem no seio da família, compreendendo as que se passam entre cônjuges, entre pais e filhos, entre tutor e pupilo; ora finalmente assumem a direção das relações assistenciais, e novamente têm em vista os cônjuges entre si, os filhos perante os pais, o tutelado em face do tutor, o interdito diante do seu curador. Relações pessoais, patrimoniais e assistenciais são, portanto, os três setores em que o direito de família atua. (GONÇALVES, 2018, p 18).
Na concepção de Maux (2010, p. 326) as instituições familiares podem ser compostas pelo namoro, noivado, o casamento, a vida conjugal tradicional (pai, mãe e filhos), a família é uma instituição reconhecida universalmente mesmo assunto padrões diferentes.
A evolução na constituição da família mostra que a motivação para a formação familiar são outros sendo de grande importância que o ordenamento jurídico de amparo a esse processo de evolução de família. Com todas essas mudanças, essas famílias foram reconstruindo-se, aceitando-se e amando-se. Assim, surgiram sentimentos afetivos paternais que cada vez mais se evidenciaram na realidade cotidiana e demandam reconhecimento formal, jurídico.
Todas as alterações que ocorreram na família se refletem nos vínculos de parentesco. Com a evolução da engenharia genética e o surgimento das mais diversas formas de reprodução assistida, os vínculos de parentesco não podem ficar limitados à verdade biológica.
A própria Constituição Federal (Art. 227, § 6.º) encarregou-se de ampliar o conceito de entidade familiar ao não permitir a diferença entre filhos. Ocorreu a desbiologização da paternidade-maternidade-filiação e, consequentemente, do parentesco em geral. Nesse mesmo sentido é o que ocorre com a parentalidade socioafetiva, onde a afetividade tem o mais relevante papel jurídico. Assim, deve-se buscar um conceito plural de paternidade, de maternidade e de parentesco (DIAS, 2016, p. 377).
Sob esse enfoque, pais socioafetivos e genéticos passaram a estar, por vezes, representados em pessoas distintas, mas coexistentes e igualmente importantes. Assim, o desafio já superado de aceitar a paternidade socioafetiva, que passou a ser, inclusive, vista como hierarquicamente superior à biológica, transformou-se no novo desafio de aceitar e legitimar a coexistência de paternidades hierarquicamente equivalentes: a socioafetiva e a biológica; a multiparentalidade.
1.2 Dos princípios norteadores das relações familiares.
Os princípios tem como base o sustento do ordenamento jurídico, pois “os princípios são fundamentos de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentam-te”. (CASSETTARI, 2015, p. 56). Podendo assim afirmar que eles são os alicerces que traçam as regras existentes nele, levando em conta a obediência constitucional e com ele os princípios norteadores para aprovações normativas.
Em se tratando de Direto de Família, é importante mencionar o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto no art. 1.º, III, da Constituição Federal de 1988, podendo também ensejar a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, pois é identificada a dignidade da pessoa humana como: “ um macro princípio sob o qual irradiam outros princípios e valores essenciais como a liberdade, a autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade” (PEREIRA, 2017, pag.83)
Isso mostra a grande importância que Pereira (2017), tem, pois traz consigo uma valoração das próprias pessoas nas relações privadas de dentro do ceio familiar, fazendo com que aconteça a preservação dos indivíduos pelo ser pessoa, sendo assim, fundamental a preservação, proteção da vida, a integridade dos membros, levando em consideração o respeito as pessoas e a seguridade de seus direitos e respectivos deveres.
Segundo Ferreira (2017):
A milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade se seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos. (FERREIRA, 2017)
Constitui também princípio jurídico, extremamente importante no âmbito familiar, o denominado princípio da afetividade. Como demonstra o doutrinador Tartuce (2017):
A propósito, esclareça-se, para os devidos fins de delimitação conceitual, que o afeto não se confunde necessariamente com o amor. Afeto quer dizer interação, impulso ou ligação entre pessoas, podendo ter carga positiva ou negativa. O afeto positivo, por excelência, é o amor; o negativo é o ódio. Obviamente, ambas as cargas estão presentes nas relações familiares. Como bem pondera José Fernando Simão em suas palestras e exposições, afeto quer dizer cuidado com responsabilidade. (TARTUCE, 2017, p. 125).
