LEANDRO GIMENES DA SILVA[1]
(Coautor)
RESUMO: Este artigo aborda aspectos da Lei n.° 12.015/2009 (Crimes contra a Dignidade Sexual), quanto ao estupro de vulnerável, com foco na vítima menor de 14 anos e nas concepções do termo ‘vulnerabilidade’, a partir das questões: quais são as principais mudanças advindas da Lei? O que a mudança do paradigma legal “Dos crimes contra os costumes” para “Dos crimes contra a dignidade sexual” nos diz? A vulnerabilidade é uma presunção absoluta ou relativa? Quanto à vulnerabilidade tratada como critério interpretativo, quais são as consequências nas medidas protetivas para o menor? Para tanto, efetuou-se revisão de literatura na legislação, jurisprudências, livros etc., com aporte nos teóricos: Capez (2012); Filó (2012); Greco (2013, 2017); Masson (2014); Nucci (2009, 2010), destacando as principais concepções do estupro de vulnerável e a relatividade aplicada ao termo ‘vulnerabilidade’, justificando a importância do estudo e contribuindo com as discussões que levam à melhoria do ordenamento jurídico nacional.
Palavras-chave: Dignidade Sexual; Estupro de vulnerável; Vulnerabilidade; Presunção; Relativização.
ABSTRACT: This article addresses aspects of Crimes against Sexual Dignity Law (12.015/2009), regarding the rape of the vulnerable, with a focus on the victim under the age of 14 and the concepts of the term 'vulnerability', based on the questions: what are the main changes resulting from the Law? What does the change in the legal paradigm “From crimes against customs” to “From crimes against sexual dignity” tell us? Is vulnerability an absolute or relative presumption? As for the vulnerability treated as an interpretive criterion, what are the consequences on protective measures for minors? To this end, there was a literature review on legislation, jurisprudence, books, etc., with input from theorists: Capez (2012); Filó (2012); Greco (2013, 2017); Masson (2014); Nucci (2009, 2010), highlighting the main concepts of the rape of the vulnerable and the relativity applied to the term 'vulnerability', justifying the importance of the study and contributing to the discussions that lead to the improvement of the national legal system.
Keywords: Sexual dignity; Rape of vulnerable; Vulnerability; Presumption; Relativization.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. ESTUPRO DE VULNERÁVEL: PRINCIPAIS CONCEPÇÕES. 3. VULNERABILIDADE: RELATIVIZAÇÃO, É POSSÍVEL? 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 5. REFERÊNCIAS.
A edição da Lei n.° 12.015, de 07 de agosto de 2009, também conhecida como Lei dos Crimes contra a Dignidade Sexual, trouxe alterações significativas no Código Penal Brasileiro (CP), desde a alteração do título de sua seção, “Dos crimes contra a dignidade sexual”, em substituição ao “Dos crimes contra os costumes”, bem como com a criação de novos tipos penais incriminadores e a unificação de outros já existentes, buscando ajustá-los ao desenvolvimento sociocultural brasileiro e dirimir divergências doutrinárias e jurisprudenciais.
Embora decorridos mais de dez anos de sua edição, o tema ainda se faz atual, uma vez que inúmeras interpretações e jurisprudências surgiram nesse interstício. Assim, a pesquisa decorre da premissa de que a introdução feita pela supracitada Lei do tipo ‘estupro de vulnerável’, em seu art. 217-A do Código Penal (CP), partiu do estabelecimento, em um único tipo, do que anteriormente estava descrito como ‘estupro’ e ‘atentado violento ao pudor de vulneráveis’ à figura da ‘presunção de violência’, fundindo o disposto nos artigos 213, 214 e 224 do CP e aumentando a pena.
Outro destaque importante desta pesquisa refere-se ao termo ‘vulnerabilidade’, que substituiu a redação anterior da norma, que discorria sobre ‘presunção de violência’. Com isso, diante da mudança do tipo penal, da categoria de punição, para uma tipificação penal própria, justifica-se a relevância de ampliar e fomentar o debate sobre tema ainda circundado de lacunas e entendimentos diversos no ordenamento jurídico nacional.
