RESUMO: O presente artigo pretende abordar o necessário olhar crítico fornecido pela Criminologia para uma compreensão realista do sistema penal, a partir de uma revisão bibliográfica que, sem pretensões de esgotar o tema, exponha o seu desenvolvimento e principais conceitos de maneira didática. Parte-se da hipótese de superação do paradigma etiológico para que, com isso, seja viabilizada uma prática redutora da violência operativa do nosso sistema penal.
PALAVRAS-CHAVE: criminologia tradicional, paradigma etiológico, etiquetamento, criminologia crítica, criminalização.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A mudança de paradigma. 3. Principais conceitos: agências, criminalização (primária e secundária), seletividade e vulnerabilidade. 4. Considerações finais. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social com a criminologia crítica criou condições para a crítica e denúncia do próprio sistema penal como instrumento de dominação de caráter seletivo.
O objetivo do presente trabalho é abordar o necessário olhar crítico fornecido pela Criminologia para uma compreensão realista do sistema penal, a partir de uma revisão bibliográfica que, sem pretensões de esgotar o tema, exponha o seu desenvolvimento de maneira didática.
Neste ponto, serão analisadas, como ponto de partida, as denúncias feitas pela criminologia crítica à criminologia tradicional, a partir do câmbio paradigmático realizado com a teoria do etiquetamento, e à luz da crise de legitimidade do sistema penal, nos termos propostos por Eugenio Raúl Zaffaroni.
2. A MUDANÇA DE PARADIGMA
Denomina-se criminologia tradicional aquela estabelecida sob o paradigma etiológico, em que se buscava a autonomia científica da criminologia segundo os pressupostos epistemológicos do positivismo. A Sociologia Criminal de Enrico Ferri e a Antropologia Criminal de Cesare Lombroso são seus principais expoentes (ANDRADE, 1995). Com este último, desde a sua fundação, a Criminologia de origem italiana tinha como preocupação principal a identificação das causas do crime – fossem elas biológicas, psicológicas ou sociais – a partir de uma concepção ontológica de criminalidade (DUCLERC, 2016). De Ferri, por sua vez, decorre a tese que “ser criminoso constitui uma propriedade da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos normais”, apresentando o criminoso os estigmas determinantes da criminalidade (ANDRADE, 1995).
Esta Escola Positiva, na denominação de Baratta (2002, p. 38), numa tentativa de explicação patológica do delito, procurava compreendê-lo em suas causas “na totalidade biológica e psicológica do indivíduo, e na totalidade social que determina a vida do indivíduo”. A criminologia tradicional e sua explicação causal para a criminalidade na anomalia dos autores de comportamentos criminalizados foram alvo de críticas contundentes pelo paradigma criminológico do labeling approach, sob a premissa de ser o comportamento desviante aquele rotulado – ou melhor, etiquetado – de tal modo (BARATTA, 2002).
Chama a atenção o desenvolvimento das correntes sociológicas como uma alternativa ao modelo etiológico, ainda que não o tenham efetivamente superado, mas com ele coexistido. Seu surgimento foi possibilitado pelos estudos de Durkheim, que chegou à conclusão de ser o crime um fenômeno normal em qualquer estrutura social (CARVALHO, 2015). Fruto da Sociologia Criminal norte-americana (ANDRADE, 1995), o giro para o paradigma do labeling approach ou do etiquetamento é responsável pelo deslocamento da indagação (explicação) causal para o que Carvalho (2015, p. 72) aponta como a “avaliação dos processos de criminalização e do funcionamento das agências de punitividade”.
A principal distinção originada desse paradigma em relação à criminologia tradicional consiste na consciência crítica que esta nova concepção traz consigo (BARATTA, 2002). Passa a vigorar a ideia de que nenhuma conduta é em si mesma criminosa, nem mesmo o autor dessa conduta é em si criminoso por conta de sua personalidade ou por influência do meio. A criminalidade se revela, principalmente, como um status, que é atribuído a certos indivíduos mediante um duplo processo de definição legal do crime e seleção estigmatizante do seu autor (ANDRADE, 1995). Para Baratta (2002, p. 161), tal revelação se dá mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, dos bens protegidos penalmente e dos comportamentos que os ofendam; e em segundo lugar, dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles ofendam esses bens com o seu comportamento.
É nesse contexto de quebra de paradigma que se difundiu a criminologia da reação social na América Latina e a sua consequente denúncia da falsidade do discurso jurídico-penal, tendo esta alcançado maior evidência na região em razão da notória violência operativa de seus sistemas penais marginais (ZAFFARONI, 2001).
