DÉBORA RAVENA SILVA MALAQUIAS [1]
ROGÉRIO SARAIVA XEREZ [2]
RESUMO[3]: O presente artigo tem como escopo discutir acerca da produção de provas ex officio pelo magistrado à luz da Constituição Federal de 1988 e sob o prisma das recentes alterações trazidas pela lei nº 13.964/2019. Dentro deste contexto, objetiva-se estabelecer os reflexos desta legislação no Código de Processo Penal Brasileiro no que concerne ao protagonismo probatório do julgador, bem como, a necessidade de um processo penal constitucionalmente instrumentalizado. Neste sentido, será importante realizar uma abordagem sobre sistemas processuais penais e a importância dos mecanismos que asseguram a preservação da imparcialidade do magistrado. Por outro lado, serão imprescindíveis para a compreensão do estudo, noções elementares e conceituais sobre quadro mental paranoico, verdade real e as implicações da mitigação do princípio in dubio pro reo no processo penal. Em linhas gerais, no tocante à metodologia adotada, consiste em pesquisas bibliográficas com abordagem indutiva. Desta forma, denota-se a relevância do estudo no mundo jurídico ao se propor uma reflexão crítica sobre processo penal contemporâneo e sua relação com a Constituição e o Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: processo penal democrático, constituição, sistema acusatório, prova ex officio, lei anticrime.
ABSTRACT: This article aims to discuss the production of ex officio evidence by the magistrate in the light of the Federal Constitution of 1988 and under the prism of recent changes brought by law no. 13,964/2019. Within this context, the objective is to establish the reflexes of this legislation in the Brazilian Code of Criminal Procedure with regard to the probative protagonism of the judge, as well as the need for a constitutionally instrumentalized criminal procedure. In this sense, it will be important to take an approach to criminal procedural systems and the importance of the mechanisms that ensure the preservation of the impartiality of the magistrate. On the other hand, it will be essential for the understanding of the study, elementary and conceptual notions about the paranoid mental picture, real truth and the implications of mitigating the principle in dubio pro reo in criminal proceedings. Generally speaking, with regard to the methodology adopted, it consists of bibliographic research with inductive approach. Thus, the relevance of the study in the legal world is denoted by proposing a critical reflection on contemporary criminal proceedings and their relationship with the Constitution and the Democratic State of Law.
Keywords: democratic criminal process, constitution, accusatory system, ex officio evidence, anticrime law.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Sistemas Processuais Penais. 2.1. Noções introdutórias. 2.2. Sistema Acusatório. 2.3. Sistema Inquisitório. 2.4. Sistema Misto. 3. Processo e Constituição. 3.1. Necessidade de um Processo Penal Democrático. 3.2. Processo Penal e a Verdade Real. 3.3. A Produção de Provas Ex Officio e a Mitigação do Princípio In Dubio Pro Reo. 4. A Posição de um Juiz em um Processo Penal Democrático. 4.1. Quadros Mentais Paranoicos. 4.2. Os Reflexos da Lei nº 13.964/2019 na Produção de Provas Ex Officio. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A priori, impende-se destacar que o presente artigo buscará enfatizar sobre a necessidade de uma instrumentalidade constitucional do processo penal. Desta maneira, será ressaltada a importância de uma visão humanística neste campo das ciências jurídicas onde, por óbvio, as arbitrariedades decorrentes dos abusos no exercício do poder Estatal são mais invasivas nos direitos fundamentais dos cidadãos.
Neste sentido, a postura adotada pelo Estado em relação à proteção das garantias constitucionais assumirá a função de um termômetro, sendo, portanto, um mecanismo que aferirá o grau de comprometimento em assegurar a compatibilidade do processo penal com os valores democráticos.
Dentro deste contexto, através de uma metodologia indutiva, demostrar-se-á a relevância acadêmica e social da temática adotada, por meio de uma reflexão crítica sobre processo penal contemporâneo e sua relação com a Constituição Federal de 1988 e com o Estado Democrático de Direito.
Desse modo, será mister discutir sobre o perigo do protagonismo probatório do julgador que permite a continuidade da epistemologia inquisitória nas práticas punitivas contemporâneas e os reflexos da lei nº 13.964/2019 (lei anticrime) nesta prática prejudicial ao processo penal constitucional vigente.
No primeiro capítulo, será estabelecido um breve contexto histórico sobre a origem dos sistemas processuais penais. Dessa maneira, compete-se pontuar que o presente artigo não busca esgotar as fontes históricas sobre processo penal, mas tão somente trazer a noções elementares sobre sistemas processuais penais e o critério utilizado para definir um sistema processual penal consagrado dentro de uma ordem jurídica.
Posteriormente, no segundo capítulo, serão enfatizados os motivos que denunciam a necessidade de um processo penal constitucional. Desatacar-se-á, ainda, como a verdade real funciona como justificativa para adoção de práticas inquisitivas pelo magistrado, bem como, o seu desejo desenfreado em alcançar a condenação em detrimento do princípio in dubio pro reo.
No terceiro capítulo, será delimitada a posição do magistrado dentro da sistemática processual penal inserido num contexto de Estado de Direito. Desta maneira, enfatizar-se-á a importância da preservação da imparcialidade do julgador como uma garantia fundamental do acusado. Nesta esteira, será abordado que o magistrado deverá desconfiar de suas decisões tomadas previamente, sob pena de incorrer na formação do quadro mental paranoico, que por ter como alicerce uma característica humana, está sujeito a falhas.