A partir de questões norteadoras como: quais são as principais mudanças advindas da Lei? O que a mudança do paradigma legal “Dos crimes contra os costumes” para “Dos crimes contra a dignidade sexual” nos diz? A vulnerabilidade é uma presunção absoluta ou relativa? Quanto à vulnerabilidade tratada como critério interpretativo, quais são as consequências nas medidas protetivas para o menor?, apresenta-se uma breve abordagem histórica sobre o estupro de vulnerável e as alterações trazidas pela nova legislação, apontando, contextual e paralelamente, as mudanças ocorridas na sociedade brasileira, em especial, no que concerne aos menores de 14 anos, que estão iniciando precocemente a vida sexual, promovendo lacunas no entendimento jurídico quanto à relativização da natureza da vulnerabilidade em determinados casos/situações.
Em seguida, abre-se espaço para uma reflexão sobre a Lei n.° 12.015/2009 e a problemática decorrente do caráter absoluto ou relativo da vulnerabilidade, em especial, daqueles menores de 14 anos, por meio de uma revisão de literatura na legislação, publicações em jurisprudências, periódicos e livros, bem como com aporte em teóricos e estudiosos que têm se debruçado sobre a matéria e embasado os entendimentos jurisprudenciais sobre a temática, dentre os quais destacam-se: Capez (2012); Couto (2015); Filó (2012); Greco (2013, 2017); Masson (2014) e Nucci (2009, 2010).
Busca-se, assim, apresentar os principais pontos pertinentes ao tópico ‘estupro de vulnerável’ e a relatividade aplicada ao termo ‘vulnerabilidade’, bem como a importância do debate dentro do meio acadêmico-jurídico, de forma a contribuir com os processos de discussões que levem à melhoria do ordenamento e entendimento jurídico nacional.
No Brasil, foi a partir de 1940 que a legislação penal buscou se adequar às necessidades vigentes da sociedade, com a edição do Código Penal (CP), vigente até os dias atuais. Assim, o crime de estupro de vulnerável, objeto de análise desta pesquisa, foi definido àquela época como a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, cuja pena estabelecida era a de “reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos” (BRASIL, 1940).
Inúmeras foram as emendas as quais o CP se sujeitou desde a sua edição, sendo as trazidas pela Lei n.° 12.015/2009 uma das mais significativas. Dentre as principais alterações implementadas pela Lei supracitada, inicia-se pela mudança do título do capítulo sobre os crimes sexuais, substituindo a expressão ‘crimes contra os costumes’ para ‘crimes contra a dignidade sexual’, uma vez que aquele já não representava a realidade dos tipos expressos no Título VI do Código Penal, posto que não se trata mais de tutelar o comportamento sexual, mas sim a dignidade sexual da vítima. E dentre os ‘Crimes Contra a Dignidade Sexual’, destaca-se, para fins deste estudo, o crime de estupro, devido à sua gravidade e reprovação, uma vez que, para além do ataque físico sofrido pela vítima, tem-se o abalo do seu bem-estar psicológico.
Filó (2012, p.52, grifo do autor) ainda destaca que: “Da mesma forma, o crime que tipificava o ato de realização de ato sexual contra menor que estava localizado nas disposições gerais dos crimes contra a liberdade sexual foi tipificado em capítulo inédito em nossa legislação, batizado de “Crimes contra vulnerável””.
Outra importante inovação a ser destacada, sendo também objeto de análise deste estudo, refere-se às mudanças dos dispositivos vinculados ao ‘estupro de vulnerável’. A partir da implementação da supracitada lei, em especial, do artigo 217-A, revogou-se o antigo regime da presunção de violência, nos crimes sexuais contido no 224 do Código Penal, tendo, a partir de então, como foco, o menor de 14 anos de idade (BRASIL, 2009).
Nesse sentido, o ordenamento jurídico penal entende que o crime contra o vulnerável é aquele que decorre do infrator: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” e aquele “que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”, conforme se verifica no caput e no §1º do art. 217-A (BRASIL, 2009).
Para Capez (2012), o “ato libidinoso”, de que trata a lei, compreende as outras formas de realização do ato sexual, que não a conjunção carnal, identificadas pelo autor como coitos anormais (cópula oral e anal, por exemplo).
