ANTÔNIO TENÓRIO LEITE NETO[1]
(coautor)
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL[2]
(orientador)
RESUMO: O estudo em tela versa sobre o tema da (in) constitucionalidade do art. 156, I do CPP/41 e as suas características autoritárias, inquisitivas e inconstitucionais, haja vista que, colocam a imparcialidade do magistrado em dúvida e provocam antagonismos com a Carta Magna. À vista disso, o problema geral do artigo diz respeito ao seguinte questionamento: em que medida a (in) constitucionalidade do art. 156, I do CPP/41 revela um caso de crise das fontes com a atual vigência da Constituição Federal de 1988? Considerar-se-á que, há um desencontro entre a Constituição cidadã e o que preceitua o seu Estado democrático de direito com a estrutura obsoleta, embebecida de fontes autoritárias, inquisitivas, policialescas e de famigerada concentração de poder do Código de Processo Penal. Ressalta-se que, o objetivo geral do presente estudo é a análise do art. 156, I do CPP/41, a separação das funções de acusar e julgar, a partir da conduta adotada pelo Juiz “em busca da verdade” e sua imparcialidade. Para esse designío, o estudo tem como recurso metodológico o método dedutivo, que será realizado a partir da revisão bibliográfica. Portanto, o artigo se constitui como uma discussão importante para verificar as consequências da aplicação do art. 156, I do CPP/41.
Palavras-chave: Autoritarismo; Gestão das provas; Crise das fontes; Sistemas Processuais Penais.
ABSTRACT: This study deals with the theme of the (in) constitutionality of art. 156, I of CPP / 41 and its authoritarian, inquisitive and unconstitutional characteristics, once, they cast doubt on the magistrate's impartiality and provoke antagonisms with the Constitution. Thus, the general problem of the article concerns the following question: to what extent the (in) constitutionality of art. 156, I of CPP / 41 reveals a case of source crisis with the current validity of the 1988 Federal Constitution? It will be considered that, there is a mismatch between the citizen's Constitution and that one which prescribes its democratic State of law with the obsolete structure, imbued with authoritarian, inquisitive, police-based sources and the notorious power concentration of the Criminal Procedure Code. It should be noted that the general objective of the present study is the analysis of art. 156, I of CPP / 41, the separation of the functions of accusing and judging, based on the conduct adopted by the Judge “in search of the truth” and his impartiality. For this design, the study has as a methodological resource the deductive method, which will be carried out from the literature review. Therefore, the article constitutes an important discussion to verify the consequences of the application of art. 156, I of CPP / 41.
Keywords: Authoritarianism; Evidence management; Crisis of sources; Criminal procedural systems.
Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. Instrumentalidade Constitucional, Crise das fontes e a Natureza Jurídica do Processo Penal. 2.1. A necessidade de uma análise em dupla conformidade. 2.2. Processo: Relação ou Situação jurídica?. 2.3. Recognição e a captura psíquica do Juiz. 3. Sistemas Processuais Penais e a busca da verdade. 3.1. Sistema Processual Penal Inquisitório. 3.2 Sistema Processual Penal Acusatório. 3.3 Sistema Processual Penal Misto e sua ineficiência. 3.4. A política da gestão das provas nas mãos do Juiz. 4. Autoritarismo e a (in) constitucionalidade do art. 156, I do CPP/41. 4.1. O autoritarismo e as vielas de um código superado. 4.2 As faces inquisitórias e inconstitucionais do art. 156, I do CPP/41. 5. CONCLUSÃO. 6. REFERÊNCIAS
1.INTRODUÇÃO
A formação histórica, cultural e estrutural do código de processo penal brasileiro, apresenta como seu marco inicial o Estado Novo, ou mais propriamente na ditadura varguista, onde espelhou-se no código de processo italiano, que por sua vez, apresenta traços autoritárias, fascistas, inquisitivos e policialescos. Sobre isso, Capelato (2003), alerta que, tais características que se encontram enraizadas no código, ainda estão em vigor atualmente.
Entretanto, o código de processo penal encontra-se superado, em muitos dos seus dispositivos, pela Carta Magna e pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Em que pese isso, a falta de uma dupla filtragem da legislação infraconstitucional tem geram uma autêntica crise de fontes no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse cenário, destaca-se o artigo 156 do Código Processo Penal Brasileiro, que faculta ao juiz de ofício a produção de provas, já que o magistrado poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar diligências para dirimir dúvida sobre algum ponto relevante.
Percebe-se então, com a leitura do art. 156 do CPP/41, que se funda um sistema inquisitório, que nos remete não somente aos julgamentos do período medievo, como também a uma quebra da igualdade e da estrutura dialética do processo. Esse fato, resulta especialmente na perca da principal garantia da jurisdição, que se encontra justamente na imparcialidade do magistrado (LOPES JÚNIOR, 2019), e fortalece a construção de um processo dotado de autoritarismo.
O reflexo do art. 156, I do CPP, se apresenta justamente na atuação do magistrado e com a gestão das provas em seu domínio. Isso porque, com os indicadores nas próprias mãos, ele busca elementos para o que acredita ser a verdade real. Todavia, essa demanda, faz com que exista a cumulação das funções de acusar e julgar, comprometendo não somente a sua imparcialidade, mas o processo legal em si.
Portanto, o estudo em tela, almeja discutir sobre a (in) constitucionalidade do art. 156, I do CPP/41 e as suas características autoritárias, inquisitivas e inconstitucionais, haja vista que, colocam a imparcialidade do magistrado em dúvida e provocam antagonismos com a Carta Magna.
Destarte, a problematização do estudo diz respeito ao seguinte questionamento: em que medida a (in) constitucionalidade do art. 156, I do CPP/41, revela um caso de crise das fontes com a atual vigência da Constituição Federal de 1988? Desse modo, de forma a atender à pergunta central do estudo, a hipótese trabalhada foi a de que, boa parte dos magistrados trabalham com o equivocado paradigma da autonomia transposta no do art. 156, I do CPP/41, sem que haja uma imparcialidade do julgador.
Nesse sentido, na busca de se compreender sobre a temática, o estudo tem como base o método dedutivo, no qual foi realizado a partir de pesquisas bibliográficas. Para Gil (2008) a pesquisa bibliográfica permite investigar de modo amplo sobre os fenômenos “utilizando-se das contribuições de diversos autores sobre determinado assunto”, através de fontes como livros, revistas acadêmicas, artigos, web sites, dentre outros (GIL, 2008, p.51). Posto isso, a pesquisa tem natureza qualitativa, cuja investigação concentra-se nos aspectos descritivos da temática.
Portanto, a relevância do artigo, se apresenta na possibilidade de contribuir com a produção bibliográfica local sobre o tema, e aprofundar as reflexões acerca do art. 156, I do CPP/41, destacando o caso da crise das fontes, com a atual vigência da Constituição Federal de 1988.
2.Instrumentalidade Constitucional, Crise das fontes e a Natureza Jurídica do Processo Penal
A vida em sociedade é um verdadeiro e interminável ciclo de complexidades. Logo, o ser humano é inconstante e anseia para contemplar as suas necessidades, ainda que, elas custem à paz e os espaços de outros, o que acaba gerando como consequência esperada, uma cadeia de conflitos.
Nesse contexto, o mundo testemunhou e ainda testemunha as mazelas de implementações de leis e políticas opressoras, radicais e autoritárias por parte de líderes tiranos, no qual a figura do processo, demonstra importante desenvoltura na solução litigiosa, bem como um elemento limitador da esfera de atuação do poder estatal, ao passo que, se dispõe como ferramenta para concretude da eficácia dos direitos e garantais fundamentais.
Diante das funcionalidades e características do processo, têm-se que o processo penal comporta tais atribuições, mas ainda assim, não se limita somente a esse contingente, sendo imperioso e, fazendo surgir indagações em torno do seu fundamento de existência. De fato, ir ao encontro da resposta para tal ponto, remeteria a sua existência e à sua lógica sistemática, onde, através de uma leitura sobre a matriz constitucional, reforçaria um processo penal como elemento não só dos direitos e garantais fundamentais, mas como instrumento de realização deles.
