GUILHERME DA COSTA MESQUITA[1]
(coautor)
Me. JULIANO OLIVEIRA LEONEL[2]
(orientador)
RESUMO: A presente pesquisa visa demonstrar o uso desenfreado do brocardo in dubio pro societate, que, corriqueiramente, é invocado como forma de fundamentação de decisões contraria à Constituição, exemplo disso, para pronunciar o acusado. O presente estudo tem também como finalidade elucidar, através de entendimentos doutrinários, quais princípios devem ser sopesados em relação a outros, qual deve ser o parâmetro de leitura do magistrado para tal conclusão, mostrar quais critérios devem ser usados para submissão de um acusado ao Tribunal do Júri, a importância da obediência dos princípios alçados a patamar Constitucional e explicar a decisão acertada do STF diante do uso deste princípio que afronta diretamente a presunção de inocência. Bem como, demonstrar a necessidade da criação de uma nova teoria para frear o atropelamento das normas Constitucionais. O método de pesquisa adotado foi o dedutivo que se dará por revisão bibliográfica.
Palavras-chave: Tribunal do Júri, pronúncia, in dubio pro societate, sistema acusatório.
ABSTRACT: This research aims to demonstrate the unrestrained use of brocardo in dubio pro societate, which is commonly used as a basis for decisions contrary to the Constitution, for example, to pronounce the accused. The present study also aims to elucidate, through doctrinal understandings, which principles should be weighed in relation to others, what the magistrate's reading parameter should be for such a conclusion, show which criteria should be used for the submission of an accused to the Court of the Jury, the importance of obedience to the principles raised to Constitutional level and explain the correct decision of the STF regarding the use of this principle that directly affronts the presumption of innocence. As well as, demonstrate the need to create a new theory to stop the trampling of Constitutional norms. The research method adopted was the deductible that will be given by bibliographic review.
Keywords: Jury Tribunal, pronunciation, in dubio pro societate, accusatory system
Sumário: 1 Introdução. 2 Sistemas e a instrumentalidade constitucional do processo penal. 2.1 Poderes instrutórios conferido ao juiz: incompatibilidade com o sistema acusatório. 2.2 Falso in dubio pro societate x in dubio pro reo. 3 Rito do Tribunal do Júri. 3.1 Fases do Tribunal do Júri. 4 Invocação do in dubio pro societate na fase de pronúncia. 5 Entendimento do STF a luz da constituição. 5.1 Imediatividade de uma teoria racionalista da valoração da prova. 6 Conclusão. 7 Referências.
Para se produzir um estudo qualificado sobre problemas relacionados ao direito como ciência, ainda mais quando se envolve à interpretação da lei, não se pode deixar de levar em consideração às discussões doutrinárias em torno das normas que regem tais direitos, que são, de modo geral, estabelecidas em leis, portanto, devem ser seguidas e obedecidas.
O assunto que vai ser abordado na presente pesquisa destaca como o processo penal é visto na visão de que se trata de um instrumento importante e necessário para alcançar a pena proporcional ao delito cometido (que nem sempre foi assim) em cada casa concreto, e que o processo não deve mais ser visto como um simples instrumento do poder punitivo, mas também, como limitador deste poder, para que não haja excesso e que faça também o papel de protetor das garantias fundamentais e individuais, e que tal proteção não se deve confundir-se jamais com a impunidade, se fazendo necessária a rigorosa observância às regras impostas pela lei, a hierarquia e as regras do jogo.
Dentro desse contexto, os direitos fundamentais e os princípios Constitucionais correlacionados ao tema que será discutido ao longo da pesquisa merecem atenção, como o in dubio pro reo, assim como a obediência da presunção de inocência, pois a proteção destes, se torna extremamente importante e necessário para a máxima garantia de um Estado Democrático de Direito.