Convém explicitar que a ideia de uma marginalidade latino-americana, como expressão de sua localização periférica em relação ao poder central, é compreendida pelo chamado paradigma da dependência (econômica), em oposição ao paradigma do desenvolvimento, de matriz spenceriana para o qual o capitalismo “estenderia o progresso às regiões marginais do planeta” (ZAFFARONI, 2001, p. 64) – neste caso, a América Latina. Tal paradigma da dependência revela a diferença entre os fenômenos dos países de centro e os dos países marginais e é tomado como marco para a compreensão do controle social punitivo latino-americano como produto da assimilação destes às revoluções mercantil, industrial e (atualmente) tecnocientífica de protagonismo central. O genocídio consequente deste processo de assimilação, em curso desde a destruição das culturas originárias do continente e a escravização de africanos para ele transportados, implica o exercício de poder dos sistemas penais marginais (ZAFFARONI, 2001). Assim:
A transculturação neocolonialista, própria da característica modernizadora incorporativa da civilização industrial, trouxe o discurso jurídico-penal para a periferia onde, até hoje, os mesmos discursos legitimantes são utilizados, apesar do diversificado exercício de poder dos sistemas penais marginais (ZAFFARONI, 2001, p. 182).
De modo distinto ao que ocorreu nos países centrais – onde o discurso jurídico-penal encontrou sustentação por mais tempo à revelia da crítica criminológica – o pensamento latino-americano, diante do quadro de violência generalizada nos sistemas penais da América Latina, denunciou a falsidade da justificação nesse discurso pelo reconhecimento da perda de legitimidade do sistema penal (ZAFFARONI, 2001). A partir desse reconhecimento, a tarefa que se impõe é a retirada do “discurso de justificação da base de qualquer construção dogmática e sustenta-la também sobre dados da realidade” para que o discurso jurídico-penal se reduza à “construção pautadora de decisões da agência judicial fundamentada em dados da realidade” (ZAFFARONI, 2001, p. 186).
3. PRINCIPAIS CONCEITOS: AGÊNCIAS, CRIMINALIZAÇÃO (PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA), SELETIVIDADE E VULNERABILIDADE
A mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social com a criminologia crítica criou condições “para a crítica e denúncia do próprio sistema penal como instrumento de dominação” (DUCLERC, 2016, p. 22) de caráter seletivo, que tem como alvo um reduzido grupo de pessoas a serem submetidas a uma pena. De acordo com Zaffaroni e Batista (2003, p. 43), “esta seleção penalizante se chama criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gestão de um conjunto de agências que formam o chamado sistema penal”.
Com efeito, as agências são os entes gestores da criminalização, denominados assim em sentido amplo e de maneira – na medida do possível – neutra. As agências não operam coordenadamente, mas sim por compartimentos estanques e são regidas por relações de concorrência entre si e dentro de suas próprias estruturas. Em um sistema penal podem ser consideradas as seguintes agências: políticas, judiciais, policiais, penitenciárias, de comunicação social de reprodução ideológica e internacionais (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003).
O fenômeno da criminalização gerido pelas referidas agências se dá em duas etapas denominadas criminalização primária e secundária. A primeira delas se dá na elaboração da lei penal com a tipificação da conduta criminalizada. Trata-se da “programação geral e abstrata, elaborada pelas agências políticas, das ações que podem vir a ser punidas (legislação penal)” (DUCLERC, 2016, p. 22). A “criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas” (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p. 43).
Por ser um ato programático, a criminalização primária é exercida pelas agências políticas (legislativas ou executivas), mas cumprida por outras agências diversas: as agências de criminalização secundária (policiais ou judiciais). A criminalização secundária é ação punitiva exercida sobre pessoas concretas ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003). Esta ocorre no momento em que as agências policiais detectam – ou melhor, selecionam – uma pessoa que pode ter praticado alguma das condutas previstas no programa de criminalização primária para ser submetida às agências judiciais, que, por sua vez, legitimam a atuação policial e admitem um processo para que, se for o caso, seja imposta uma pena a ser executada pelas agências penitenciárias (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003).
A criminalização primária, no entanto, consiste em um programa irrealizável. Nunca, em lugar algum, pretendeu-se por tal programa em prática em sua totalidade ou em parcela considerável. Isso se dá por conta da disparidade entre os inúmeros conflitos criminalizados que acontecem de fato numa sociedade e os pouquíssimos que chegam ao crivo das agências de criminalização secundária, de recursos limitados para arcarem com todo esse programa. Diante do contexto apresentado, restam às agências de criminalização secundária, em especial as policiais, duas opções: a inatividade ou a seleção. Por instinto de sobrevivência, opta-se pela seletividade neste exercício de criminalização – o caminho mais simples – já que a opção pela inatividade fatalmente acarretaria o desaparecimento dessas agências (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003).
O principal critério seletivo da criminalização secundária se dá conforme o estereótipo criado pela vulnerabilidade dos selecionados, em geral pessoas sem acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunicação de massa que praticam atos grosseiros, toscos, e de fácil detecção pelas agências do sistema penal, cujo funcionamento se condiciona por completo a esse critério (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003).