Inegavelmente, um processo penal à luz de uma constituição autoritária, corresponde a um processo autoritário. Contudo, levando em consideração uma constituição democrática e cidadã como a que vigora no Brasil, em tese, o esperado é que se correspondesse a um processo penal democrático e garantista. Além disso, abre-se o caminho para a definição do fundamento de existência de um processo penal democrático, por meio da “Instrumentalidade Constitucional”, remetendo em outras palavras, um processo como ferramenta apto a extrema eficácia de um sistema de garantias mínimas.
Convém lembrar que, é de conhecimento no mundo jurídico e no campo do processo penal, o fato de que, não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena, e de fato, a existência de uma pena sem processo não soa para os bons ouvidos, sendo uma aberração jurídica se tal circunstância tomasse existência. Porém, é importante destacar que, não se pode haver mero reducionismo em face do processo penal, como se ele apenas angariasse a função de promoção e aplicação de uma pena, onde a sinapse deve ir além, mesmo porque, o processo penal trabalha na salvaguarda das garantias individuais e fundamentais do individuo que se vê diante de uma acusação.
Nesse sentido, Aury Lopes Jr (2019), ensina com maestria que “é fundamental compreender que a instrumentalidade do processo não significa que ele seja um instrumento a serviço de uma única finalidade, qual seja, a satisfação de uma pretensão (acusatória)” (LOPES Jr, 2019, p.59), onde ao lado da mesma, têm-se a função constitucional do processo, como meio da realização democrática, sendo que, a Constituição constitui e trabalha para orientar a instrumentalidade do processo penal.
No caso da referida Instrumentalidade Constitucional, a efetividade desta, guarda íntima ligação com a atividade jurisdicional, onde a jurisdição atua sobre importante função de garantir os direitos e liberdades individuais em relação àquele que se imputa uma prática delitiva. Diante disso, para que o processo não seja enxergado apenas, e tão somente sob a ótica de uma pena em si mesmo, necessária se faz a observância da proteção, efetividade dos direitos e garantias, verdadeiros pilares de sustentação do Estado Democrático de direito.
Por fim e não menos importante, com base nas palavras de Aury Lopes Jr. (2019):
“Concluímos que a instrumentalidade do processo penal é o fundamento da sua existência, mas com uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e garantais individuais” (LOPES JR, 2019, p.62).
Tal argumentação, induz à reflexão de que o processo penal está para a limitação da tirania e proteção do débil que carece da debilidade estrutural, onde ela transmuta pelo tempo a fora. Apesar desta, não ter relação com as condições de pecúnia e nem com a política do débil, ela está limitada pelo espaço que o processo penal ocupa no universo da relação das partes (polo passivo), onde este, se encontra à mercê das imposições e limitações da figura estatal.
Com a análise do fundamento da existência do processo penal, resta-se cristalino, o fato de que a instrumentalidade constitucional responde a empírica indagação da sua existência, justificando que o processo penal deve estar intimamente ligado aos preceitos da Constituição para fazer jus ao caráter democrático, onde sem dúvidas é o que se espera deste.
Nesse sentido e nas palavras de Leonel e Felix (2017):
“É inegável que o processo penal democrático tem por finalidade assegurar o respeito ao fair play processual, das regras do jogo democrático, ou seja, o processo penal é um instrumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias, previstos na Constituição Federal e no Pacto de São José da Costa Rica” (LEONEL; FELIX, 2017, p. 29).
Porém, mesmo diante desses indicativos, qual seria a garantia de que o processo penal está realmente sendo interpretado conforme a Lei Maior seguido dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos como o do Pacto de São José da Costa Rica? É sabido que, o referido código de processo penal vigora a muito mais tempo, do que a própria existência da Constituição, onde questionar tal conformidade levanta importantes questionamentos.
Dentro desse contexto, a Constituição Federal de 1988 se sobressai à frente das demais normas que compõe o ordenamento jurídico brasileiro, pelo princípio da supremacia da Constituição, assim como as demais, para serem aplicadas, devem estar em conformidade com a mesma. O fato é que, mesmo diante desses indicativos, há a aplicação de um código em vigência sem o cumprimento dessas prerrogativas, qual seja o Código de Processo Penal. É importante destacar que este não é o único, devido à infinidade de artigos inconstitucionais que não estão seguindo os preceitos da norma maior, e que estão sendo aplicados em outros códigos do sistema jurídico brasileiro.
De acordo com Aury Lopes Jr (2019):
“Atualmente, existe uma inegável crise da teoria das fontes, em que uma lei ordinária acaba valendo mais do que a própria Constituição, não sendo raro aqueles que negam a Constituição como fonte, recusando sua eficácia imediata e executividade” (LOPES JR, 2019, p.36).
O código de processo penal encontrasse em desconformidade com a Constituição e com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, gerando referida crise e demonstrando a necessidade de uma análise do controle de constitucionalidade e do controle de convencionalidade, dando voz a uma análise em dupla conformidade.
O processo penal para ser dito democrático, assim como seus dispositivos e todo o seu corpo estrutural, precisam estar em conformidade tanto com a Constituição Federal, como com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, assegurando o respeito ao fair play processual e as regras do jogo democrático, para assim evitar tal crise de fontes, a insegurança jurídica que sua desconformidade causa e as consequências da sua inconstitucionalidade. Logo, a Constituição trabalha para a promoção democrática do código, dentro da perspectiva da instrumentalidade constitucional, mas isso por si só, não assegura que o código segue esse trabalho e é em sua totalidade democrático.
Outra questão de extrema importância e que guarda ligação com o processo penal, é a discussão em torno de sua natureza jurídica. Compreender tal natureza jurídica do processo penal, o que esse vem a representar e constituir, o tratamento de abordar a determinação dos vínculos que unem os sujeitos sendo estes (juiz, acusador, e réu), bem como a natureza jurídica de tais vínculos como um todo, gera uma crescente linha de debates, onde variadas são as teorias que tentam explicar esse fenômeno processual. Ao se examinarem alguns, verifica-se que, duas merecem uma atenção mais aproximada, sendo o processo como relação jurídica defendida por Bülow em “La teoria de las excepciones dilatórias y los presupuestos processuales”, publicada em 1868 e a de James Goldschimidt e sua teoria do processo como situação jurídica, tratada em sua obra “Prozess als Rechtslage” publicada em Berlim em 1925, cuja obra vai ao desencontro em relação a obra defendida por Bülow.
A obra de Oskar Von Bülow “La teoria de las excepciones dilatórias y los presupuestos processuales”(1964), foi um importante marco no campo processual, por estabelecer o rompimento do direito material com o direito processual e a consequente independência das relações jurídicas que vieram a se estabelecer nesses dois planos.
Com o presente autor, a concepção apresenta mudanças radicais, no qual o processo é visto em uma relação jurídica com natureza pública, que se estabelece entre as partes e o magistrado, originando uma determinada reciprocidade de direitos e de obrigações de cunho processual.
Essa natureza pública se origina do fatídico da existência de um vínculo entre as partes e um órgão público de composição da administração da justiça, em uma atividade eminentemente pública. Assim, o processo é concebido como uma relação jurídica de direito público, com autonomia e independência da relação jurídica de direito material.
Em face dessa situação, o réu assume o status de sujeito de direitos e de obrigações processuais, onde há a existência de um triângulo jurídico composto pelas partes (acusador, réu) e o juiz. Posteriormente, pela complexidade da relação, nasce entre essas partes uma reciprocidade de direitos e de obrigações. O acusado então é visto, como integrante do processo, onde este tem igualdade de armas e de oportunidades com a acusação (sendo essa estatal ou não), no qual passa a ser possuidor de um quadro de direitos subjetivos, eivados de eficácia em relação ao magistrado e em relação à acusação.
Ainda sim, a teoria de Oskar Von Bülow (1964) prima por “pressupostos processuais”, que podem ser de existência ou de validade, onde seriam estes os pressupostos para o seu nascimento ou desenvolvimento válido. Mesmo diante de ataques e críticas, no que concerne a teoria do processo enquanto “relação jurídica”, esta veio a ser adotada por boa parte da doutrina processualista.