O objetivo da pesquisa é demonstrar que parâmetro de leitura usado pelos magistrados não é compatível com a estrutura Constitucional. Assim como demonstrar que a invocação do in dubio pro societate para fundamentar a submissão do acusado ao tribunal do júri, é totalmente incompatível com a estrutura Constitucional bem como realçar a necessidade da criação de uma teoria racional da prova, a título de burlar a discricionariedade dos magistrados. Para se chegar a tal conclusão, o presente estudo teve como recurso metodológico o método dedutivo, que será realizado a partir da revisão bibliográfica.
Para se superar a retrógada, que o processo penal é visto somente como um instrumento do poder punitivo do Estado para se chegar a pena, é necessário que pontos sejam esmiuçados. Segundo Lopes Jr e Gloeckner (2014), a atuação do processo penal neste sentido pode acontecer, todavia, esse entendimento se dará conforme a suas respectivas Constituições, que por sua vez, regem os demais ordenamentos, pois se a Constituição for autoritária, teremos um processo penal autoritário, munido principalmente, do dever de punir, porém, se tivermos uma Constituição democrática (como temos no Brasil), necessariamente deve corresponder a um processo penal democrático e constitucional.
Goldschmidt (1896) assevera que a evolução do processo penal está intimamente relacionada com a própria evolução da pena, refletindo a estrutura do Estado em um determinado período.
Segundo os ensinamentos de Tourinho Filho (2010, p. 48), a instrumentalidade do processo penal indicada pela doutrina consiste em afirmar que o processo é o instrumento pelo qual o Estado se valerá para que se verifique a existência ou não de um crime, para que só então, seja possível a aplicação de uma sanção penal.
A forma no processo penal é tão basilar quanto à estrutura da razão humana para poder organizar os conteúdos cognitivos. Se a capacidade estrutural humana de relacionar as informações não estiver hígida, teremos uma patologia mental. De idêntica maneira, os conteúdos veiculados no processo devem respeitar os trilhos legais e constitucionais para viabilizar o seu conhecimento válido pelo juiz. Conforme é possível perceber:
Nesse contexto, aduzimos que “o regime de nulidades do CPP (arts. 563-573), além de ultrapassado, é confuso”. Adota a compreensão mitológica da verdade substancial (CPP, art. 566), mantém dispositivos revogados noutros locais do próprio CPP (art. 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica compreensão civilista, incompatível com o devido processo legal substancial, da ausência de prejuízo – pas de nullité sans grief (CPP, art. 563).
(MORAIS DA ROSA, 2019, p.582-583).
Visto isso, pode-se afirmar que sem o processo não há como ser aplicado o direito material (penal). Ocorre que tal instrumentalidade necessita também ser vista sob a perspectiva Constitucional, o que é feito por alguns doutrinadores, que tratam o assunto como a instrumentalidade constitucional do processo penal.
Essa instrumentalidade Constitucional consiste em considerar o processo como um importante instrumento de efetivação das garantias constitucionais do acusado, ou seja, trata-se de um instrumento indispensável para que possa ser aplicada uma sanção penal, mas também, através dele devem ser observadas as garantias individuais processuais e constitucionais, como limite ao poder de punir do Estado. (LOPES JR, 2014, p. 53).
Nesse sentido, a legitimação do processo penal somente se daria com uma visão Constitucional desse instrumento, visando à efetivação e proteção dos direitos fundamentais. A partir daí o porquê dos princípios constitucionais, como presunção do estado de inocência, juiz natural e vedação à utilização de provas ilícitas, devem ser rigorosamente e estritamente observadas para que o processo seja considerado legítimo.
Outra discussão importante está relacionada aos argumentos no sentido de relativizar tais princípios. Um exemplo é o argumento no sentido da possível admissão das provas ilícitas para a incriminação do acusado (usa-se como fundamento a aplicação que é feita nos Estados Unidos da América, que se baseia na teoria da proporcionalidade).
Acerca desta comparação, é feita a utilização do critério da proporcionalidade, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2012) leciona em sua obra, de forma sucinta, mas completa, esclarece a impossibilidade de se tratar da mesma forma a matéria das provas ilícitas no Brasil e nos demais países: na Itália e nos EUA não há a previsão constitucional que se tem no Brasil. (COUTINHO, 2012, p. 1178).