Dentro deste mesmo contexto, serão discutidos os reflexos da lei n º 13964/2019 na produção ex officio pelo magistrado. Deste modo, destacar-se-á a expressa previsão do sistema acusatório pelo Código de Processo Penal fazendo uma crítica à resistência em se reconhecer os valores democráticos traçados pela Constituição Federal de 1988.
Por fim, abordar-se-á o instituto do juiz das garantias como um mecanismo de preservação da imparcialidade do magistrado na fase da investigação, e que o afasta da formação do quadro mental paranoico. Dessa forma, será esclarecida a importância da separação das funções do juiz na fase da investigação e na fase do processo, bem como, a proibição do julgador de proferir sentenças em casos que tenha o conhecimento da existência de prova declarada inadmissível em decorrência da inserção do parágrafo §5º ao artigo 157, do Código de Processo Penal pela lei anticrime.
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
2.1 Noções introdutórias
Diante de um contexto geral, os sistemas processuais penais adotados por uma ordem jurídica podem ser identificados de acordo com a rigidez ou flexibilidade das regras adotadas no âmbito penal ou processual. Historicamente, de forma ampla, as discussões recaem sobre dois sistemas: o acusatório e o inquisitório. Porém, segundo Alexandre Morais da Rosa (2013, p. 39), vão “surgindo contemporaneamente modelos que guardam características de ambos sem que, todavia, possam ser indicados, no que se refere à estrutura, como sistemas mistos”.
Conforme o referido autor, a utilização do termo “misto” é incorreta, pois esse modelo possui características tanto do sistema acusatório quanto inquisitório. Portanto, ele não decorre de um princípio unificador, o qual é responsável por dar significado ao termo “sistema”, assim, classificá-lo como se fosse um terceiro gênero é errôneo.
Jacinto Coutinho (2009, p. 108), baseando-se na doutrina Kantiana, leciona que um conjunto de elementos relacionados a uma ideia única corresponde ao “sistema”. Quanto à ideia, esta funcionaria como um princípio unificador, pautada pela finalidade do conjunto e, como esclarece o autor, todos os sistemas, em qualquer seara, são dotados desse princípio.
Uma importante diferenciação entre os sistemas processuais recai sobre a gestão da prova, pois esta determina o cenário político e social de um grupo e, além disso, permite tirar conclusões acerca da contaminação do processo, no qual o juiz poderá, ou não, ser imparcial.
2.2 Sistema acusatório
Em linhas gerais, apenas para uma melhor apresentação do modelo, destaca-se, de forma sintetizada, que o sistema acusatório teve a sua origem no direito grego em que, havendo uma conduta delitiva considerada de natureza grave, qualquer pessoa estaria apta a realizar a acusação.
O sistema também se fez presente no direito romano, porém, no fim do período republicano e à época do Império, demonstrou ser insuficiente. Essa insuficiência residiu no fato de ser carente de garantias, bem como a persecução criminal não ser revestida de imparcialidade. Diante disso, rompeu-se uma de suas características principais: as funções de acusar e julgar serem exercidas por pessoas distintas.
O referido sistema pauta-se em separar, nitidamente, as atividades de acusar e julgar. Somado a isso, evita a busca pela prova, de ofício, por parte do magistrado e, por conseguinte, reforça a estrutura da argumentação, garantindo a imparcialidade do magistrado.
Hodiernamente, como já mencionado, uma importante distinção entre os sistemas processuais se refere à atividade probatória. O acusatório, por seu turno, traz consigo a necessária diferenciação entre o gestor da prova e o julgador, isto é, para cada função de acusar, defender e julgar existe uma pessoa específica. Assim, observa-se a lição de Alexandre Morais:
A separação das funções do juiz em relação às partes se mostra como exigida pelo ‘princípio da acusação’, não podendo se confundir as figuras, sob pena de violação da garantia da igualdade de partes e armas. Deve haver paridade entre defesa e acusação, violentada flagrantemente pela aceitação dessa confusão entre acusação e órgão jurisdicional, a saber, é vedada qualquer iniciativa probatória do julgador (ROSA, 2013, p. 40).
Nota-se que um dos objetivos a ser alcançado em face da separação das mencionadas atividades é a imparcialidade do julgador. Dessa forma, o juiz não pode produzir provas que, direta ou indiretamente, irão beneficiar ou prejudicar o réu. Nessa toada, em conformidade com Aury Lopes Jr. (2016, p. 27), é “incompatível com o sistema acusatório (também violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade) a prática de atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz”.
Entretanto, é válido mencionar o sistema processual acusatório não puro, isto é, quando se torna possível a realização de medidas ex officio por parte do juiz. Dessa forma, contrariando a pureza do referido sistema, mesmo em se tratando de tarefas que sejam persecutórias ou probatórias, o magistrado poderá exercê-las.
No atual ordenamento jurídico brasileiro, dentre vários dispositivos, temos dois exemplos nítidos de atividades em que o juiz pode buscar materiais probatórios e envolver-se na persecução criminal: a decretação da prisão preventiva e a faculdade dada ao juiz para agir, de ofício, quanto à prova da alegação, previstos respectivamente nos artigos 311 e 156 do Código de Processo Penal.
Em síntese, observa-se que o sistema acusatório (puro) preocupa-se em dividir a tarefa de cada indivíduo, seja ela acusar, defender ou julgar. Portanto, não permite que o próprio julgador seja responsável por realizar atividades invasivas aos campos de atuação da defesa e da acusação. Com isso, a imparcialidade do juiz permanece intacta e o processo não resta contaminado.