Em vista dessa situação de fervorosas críticas, uma delas repercutiu mais dentro do cenário jurídico. Foi realizada por James Goldschimidt com a sua teoria do processo como situação jurídica, tratada na obra “Prozess als Rechtslage” (1935), cuja contribuição aconteceu com importantes debates sobre a concepção da natureza jurídica do processo penal.
Na concepção de Goldschimidt (1935), o processo é visto como um caminho de situações processuais, pelos quais as partes precisam percorrer e atravessar, indo ao encontro de uma sentença definitiva de viés favorável. O autor nega a existência de direitos e obrigações processuais como teoriza Bülow (1964), onde ele considera que, os pressupostos processuais são, na realidade, pressupostos de uma sentença de fundo.
Goldschimidt (1935) difere de Bülow (1964), ao evidenciar que o processo não é estático, mas sim dinâmico e cercado pelo risco e pela incerteza. Ele enxerga o processo como uma complexa “situação jurídica”, por onde, através da sucessão de atos, ocorre a geração de chances. Essas ao serem bem aproveitadas, resultam na posterior liberação da parte, no tocante das cargas de natureza probatória, indo assim, ao encontro de uma sentença favorável (expectativas).
Nesse sentido, argumentam Leonel e Felix (2017): “o processo penal nada mais é do que uma guerra, aonde alguém há de vencer. E, vencerá, por óbvio, aquele que melhor aproveitar as chances processuais, conseguindo, através da produção de provas, a captura psíquica do juiz” (LEONEL; FELIX, 2017, p. 20).
Assim, da mesma forma como pode existir o aproveitamento dessas chances, pode ocorrer o não aproveitamento delas e incorrer na não liberação da carga processual. Nesse caso, ocorreria a geração de uma situação processual não muito vantajosa para a parte, conduzindo a uma pretensa sentença desfavorável. Como Goldschimidt (1935) nega a existência de direitos e de obrigações em relação as partes, mas prima pelas cargas processuais em relação a estes, o autor defende que, no processo penal, não existe distribuição de cargas probatórias, já que toda carga de provar os fatos alegados estão na incumbência do acusador.
Goldschimidt (1935) destaca também, a dinamicidade, a movimentação e a fluidez do processo, abandonado da ideia sedutora de segurança jurídica que Bülow (1964) teoriza em existir. Ao assumir a epistemologia da incerteza e do risco intrínseco ao processo, Goldschimidt (1935) tende a reforçar a importância do valor e a eficácia das regras do devido processo penal. Sobre esse processo, Leonel e Felix (2017), parafraseando os autores Goldschimidt (1935) e Lopes Júnior (2012) elucidam que:
O processo é uma guerra inserida na mais completa epistemologia da incerteza. Assim, necessário se faz admitir que um processo penal que se propõe a ser democrático é aquele que serve para proteger os direitos fundamentais, através de regras de jogo democrática, decorrendo desse respeito, inclusive a legitimidade de sentença condenatória, e não se alvorar num instrumento de busca da verdade (que no processo penal é contingencial e não fundante). Logo, precisamos, sem pudores, assumir a instrumentalidade constitucional, do processo penal, ou seja, pelo princípio da necessidade o processo é o caminho a ser percorrido para que a sanção penal possa ser aplicada, já que não há sanção penal senão através do processo penal, evidenciando assim, que o fair play processual com inequívoco respeito às regras do jogo, é o que distingue um processo penal humanitário (LEONEL; FELIX, 2017, p. 17).
Diante do exposto, conclui-se que o processo existe para limitação da tirania e proteção do débil, no qual a instrumentalidade constitucional indica uma matriz democrática e constitucional.
2.1 Constituição suprema e o Estado democrático de direito
No que tange às evoluções históricas das constituições que tiveram vigência e aplicação no ordenamento brasileiro, bem como da ausência de um Estado democrático, é importante discutir a respeito da estrita convivência com as constituições autoritárias, como por exemplo a constituição de 1937, que, em seu bojo, andava em rotas contrárias daquilo que se preceitua com a constituição vigente.
Por sua vez, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a atual constituição em vigência. A respectiva, é a sétima constituição e a sexta da sua república, sendo a última a contribuir com a transição de um regime autoritário para um regime democrático. Ressalta-se que, a Carta magna é tida como a “Lei suprema e fundamental do Brasil”, sendo conhecida como “Constituição Cidadã”, por ter nascido no processo de redemocratização, iniciado com o fim da era da ditadura militar, experimentada no Brasil. Em contrapartida, diferentemente das constituições passadas, a Constituição Federal de 1988 assegura um rol extensivo de direitos e garantias fundamentais, representando, assim, uma importante evolução.
Diante disso, em seu preâmbulo, foi instituído o ensejo de um Estado Democrático, que objetiva assegurar valores de matrizes supremas de uma sociedade fraterna, sem distinções, mergulhada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica de controvérsias, sendo esta democrática e liberal, com forte influência da Constituição portuguesa de 1976.
Por sua vez, o Estado Democrático de direito é um conceito que se aplica à figura de um Estado que preserva o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, no qual deve existir também, as garantais dos direitos de caráter individual, coletivo, político e sociais.
Todavia, é indiscutível que não é possível falar da Constituição Federal de 1988, sem mencionar o seu Estado democrático de direito, pela necessidade de um em relação ao outro sob o viés da democracia, que vem sendo construída ao passar do tempo. Assim, compete ao Supremo Tribunal Federal, instância máxima do ordenamento jurídico e com fulcro no art. 102, da Constituição Federal de 1988, a legitimidade para a guarda da Carta Magna.
A Constituição Federal de 1988 é a lei maior e fundamental, é ainda a sistemática pela qual uma sociedade estabelece a sua organização com restrição de atos e a exigência de prestações estatais, seja através da prescrição de direitos, de deveres e de garantias, seja no ato de conferir o fundamento de validade das leis e atos normativos. Sobre essa discussão Silva (2002) identifica que:
“A constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas religiosas, etc.); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e; finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder que emana do povo” (SILVA, 2002, p. 41).
Diante disso, os preceitos ou normas (sejam regras ou princípios), que fazem parte da constituição, em decorrência das suas características e dos seus objetivos, se encontram em um patamar de hierarquia acentuada, em relação a todas as outras demais normas jurídicas, que fazem a composição do ordenamento jurídico. Não obstante, a Constituição Federal de 1988 se encontra no ápice do escalonamento jurídico de qualquer país, tendo, em seu bojo, a estrutura e as normas fundamentais do Estado que a sedia.
Nas lições de Nathalia Masson (2017):
“A referida premissa interpretativa estabelece que, em virtude de a Constituição ocupar o ápice da estrutura normativa em nosso ordenamento, todas as demais normas e atos do Poder Público somente serão considerados válidos quando em conformidade com ela” (MASSON, 2017, p. 60).
De acordo com a autora, em decorrência da supremacia da Constituição e da higidez do seu texto, é possível fazer questionamentos quanto à constitucionalidade dos diplomas infraconstitucionais por intermédio do controle de constitucionalidade, devendo eles estarem em conformidade com a norma maior.
O sistema jurídico que se encontra no dito cujo escalonamento tendo em sua íntegra a Constituição deve apresentar como características a coerência e racionalidade. Qualquer conflito ou antinomia que venha a agredir a primazia da Constituição viola, por consequência, ao menos um princípio de caráter essencial, que seria a já mencionada “Supremacia da Constituição”, contribuindo para a desarmonia do ordenamento, gerando a inconstitucionalidade.
Por fim, ainda que por força de aplicação do controle de constitucionalidade, temos em vigência e aplicação o código de processo penal, que, em sua estrutura, apresenta artigos inconstitucionais como o artigo 156, I do código de processo penal. O que causa estranheza é como um código que em sua íntegra apresenta essa inconstitucionalidade continua em aplicação, pelo fato de gerar um choque com o princípio da supremacia constitucional e diretamente com a Constituição. Eis a indagação: como uma lei ordinária tem mais autonomia do que a própria Lei Maior?