No texto originário do Código Penal (1940), encontravam-se tipificados os crimes de estupro (art. 213) e de atentado violento ao pudor (art. 214), que, com o advento da Lei n.° 12.015/2009, foram unificados no mesmo tipo penal, como ‘estupro’. Também se alterou a concepção quanto a diferenciar entre as questões de estupro com violência real ou grave ameaça e o estupro com violência ficta, que integravam um único tipo penal, com penas idênticas. Assim, atualmente, referidos crimes são vistos e entendidos de forma distinta, a depender do perfil subjetivo do ofendido, de forma que, se a vítima for pessoa vulnerável, deverá ser aplicado o disposto no artigo 217-A e, nas demais incidências, usar-se-á o artigo 213, ambos do Código Penal (MASSON, 2014).
De acordo com Masson (2014), é exatamente o caráter da fragilidade e vulnerabilidade da vítima, bem como a abrangência que os efeitos negativos causam aos menores de 14 anos que fazem do crime estupro de vulnerável um tipo ainda mais grave, justificando-se, assim, a maior repreensibilidade do agressor (MASSON, 2014).
Greco (2017) vai para além do entendimento de Masson (2014), ao inferir que a prática do estupro de vulnerável atinge tanto a liberdade quanto a dignidade sexual do vulnerável, o que permite, incluir, ainda, nesse contexto, o desenvolvimento sexual do menor, como bem juridicamente a ser tutelado pelo tipo penal em questão. Para o autor, “o estupro de vulnerável, atingindo a liberdade sexual, agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, presumivelmente incapaz de consentir para o ato, como também seu desenvolvimento mental”. (GRECO, 2017, p.748).
Nesse sentido, importante ainda destacar que outro implemento trazido pela Lei n.º 12.015/2009 foi a inserção do crime “estupro de vulnerável” ao rol de crimes considerados hediondos, seja na sua forma simples ou qualificada, a partir da inclusão do item VI no artigo 1° da Lei n.° 8.072/1990, ficando, ainda os infratores, nesses casos, insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança, conforme disposto no artigo 2.°, incisos I e II da Lei 8.072/1990, e no inciso XLIII, do artigo 5° da Constituição Federal de 1988 (CAPEZ, 2012).
Entender o crime de estupro de vulnerável é de suma importância para a nossa abordagem seguinte, que será sobre a reflexão da vulnerabilidade, prevista no caput do artigo 217-A do CP, a qual, apesar de ser concebida a partir de um caráter absoluto, vem, no entanto, apresentando desde a sua implantação, questões e apontamentos que abordam sobre a possibilidade de uma relativização da culpabilidade do autor do delito, o que para alguns teóricos se deu pelo deslocamento do foco da ‘presunção de violência’ para a questão de ‘vulnerabilidade’ (NUCCI, 2010).
Conforme apontado por Oliveira Júnior (2010), vulnerável refere-se a um termo de origem latina — vulnerabilis —, que significa a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, com riscos de infecção. Já de acordo com o dicionário Houaiss (2001), vulnerável é aquele “que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido”. Assim, diante da fragilidade humana, compete ao Estado prestar-lhe a devida tutela.
A partir do entendimento do disposto no artigo 217-A do Código Penal, verifica-se que a regra prevê, desde a intitulação do seu Capítulo II — Dos Crimes Sexuais contra Vulneráveis —, que os sujeitos passivos a serem tutelados (vítimas) são aqueles com grau de ‘vulnerabilidade’ que os impeçam de praticar atos de natureza sexual, mesmo com consentimento, visto que este será considerado inválido. Aduz-se então, a partir do supracitado artigo, que vulnerável é a pessoa que não possui capacidade suficiente para decidir sobre a prática sexual, de forma que aqueles que mantiverem conjunção carnal ou ato libidinoso com vulnerável deverão responder por crime.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se posicionado desde a edição da Lei n.º 12.015/2009, conforme se verifica em alguns julgados (HC 101.456, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 9-3-2010, Segunda Turma, DJE de 30-4-2010 e HC 102.473, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 12-4-2011, Segunda Turma, DJE de 2-5-2011):
A violência presumida foi eliminada pela Lei n.º 12.015/2009. A simples conjunção carnal com menor de quatorze anos consubstancia crime de estupro. Não se há mais de perquirir se houve ou não violência. A lei Crimes em Espécie - Crimes Contra a Dignidade Sexual consolidou de vez a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Sobre o assunto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou, a partir da Súmula 593, o seguinte entendimento:
O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. (BRASIL, 2017).