2.3 Sistema inquisitório
Presente nos regimes de cunho autoritário e com forte incidência do direito canônico, o sistema inquisitório, como a própria nomenclatura aduz, remota à Inquisição. Dessa maneira, o presente sistema surge como arcabouço repressor das condutas que se demonstrassem antagônicas aos interesses da Igreja Católica.
Nesta esteira, Coutinho[4] destaca que “excluídas as partes, no processo inquisitório o réu vira um pecador, logo, detentor de uma ‘verdade’ a ser extraída”. Ademais, na lógica processual inquisitorial, o réu era o pecador e a confissão do pecado deveria ser extraída a qualquer custo pelo inquisidor.
Dentro deste contexto, o inquirido se restringe a mero objeto do processo, evidenciando o que Lopes Jr. definiu como “o desamor total pelo contraditório”[5], que é a essência do sistema inquisitório. Não é por outra razão que a “verdade” a ser extraída não é uma prova colhida em contraditório, mas sim em uma confissão do inquirido, que deve ser alcançada por qualquer artifício à disposição do inquisidor, sendo admitida até mesmo a tortura.
Inegavelmente, neste sistema, o juiz é um protagonista parcial que produz e conduz as provas no processo. Por outro lado, o réu é desqualificado da condição de sujeito processual. Portanto, as funções de julgar e acusar estão concentradas nas mãos do inquisidor. Logo, por óbvio, o único meio garantido ao inquirido para alcançar a absolvição seria resistir à confissão. Nesse sentido, inclusive, leciona Lopes Jr. (2014):
O suspeito só tinha “direito” a que somente praticasse um tipo de tortura por dia. Se em 15 dias o acusado não confessasse, era considerado como “suficientemente” torturado e era liberado. Sem embargo, os métodos utilizados eram eficazes e quiçá alguns poucos tenham conseguido resistir aos 15 dias. O pior é que em alguns casos a pena era de menor gravidade que as torturas sofridas (LOPES JR., 2014, p.69).
Desse modo, o sistema inquisitório é baseado numa estrutura de pensamento obcecada pela verdade real, abre-se a possibilidade para aquele que decide busque provas para justificar a sua decisão. Nota-se, claramente, à luz do exposto, que o sistema inquisitório é historicamente fruto de uma estrutura processual antidemocrática de supressão de direitos e garantias fundamentais.
2.4 Sistema misto
O presente sistema, tem como base norteadora para estruturação do seu modelo o Código Napoleão de 1808, diploma que previu a cisão do processo em dois momentos: fase investigatória e fase processual. A primeira tipicamente inquisitória e a outra acusatória. No Brasil, alguns doutrinadores, como Guilherme de Sousa Nucci[6], já defenderam ser o sistema misto o adotado pelo Código Processual Penal Brasileiro. Todavia, deve ser ressaltado, que após a lei nº 13.964/98 não há dúvida que o sistema é acusatório, como será desenvolvido adiante.
Noutro giro, é importante pontuar que as características dos sistemas inquisitorial e acusatório podem se misturar, sem necessariamente ocorrer interferência na gestão da prova. Imperioso destacar que o que define o sistema processual penal adotado é a gestão da prova. Neste sentido, leciona Coutinho[7]:
Ora, faz-se uma opção política quando se dá função de fazer aportar as provas ao processo seja ao juiz (como no Sistema Inquisitório),seja às partes, como no Sistema Acusatório, por evidente que sem se excluir (eis por que todos os sistemas são mistos) as atividades secundárias de um e de outros, tudo ao contrário do que se passava nos sistemas puros. Daí que a gestão da prova caracteriza, sobremaneira, o princípio unificador e, assim, o sistema adotado (COUTINHO, 2009).
Inegavelmente, ante o exposto, a gestão da prova é o princípio unificador que denuncia o sistema processual consagrado pela ordem jurídica. Por óbvio, permitir a produção de provas pelo julgador, é tolerar a imposição de um sistema inquisitorial. Dessa maneira, o sistema misto, é nada mais que, um sistema inquisitorial mesclado com componentes do sistema acusatório, traduzindo o que Coutinho definiu como “fraude à democracia processual”[8].
3 PROCESSO E CONSTITUIÇÃO
3.1 Necessidade de um processo penal democrático
O atual Código de Processo Penal, projetado por Francisco Campos[9], Ministro da Justiça do Estado Novo de Getúlio Vargas, é inspirado no Codice Rocco (Código de Processo Penal Italiano), cuja origem remete à época do fascismo italiano, portanto, inegável a sua matriz de cunho ditatorial. Logo, partindo-se da exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941, é sintomática a referência ao processo como um instrumento pensado dentro de um contexto de defesa social, conforme se depreende da supracitada exposição de motivos:
De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social.[10]
Por óbvio, à luz do que foi dito, é irrefragável o choque ideológico entre o Código de Processo Penal, promulgado em 1941, coincidente com o período do Estado Novo de Getúlio Vargas e a Constituição Democrática de 1988. Dentro desse contexto, é cediço que a redução do processo a um instrumento a serviço da segurança nacional não se coaduna com o projeto democrático delineado pela Constituição Federal de 1988.
Ademais, não se pode tolerar o processo como instrumento de jurisdição penal de repressão à criminalidade, logo, esta linha de pensamento é incompatível com a concepção de processo penal democrático, que somente é possível dentro de uma instrumentalidade constitucional[11].