Várias são as indagações diante da existência do código de processo penal em contraposição com a Constituição. Na pirâmide preconizada por Hans Kelsen (1991) “a Constituição está no topo, devendo os demais atos estarem em conformidade com esta” (HANS, 1991, p. 48), mas, diante da situação que não parece ser nova, se for levado em consideração que o código já está superado e que a Constituição é bem mais atual, o código parece se sobressair em relação a Carta Magna e a suas bases de defesa.
2.2 A necessidade de uma análise em dupla conformidade
Sabendo que a Constituição Federal de 1988 encontra-se no topo da pirâmide da hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro, as demais normas, em tese, devem estar logo abaixo desta e em conformidade com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, dos quais o diploma mais importante é o do Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, que prevê várias garantias para os investigados ou acusados no processo penal.
Destaca-se a importância dos Tratados Internacionais, pois estes trazem garantias e direitos no processo penal para os investigados e para os réus, de tal maneira que, um Tratado Internacional de Direitos Humanos ingressa no ordenamento jurídico brasileiro com status de norma materialmente constitucional, e quando ele passa pelo crivo de votação em 2 (dois) turnos no Congresso Nacional com quórum de 3/5, além dessa materialidade constitucional, ele passa a ser formalmente constitucional sendo de extrema importância e hierarquicamente superior ao processo penal, onde segundo o STF, o Tratado recebe o status de norma supralegal.
Em contrapartida os autores Leonel e Felix (2017) advertem:
“Não podemos olvidar que o Código de Processo Penal, promulgado (1941) em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas e inspirado no Código de Processo Penal Italiano da década 30 (Codice Rocco), possui um nítido viés fascista, policialesco e de inegável matriz autoritária. Por conseguinte, é indefectível o choque ideológico entre o Código de Processo Penal de índole ditatorial e a Constituição Federal de 1988 democrática” (LEONEL; FELIX, 2017, p. 25).
Assim como a Constituição Federal atualmente vigente tem sua supremacia, os Tratados também têm, e não resta dúvidas que o código de processo penal por ser uma lei ordinária, se encontra abaixo destes. O que acontece no Brasil? Crise das fontes. Isso significa que, diversas vezes no processo penal, haverá a aplicação do código mesmo com a violação dos tratados e do texto constitucional, o que acaba por gerar e deixar claro essa crise de fontes presente no ordenamento.
Diante disso, é necessário no Brasil a realização de uma análise do código de processo penal, onde explicam com maestria Leonel e Felix (2017):
“Como o CPP é de matriz inquisitorial e todo saber é datado, mister se faz no curso do processo penal, ao se decidir acerca da aplicação das regras do jogo, fazer uma dupla análise de conformidade, através do controle de constitucionalidade e também do controle de convencionalidade” (LEONEL; FELIX, 2017, p. 30).
O grande problema é que, mesmo diante do que se deve ser feito, muitas obras da literatura processual penal e seus autores, não fazem essa análise de dupla conformidade, onde basicamente fazem a reprodução grosseira do código contribuindo para o aumento da crise de fontes e da insegurança jurídica em volta do ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, leciona Giacomolli (2016):
“Uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o processo penal humanitário”. A partir daí, faz se mister uma nova metodologia hermenêutica (também analítica e linguística), valorativa, comprometida de forma ético-política, dos sujeitos do processo e voltada ao plano internacional de proteção dos direitos humanos. Por isso, há que se falar em processo penal constitucional, convencional e humanitário, ou seja, do devido processo” (GIACOMOLLI, 2016, p.13).
Diante do contexto, uma lei ordinária pode ser compelida e submetida a um duplo controle material e vertical, onde esta será tida como válida e adequada, se atender a Constituição Federal de 1988 e aos Diplomas Internacionais ratificados pelo Brasil, sejam estes comuns ou em relação aos Direitos Humanos que possuem a mesma hierarquia constitucional, com a aplicação da regra do princípio do Pro Homine (GIACOMOLLI, 2016, p.30).
Para tanto, fica claro a necessidade de uma reformulação e inovação de matriz processual, constitucional e em comprometimento internacional, como norteadoras, supremas e de caráter irrenunciável para a promoção da dignidade do ser humano e não somente deste, como também daquele que fica à beira da sociedade por método de exclusão, sendo este o mais incluído no sistema criminal pelo viés do processo penal. Com decisões arbitrárias, falta de demonstração dos motivos ensejadores da mesma, e do comprometimento com a justiça, abre-se espaço para que, possa existir uma superação dos índices e falhas de compreensão (sejam estes de matriz dogmática, de matriz jurídica, da eficácia e validade dos direitos fundamentais), levando em consideração o presente e trabalhando para um futuro próximo (GIACOMOLLI, 2016, p. 14).
2.3 Processo: Relação ou Situação Jurídica?
No que concerne ao referido questionamento, Aury Lopes Jr (2019), aponta que dentro desse cenário, há duas importantes figuras precursoras que contribuíram no papel de desenvolvimento de teorias que abordam e tentam explicar essa dicotomia em relação à natureza jurídica do processo penal, quais sejam estes, Bülow e James Goldschmidt.
Em relação à adoção das teorias, Bülow defende o processo enquanto uma relação jurídica, onde nas palavras de Aury Lopes Jr (2019, p. 38):
“A concepção muda radicalmente, sendo o processo visto como uma relação jurídica de natureza pública que se estabelece entre partes e o Juiz, dando origem a uma reciprocidade de direitos e obrigações processuais” (LOPES JR, 2019, p. 38).
Segundo Aury Lopes Jr (2019) para “Bülow, além dessa reciprocidade e relação triangular entre partes (autor e réu) e o Juiz, a concepção de relação jurídica traria a ideia de segurança no processo” (LOPES JR, 2019, p. 38). A teoria do processo enquanto relação jurídica, defendida por Bülow, sofreu com críticas no âmbito processual civil e no do processo penal, mas ainda sim, foi adotada por grande maioria da doutrina processualista. A crítica mais assentada e de magnitude foi expressa por “James Goldschmidt, defensor da teoria do processo enquanto situação jurídica e importante precursor da explicação da natureza jurídica do processo penal” (LOPES JR, 2019, p. 39).
Contudo, antes de entender o processo enquanto situação jurídica é preciso entender um determinado ponto: ao se cumprir a prestação “A”, o individuo tem o direito de exigir a contraprestação “B”, isso na seara cível (relação jurídica), existem direitos, deveres, obrigações e faculdades previstas no contrato e no processo civil. Porém, o objeto do estudo é o processo penal, onde o sujeito tem o direito, mas ocorre uma relativização nesse direito de “ganhar”, por que o processo penal é um jogo de informação incompleta, não se conhece as informações do jogo, pois estas vão sendo trazidas ao longo do processo.
Assim, o processo penal está inserido na “epistemologia da incerteza” e isso significa que, “eu não consigo prever o resultado do processo com segurança”, mas se dentro das regras do jogo o Juiz incompetente não trouxe provas insuficientes ocorre o in dubio pro reo. O processo penal, portanto, é uma atividade de risco/insegurança no qual as sentenças podem ser justas ou injustas, e para o sujeito desenvolver qualquer concepção de relação jurídica, “é preciso ter uma noção anterior (segurança), se não houver essa noção de segurança, não há como conceber a teoria do processo enquanto relação jurídica preconizada por Bülow” (LOPES JR, 2019, p. 39).
Conforme Aury Lopes Jr (2019):
James Goldschmidt percebeu essa epistemologia da incerteza no processo penal utilizando-se de uma metáfora de guerra: “Quando nós estamos vivendo momentos de paz, vivemos relações estáticas, agora quando a guerra estoura, abandonamos aquela relação estática e vivemos uma relação dinâmica onde tudo se resolve na ponta da espada, e quando a guerra estoura alguém há de vencer essa guerra e quem vence a guerra não é o jogador mais forte, mas sim, aquele que melhor desfruta dos direitos” (LOPES JR, 2019, p. 40).