Esse afeto, seja ele positivo ou negativo, se refere ao vínculo de parentesco, pois abrange a paternidade e a maternidade. O afeto não pode ser uma via de mão única. Deve corresponder a um senso de preocupação e compromisso com o outro, de modo que se estabeleça, sob o foco da confiança e cumplicidade uma relação cuja força se esvaneça com simples intempéries do dia a dia. Diz respeito ao que o pai ou mão sente em relação ao filho ou filha, e vice-versa. Uma vez estabelecido nas relações familiares, sai da esfera meramente subjetiva e alcance uma representação social para todos aqueles com quem se estabeleça uma convivência.
Tartuce (2017), afirma que:
Além de reconhecer a possibilidade de vínculos múltiplos parentais, a denominada multiparentalidade, uma das grandes contribuições do aresto foi de consolidar a posição de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, em posição de igualdade diante do parentesco biológico. (TARTUCE, 2017, p. 984).
É nessa sequência que a relação de afeto não é mais apenas por laços biológicos, ou melhor, sanguíneo, pois existe uma verdade fática acerca da realidade de uma relação filial aparente, levando então, o reflexo sociológico e afetivo da filiação. Visto isso, compreende-se que, independente de continuidade desse afeto, a relação de família se mantém, pois da mesma forma que em uma sociedade patrimonial ou em um casamento, existe a continuidade de algumas responsabilidades que devem ser obrigatórias para todos.
O princípio da solidariedade familiar também implica respeito e considerações mútuos em relação aos membros da família, pelo que, definitivamente, constitui princípio norteador do Direito de Família (PEREIRA, 2017, p. 85).
Diante dessa afirmação de Pereira (2017), a solidariedade entre os membros deve ser algo constante, conforme o Princípio da Solidariedade Familiar, tendo em vista que nela deve existir auxílio mútuo, prestando a devida assistência, acompanhando e protegendo de forma material e moral, levando sempre em consideração o Princípio do Melhor Interesse da Criança, sendo os indivíduos de uma família socioafetiva, ou não.
Essa afetividade não gera somente relações familiares entre pais e filhos, e sim, também entre avós e netos, tios e sobrinhos e ainda entre irmãos, na qual é vista com frequência a criação de crianças conduzidas por esses parentes.
2. A filiação: origem e tutela jurídica
2.1 Formação do Parentesco no Código Civil.
De acordo com o Código Civil de 1916, regulava a família do início do século passado. Na versão original, trazia estrita e distinta visão da família, limitando-a ao casamento, bloqueando a sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamentos e aos filhos advindos dessas ligações.
O direito brasileiro sofreu outras significativas influências das Ordenações Filipinas que resultou no Código de 1916, este regulava a instituição família pelo “pátrio poder” e família só era resultante da união celebrada em culto religioso sob o domínio do modelo patriarcal e hierarquizado. O direito brasileiro adotou o modelo passando o homem a ter completo domínio sobre sua família, era ele quem decidia se a mulher poderia uma não trabalhar. A função da mulher era de companheira e colaboradora do marido.
Também, a partir da Constituição de 1988 foi reconhecido o direito de igualdade entre homens e mulheres, rompendo com o antigo conceito regimentar patriarcalista do código de 1916, art. 226. A partir da mudança ocorrida com a nova Constituição Federal de 1988 houve, consequentemente, a necessidade de alteração no Código Civil vigente a época pela necessidade de disciplinar todas as mudanças sofridas na Constituição.
Pelo Código Civil de 2002, foi regularizada a relação de união estável entre os casais expandindo o conceito de constituição familiar, que se deu inicio na Constituição Federal de 1988, sendo que a primeira disciplina ocorreu em 1994, por meio da lei 8.971/94, que tratava de direito sucessório, depois em 1996 (lei 9.278/96) que tinha a pretensão de regulamentar a CF/88, tendo em vista que no decorrer dessas fases a mulher deixou o papel de reprodutora e alcançou liberdade profissional e sexual.