A seletividade na criminalização secundária é inevitável e opera somente sobre aqueles com poucas possibilidades de defesa perante o poder punitivo. Tornam-se, portanto, vulneráveis primordialmente (mas não somente) por terem suas características pessoais tomadas como o estereótipo de criminoso criado em grande parte pelas agências de comunicação, que reforçam os preconceitos de raça e de classe. O estereótipo ganha destaque na obra tosca da criminalidade, amplamente anunciada pelas agências de comunicação como os únicos delitos, e que se reforça pela etiquetagem no momento em que essas pessoas assumem para si o papel correspondente ao estereótipo no qual se enquadram (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003). Sobre o papel da etiquetagem, Duclerc (2016, p. 23) assevera trata-se de uma “espécie de ciclo vicioso que tende a não ter fim”. De igual modo, Zaffaroni e Batista (2003, p. 47) afirmam se tratar de uma “profecia que se autorrealiza”.
A anteriormente referida criminalização conforme o estereótipo, no entanto, não é o único modo pelo qual a seleção criminalizante atua sobre as pessoas vulneráveis ao poder punitivo. As agências de criminalização secundária atuam de modo compartimentalizado, conforme os interesses de cada uma delas. Ou seja, não há um sistema penal conspiratório que opera seletivamente sobre os vulneráveis de modo harmônico, ainda que isso não signifique que a sua seletividade inerente não beneficie determinados setores sociais com uma distribuição desigual do poder punitivo (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003). O poder punitivo também é exercido, em menor grau, pela criminalização por comportamento grotesco ou trágico, que recai sobre aqueles cuja singular brutalidade de seus atos os tornam vulneráveis; bem como pela criminalização devido à falta de cobertura, que recai sobre aqueles que, antes praticamente invulneráveis, perderam tal status ao serem derrotados numa disputa por poder (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003).
A problemática principal é que, seja qual for o motivo pelo qual alguém tenha se tornado vulnerável, a criminalização secundária orquestrada por suas agências é necessariamente seletiva e o poder direto de dar cabo a essa seleção é exercido com muito mais destaque pelas agências policiais do que pelas agências judiciais. Estas últimas estão necessariamente condicionadas e limitadas aos casos que passam pelo filtro daquelas (DUCLERC, 2016). O que de fato ocorre é que, “na prática, a polícia exerce o poder seletivo e o juiz pode reduzi-lo” (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003, p. 51). Diante desse quadro limitado de atuação do poder judicial na criminalização secundária e da própria seletividade no exercício do poder pelas agências policiais, concluem Zaffaroni e Batista (2003, p. 52) que “o poder criminalizante secundário é bastante escasso como poder de controle social”.
Tem-se a criminalização secundária como praticamente um pretexto para que as agências policiais possam exercer um controle configurador positivo da vida social, sob argumentos de vigilância (para investigação) e prevenção (para a segurança) (ZAFFARONI; BATISTA; et. al., 2003). Para Duclerc (2016, p. 23), “fica claro que o verdadeiro poder exercido pelo sistema penal, como elemento de controle social, consiste na sua função de vigilância, que cabe exclusivamente às agências policiais”.
Nesse sentido, tomamos a liberdade de encerrar esse ponto recorrendo à estarrecedora denúncia de Zaffaroni sobre a dimensão da noção de vigilância na realidade marginal latino-americana:
As agências não judiciais dos países latino-americanos possuem poderes para impor penas, violar domicílios e segredos de comunicação, requerer documentação identificatória aos habitantes, expedir essa documentação (e marcá-la ou negá-la quando lhes convém), privar de liberdade qualquer pessoa sem culpa ou suspeita alguma, realizar atos de instrução, ocupar-se de tudo que a burocracia judicial lhe deixa por menor esforço, fazer “batidas”, fechar lugares públicos, censurar espetáculos, fichar a população, etc. Não há controle militarizado mais poderoso e formidável do que o exercício por estes órgãos, à margem de qualquer controle do órgão judicial e, inclusive, com seu beneplácito (ZAFFARONI, 2001, p. 126).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da contribuição marginal pela denúncia da perda de legitimidade do sistema penal, a missão da criminologia crítica, a partir de seu câmbio paradigmático, é a luta permanente pela mais rigorosa redução possível do sistema penal.
É imprescindível verificar que as conclusões a que se chega a partir disso não atingem somente a Criminologia, mas também o direito penal e o direito processual penal, o que torna necessária a abertura dogmática pela aproximação com a realidade da vida (CARVALHO, 2015), por uma prática redutora da violência operativa do nosso sistema penal.
5. REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista Sequência. Santa Catarina, n. 30, p. 24-36, jun. 1995.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
DUCLERC, Elmir. Introdução aos fundamentos do direito processual penal. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
Especialista em Ciências Criminais pelo Centro Universitário UniFG (2018-2020). Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2017). Membro do Grupo de Pesquisa Processo Penal e Democracia, sob coordenação do Prof. Dr. Elmir Duclerc Ramalho Jr. Ex-membro do Núcleo de Assistência do Serviço de Apoio Jurídico da UFBa (Junho de 2016 - Outubro de 2017). Advogado Criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CéSAR AUGUSTO FERREIRA SãO JOSé, . O desenvolvimento da crítica criminológica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 maio 2020, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54568/o-desenvolvimento-da-crtica-criminolgica. Acesso em: 23 dez 2024.
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