Portanto, as sentenças podem ser justas quando o jogador mais habilidoso realmente detém o direito. Entretanto, Aury Lopes Jr (2019) observou que “para Goldschmidt, a natureza jurídica do processo não é um conjunto de direitos, deveres, faculdades e obrigações por que isso demandaria uma noção de segurança que o processo não tem” (LOPES JR, 2019, p. 40).
Para o autor citado, a natureza jurídica nesse caso seria uma situação jurídica, onde o processo é um “conjunto de situações jurídicas onde ao longo dessas situações surgiriam expectativas, possibilidades, mas acima de tudo onde se brotam chances que se bem aproveitadas, liberam da carga probatória que o sujeito tem no processo” (LOPES JR, 2019, p. 40).
Inobstante a isso, as expectativas para uma sentença de viés favorável e as expectativas para uma sentença de viés desfavorável, constituem os nexos jurídicos das partes, onde essas têm uma dependência constante do aproveitamento ou não dos atos processuais para o aumento ou redução das suas reais expectativas e perspectivas. Assim, quando uma das partes angaria sucesso com uma posterior liberação de carga, ela adentra automaticamente para o aumento de suas expectativas/perspectivas de uma possível sentença favorável, reduzindo assim a possibilidade de uma sentença que não seja ao seu favor. Já a parte contrária dessa situação, terá em seu desfavor, uma consequente redução de suas expectativas e um aumento de suas perspectivas.
A riqueza que paira no mundo da incerteza e a necessidade de (re) pensar o processo acaba por vir a inserir novas ares, concepções no tocante à natureza jurídica do processo. Esses novos ares e concepções se dão desde características de matriz sociológica, como no caso de novas categorias (chances, expectativas, perspectivas), até no mundo de cunho matemático, como enxergar o processo com olhos de incerteza. Assim, nascem lições que acabam remetendo ao campo da estratégia, da astúcia e da tática de guerra processual, buscando ao final não somente uma pretensão satisfatória, mas também a “captura psíquica do juiz”.
Nos dizeres de Leonel e Felix (2017) “se o processo penal é uma guerra, um jogo, que não deve ter por missão a busca desenfreada do mito da “verdade real”, já que a verdade no processo penal não é achada, mas sim construída analogicamente através dos rastros da passeidade, mister se faz compreendê-lo pelo viés da sua instrumentalidade constitucional” (LEONEL; FELIX, 2017, p.21).
Por fim, o processo penal definido dentro do contexto da instrumentalidade constitucional, acaba por remeter em outras palavras, a um processo democrático, eficaz e em respeito às regras do jogo processual com um sistema de garantias mínimas.
2.4 Recognição e a captura psíquica do Juiz
Salienta-se que, o sujeito ao produzir a prova tenta duas coisas: uma função recognitiva (reconstrução) de um fato passado e uma função persuasiva (captura psíquica do Juiz/convencimento). Nos dizeres de Aury Lopes Jr (2019), “O processo penal é um instrumento de retrospecção, de uma reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico” (LOPES JR, 2019, p. 341). O crime é fato histórico, onde o processo penal é uma tentativa de reconstrução de um fato passado, por isso a prova tem essa função recognitiva.
Corrobora com o exposto acima, Leonel e Felix (2017) ao dizer que “o processo penal é uma tentativa sempre aproximada de reconstrução do passado, respeitando-se as regras do jogo” (LEONEL; FELIX, 2017, p. 38). Por conseguinte, na esteira do processo penal, têm-se que a verdade que se é buscada, não é a verdade material ou substancial, dada a impossibilidade da verificação com precisão desta. Não obstante, se o processo é tido como um jogo e o crime é um fato histórico, a busca da verdade deve ser colhida sob a guarita do contraditório e da ampla defesa, elementos indispensáveis do devido processo, respeitando-se os parâmetros das regras processuais.
Para Aury Lopes Jr. (2016), “não se pode atribuir ao processo penal a missão de buscar a verdade real ou substancial, pois a verdade não é fundante no processo penal democrático e acusatório”. Assim, a decisão judicial, em outros ditames, não é aquela que irá revelar a verdade, qual seja ela, de natureza material ou de natureza formal, mas sim um ato de convencimento, formado no contraditório e na esfera do devido processo legal.
Por essa razão é importante, não somente capturar as funções psíquicas do juiz, mas convencer o mesmo. Não há a negação da verdade, mas sim a negação apenas e tão somente de que o processo penal angarie a incumbência da busca desta a todo e qualquer custo, pois a verdade é contingencial e não estruturante.
O douto magistrado, na sentença, vem a construir, pelo crivo do contraditório, a sua convicção no tocante aos fatos delituosos, promovendo os significados que lhe pareçam válidos (porém, dentro das regras do jogo e do processo, por óbvio). A verdade nem sempre é o resultado, nem essa necessita ser, mas sim, o resultado do convencimento do juiz moldado a partir do contraditório e do devido processo penal (LOPES, JR, 2016, p. 210).
Com isso, tanto a acusação como a defesa, podem e devem trilhar o caminho para buscar a captura psíquica do juiz, para que este venha a se convencer da história que lhe está sendo narrada, através das provas que são produzidas dentro do viés do contraditório.
Nesse sentido, é preciso retomar às palavras de Leonel e Felix (2017) no qual consideram que “o processo penal democrático, portanto, não pode ter por finalidade principal a impossível “busca da verdade real”, que serviu apenas para fundar a construção de processos penais utilitaristas e autoritários, que por evidente é incompatível com o atual paradigma constitucional” (LEONEL; FELIX, 2017, p. 38).
3.SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS E A BUSCA DA VERDADE
Assim como a sociedade se modifica com o passar do tempo, não seria diferente com o processo penal e mais precisamente com a estrutura que o compõe, onde esta, conforme a variação do tempo e do espaço se modifica em detrimento dos diferentes tipos de Estados e seus modelos de ideologia punitivista ou libertária.
No que tange aos sistemas processuais penais, há de se falar de 3 tipos de modalidades de sistemas, quais sejam o Sistema Processual Penal Inquisitório, Sistema Processual Penal Acusatório e uma terceira modalidade, com status especial que seria o Sistema Processual Penal Misto. Segundo Khaled Jr (2015), “discutir sobre a definição dos sistemas em acusatório, inquisitório ou misto dentro do viés dos sistemas processuais leva ao embate de uma das temáticas que mais geram polêmicas no processo penal” (KHALED JR 2015, p. 348), onde há a existência de discórdia no que se refere ao elemento em sua integra que venha a caracterizar um sistema concreto dentre as espécies que foram mencionadas.
Cada sistema comporta suas características e o Sistema Inquisitório tem a gestão/iniciativa probatória nas mãos do Juiz, desapego ao contraditório e desigualdades de armas e oportunidades.Já o Sistema Acusatório tem a gestão/iniciativa probatória nas mãos das partes e não mais do Juiz, com apego ao contraditório e separação das funções de acusar e julgar. E, por último, para alguns haveria o Sistema Misto, que seria uma formação dos dois sistemas citados, mas que a rigor não passa de um reducionismo já que não haveria um princípio unificador misto, pois os princípios unificadores são o inquisitivo (gestão da prova nas mãos do juiz) ou o dispositivo (gestão da prova nas mãos das partes).
Assim, o que diferencia cada sistema é a gestão probatória, visto que cada um tem sua forma especifica de produzir, sendo, portanto, o ponto central do processo penal.
Nesse diapasão, é importante constar a existência de uma expressiva dicotomia em termos de adoção de sistemas entre o código de processo penal vigente e a Constituição Federal de 1988. O CPP em aplicação apresenta características autoritárias, fascistas, policialescas e inquisitivas, cujo modelo de sistema processual mais condizente e adequado, ao mesmo seria um sistema inquisitivo. Ao passo que, no caso da Constituição Federal com suas garantias, direitos e seu respectivo Estado Democrático de Direito, o modelo de sistema abarcado é o acusatório.