Assim, a família passou a ter outra finalidade para além de procriar, a partir dessa ampliação do conceito de família que os casamentos tomaram outras formas na constituição dos lares.
A família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais arejada que a família estável no padrão oitocentista, traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido, em que aquele par apostou, na falta de um padrão que corresponda às novas composições familiares, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado. Ideal que não deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje. Ideal que, se não for superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível. (KEHL, 2010, p 3).
Para Gonçalves (2018) as grandes transformações ocorridas na Constituição (CF/88) e o Código Civil/02 trouxeram uma prospecção das novas formações de famílias existentes na sociedade marcadas pelas profundas mudanças. Os novos arranjos familiares descaracterizaram a ideia de que família somente é formada por pai, mãe e filhos (modelo antigo de constituição familiar), o novo modelo de família agora pode ser constituído sem aa obrigação de gênero, ou seja, os casais homoafetivos, também as constituídas por mães solteiras. Nas palavras de Dias (2016), a sociedade tem dificuldade de lidar com as novas formações familiares, para muitos esses novos arranjos são considerados incorretos.
Os vínculos extramatrimoniais sempre existiram, no entanto, não eram aceitos pelas normas de conduta social, quanto necessário a justiça exercia seu papel relacionada às questões de ordem patrimonial, a jurisprudência tratava da partição do patrimônio que eram ações julgadas na competência das varas cíveis e de acordo com o direito das obrigações. Ainda que inexistente qualquer diferença na estrutura dos relacionamentos oficiais, não sendo reconhecimento como direito de família por analogia (DIAS, 2016).
Os institutos, geradores de cônjuges e companheiros, trabalhados neste tópico têm forte influência na tradição familiar. Já foi visto que as ditas influências podem ser potencializadas quando o fator parentesco surge entre os consortes. Dado fator também influencia na tradição familiar de outras formas, como a que vem a ser tema do próximo tópico.
3. Sucessão e a multiparentalidade
3.1 Multiparentalidade: incidência e reconhecimento
A multiparentalidade está presente quando identificada uma multiplicidade de vínculos de filiação, onde todos os pais assumem os encargos decorrentes do poder familiar, bem como o filho que desfruta de direitos e deveres em relação a todos.
Paiano (2017, p. 52), ao conceituar o fenômeno da multiparentalidade assim o define:
A multiparentalidade é um fenômeno jurisprudencial e doutrinário, advindo de uma interpretação conforme, integrativa e expansiva, que permite o reconhecimento de mais de um pai ou mãe a uma mesma pessoa, de modo que conste em seu registro de nascimento as consequências desse reconhecimento — alteração de nome, inclusão de outro pai ou mãe, inclusão de outros avós.
O afeto é o elemento identificador das entidades familiares, servindo desta forma de parâmetros para os vínculos parentais, levando-se em consideração a existência de uma verdade biológica, e do outro lado, uma verdade que não pode ser desprezada, a filiação socioafetiva.
Desta forma, a multiparentalidade é marcada pela situação em que o indivíduo tem mais de um pai e/ou mais de uma mãe simultaneamente, de forma que os efeitos jurídicos produzidos sejam aplicados em relação a todos eles.
Em setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, firmou o seu entendimento acerca da matéria, entre a paternidade socioafetiva sobre a biológica RE 898.060, e de acordo com o relator, Ministro Luiz Fuz (BRASIL,2015):
Caberá ao filho, de acordo com o seu próprio interesse, decidir se mantém, em seu registro, apenas o pai socioafetivo ou ambos, o socioafetivo e o biológico. Mesmo que não tenha constituído com o genitor nenhum vínculo de afetividade, terá o direito de fazer constar o nome dele em seu registro.