Neste sentido, a constitucionalização que reveste o processo funciona como mecanismo limitador dos arbítrios do exercício do poder punitivo estatal, sendo, portanto, o caminho necessário para legitimar a pena imposta. Logo, percebe-se que, necessário se faz, no âmbito do processo penal, realizar uma filtragem constitucional da aplicação dos seus dispositivos verificando se determinada regra foi ou não recepcionada pela atual ordem constitucional. Não por outra razão, Lopes Jr. adverte que:
O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal) senão que desempenha o papel limitador do poder e garantidor do indivíduo submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. (LOPES JR., 2012, p. 72).
Em assim sendo, o processo penal deve ser um instrumento a serviço da máxima efetividade dos direitos fundamentais, o que não pode ser encarado como sinônimo de impunidade. Acertadamente, Bitencourt pontua que:
[...] o medo coletivo difuso, decorrente da criminalidade de massa, permite a manipulação e o uso de uma política criminal populista, com o objetivo de obter meios e instrumentos de combate à criminalidade, restringindo, quando não ignorando, as garantias de liberdades individuais e os princípios constitucionais fundamentais, sem apresentar resultados satisfatórios (BITENCOURT, 2014, p. 21).
Assim, o autor previne sobre os riscos decorrentes do clamor social baseado em narrativas norteadas pelo punitivismo e o popularismo, que acabam por legitimando discursos com maior punição e ignorando a vertente constitucional do processo penal, que é um instrumento de proteção do débil[12].
Desse modo, é inegável que o processo penal constitucional atua preservando o contraditório e submetendo tudo às regras do jogo previstas na Constituição Federal. Assim, o controle de constitucionalidade exercido sobre as regras do Código de Processo Penal se estrutura como sustentáculo da ordem constitucional e do Regime Democrático de Direito.
3.2 Processo penal e a verdade real
O processo penal, compreendido como um jogo processual, conforme Alexandre Morais (2013), é uma verdadeira estrutura de conclusões variáveis. Os denominados “subjogos”, que são os “movimentos” realizados pelas partes na fase processual, são os responsáveis pelo resultado obtido ao fim do processo. Dessa forma, assevera o mencionado autor:
A instabilidade de cada rodada do jogo processual exige jogadores atentos ao lance do oponente, bem assim a antecipação da antecipação das possíveis jogadas. A incerteza aqui é inerente ao jogo processual e os cálculos permanentes. A informação é sempre parcial e vindoura. Depende das rodadas (subjogos). Ao final haverá a oportunidade de alegações finais, claro, mas isso não impede a existência de surpresas. Aliás, a surpresa, o benefício do terreno (conhecer o lugar e o julgador onde a partida se desenrola) e o ataque convergente (focado nos tipos penais objeto da ação penal) se constituem como elementos necessários à compreensão do fenômeno processual. Antecipam, por assim dizer, as jogadas possíveis com o objetivo de vitória e a capacidade de compreensão do julgador. Esse desenrolar se dará pela “informação” incluída no jogo processual (ROSA, 2013, p. 26).
Nessa toada, podemos complementar com as lições de Lopes Jr. (2017) acerca dos riscos e da epistemologia da incerteza. Segundo o autor, essas são características intrínsecas ao processo (civil ou penal). Assim, compreende-se que, embora o direito material possa ser nítido aos olhos da lei, é a atividade processual que irá determinar, ou não, o seu acolhimento.
Nesse diapasão, salta aos olhos o cenário incerto e instável em que o processo penal se encontra. Portanto, nota-se a impossibilidade de se reproduzir perfeitamente os acontecimentos que deram origem ao litígio. Dessa forma, entende-se que, através das provas colhidas na fase processual, há apenas uma aproximação da realidade, com isso, não se pode oferecer ao juiz uma certeza, de fato, absoluta. Assim, leciona Renato Brasileiro:
Há de se buscar, por conseguinte, a maior exatidão possível na reconstituição do fato controverso, mas jamais com a pretensão de que se possa atingir uma verdade real, mas sim uma aproximação da realidade, que tenda a refletir ao máximo a verdade. Enfim, a verdade absoluta, coincidente com os fatos ocorridos, é um ideal, porém inatingível (LIMA, 2019, p. 70).
O mito da verdade real (ou material) está relacionado com a forma do sistema inquisitório e com os sistemas políticos autoritários. Assim, verifica-se que a mencionada verdade funcionou como uma justificativa para a adoção de medidas inquisitivas pelo magistrado.
Ademais, embasados no discurso da verdade real, os órgãos responsáveis pela persecução penal adotaram uma cultura inquisitiva, como afirma Lopes Jr. (2016, p. 208). Nessa situação, o juiz poderia perseguir a verdade material, podendo agir de forma arbitrária e suprimindo direitos, ou seja, a todo custo, em nome da “ambição pela verdade”.
Dessa maneira, em face do mencionado ânimo persecutório do juiz, ele não só exerce a função de julgador, como também investiga. Observa-se, portanto, uma quebra das características de um sistema penal democrático, pois a imparcialidade do magistrado é atingida em virtude da não separação das atividades de acusar e julgar.
É sabido que existe uma verdade material no âmbito processual penal, contudo, não se pode afastar as garantias processuais para a sua obtenção. Nesse sentido, conforme Muriel e Sander (2018, p. 171), o julgador não pode avocar para si o discurso da verdade real, no intuito de que suas atividades inquisitoriais sejam legitimadas, transformando o indivíduo em um instrumento do processo.
Hodiernamente, pode-se afirmar que o artigo 156 do Código de Processo Penal é um resquício da inquisitoriedade e o pilar do princípio da verdade real. Entretanto, com o surgimento da lei nº 13.964/2019, o artigo supracitado encontra-se incompatível com as novas disposições.