Assim, verifica-se ser, nos tribunais superiores, a jurisprudência majoritária quanto à impossibilidade de flexibilização nos casos de crime de estupro de vulnerável. Outro fator importante a ser destacado refere-se à inclusão, em 2018, do § 5º ao artigo 217-A, pela Lei n.° 13.718, que assim dispôs: “As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.”, ratificando a proibição expressa de interpretação que afaste a incidência do caput, em razão de circunstâncias subjetivas relativas à vítima.
No entanto, o que tem se verificado em alguns julgamentos estaduais é a adoção da negação do critério da vulnerabilidade do menor de 14 anos como absoluta. Para tanto, os seus defensores o fazem analisando o artigo 217-A, em conjunto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — Lei n.° 8.069/1990, isso porque o referido estatuto traz em seu bojo a distinção entre ‘criança’ (com até 12 anos) e ‘adolescente’ (entre 12 e 18 anos). Assim, ao se analisar conjuntamente com o artigo do CP, verifica-se que o intervalo entre 12 e 14 anos figura em uma área que dá margem para interpretações variadas.
Isso ocorre pois, de um lado (ECA, 1990), os menores que se encontram nessa faixa — 12 a 14 anos — podem responder e ser enquadrados em medidas restritivas e socioeducativas, enquanto que, pela atual regra do CP (art. 217-A), não possuem liberdade sexual. Tal lacuna fez com que inúmeros casos em que são envolvidos menores, cuja idade tenha extrapolado o limite de 12 anos (para os quais não se discute a intervenção do Estado) até os 14 anos, a questão da vulnerabilidade passasse a ser discutida processualmente.
Nesse sentido, ainda que o tipo penal implementado com a edição do artigo 217-A tenha alterado o termo “presunção” pela “vulnerabilidade”, verifica-se que alguns doutrinadores têm entendido tal alteração apenas como um deslocamento do foco, como é o caso de Nucci (2010), para quem deve ocorrer inserção da relativização da vulnerabilidade, nos casos em que a vítima tenha entre 12 e 14 anos de idade, a depender das características do caso, dentre os quais o autor aponta o grau de maturidade sexual da vítima menor, evitando-se, assim, o que para ele trata-se de um conflito de normas.
As correntes que coadunam com a relativização da vulnerabilidade sexual para os casos em que o menor estiver entre os 12 e 14 anos de idade pautam-se no preceito de que, se existe para esses sujeitos passivos um mínimo grau de maturidade para receber uma medida socioeducativa e responder por ato infracional, deve existir a possibilidade de que se produza prova do contraditório, em relação à vulnerabilidade, para os casos de atos sexuais. Importante aqui destacar que não se pretende defender um posicionamento ou outro, mas sim ampliar o debate sobre um tema controverso no ordenamento jurídico brasileiro, contribuindo para sua elucidação.
Todavia, conforme já apontado, nem todos concordam com a relativização da vulnerabilidade do menor de 14 anos, como é o caso de Greco (2013), cujo entendimento retomamos a partir de sua fala:
A lei, portanto, tutela o direito de liberdade que qualquer pessoa tem de dispor sobre o próprio corpo no que diz respeito aos atos sexuais. O estupro de vulnerável, atingindo a liberdade sexual, agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, presumivelmente incapaz de consentir para o ato, como também seu desenvolvimento sexual. (GRECO, 2013, p. 692).
Diante dessa perspectiva, para os doutrinadores como Greco (2013, 2017) e Capez (2012), a Lei n.° 12.015/2009 não trata da maturidade sexual da vítima ou da sua capacidade de consentir com o ato, mas, sim, da fragilidade e vulnerabilidade da vítima nas esferas de ordem moral, social, biológica, cultural e fisiológica, sendo, para esses autores, inquestionável a tutela protecional do Estado aos tutelados indicados na lei, quando se encontrarem em situação de perigo ou fragilidade.