Na mesma linha, a fixação da pensão alimentícia, observando o princípio da proporcionalidade e o binômio necessidade x capacidade. O afeto passou a ter valorização judicial e o instituto da multiparentalidade proporcionou para a criança e o adolescente, uma perspectiva de proteção ao que tange o direito de convivência com os pais, sejam eles biológicos ou afetivos.
A multiparentalidade é decorrência do reconhecimento legal de mais de uma forma de filiação em relação a diferentes pais e/ou mães. A forma mais usual de multiparentalidade encontrada na vida prática é a concomitante existência de pais biológicos e pais socioafetivos, como, por exemplo, o pai biológico e o afeto paternal nutrido pelo novo companheiro/cônjuge da mãe com o filho dessa. Então, antes de adentrar na seara sucessória nos casos de multiparentalidade, mister destacar que o direito sucessório é uma das decorrências da filiação (seja qual for) e, como tal, é inerente à filiação socioafetiva.
Nesse sentido, Goulart (2013, p. 23) destacou:
A Carta Magna traz com toda clareza que não pode haver discriminação sobre os tipos de filiações, ou seja, não importa como se deu essa filiação, será igualitária como se fosse um filho legítimo [sic], conforme o art. 227, parágrafo 6º, do diploma legal referido. Dessa forma, caso haja o reconhecimento de uma filiação socioafetiva, este terá os mesmos direitos das demais filiações. [...] uma vez que se tem a posse de estado de filho consolidado, logo este seria um herdeiro legítimo necessário como as filiações biológicas.
Relembra-se que o filho socioafetivo tem o direito de pleitear o reconhecimento judicial de tal filiação (e dos seus consequentes efeitos sucessórios) a qualquer tempo, seja vivo ou já falecido o pai. Acerca do tema, observe o que, no mesmo ensaio literário, Goulart (2013, p. 6) lembrou e contestou, lecionando ao encontro do presente trabalho:
Porém, o reconhecimento da filiação socioafetiva, após o falecimento do suposto pai ou da suposta mãe afetiva, faz com que poucos julgadores reconheçam e legitimem tal relação paterno/materno-filial. Um dos principais argumentos para o não reconhecimento é que, se o pai ou a mãe socioafetiva quisesse ter manifestado a vontade de assumir a relação paterno/materno-filial teriam feito em vida ou por meio de testamento.
Outro argumento utilizado, como observado nas jurisprudências analisadas no presente trabalho, é que esse tipo de ação visa somente o interesse patrimonial, ou seja, busca somente a quota do direito hereditário. Tais argumentos podem ser levados em conta quando realmente, no caso concreto, não foi comprovada a configuração da filiação sociológica. Até porque muitos podem utilizar desse artifício para conseguir um direito hereditário no qual não têm nenhum direito.
Ora, o ordenamento jurídico brasileiro traz o princípio ao juiz natural, aquele ligado ao judiciário que analisa a causa de forma imparcial, desligando-se de seus preconceitos. É com esse intuito que vem a previsão do artigo 131 do Código de Processo Civil, o qual diz que o juiz formará e motivará seu convencimento com base na livre apreciação da prova. Assim, não cabe ao magistrado a presunção de tratar-se de meros interesses patrimoniais.
Assim, a filiação deve ser reconhecida pura e simplesmente com base na análise dos requisitos legalmente impostos, observando-se o artigo 1.593, do Código Civil e o artigo 227, § 6º, da Constituição Federal, visto que biológico ou socioafetivo, filhos são igualmente filhos e estão igualmente tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Isso posto, estando um fato devidamente comprovado nos autos, por mais livre que seja a apreciação das provas, sua existência não pode ser negada.
Ademais, a própria Constituição Federal da República Federativa do Brasil é clara ao assegurar, em seu artigo 5º, inciso XXX, o direito à herança. Assim, em nada me parece injusto o pleito por um direito individual constitucionalmente garantido. Outrossim, em complemento à Constituição, o artigo 1.784 do Código Civil explica que a herança se transmite desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários; portanto, aos filhos – consoante previsão do artigo. 1.845 do mesmo Diploma legal. Desta feita, não é pertinente que doutrina ou julgadores criem requisitos extralegais ao reconhecimento da filiação ou à perfectibilizarão do direito à herança.