Portanto, em virtude do afrontamento resultante do advento da lei anticrime, é possível se falar em revogação tácita do dispositivo mencionado. Isso porque a gestão da prova ex officio por parte do juiz, notoriamente inquisitiva, vai de encontro à estrutura acusatória estabelecida pela nova lei.
3.3 A produção de provas ex officio e a mitigação do princípio in dubio pro reo
Inicialmente, far-se-á mister avocar as lições de Deltan Dallagnol (2015), defendendo que a condenação do réu precisa da elevada probabilidade da hipótese que afirma sua culpa. Nota-se, diante do exposto, uma acentuada preocupação do autor na facilitação da acusação do réu quando o material probatório for ínfimo. Logo, por obvio, é inegável que, não se podendo aferir e verificar a prevalência da alta densidade da hipótese que evidência a culpa do réu e, por seguinte, legitime a sentença condenatória, a mesma não poderá prosperar.
Acertadamente, seguindo a mesma esteira, Alexandre Morais da Rosa e Salah Khaled Jr. (2014, p. 19), lecionam que: “em uma estrutura de contenção do poder punitivo, a dúvida deve gerar absolvição, o que expressa o próprio sentido do princípio do in dubio pro reo”. Porém, o processo penal idealizado por Francisco Campos é fundado em um raciocínio diverso, que configura um verdadeiro in dubio pro hell.
Entretanto, esta concepção, que é fruto de uma matriz autoritária, é indubitavelmente revestida de um viés inquisitório. Logo, a verdade deve ser perseguida até se chegar ao resultado almejado, que é a condenação. Assim, resultando aquilo que Salah Khaled Jr. denominou de processo penal do inimigo[13]. Desse modo, mesmo com dúvidas acerca da culpa do réu, o magistrado embarca em uma aventura jurídica, a fim de buscar provas que justifique a sua decisão condenatória.
Notoriamente, este protagonismo do magistrado, impulsionado por uma busca desenfreada da verdade no processo penal gera arbitrariedades, aumentam as chances de serem proferidas sentenças injustas, portanto, mitigando as garantias fundamentais e negando a vertente constitucional ao processo. Desta forma, alimenta os riscos da condenação de inocentes. Não é por outra razão que Penido Christian Tombini, acertadamente, remete-nos às lições de Zaffaroni[14], que há muito adverte que “é preciso um direito penal crítico e de luta, mas não de guerra, porque não se pode negar a condição de pessoa a ninguém.”
Diante das questões expostas, embora o princípio in dubio pro reo tenha expressa previsão de sua aplicabilidade na redação no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal, é nítido que a produção de provas de ofício pelo julgador mitiga a sua efetividade, além de violar a sistemática processual acusatória consagrada pela Constituição Federal de 1988. Logo, o que se resta configurada é uma nítida violação da dignidade humana, que é a matriz de todos os direitos fundamentais. Uma vez que, a imposição das vontades arbitrarias dos magistrados norteadas pelo fetiche na condenação se sobrepõem à absolvição do acusado.
4 A POSIÇÃO DE UM JUIZ EM UM PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO
Entende-se por um processo penal democrático aquele que decorre de um sistema que permite, ao juiz, apenas o exercício da função de julgar. Portanto, em conformidade com Lopes Jr. (2017, p. 156), “Se a imparcialidade é o Princípio Supremo, deve ser compreendido que somente um processo penal acusatório, que mantenha o juiz afastado da iniciativa e gestão da prova, cria as condições de possibilidade para termos um juiz imparcial”.
Com isso, compreende-se que apenas depois da instauração de uma democracia no âmbito processual, torna-se possível abordar a imparcialidade do julgador. Sendo impossível, entretanto, falar-se em juiz imparcial em um modelo processual inquisitório, pois este não comporta uma definida separação de funções.
No ordenamento jurídico brasileiro, temos as hipóteses de impedimento e suspeição, as quais procuram resguardar a imparcialidade do magistrado. Somado a isso, tem-se as disposições do artigo 95 da Constituição Federal vigente, o qual estabelece as garantias e vedações aos juízes, também com o intuito de estabelecer um juiz imparcial.
Para que se alcance a figura de um juiz dotado de imparcialidade, é preciso que este seja, necessariamente, um terceiro estranho ao processo (mesmo sendo um sujeito da relação). Em outros dizeres, as atividades cabíveis às demais partes da lide não poderão ser realizadas, em qualquer hipótese, pelo julgador.
Embora diante da visão do juiz como sujeito do processo, conforme nos ensina Alexandre Morais (2013, p. 61), “a função do julgador não pode ser confundida com a dos jogadores”. O juiz será responsável por exercer sua atividade jurisdicional somente ao fim do processo, após as atividades probatórias e persecutórias desenvolvidas pelos interessados.
É imperioso ressaltar que não se pode falar em neutralidade do juiz, tendo em vista as experiências, crenças e ideologias ao longo de sua vida. Entretanto, é possível abordar a figura de um magistrado dotado de independência, o qual é responsável por não se submeter a manipulações. Nessa toada, leciona Aury Lopes Jr.:
Não que com isso estejamos querendo o impossível – um juiz neutro – senão um juiz independente; alguém que realmente possua condições de formar sua livre convicção. Essa liberdade é em relação a fatores externos, ou seja, não está obrigado a decidir conforme queira a maioria ou tampouco deve ceder a pressões políticas (LOPES JR., 2016, p. 36).
Vale dizer que a mencionada independência não estabelece o surgimento de um indivíduo que delibera arbitrariamente. Na verdade, o juiz não detém uma total liberdade em suas decisões, estas devem ser tomadas em face das provas produzidas pelas respectivas partes do processo, atentando, por óbvio, às garantias fundamentais. Fazendo surgir, assim, a figura de um juiz garantidor.