Para Capez (2012), mesmo que não seja possível indicar se a vítima tenha ou não consciência para consentir com o ato, ou ainda, se possui maturidade sexual prematura, ela — na condição de menor de 14 anos — deve ser vista e considerada como vulnerável, devido à sua condição, que se encontra estabelecida no artigo 217-A do Código Penal. O autor ainda destaca que não há que se efetuar um movimento para alargar o entendimento legal, deslocando-se do conceito de vítima vulnerável para o da presunção de violência da normativa anterior, uma vez que, na sua concepção:
São vulneráveis os menores de 18 anos, mesmo que tenham maturidade prematura. Não se trata de presumir incapacidade ou violência. A vulnerabilidade é um conceito muito mais abrangente, que leva em conta a necessidade de proteção do Estado em relação a certas pessoas e situações. (CAPEZ, 2012, p. 99).
Ainda de acordo com Capez (2012), com os apontamentos de Greco (2013, 2017) e com base nas decisões dos Tribunais Superiores, a redação do artigo 217-A do Código Penal e a consequente revogação do artigo 224 do referido Código, a partir da Lei n.° 12.015/2009, extinguiu por completo a possibilidade de se alegar a presunção de violência nos casos de estupro de vulnerável, inviabilizando, assim, falar sobre a possibilidade de relativizar a vulnerabilidade expressa pela lei.
Contrariando essa concepção, Nucci (2009) defende que, mesmo com a inserção do novo tipo penal, este não pode encerrar a discussão sobre a questão da presunção de violência e a relatividade que ela trouxe, inerentes ao novo conceito aplicado à vulnerabilidade normativa. Sobre isso, ele aponta que:
A proteção conferida aos menores de 14 anos, considerados vulneráveis, continuará a despertar debate doutrinário e jurisprudencial. O nascimento de tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. Agora, subsumida na figura de vulnerabilidade, pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou relativa. Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece mais acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade. (NUCCI, 2009, p. 37).
Assim, de um lado, tem-se os doutrinadores, que comungam do entendimento que integraram desde as exposições de motivos que levou à edição da Lei n.° 12.015/2009, para quem, independentemente da existência de uma concepção sobre a possibilidade de liberdade sexual a adolescentes, com idade entre 14 e 18 anos, não se aceita, em relação aos menores de 14 anos, qualquer tipo de inferência sobre a possibilidade de compatibilidade para com a prática sexual, considerando que esses (menores vulneráveis), se submetidos à relação sexual, sob qualquer circunstância, sempre serão vítimas de estupro, não havendo qualquer tipo de extinção de punibilidade para com o indivíduo que praticou o ato — estupro de vulnerável.
De outra sorte, tem-se a corrente que não admite se falar em presunção de violência em crimes de estupro praticados contra menor de 14 anos, uma vez que, devido à idade, independentemente do comportamento da vítima, o ato sexual sempre será uma violação da sua liberdade e dignidade sexual, até porque esse entendimento encontra guarida no rol de justificativas apresentado no projeto da lei em estudo, senão vejamos:
O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, [...]; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar qualquer outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática. Esclareça-se que, em se tratando de crianças e adolescentes na faixa etária referida, sujeitos da proteção especial prevista na Constituição Federal e na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, não há situação admitida de compatibilidade entre o desenvolvimento sexual e o início da prática sexual. Afastar ou minimizar tal situação seria exacerbar a vulnerabilidade, numa negativa de seus direitos fundamentais. (SENADO FEDERAL, PLS n.º 253, 2004, p. 5, grifo nosso).[2]
Assim, para doutrinadores, como Greco (2013, 2017), e aqueles que participaram da construção da Lei n.° 12.015/2009, não se trata aqui de trazer à tona a questão da presunção de violência, nem relativa, nem absoluta, extinta desde 2009, mas sim da ‘objetividade fática’, verificando se a vítima é menor de 14 anos e se, com isso, já se configura o crime.
Conforme aponta Couto (2015, p.2), a edição da Lei n.° 12.015/2009, ao trazer a questão da vulnerabilidade, foi feita a partir de uma visão de:
[...] um dever geral, objetivo e absoluto de abstenção de relações sexuais com menores de 14 anos, visando evitar a precoce iniciação sexual de crianças e adolescentes. Em outras palavras, a vulnerabilidade não admite relativizações, não importando o consentimento da vítima (que no caso não é válido), a experiência sexual anterior (ou que é pior, a prostituição infantil, que deve ser combatida de forma implacável) ou o relacionamento amoroso entre autor e vítima (incapaz de afastar o tipo penal).