Se em vida o relacionamento era bom o bastante, suas necessidades de filho estavam sendo sanadas e por isso (ou por outro motivo qualquer) o filho optou por não ingressar com uma demanda judicial, isso não pode impedi-lo nem o prejudicar quando do momento de buscar um direito que lhe é legalmente garantido – o sucessório. Biológico, civil ou socioafetivo, todos são igualmente filhos (artigo 227, § 6º, da Constituição Federal) e estão igualmente tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro.
A herança é direito legalmente garantido aos filhos, os quais são tratados como herdeiros necessários e foram colocados nessa situação justamente porque o patrimônio e a segurança da prole são sim questão seriamente tutelada pelo direito. Assim sendo, por que razão apenas o interesse patrimonial do filho afetivo é tido como interesseiro, indigno e, por isso, deve ser impedido por doutrinadores e julgadores? Ademais, o reconhecimento da paternidade socioafetiva passa por um sério e severo crivo, o bastante para comprovar (mesmo depois de falecido o pai) a socioafetividade existente nessa relação paterno-filial.
3.2 Capacidade sucessória: limites à sucessão legítima no CC/2002
A sucessão legítima é assim denominada porque decorre e é regulamentada por lei, prescindindo de qualquer manifestação de vontade da pessoa falecida. Trata-se justamente de um regramento cogente aplicado quando o falecido não deixa ato de última vontade ou, quando tendo deixado, dispõe apenas de parte dos seus bens, caso em que se aplica a sucessão legítima aos bens não comtemplados pelo ato discricionário. A normativa é aplicada, ainda, em casos de nulidade ou caducidade do testamento. Segundo Gonçalves (2020, p. 89):
Quando o de cujus falece ab intestato, a herança como foi dito, é deferida a determinadas pessoas. O chamamento dos sucessores é feito, porém, de acordo com uma sequência denominada ordem da vocação hereditária. Consiste está, portanto, na relação preferencial pela qual a lei chama determinadas pessoas à sucessão hereditária.
A sucessão legítima se faz sempre a “título universal”. Os herdeiros participam da totalidade do ativo e passivo, excetuados os bens comprometidos com legados, mediante quotas. Para definir os herdeiros, a lei obedece à regra e à ordem da vocação hereditária. Diz-se que tem vocação hereditária a pessoa apta a herdar (de forma legítima ou testamentária).
Na sucessão legítima, tem vocação hereditária, segundo o artigo 1.798, do Código Civil, as pessoas já nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Tartuce e Simão (2016) ressaltam que apenas as pessoas naturais herdam por sucessão legítima. Os já concebidos à época da abertura da sucessão, conhecidos como nascituros, têm seu direito sucessório condicionado ao nascimento com vida, momento em que se consolida sua personalidade civil. Assim, os autores acima citados observam que os direitos patrimoniais do nascituro são subordinados a uma condição resolutiva: o nascimento com vida.
Essa capacidade para suceder é definida segundo a lei vigente à época da abertura da sucessão (art. 1.787) e não pressupõe a capacidade de fato. Havendo uma condição, a lei reguladora será a do momento em que está se verifique, pois, consoante Clóvis Beviláqua, é quando a propriedade de transmite. [...] em relação aos nascituros, estes sucedem quando nascem com vida, hipótese em que os seus direitos retroagem ao momento da abertura da sucessão. (NADER, 2013, p. 45)
Para melhor compreensão da ordem da vocação hereditária, imprescindível a compreensão do conceito “classe de herdeiros”. Trata-se de grupos de herdeiros com semelhanças entre si. Atualmente, existem quatro diferentes classes de herdeiros: a dos descendentes do falecido (parentes em linha reta), a dos ascendentes parentes em linha reta, a do cônjuge ou do companheiro (que não possuem vínculo de parentesco) e a dos parentes colaterais (parentes sem relação de ascendência ou descendência direta com o falecido). Esses grupos geralmente não coexistem em uma sucessão, uma vez que a existência de herdeiros de uma classe automaticamente exclui a classe seguinte.