Dessa forma, percebe-se que a posição do magistrado reflete, diretamente, uma legitimidade constitucional, “e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial”, de acordo com Aury Lopes Jr. (2016, p. 36).
Portanto, em se tratando da necessidade de garantir os direitos fundamentais, o juiz só poderá deliberar baseando-se naquilo que consta no processo, com observância às regras legais. Ademais, segundo Fernando Capez:
O juiz situa-se na relação processual entre as partes e acima delas (caráter substitutivo), fato que, aliado à circunstância de que ele não vai ao processo em nome próprio, nem em conflito de interesses com as partes, torna essencial a imparcialidade do julgador. Trata-se da capacidade subjetiva do órgão jurisdicional, um dos pressupostos para a constituição de uma relação processual válida (CAPEZ, 2016, p. 96).
Em suma, “a função do juiz é atuar como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal”, conforme Aury Lopes Jr. (2016). Diante disso, entende-se pela necessidade de a posição do juiz ser afastada da iniciativa probatória e da gestão da prova, de modo a assegurar a sua imparcialidade.
4.1 Quadros mentais paranoicos
Nota-se que há muito a literatura faz-se presente no Direito e vice-versa. Quando se discute acerca dos quadros mentais paranoicos, o exemplo literário que melhor define o seu conceito é a obra de 1899 escrita por Machado de Assis, Dom Casmurro. Não por outro motivo costuma-se denominar o quadro mental como “Síndrome de Dom Casmurro”.
De forma sucinta, a obra nos traz o protagonista Bentinho, que acredita piamente que fora traído por sua mulher, Capitu. Ao longo da trama, torna-se possível interpretar que essa hipótese criada pelo personagem principal é tida como “verdade” para ele. Dessa forma, Bentinho não mais procura por provas que venham a desmentir a sua desconfiança, mas que corroborem com ela.
Assim, a paranoia do personagem faz com que ele, primariamente, escolha em que acreditar, para que, posteriormente, busque evidências para comprovar a sua versão. Dessa maneira, no âmbito jurídico, o quadro mental paranoico é concretizado quando o juiz primeiro decide (em virtude do recolhimento de prova), para só então buscar indícios que comprovem a sua decisão.
Como assevera Coutinho (2009, p. 112), a colocação das hipóteses acima dos fatos não é uma característica própria dos juízes, mas de todos os seres humanos, em virtude do modo de pensar. Portanto, o magistrado, ao entrar em contato com o material probatório, forma os seus “pré-conceitos”, assim, já tem ciência do caminho a ser percorrido para a produção de provas que compactuem com o seu julgamento antecipado.
Ainda de acordo com o autor, a “solução” para os quadros mentais paranoicos seria o homem deixar de pensar, o que é impossível. Nesse caso, conclui-se que o remédio para o problema se encontra em outro lugar. Dessa forma, retoma-se a discussão sobre o sistema acusatório.
Renato Brasileiro (2019, p. 43), por seu turno, leciona que, na fase de investigação no referido sistema, o juiz intervirá apenas quando houver provocação e quando existir a necessidade de intervenção judicial. Quanto ao momento instrutório do processo, o autor compactua com a ideia de o magistrado ser dotado de iniciativa probatória, o que permite a determinação de provas de ofício.
Noutro vértice, diante da nítida separação de funções no sistema acusatório, Cleber Masson e Vinícius Marçal (2018, p. 294) corroboram com o entendimento que o juiz não deve atuar ativamente na primeira fase da persecução criminal. Isto porque o acusado restaria prejudicado, pois a investigação seria direcionada pelo próprio mediador, o qual teria como base a sua avaliação primária.
Lopes Jr. (2016, p. 195), no entanto, afirma que o juiz, possuidor de poderes instrutórios, em qualquer fase, gera o quadro mental paranoico. Portanto, o julgador, mesmo que de forma inconsciente, buscaria fatos que dessem legitimidade à sua decisão, a qual fora tomada desde o início. Também nesse sentido, Melchior adverte:
Impedir que o julgador tome parte deste quadro mental paranóico, ou pelo menos, evitar ao máximo que isto ocorra é o ponto central do sistema. O princípio acusatório tem na gestão da prova o seu mais fundamental elemento de estrutura porque não pode conviver com a possibilidade, qualquer que seja, de que o julgador percorra o caminho da instrução probatória no desejo de justificar uma decisão que já tomou. Um perigo abstrato já é mais do que suficiente (MELCHIOR, 2011, p. 155).
Ex positis, compreende-se que o julgador deve desconfiar de suas próprias decisões prévias, pois em face do quadro mental paranoico ter como alicerce uma característica humana, elas estão sujeitas às falhas. Nesse entendimento, a imparcialidade do magistrado estaria conservada e a contaminação processual minimizada.