Nas análises do professor Aury Lopes Jr. (2019), ele concorda que a Constituição adota o modelo acusatório, onde se há a separação do poder de acusar e julgar (o que no modelo inquisitório não ocorre), e, principalmente, ao delimitar as regras que compõe o devido processo no art. 5º, em especial na garantia do juiz natural (com sua imparcialidade), bem como do inciso LV, no que se trata da exigência do contraditório. Somado a aplicação do Código de Processo Penal sem a análise em dupla-conformidade o que acaba por gerar a crise das fontes, há o choque de sistemas adotados pelo Código de Processo Penal e pela Constituição Federal de 1988.
Afirmar que, consequências surgiram dessa dicotomia de sistemas não seria algo equivocado, visto que dentre essas, uma em especial seria a da inquisitoriedade, que em conjunto ao sistema inquisitorial e seus preceitos, acaba por não fazer a separação dos poderes (de acusar e julgar), ficando o Juiz com a somatória dessas funções, a falta de imparcialidade que se é exigida do mesmo e a produção de provas como se parte fosse, gerando assim, insegurança jurídica e corrupção ao que preceitua o devido processo.
Ademais, a busca pela verdade tornou-se um exímio argumento precursor de arbitrariedades cometidas por aqueles que são responsáveis pela percussão penal (com ênfase na figura do Juiz), assim como a da inciativa probatória entregue ao magistrado, incita da tradição inquisitória. Para Khaled Jr (2015), há a necessidade de incriminar a pretensão pela busca da verdade, pois a verdade absoluta não pode ser atingida pelo magistrado, visto que seu desempenho tem que ser complementar a produção probatória e não buscar implacavelmente pela verdade. Para o autor não se trata de eliminar a verdade, mas de adequá-la ao seu devido espaço, no âmbito do processo penal.
Assim, deve-se renunciar a máxima inquisitiva e buscar o expurgo dos dispositivos em contrariedade com aa Carta Magna e com seu sistema acusatório, e em desfavor por exemplo, do art. 156, I do código de processo penal.
3.1 Sistema Processual Penal Inquisitório
O sistema inquisitório se individualiza pela gestão/iniciativa probatória nas mãos do Juiz, desapego ao contraditório e desigualdades de armas e oportunidades, haja vista que, o próprio código de processo penal apresenta características autoritárias, fascistas, policialescas e inquisitivas onde o modelo de sistema processual mais condizente e adequado seria o sistema inquisitivo. Khaled Jr (2015) corrobora ensinando que “o Juiz inquisidor acabava atuando como parte, investigador, fazia a direção e além de acusar, também julgava” (KHALED JR 2015, p. 350). O magistrado convidava o acusado para trazer à tona a verdade sob pena de coação. Acentuada era a característica persecutória do sistema, com extremo silêncio e ausência de averiguação de inocência diante da sentença que eximia o réu, mas um singelo reconhecimento de insuficiência de provas para a condenação deste.
Segundo Manoel Pereira (2011):
No sistema inquisitório, por ter uma finalidade utilitarista antigarantista, o julgador interfere na produção do contraditório, ao levantar provas, por exemplo, que venham a ratificar a afirmação existente na acusação. Passam as partes, portanto, a constituírem-se em meros coadjuvantes, menosprezando as atribuições institucionais do próprio Ministério Público, de acordo com nossa ordem constitucional (1988). A verdade passa a ser determinada unilateralmente e não extraída da relação dialética processual. A fábula da verdade real impera nesse sistema”. (PEREIRA, 2011, p. 124).
É inegável a nítida intervenção do julgador na produção probatória, tendo as partes como mero objeto da relação processual. Deste modo, não existe contraditório, porque o magistrado ao mesmo tempo tem a função de acusar e de julgar, estando, portanto, em plena desconformidade com a constituição atual.
Já é sabido que o código de processo penal é representante do sistema inquisitivo, onde não seria uma surpresa o artigo 156, do mesmo código ser de uma matriz inquisitória aliada ao fato de que dentro desse sistema, há ausência da separação dos poderes de acusar e julgar, a inexistência do contraditório pleno, da desigualdade de armas e oportunidades, da figura da imparcialidade do Juiz e a violação do princípio “ne procedat iudex ex officio”, pois o Juiz pode atuar de oficio na produção da prova
3.2 Sistema Processual Penal Acusatório
O sistema acusatório diferenciasse pela nítida separação entre a acusação e o julgador, onde há a gestão/iniciativa probatória nas mãos das partes e com bases nas provas auferidas no decorrer do processo o juiz fará seu livre convencimento.
A própria Carta magna atual assegura ao Ministério Público o poder de acusar, deixando evidente a separação dos poderes. Com efeito, esse sistema tem como característica principal a imparcialidade do Juiz, restando, portanto, o poder de julgar.
Em comento, Aury Lopes Jr (2017), mais uma vez corrobora e nos ensina que a atitude do Juiz dentro da estrutura do sistema acusatório está conectada ao afastamento da iniciativa probatória, pois resta assegurar sua imparcialidade como julgador e as garantias fundamentais conforme a luz da Constituição.
Por sua vez, a gestão da prova é a questão principal que norteia o processo penal, visto que, o próprio código de processo penal afeta o sistema acusatório, pois é cristalina a possibilidade do julgador requisitar provas/elementos para o seu convencimento, haja vista que acaba o próprio ideal do sistema, ferindo também a Constituição Federal, pois temos que está em conformidade com a mesma.
3.3 Sistema Processual Penal Misto e sua ineficiência
O sistema misto seria a formação entre o sistema acusatório e o inquisitório e em relação ao sistema processual com classificação no Brasil, diga-se de passagem, é o adotado por boa parte da doutrina, no qual se faz inquisitório na primeira fase (inquérito) e acusatório na fase processual.
Jacinto Coutinho (2009) explica que “não há um sistema misto, pois são apoiados por um princípio unificador, ou seja, e de acordo com o autor, o sistema é sempre puro” (COUTINHO, 2009, p. 107). Dessa forma, para ser um sistema misto, tem que haver a junção do sistema acusatório e o inquisitório. À vista disso, o autor ressalta que, é necessária a separação do sistema, pois cada um tem a sua essência, ou melhor, suas características que os fazem ser distintos para não partir a estrutura de cada sistema.
No Brasil, vigoraria, segundo o senso comum teórico, o sistema misto, haja vista que, na fase do inquérito policial o que predomina é o sistema inquisitório, pois não há ampla defesa ou contraditório. Em contrapartida, na fase processual é cristalino observar o sistema acusatório, pois o indivíduo que está sendo acusado não é mais só um objeto, passando a ter direitos constitucionais ao seu dispor.
No tocante ao Sistema Misto e de acordo com Aury Lopes Jr (2019) em relação ao fato de o processo penal brasileiro ser classificado por boa parte da doutrina como Sistema Misto, tal classificação não deveria prosperar. Isso porque ao se trabalhar com um sistema e classificá-lo como “misto” mostra que não há muito o que se falar sobre o mesmo, levando-se em consideração que todos são. Portanto, não existe um sistema puro, pois todos têm resquício inquisitivo ou acusatório.
Portanto, a chave certa do cadeado é a verificação do núcleo, o princípio norteador e fundante, sendo que o artigo 156 do CPP representa a acolhida pelo legislador infraconstitucional do princípio unificador inquisitivo, ao atribuir a gestão da prova ao juiz. Desse modo, nosso sistema processual, à luz do CPP, é inquisitorial.
3.4 A política da gestão das provas nas mãos do Juiz
Pensar no processo como se este ofertasse segurança é incorrer em tamanha ilusão. Tal afirmação já foi exposta em momentos anteriores, o que sugere a conclusão da existência de uma situação jurídica e que os sujeitos vivem inseridos em uma “epistemologia da incerteza” remetendo à um jogo.
À vista disso, o processo pode ser pensado como um jogo, pelo fato de que o vencedor nem sempre é o mais forte, mas sim aquele mais habilidoso e que melhor aproveitar as chances processuais que brotam ao longo do processo para posterior liberação da carga probatória. De fato, o ônus de provar são das partes e não do Juiz, este não está em todos os lugares e nem mesmo é onipresente, devendo as partes fazerem uma reconstrução do ocorrido e buscar a captura psíquica do Juiz.