Essa divergência de entendimento demonstra, por si só, a necessidade urgente de ampliar o debate sobre o tema e rever os dispositivos legais, de forma que o judiciário não fique passando por constantes reanálises de julgados sobre o tema. Isso porque, atualmente, o magistrado é muito cobrado para não se prender apenas à “letra fria da lei”, sem analisar o caso concreto, ainda que a normativa possua, em seu âmago, regras objetivas e taxativas.
O estudo nos mostra que, em que pese existirem normas claramente estritas e diretas, o judiciário brasileiro, por meio do seu ordenamento jurídico, ainda passa grande tempo revendo suas decisões diante dos embates emblemáticos decorrentes das diferenças de entendimentos e concepções.
Buscou-se, neste artigo, apresentar um tema atual e de suma importância dentro do ordenamento jurídico brasileiro, trazendo, de forma sucinta, informações pertinentes quanto ao crime de estupro, mais especificamente, estupro de vulnerável, em relação aos menores de 14 anos de idade. Assim, verificou-se que, com a edição da Lei n.º 12.015/2009, várias alterações foram introduzidas ao Código Penal de 1940, dentre as quais destacam-se: a tipificação do crime de estupro de vulnerável e a concepção da vulnerabilidade, constantes no artigo 217-A do CP.
Verificou-se também que, em relação à questão do estupro de vulnerável, ainda que a supracitada Lei tenha sido expressa e linear sobre a objetividade fática a ser verificada — crime praticado contra o menor de 14 anos (in casus) —, vários são os doutrinadores que entendem que tal dispositivo deve levar em conta o contexto social e a análise de caso a caso (concreto), não podendo o causídico e o julgador ficarem presos à norma taxativa.
Conforme já apontado no início deste artigo, não se pretende aqui comungar com um ou outro pensamento, visto que esse não é o cerne dos estudos realizados, buscou-se, pois, apresentar de forma sintética as principais concepções sobre o tema e abrir um campo para debate, com a intenção de apontar que, mais do que verificar qual corrente ‘está correta’, o que se faz urgente é a revisão das regras aqui estudadas, de forma que sua aplicação garanta a sua efetividade quanto à proteção da vítima e auxilie a desafogar o judiciário dos inúmeros recursos e revisões processuais.
Se o ideal defendido por uns é o da preservação do menor de 14 anos de forma taxativa e imexível, cabe efetuar, então, a adequação das demais normas vigentes que possibilitam a discussão sobre, por exemplo, excluir dessa natureza aqueles que estiverem entre 12 e 14 anos, relativizando a questão da vulnerabilidade à luz da análise do caso concreto, a partir do que preceitua o ECA, alterando-se, assim, o Estatuto. Ou, para os defensores da necessidade de se acompanhar a evolução social e da precocidade sexual dos adolescentes, buscar adequar os ditames do Código Penal para a inclusão da relativização, ainda não garantida pelo referido regulamento.
Diante desse cenário, o bem jurídico protegido pela Lei n.º 12.015/2009 refere-se à posição de vulnerabilidade da vítima, não inferindo sobre as questões de sua liberdade sexual, mas sim sobre a sua dignidade enquanto indivíduo, em especial, a dignidade sexual. Tal entendimento contraria o que alguns doutrinadores e juristas defendem sobre a necessidade de se verificar as relações presentes na atualidade, dentre as quais o termo ‘vulnerabilidade’ que deve acompanhar o processo de transformação contínua da sociedade, e, com isso, ter cada situação analisada de acordo com o caso que se apresenta, tornando-se, nessa esteira, relativizada.