4.2 Os reflexos da lei nº 13.964/2019 na produção de prova ex officio
Acertadamente, Giacomolli (2015, p. 159) leciona que as várias “tentativas de situar o processo penal brasileiro no plano constitucional e humanitário fracassaram de forma olímpica”. Deste modo, apesar do Brasil acumular um flagrante conjunto de insucessos[15], no que concerne às tentativas de inserir o processo penal num prisma constitucional. A lei nº 13.964/ 2019[16], embora configure um avanço tímido, pode-se afirmar que é uma conquista. Dentro desta realidade, que é histórica, mister se faz avocar as lições de Choukr:
O Brasil se coloca tardiamente na rota das reformas globais empreendidas pela imensa maioria dos países latino-americanos que reconstruíram suas bases político jurídicas no estado de direito, bem como em relação a alguns países paradigmáticos para a cultura processual brasileira, como Itália e Portugal, os quais, com maior ou menor velocidade, adaptaram por completo sua estrutura processual às bases constitucionais condizentes com a reforma política, assim como com os textos internacionais diretamente aplicáveis ao tema, e buscaram dar, assim, vida prática – e não meramente retórica – à clássica concepção de ser o processo penal “o sismógrafo da constituição (CHOUKR, 2017, p. 26)
Portanto, lamentavelmente, o que se pode perceber é que a justiça criminal brasileira é resistente em reconhecer os valores democraticamente traçados pela Carta Magna de 1988. Ora, a estrutura acusatória já era prevista no artigo 129, I, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1998[17]. Neste sentido, compete ao Ministério Público promover a ação penal pública. Por óbvio, consequentemente o protagonismo do magistrado deveria ser afastado desta atividade.
Entretanto, com o advento da lei nº 13.964/2019, que inseriu o artigo 3-A ao Código Processo Penal, busca-se uma redução dos danos penais com a expressa adoção da estrutura acusatória pelo processo penal brasileiro. Desta forma, revela-se uma perfeita harmonia da lei ordinária com o que se preconiza o texto constitucional. Obviamente, atualmente, em razão da certeza quanto ao sistema acusatório, é vedado ao magistrado praticar atos de parte.
Por outro lado, é oportuno enfatizar que, além da adoção do sistema acusatório com o advento da lei nº13.964/2019, foi instaurado o instituto do juiz das garantias, que tem previsão no artigo 3-B, do Código de Processo Penal. Deste modo, cria-se um mecanismo que atua no controle da legalidade da instrução criminal e na proteção de direitos e garantias fundamentais. Neste sentido, imperioso se torna avocar as lições de Rogério Sanches Cunha (2020, p. 70) que leciona:
Observa-se, contudo, que no sistema acusatório, mesmo o juiz das garantias não deve imiscuir-se na fase investigatória, senão quando necessária a sua intervenção, sempre que provocada pelos órgãos que atuam na investigação. O juiz das garantias não é um juiz investigador. Nesse sistema, a inércia do juiz em relação a persecução penal deve ser absoluta, não sendo possível a adoção de medidas que promovam ou incentivem a decisão de acusar, sob pena de quebra do princípio da imparcialidade objetiva. (CUNHA, 2020, p.70)
Inegavelmente, percebe-se que a criação da figura do juiz das garantias revela uma preocupação em afastar o juiz de forma plena da persecução criminal. Assim, são impedidas as práticas do magistrado que o aproximem da atividade acusatória, a fim de assegurar a imparcialidade objetiva daquele que julga.
Dessa maneira, deixa-se claro que o juiz não deverá ter contato com as provas na fase de investigação, além de estabelecer uma nítida separação das funções do juiz na fase de investigação e do processo. Logo, por óbvio, o que se busca com a previsão deste instituto é a preservação da estrutura acusatória do processo e assegurar o afastamento do julgador da iniciativa probatória na fase de investigação, bem como, impedir a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Dentro deste contexto, no que concerne aos mecanismos que visam a efetivação da imparcialidade do julgador, far-se-á mister destacar um dos reflexos da lei nº13.964/2019 que incluiu o §5º ao artigo 157, ao Código de Processo Penal. Assim, não poderá proferir a sentença o magistrado que teve acesso ao conteúdo probatório que violou uma norma de direito material ou processual, uma vez que obteve contato com a prova considerada ilícita.
Conforme, supramencionado, o juiz uma vez conhecendo o teor da prova ilegal não poderá proferir sentença ou acórdão. Desta forma, percebe-se a busca do ordenamento jurídico pela imparcialidade do juiz, seja ela subjetiva e objetiva. Assim o magistrado não deve ter relação nenhuma com as partes (subjetiva) nem tão pouco dever ter relação íntima com a produção de provas ou com provas ilegais (objetiva) que ele irá apreciar e formar seu futuro convencimento.
Acertadamente, a lei anticrime protege a imparcialidade daquele que julgará o caso, pois aquele que teve contato com as provas ilícitas também está contaminado, já que em seu subconsciente, está a ciência de que se trata de um material probatório ilícito.
Ante o exposto, é irrefragável os reflexos positivos da lei anticrime na proteção da imparcialidade do magistrado. Ademais, pode-se dizer que é uma conquista processual que minimiza os danos decorrentes dos resquícios inquisitórias, além de preservar as garantias fundamentais do acusado, portanto, aproxima-se de um processo penal mais democrático. Desse modo, afasta-se o magistrado da formação de um quadro mental paranoico e da busca da verdade real no processo penal, que é conduzida pelo fetiche na condenação.
5 CONCLUSÃO
O desenvolvimento do presente artigo permitiu uma análise dos sistemas processuais penais, tanto em um contexto geral, como no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, restou claro a impossibilidade de se ter, no sistema inquisitório, a imparcialidade do julgador. Diferentemente do que se percebeu no sistema acusatório (puro), em que o magistrado é imparcial em virtude da necessária separação de funções de acusar e julgar.
Somado a isso, ficou nítido que o processo não pode ser visualizado como um instrumento responsável pela repressão aos crimes. Deve, no entanto, ser reconhecido como o caminho necessário para o resguardo dos direitos fundamentais, bem como para evitar arbitrariedades no exercício do poder punitivo estatal. Portanto, observou-se que o processo penal é o mecanismo utilizado para que a pena imposta tenha legitimidade.