Outro conceito importante antes de adentrar à ordem sucessória é o de “parentesco”. Segundo prelecionam Tartuce e Simão (2016), parentesco é a ligação existente entre pessoas que provém de um mesmo progenitor. Essa linha (parentesco) pode ser reta ou colateral. O parentesco em linha reta, previsto no artigo 1.591, do Diploma Civilista, dá-se entre pessoas vinculadas por ascendência e descendência e é caracterizado por sua infinitude, uma vez que não há limites finais para o parentesco em linha reta.
A linha colateral, por sua vez, constrói-se entre pessoas que advêm de um só tronco sem descenderem umas das outras. Esse parentesco limita-se até o 4º grau, conforme dispõe o artigo 1.592, do Código Civil. Quando reconhecido como filho afetivo de alguém, a pessoa torna-se membro da família do novo pai ou da nova mãe, assumindo o seu papel de parentesco tanto em linha reta quanto em linha colateral, como se biológico fosse: sem limitações. O que importa, de fato, é perceber que essa nova relação entre pai/mãe socioafetivo e filho socioafetivo cria vínculos de parentesco indiscutivelmente iguais aos existentes entre pais e filhos biológicos e, ainda, indiscutivelmente aptos a gerar as exatas mesmas consequências sucessórias a todas as figuras dessa relação, seja entre avó e neto, pai e filho, filho e irmão.
Outrossim, se essa nova relação está devidamente registrada ou é devidamente reconhecida judicialmente em coexistência com uma relação de parentalidade biológica caracterizando uma situação de multiparentalidade (como se defende nesse estudo), não há qualquer diferença sucessória a ser apresentada.
A lei sucessória é geralmente clara e seguidora de uma lógica legislativa de fácil percepção, o que permite adaptações legais simples e, até mesmo, o uso da analogia. Assim, entende-se que falecendo um dos pais do filho multiparental, por exemplo, ele herda como um filho, como um membro da prole. Falecendo um irmão, a sucessão também segue as normas já previstas no Código Civil observando-se, inclusive, o laço uni ou bilateral da fraternidade.
Uma diferença que salta aos olhos e pode ser facilmente resolvida encontrasse em caso de falecimento do filho multiparental que não deixa descendentes. Nessa situação, na linha reta ascendente haverá mais linhas entre as quais a herança deve ser dividida. Por exemplo, caso seja uma pessoa com dois pais e uma mãe vivos, sua herança deve ser partilhada em três partes iguais, cada qual destinada a uma linha: paterna 1, paterna 2 ou materna. Não se observa, então, qualquer grande dificuldade ou empecilho para a adaptação do direito sucessório à multiparentalidade.
3.3 A sucessão legítima na multiparentalidade: alcance e limites de incidência
A sucessão na linha reta ascendente, os ascendentes são a segunda classe de herdeiros chamada a suceder e assim acontece apenas quando o falecido não deixa descendentes. Nesses casos, usa-se o termo linhas para representar a linha materna e a linha paterna. Na sucessão em linha reta ascendente, o grau mais próximo exclui o mais remoto quando não há distinção de linhas, ou seja, quando no grau mais próximo só existem sobreviventes em um dos lados da ascendência: materno ou paterno.
Nesses casos, a sucessão ocorre por direito próprio e a partilha se dá por cabeça. Então, caso sobreviva ao autor da herança apenas sua mãe ou apenas seus avós paternos, eles herdarão por cabeça. Já quando ocorre igualdade de graus nas duas linhas materna e paterna, a sucessão é por direito próprio, mas a partilha passa a ser por linha e cada uma recebe iguais quotas-parte.
Villela (2015, p. 21), também explica o assunto:
Na hipótese de a herança ser deferida aos ascendentes de grau idêntico e linhas diferentes, a partilha contemplará igualmente o lado paterno e o materno. Os bens serão divididos em duas metades, destinando-se as partes a cada uma das linhas, não importando se uma delas se compõe de um ou dois ascendentes.