O grande problema, é que muitos juízes ainda padecem da doença da “verdade real”, onde ele não se contenta com as provas produzidas pelas partes ao longo do processo e ele mesmo Juiz, vai atrás das provas, de ofício, para a sua satisfação doentia de verdade, comprometendo assim sua imparcialidade, contraditório, ampla defesa, assim como as demais premissas que devem ser seguidas, o devido processo e vem por deixar claro, a nítida configuração do sistema inquisitório que tem a gestão/iniciativa probatória nas mãos do magistrado, onde é isso que preceitua o art. 156, I do código de processo penal, a gestão da prova nas mãos do Juiz.
Sendo assim, à luz do sistema acusatório, é importante salientar que, o magistrado deve manter uma equidistância, ou seja, se manter alheio em relação à gestão da atividade probatória, sendo esta incumbência das partes. Essa limitação no que diz respeito à proatividade do Juiz se dá em prol de uma medida de segurança e proteção da sua imparcialidade, esperando como resultado, uma prolação judicial justa.
3.5 Juízes-inquisitores e o quadro mental paranoico
O Juiz encarna o próprio Estado, e por tanto, faz jus a expressão “Estado Juiz”, porém, isso não significa dizer que ele é única e tão somente um representante do Estado, mas sim um órgão do mesmo, onde se espera de sua pessoa a imparcialidade (subjetiva e objetiva), decoro, ética, respeito as partes e ao devido processo, contraditório, ampla defesa, responsabilidade, denodo, bem como, o comprometimento social, os direitos e os valores fundamentais.
Nas lições de Aury Lopes Jr. (2019):
“Tudo está ligado em torno do triângulo composto por sistema acusatório, contraditório e imparcialidade, por que a imparcialidade é garantida pelo sistema acusatório não havendo e sendo sacrificada no sistema inquisitório, de tal maneira, que só haverá condições reais de possibilidade da imparcialidade quando existir, não somente a separação dos poderes de acusar e julgar, mas também, de uma equidistância, afastamento do Juiz da atividade investigatória/instrutória”. Logo, fazer sinapse/pensar no sistema acusatório desligado do princípio da imparcialidade e do contraditório é mergulhar em extremo reducionismo” (LOPES JR, 2019, p. 45).
De fato, o sistema inquisitório almeja uma busca desenfreada de uma impossível e inexistente verdade real. Além do sacrifício do contraditório, ampla defesa, a questão de atribuir poderes instrutórios ao magistrado em qualquer fase e da gestão das provas em suas mãos, como define Cordeiro (1986) o primato dell’ipotesi sui fatti, que acaba por gerar o quadri mentali paranodi (CORDERO,1986, p. 51).
Em outras palavras, o Juiz levado por suas sinapses e estado inconsciente, primeiro decide e depois sai na captura das provas que dão voz a seu juízo de valor anteriormente adotado, demonstrando quadros mentais paranoicos e a busca incessante pela verdade que ele acredita existir, o que inegavelmente compromete a sua imparcialidade..
4. AUTORITARISMO E A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 156, I DO CPP/41
O processo é o instrumento de proteção do direito perante as garantias fundamentais, especialmente no paradigma democrático em curso, já que a atual e vigente Constituição Federal de 1988 traz em seu bojo o respectivo Estado Democrático de Direito, o que provocou mudanças significativas diante das constituições passadas.
É de tamanha lucidez que, nem sempre a sociedade viveu sob a égide de direitos e garantias fundamentais, ao passo que as constituições anteriores, e em especial a de 1937, marcada pelo seu regime autoritarista e de extrema concentração de poder, marcaram e deixaram marcas que se perfazem até os dias de hoje, com estreita influência sob o código de processo penal confeccionado na ditadura de Vargas e nitidamente inspirado no código de processo italiano.
Inegavelmente, ainda que, com a vigência da Carta magna e dos Tratados internacionais de direitos humanos, a vigência segue sob a égide de um código de processo penal de matriz autoritária, policialesca, inquisitivo, fascista e com a vigência e a aplicação de artigos inconstitucionais, que, a exemplo, destaca-se o art. 156, I código de processo penal, que acaba por fragilizar o ordenamento jurídico brasileiro, gerando uma insegurança jurídica e uma consequente crise das fontes.
Com o autoritarismo ainda presente no código de processo penal e em seus artigos, a comunidade jurídica segue influenciada por ideias de perseguição, justiça a qualquer custo, imparcialidade e abuso de autoridade, resultando, assim, em condenações arbitrárias, injustas e sem o menor fundamento, ferindo os direitos e garantias daqueles que estão sendo acusados e indo em desencontro com a Constituição, com seu Estado democrático e com aquilo que preceitua o devido processo legal.
Com análise do artigo 156, I do código de processo penal, é cristalina sua inconstitucionalidade, vista a atuação do Juiz de forma inquisitória, o choque com o que preceitua o princípio da imparcialidade e consequente violação do devido processo legal, gerando assim insegurança jurídica com sua vigência e aplicação, mesmo por que o Juiz tem a iniciativa/gestão das provas não mãos, sendo ele propriamente Juiz e não parte. O Juiz acaba por não se contentar com as provas colhidas no processo e vai, por competência própria, atrás de mais provas e em busca da respectiva “verdade real”.
Por fim, o código de processo penal, na sua exposição de motivos, dispõe que o Estado deve enrijecer a sua força repressiva contra aqueles que deliram, porque entende que ele tem muitos direitos e isso causava a demora na repressão e isso gerava impunidade, o que era estímulo para o aumento da violência. Porém, o Estado tem que combater a violência com racionalidade, seguir os parâmetros do devido processo legal para poder chegar a uma punição justa e é essa a visão da Constituição e, consequentemente, dos Tratados.
4.1 O autoritarismo e as vielas de um código superado
Para antes de se estudar a atualidade e seus impactos no mundo afora e no seio da sociedade, é necessário compreender um pouco do passado e seus desdobramentos históricos para se chegar ao fato gerador dessa dita atualidade. Ao que se sabe, a primeira legislação codificada de que se tenha notícia foi o respectivo Código de Processo Criminal de Primeira Instância, datado do ano de 1832.
O grande marco e de estreita importância para o Processo Penal Brasileiro foi em meados do século XX. No ano de 1941, o presente código foi editado, com a ousadia de se concluir que, tal circunstância se constitui como uma cópia inquisitiva do Código Rocco Italiano datada de 1930, com vigência sob a ditadura fascista de Mussolini. Ademais, o código de processo penal foi confeccionado na Ditadura de Vargas e nitidamente inspirado no código de processo italiano, que apresentava uma postura fascista, policialesca e de iminente autoridade.
Em 1941, o Brasil vivia sob a égide do pleno Estado Novo, ou seja, e, em outras palavras, sob o regime de submissão à Ditadura de Vargas que teve seu início no ano de 1937. Antes do advento da Constituição Federal de 1988, vigorou no Brasil a Constituição de 1937, que deixou marcas devido ao seu regime autoritarista e de extrema concentração de poder, que veio, diretamente ou indiretamente, influenciar com suas atribuições, o código de processo penal.
Em meados do ano de 1941, em meio ao caos e deveras restrições de liberdades individuais, surgia-se então o código de processo penal, trazendo consigo um regime autoritário. Inegavelmente, diante de suas bases iniciais de formação e inspiração, qual seja a da constituição italiana, com seu caráter autoritário, inquisidor, fascista e policialesco e sob o regime da Ditadura Varguista e do advento do Estado Novo, o resultado não poderia ser outro: “Um código contaminado pelo ranço do autoritarismo”.
O código de processo penal, por ser uma norma de extrema importância para a aplicação da proteção e do resguardo dos direitos individuais e fundamentais, acaba por ser um não processo democrático conjugado por aqueles que a sociedade elege, mas do caráter autoritário de um dito cujo ditador, sendo de extrema preocupação que o mesmo esteja em vigor e sendo aplicado sem chamar a atenção e causar inquietações ao senso crítico de parte da sociedade jurídica brasileira.