Além disso, diante das abordagens acerca da busca pela verdade real e da mitigação do princípio in dubio pro reo, viu-se que a atuação de um juiz que pratica ato de parte é, por excelência, antidemocrática. Dessa forma, constatou-se que ainda perdura a continuidade da epistemologia inquisitória nas práticas contemporâneas. Revelando, portanto, a resistência em se compatibilizar as regras do Código de Processo penal com o que se preconiza a matriz democrática traçada pela Constituição Federal de 1988.
Nessa toada, ao ter sido discutida a posição de um juiz em um processo penal democrático, verificou-se que o ponto principal dessa questão se refere à imparcialidade do julgador. Dessa maneira, restou compreendido que a figura de um juiz imparcial somente será possível se, obrigatoriamente, o magistrado for um estranho ao processo, o que só poderá ocorrer face a um sistema acusatório, dada a separação de funções já explicitada.
Ademais, em virtude da colocação das hipóteses acima dos fatos, verificou-se que o juiz dotado de poderes instrutórios, independentemente da fase em que se encontrar, acaba por gerar o quadro mental paranoico, mesmo que de forma inconsciente. Com isso, estabeleceu-se que o magistrado deve sempre suspeitar de suas decisões tomadas previamente, pois assim estaria mantendo a sua imparcialidade intacta.
Por fim, no tocante ao advento da lei nº 13.964/2019, observou-se a busca pela adequação do Código de Processo Penal ao texto constitucional. Assim, consagrou-se, de forma expressa, o sistema acusatório no ordenamento jurídico brasileiro, objetivando o afastamento do juiz da atividade persecutória. Além disso, constatou-se que a adoção do instituto do juiz das garantias, o qual determinou que aquele julga não deve ter contato com as provas produzidas na fase investigatória, reforçou a ideia da separação das funções do magistrado na fase da investigação e do processo.
Em suma, compreende-se que, diante das problemáticas que podem ser ocasionadas no processo em virtude de um juiz não imparcial, com o advento da lei nº 13.964/2019 esses problemas tendem a ser minimizados. Isso porque a supracitada norma trouxe consigo regras que objetivam a imparcialidade do julgador, de tal forma que o seu livre convencimento deverá ser formado sem o contato íntimo com as partes e com a produção de provas, objetivando, de fato, a instauração de um processo penal democrático no ordenamento jurídico brasileiro.
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[1] Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho- UNIFSA. E-mail: [email protected]
[2] Orientador, Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul- PUCRS. E-mail: [email protected].
[3] Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Teresina-PI, 14 de junho de 2020.
[4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/194935. Acesso em: 04 mar. 2020.
6 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
[6] Segundo Guilherme de Souza Nucci (Manual de processo penal e execução penal, 12ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2015): “O Sistema adotado no Brasil é o misto. Na constituição Federal de 1998, foram delineados vários princípios processuais penais, que apontam para um sistema acusatório; entretanto, como mencionado, indica um sistema acusatório, mas não o impõem, pois quem cria, realmente as regras processuais penais a seguir é o Código de Processo Penal.”
[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/194935. Acesso em: 06 mar. 2020.
[8] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/194935. Acesso em: 10 mar. 2020.
[9] De acordo com RIOS, Lucas P. Carapiá; NEVES, Luiz Gabriel Batista; ASSUMPÇÃO, Vinícius de Souza. Estudos Temáticos sobre o “Pacote Anticrime”. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. A manifestação do Ministro da Justiça, à época da edição do CPP de 1941, era própria de regime político e jurídico de exceção, cujo governo era ditado por um presidente não eleito pelo povo (Getúlio Vargas), o qual, a partir da normatividade de uma Constituição (1937) de conteúdo autocrático, outorgada pelo ditador-presidente, dava-lhe a concentração dos poderes necessários à atuação ilimitada.
[10] Examinar a exposição do Código de Processo Penal (1941), item II. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/dica-amr-a-ratio-da-exposicao-de-motivos-francisco-campos-do-novo-cpp. Acesso em: 20 maio 2020.
[11] Para Lopes Jr. (2013. p.84) “o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade dos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa etc.”
[12] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoria Del Garantismo Penal. 2. ed. Madrid: Trotta, 1997, p. 335.
[13] Para Salah Khaled Jr., consiste na obtenção da condenação a qualquer custo. O fetiche pela legislação infraconstitucional ainda seduz a imaginação persecutória de muitos magistrados: nosso Código de Processo Penal (de 1941) é tido como livro sagrado, continuamente apto a potencializar práticas visivelmente inquisitórias e antidemocráticas.
[14] TOMBINI, Christian Penido et al. A prova necessária e suficiente para a decisão de pronúncia ante a constituição federal. Porto Alegre: PUCRS, 2019. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/8885. Acesso em: 03 maio 2020.
[15] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, v. 1. 1. ed. Florianópolis: Tirant LoBlanch, 2018, p.441.
[16]Sancionada em 24, de dezembro de 2019, pelo então presidente, Jair Messias Bolsonaro.
[17] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. Brasília, DF: Presidência da República, 2016. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituçao.htm. Acesso em: 09 abr. 2020.
Bacharelando do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho- UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Agripino Rocha do Nascimento. Da necessidade de um processo penal democrático e os reflexos da Lei nº 13.964/2019 na produção de provas ex officio pelo magistrado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2020, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54584/da-necessidade-de-um-processo-penal-democrtico-e-os-reflexos-da-lei-n-13-964-2019-na-produo-de-provas-ex-officio-pelo-magistrado. Acesso em: 23 dez 2024.
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