Assim, se o autor da herança A falece deixando sua mãe e seu pai vivos, cada um receberá metade da herança, independente de os avós de A estarem vivos ou mortos. Já se A falece deixando sua mãe viva e sendo seu pai pré-morto, sua mãe receberá a totalidade da herança, uma vez que o grau mais próximo exclui o mais remoto e que não há representação na linha reta ascendente. Quando existe igualdade de graus e diversidade de linhas entre os ascendentes aptos a suceder, cada linha herda a metade: 50% para a linha paterna e 50% para a linha materna.
Dentro de cada linha, a sucessão é por cabeça. Pelo exposto, se o de cujus “A” tem seus pais pré-mortos quando falece, mas tem seus quatro avós vivos, esses herdarão por direito próprio e a partilha será realizada por linhas: linha materna e linha paterna. Assim, cada um dos avós receberá 25% do total da herança – 50% para cada linha, que serão divididos igualmente entre o avô e a avó.
Dessa forma, caso tenha pais e avó materna pré-mortos, a herança de “A” será dividia igualmente (50%) entre as linhas materna e paterna; entretanto, os avós paternos receberão 25% cada um, enquanto o avô materno, 50% – haja vista a sucessão por linhas. Caso trate-se da sucessão por linhas em que o autor da herança seja um descendente multiparental, a única diferença a ser ponderada seria a possível existência de mais uma linha beneficiada. Nesses casos, a partilha continuaria seguindo a equidade prevista em lei: quotas iguais para cada uma das ascendências.
A sucessão em linha colateral, inicialmente, vale lembrar que os colaterais só são chamados a suceder quando o autor da herança não deixa descendentes, ascendentes nem cônjuge, visto que a existência de qualquer dessas classes de herdeiros pretere automaticamente os colaterais. Outrossim, os colaterais não são herdeiros necessários e, se for interesse do parente afastá-los da sucessão, basta realizar um testamento sem beneficiá-los. Em relação à normatização da sucessão legítima colateral, destaca-se que a regra básica continua sendo a de que o grau mais próximo exclui da sucessão os mais remotos.
No que tange aos colaterais de segundo grau, imprescindível considerar que os irmãos (colaterais de segundo grau) são classificados em bilaterais (ou germanos) e unilaterais. Aqueles são os que descendem do mesmo pai e da mesma mãe, enquanto os unilaterais descendem de apenas um progenitor comum. A peculiaridade que atinge os irmãos bilaterais e unilaterais apresenta-se no artigo 1.841 do Código Civil, o qual prevê que, concorrendo irmãos bilaterais com unilaterais, esses herdarão o correspondente à metade da quota-parte destinada àquele.
Essa regra também não se apresenta com qualquer dificuldade aos casos de multiparentalidade, nos quais facilmente detecta-se se um irmão é uni ou bilateral. Seguindo o estudo das regras da sucessão colateral, destaca-se a existência de uma única possibilidade de aplicação do instituto da representação: aos sobrinhos do falecido, quando com irmãos desse concorrerem. Lembra-se que quando não existem irmãos do falecido aptos a suceder, os sobrinhos são chamados à sucessão e herdam por direito próprio e por cabeça.
Destaca-se, ainda, que assim como ocorre com os irmãos, o artigo 1.843, parágrafo 2º, do Código Civil, prevê diferença entre a quota-parte destinada ao sobrinho filho de irmão bilateral e à destinada ao sobrinho filho de irmão unilateral. A sucessão colateral traz, ainda, outros casos especiais que merecem atenção. Veja que quando não há colateral de segundo grau apto a suceder, chamam-se os de terceiro; entretanto, existem dois parentes nessa situação: o tio e o sobrinho do falecido. Para esses casos, a lei deu regulamentação especial.
Em vez de simplesmente regulamentar a partilha igualitária dos bens entre esses sucessores, o artigo 1.843 do diploma civilista prevê que, na falta de irmãos, herdarão os filhos destes e, apenas na inexistência desses, os tios serão chamados à sucessão. A sucessão colateral abrange ainda, a possibilidade de os parentes de quarto grau integrarem a sucessão do autor da herança.