A legislação processual penal brasileira autoritária, por sua vez, arrasta-se por incríveis mais de 70 anos. Os ranços autoritários-inquisitórios ainda são presentes no ordenamento jurídico brasileiro, destacando que não somente no âmbito legal, mas, precisamente, através de sua cultura inquisitória que está impregnada no DNA das respectivas práticas jurídicas brasileiras.
Dessa forma, o processo penal acaba por ser um típico Estado autoritário, no qual, em razão de suas raízes de formação histórica e nuclear, enrijece-o desse autoritarismo, sendo esse código de 1941 já superado e defasado em relação ao que a Carta Magna de 1988 preceitua com o seu Estado Democrático e ainda dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, com destaque ao Pacto de São José da Costa Rica, que é da década de 90, do qual o Brasil é signatário.
Por fim, diante da jogada desse autoritarismo presente no Código de Processo Penal, observa-se que várias gerações de juristas, sejam Juízes, Defensores, Ministério Público e Advogados aprenderam e beberam da mesma fonte dos moldes do processo penal autoritarista, levando em frente o que ele preceitua e repassando para as novas gerações, demonstrando que as ditaduras deixam marcas que se perfazem por um largo espaço de tempo.
4.2 As faces inquisitórias e inconstitucionais do art. 156, I do CPP/41
A lei 11.690/08 (BRASIL, 2008), foi a responsável por várias alterações do código de processo penal, dentre elas a do artigo 156, do mencionado código. A nova redação do artigo permite que ao Juiz, de ofício e antes de iniciada a ação penal, ordene pela produção antecipada de provas. Tal lei impactou com suas alterações e abriu questionamentos, especialmente quanto ao fato desta ser recente, bem como, em relação ao artigo 156, do mencionado código no viés da sua constitucionalidade e com o que preceitua a atual Constituição e as regras do devido processo legal.
O artigo 156, I do código de processo penal é inconstitucional e demonstra a face da inquisitoriedade, o ideal fascista, policialesco, autoritário, perseguidor, presente no código de processo penal que acaba por gerar uma crise das fontes e um choque com o Estado democrático de direito, fazendo jus a retirada não só desse artigo (visto a existência de vários outros que acabam por comprometer o devido processo), mas também, uma necessidade de um novo Código de Processo Penal, que esteja de acordo com a Constituição Federal de 1988, alicerçado no Estado Democrático de Direito.
Para Aury Lopes Jr (2019), o mencionado artigo 156 do código de processo penal tem como fundamento o sistema inquisitorial, haja vista que afeta vários princípios basilares da carta magna atual, visto que o magistrado tem a prerrogativa de conduzir o curso da instrução, ou mesmo antes de ser proferida a sentença fazer diligências sobre algo que ache relevante. Nesse sentido, o papel do magistrado está ultrapassando os limites, pois o que se questiona não está relacionado as suas decisões e sim o privilégio que o mesmo obtém de produzir prova e julgar aquilo que colheu, ferindo o devido processo legal e os demais princípios.
Existe uma grande diferença entre acusar e instruir, sendo que no primeiro, o sujeito está atrelado aos fatos tendo, portanto, uma maior facilidade de construir seus argumentos para contrapor em juízo. Já a instrução está relacionada mais com o reexame dos fatos ou documentos apresentados, para que, o magistrado análise. Portanto, não há como uma única pessoa reunir essas duas características sem violar ou prejudicar as pessoas que de fato, estão sendo acusadas e a própria constituição.
De acordo com Rangel (2011):
Ora, como imaginar um juiz isento que colhe a prova no inquérito, mas não a leva em consideração na hora de dar a sentença? A reforma pensa que o juiz é um ser não humano. Um extraterrestre que desce de seu planeta, colhe a prova, preside o processo, julga e volta a sua galáxia, totalmente imparcial. A reforma, nesse caso, adota o princípio inquisitivo, colocando o juiz no centro da colheita de prova em total afronta a constituição federal, que adota o sistema acusatório-art. 129, I, CR. (RANGEL, 2011, p. 87).
Nesse sentido, o magistrado tem que ser imparcial, restando, portando, somente o poder de instruir o processo e ao final decidir o litígio, visto que o Juiz como um ser humano que é, quando tem a prerrogativa de produzir as provas acaba por não ser imparcial e por fim, afronta a Constituição federal que atualmente adota o sistema acusatório.
Com o que disciplina o art. 156 do código de processo penal, e com destaque do seu inciso I e com base na “verdade real” (sendo esta mera falácia, pois não existe verdade real no processo penal), o Juiz de ofício, determina durante o inquérito policial, a produção antecipada das provas, perfazendo um resquício de inquisitoriedade e incompatível com o sistema acusatório. Nesta toada, com o procedimento de ofício de atuar com a colheita de provas em situação anterior à instauração do processo penal, o magistrado acaba por elaborar indiscutível hipótese acusatória antes do órgão acusador fazê-lo, lembrando e deixando cristalino a questão de não haver a separação dos poderes de acusar e julgar, configurando mais uma vez, a contaminação da sua imparcialidade , que tanto o artigo 156 como seu inciso I são contrários ao sistema acusatório e a Constituição Federal de 1988.
Por fim, e em análise do art. 156, I do código de processo penal, este incorre em grave dissonância com o sistema adotado pela Constituição Federal de 1988, bem como com a própria Constituição e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A verdade que se é buscada nas entranhas de um processo penal garantista, deve ser uma verdade que seja processual e formal, visando assim limitar a atividade do magistrado no campo das provas e assim evitar a perda da sua imparcialidade.
Discutir sobre a história, formação, elementos autoritários e artigos inconstitucionais que repousam sobre o código de processo penal e seus impactos frente a uma constituição de viés democrático remete total atenção dentro do mundo jurídico, especialmente pelos operadores do direito e pela tomada de providências por parte do Estado. Através do que preceitua o princípio da supremacia da constituição e pela pirâmide kelsiniana, uma lei ordinária assim como as demais normas infraconstitucionais devem estar abaixo da Constituição Federal, só que mesmo diante desses precedentes, o código de processo penal enquanto lei ordinária se abstem de seguir a lógica hierárquica e se aplica em dissonância em relação à norma maior.
Com sua concepção de ideal punitivo e autoritário, o código de processo penal remete a tomada de decisões autoritárias e não democráticas o que acaba gerando uma situação conflituosa com a norma maior, influenciando e deixando impunes, aqueles que pela lei e pelo Estado democrático de direito, deveriam velar por uma justiça justa, democrática e imparcial, onde essa aplicação com desconformidade faz surgir a necessidade de uma filtragem de viés constitucional e convencional.
Com a análise do art. 156, I do mencionado código, fica nítida a inquisitoriedade, a acumulação das funções de acusar e julgar nas mãos do magistrado, bem como, da iniciativa e gestão probatória em seu poder, o que acaba comprometendo não só o devido processo, como na sua imparcialidade, refletindo diretamente nas partes que compõe essa relação, assim como na decisão final do Juiz que pela busca incessante da verdade real, ao final, deverá julgar, fazendo jus ao um processo não democrático e sem paridade de armas e oportunidades.
Por fim, foi constatado através do estudo do autoritarismo e da análise da inconstitucionalidade do art. 156, I do código de processo penal, que este código necessita de uma estrutura nova, dada sua matriz superada, assim como conformidade ao sistema acusatório adotado pela Constituição Federal e seu Estado democrático de direito, já que o sistema empregado ao processo penal é o sistema inquisitório, bem como, atenção e retirada da vigência do art. 156, I, visando a garantia da separação das funções de acusar e julgar, limitando assim, os poderes dos Juízes, a gestão das provas nas mãos das partes que deveram, através, das chances processuais que brotam ao longo do processo, buscar o convencimento do magistrado, fazendo jus a um processo justo e um código garantidor e democrático.
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Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA.
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Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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