Fomentar esse tipo de discussão demonstra que, a despeito de mudanças legislativas, os debates sobre questões importantes sempre trazem à tona os mais variados argumentos sobre a inviabilidade de não se considerar a realidade social, em paralelo ao escopo da norma penal, buscando não só a proteção do indivíduo, mas a luz da evolução que o acompanha. Assim, se a intenção do legislador foi a de impedir que para a vulnerabilidade não coubesse a discussão sobre a possibilidade de relativização, imperioso se faz coadunar tal entendimento com a premissa existente de que toda lei está sujeita à interpretação no momento de sua aplicação, diante do contexto em que este se realizou e a partir da análise dos elementos inerentes ao caso.
Para os defensores da necessidade de adequar a regra ao caso concreto, não implica em afastar a necessidade da tutela do Estado para os menores de 14 anos ou, ainda, da família e da própria sociedade, ao contrário, tais entidades continuam responsáveis por desestimular a prática sexual prematura e educar os menores sobre os riscos, prevenção e sua condição vulnerável garantida por lei. Todavia, de outra sorte, percebe-se, na intenção do Legislador, com a Lei n.° 12.015/2009 Lei 12.015/09 a preocupação primordial em proteger as vítimas quanto ao ingresso precoce às práticas sexuais, para que não caiba a questão da análise quanto à possibilidade de uma suposta precocidade sexual.
Com isso, buscou-se com o presente artigo ampliar o debate sobre os aspectos que permeiam o tema no nosso ordenamento jurídico, destacando a importância de se refletir sobre as concepções de vulnerabilidade apresentadas pelas diversas correntes, permitindo um espaço para o constante diálogo e questionamento, possibilitando aos acadêmicos e profissionais do direito ampliar os saberes, bem como buscar por decisões justas e condizentes com as normas vigentes.
Em que pese não se buscar a apresentação de um juízo de valor sobre o tema, restou evidenciado, quanto à questão da vulnerabilidade dos menores de 14 anos, que a doutrina não é unânime, de forma que dificulta a defesa de um entendimento predominante, em decorrência da divisão verificada entre os autores. Com isso, entende-se pela urgência sobre uma reflexão quanto ao bem jurídico a ser tutelado, de forma a evitar que essas diferenças se transformem em instrumentos de abuso de poder ou imposição de autoridade.
Necessário é que se busque, ao lutar pelo Direito, garantir a proteção àqueles em situação de vulnerabilidade, inclusive com a implementação de práticas que coíbam a precocidade verificada por um dos segmentos aqui apresentados, de forma que se torne possível excluir a ideia da relatividade, ao invés de debatê-la na seara jurídica. Isso porque, da análise do disposto legal, verifica-se que a intenção do artigo 217-A do Código Penal não é verificar se o menor de 14 anos, vítima de estupro, possui ou não experiência sexual, mas sim apontar que o crime existe a partir da conduta do infrator, buscando-se, com a norma, evitar que este leve o menor de 14 anos a um comportamento sexual precoce.
Nesse sentido, entende-se pela aplicabilidade da Lei n.° 12.015/2009, de forma taxativa, quanto à vulnerabilidade do menor de 14 anos de idade, não obstante ter ficado comprovada a necessidade de se buscar uma solução que se permita chegar a um entendimento, assim como ocorre em relação ao menor de 12 anos, em que não se admite a possibilidade de relativização da sua vulnerabilidade e que ponha fim à controvérsia existente quando a vítima figurar entre 12 a 14 anos de idade, sobre a possibilidade (ou não) de relativizar sua condição de vulnerável.
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[1] Graduando em Direito no Centro Universitário São Lucas, da cidade de Ji-Paraná, estado de Rondônia, estabelecida na Av. Engenheiro Manfredo Barata A. da Fonseca, 542, Bairro Jardim Aurélio Bernardi, Ji-Paraná – RO, CEP 76.907-524. E-mail: [email protected].
[2] Para maiores informações sobre o Projeto de Lei que culminou na edição da Lei n.° 12.015/2009, acessar: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3638945&ts=1571776545951&disposition=inline. Acesso em: 22 mar. 2020.
Graduando em Direito no Centro Universitário São Lucas, da cidade de Ji-Paraná, estado de Rondônia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSIS, Jaderson Lemes de. A questão da vulnerabilidade no crime de estupro de menores de 14 anos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 maio 2020, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54560/a-questo-da-vulnerabilidade-no-crime-de-estupro-de-menores-de-14-anos. Acesso em: 23 dez 2024.
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