Todavia, relembra-se que os parentes de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto. Assim, os tios-avôs, os sobrinhos-netos e os primos-irmãos serão chamados a suceder apenas quando inexistirem parentes colaterais de segundo ou de terceiro grau. Nesse caso, inexistindo previsão especial, caso haja concorrência entre parentes de quarto grau, esses dividirão a herança em iguais quotas-parte.
CONCLUSÃO
A socioafetividade parental é a criação e a alimentação diária da convivência e do respeito que há entre pessoas que se enxergam e vivem como pais e filhos. Importante lembrar que o fenômeno da socioafetividade apresenta-se em dois aspectos: o social e o afetivo. Essas duas nuances ligam-se quando a afetividade cria um vínculo e o reflete no meio social por meio dos três requisitos caracterizadores da socioafetividade: reputação, nome e tratamento.
O presente trabalho dedicou-se a estudar a ocorrência e a evolução dos efeitos desse fenômeno ao longo dos anos principalmente nas situações em que ele está desconectado da figura biológica – ou, ao menos, quando ele não se apresenta apenas na pessoa do pai natural. Como viu-se, o ordenamento já tutela vínculos socioafetivos e a Constituição da República Federativa do Brasil não impõe qualquer limite à eficácia do parentesco criado a partir de tais relações, uma vez que preleciona a impossibilidade de hierarquização das formas de parentesco por meio do princípio da igualdade, seja natural, social ou civil.
Entretanto, evidente é que os estudos, os movimentos e as defesas aqui feitas precisam sempre romper as barreiras do Judiciário para que passem, então, a serem aceitas e praticadas. Para que sejam asseguradas a todos. Devem-se observar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia jurídica entre os filhos e o da pluralidade das organizações familiares para que se coloque em prática a teoria tridimensional da paternidade, retratando fiel e juridicamente a biografia de muitos hoje ignorados pelo direito.
Assim, essas paternidades serão reconhecidas concomitantemente e em sua integralidade, permitindo a adoção dos patronímicos paternos e a garantia a outros direitos e deveres inerentes à relação parental, como o direito sucessório. A normativa sucessória hoje existente aplica-se sem qualquer dificuldade aos casos que envolvem filhos multiparentais. Quando da concorrência entre descendentes multiparentais com cônjuge do pai falecido, por exemplo, o descendente é visto individualmente como filho do de cujus em cada uma das sucessões, afastando qualquer possível complicação.
Quando esses ascendentes concorrerem com o cônjuge do de cujus, tampouco será difícil manter a normativa já prevista em lei. Nesses casos, reservam-se 50% da herança ao cônjuge e a metade restante é igualmente partilhada entre as linhas existentes; sejam duas maternas e uma paterna, duas paternas, ou quais forem.
Conclui-se que evidente a possibilidade jurídica da multiparentalidade e do reconhecimento de seu inerente direito sucessório. Muito mais do que o direito dos pais, é um direito fundamental do filho de conviver com aqueles com os quais tem afeto, lações de amizade, de modo a reforçar a perspectiva dialogal, construindo a própria dignidade e personalidade. Tutelar uma situação não é obrigar sua ocorrência, mas fornecer meios para que ela se perfectibilize quando umas das partes simplesmente resolver ignorá-la. Mais do que serão garantidos os direitos sucessórios ou qualquer outro direito, será garantida a individualidade e a dignidade da pessoa humana.
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[1] Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho, E-mail: [email protected].
[2] Professor do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho, especialista em Direito Civil pela UFPI, Mestre em Direito pela PUCRS, E-mail: [email protected]; [email protected].
Acadêmica do curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIQUEIRA, ISABELA BORGES. A sucessão legítima na multiparentalidade: alcance e limites de incidência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 maio 2020, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54528/a-sucesso-legtima-na-multiparentalidade-alcance-e-limites-de-incidncia. Acesso em: 23 dez 2024.
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