Lopes Jr. (2014), já firmou entendimento a respeito, lecionando a possibilidade de ensejar à diversas formas de manipulação relacionadas à prevalência do interesse público sobre o interesse privado (LOPES JR, 2014, p. 610-611).
Tal abertura, portanto, possibilitaria a violação de direitos fundamentais, os quais, pelo contrário, deveriam ser protegidos, tendo em vista que uma das funções da legislação processual penal vigente, como já citado, é limitar o poder do Estado na aplicação de uma sanção penal, de modo que, os direitos individuais sejam plenamente observados.
Comparando a instrumentalidade Constitucional do processo penal com outros ramos do direito, é imprescindível que se atente aos bens jurídicos tratados em cada matéria. No direito processual penal, o bem jurídico afetado é indisponível, pois se relaciona diretamente com a liberdade do indivíduo. Em outras searas do direito, muitas vezes são tratados como direitos disponíveis. Com isso, é notório que não se pode tratar da mesma forma matérias dotadas de características distintas.
Conforme lições de Streck (2001, p. 28-30), os setores mais frágeis e vulneráveis da sociedade são os atingidos pelas formas de tentativa de estabilização da crise que se instaura, decorrente do pânico criado em torno do “fantasma” da criminalidade.
Dito isto, verifica-se a impossibilidade que se tente, com argumentos, dar aparência de licitude a considerações inconstitucionais, nem como qualquer outra que admita a violação dos direitos fundamentais.
Também neste sentido leciona Lopes Jr. (2014) que: a forma dos atos é uma garantia, na medida em que implica limitação ao exercício do poder estatal de perseguir e punir. (LOPES JR, 2014, p. 606).
Portanto, se visto o processo penal sob uma perspectiva constitucional, vê-se que diversas são as regras limitadoras do poder punitivo Estatal, a fim de que as garantias individuais do réu não sejam mitigadas e que o processo penal atue da forma correta, como instrumento de proteção do réu e seus direitos individuais.
Portanto, conclui-se, que todos os atos no processo penal devem se dar a partir do respeito às garantias, para que além do processo ser o instrumento para a imposição de uma sanção penal, atinja sua outra finalidade, que é a efetivação da proteção às garantias individuais do réu.
O estudo dos sistemas processuais se mostra indispensável para se compreender as decisões autoritárias e as raízes de uma ideologia ainda enraizada no nosso sistema Processual Penal, que é o sistema inquisitorial. Esse sistema coloca nas mãos dos juízes o poder de determinar a produção de provas (poder instrutório), e mais a frente, o mesmo, julgar a demanda. Onde inevitavelmente compromete-se a parcialidade do julgador.
De inicio, é importante destacar, que, a posição do “juiz” é fundante da estrutura processual. Quando o sistema aplicado mantém o juiz afastado da iniciativa probatória (da busca de ofício da prova), fortalece-se a estrutura dialética e, acima de tudo, assegura-se a imparcialidade do julgador, se está diante do sistema acusatório.
Soares Junior (2016) se ater-se a uma concepção neoinstitucionalista do processo, prefere por se basear pela Teoria Geral do Processo. Segundo Soares Junior, em sede de constitucionalismo pós-moderno, não há que se falar em princípio acusatório ou inquisitório no processo penal. Vejamos:
Democraticidade como característica inerente àquilo que é democrático, se apresenta como conteúdo a ser aferido pela gradual compatibilidade entre o sistema de Processo Penal e as normas constitucionais, que o configuram como instituição destinada à preservação da liberdade individual atuando como mecanismo de controle das ações governamentais e políticas, em cuja bondade e sabedoria intrínsecas, não é prudente confiar. (SOARES JÚNIOR, 2016, p. 27.)
Em sentido distinto ao de Soares Junior, Gloeckner (2017) reforça a real importância do estudo dos sistemas processuais penais, pois, entende-se que, somente a mera separação das funções dos atores processuais, não é suficiente para concluir qual sistema está em questão. Exemplo disso à Itália fascista de 1930, realçando, portanto, a importância urgente do estudo dos sistemas processuais para se chegar a outras conclusões, por exemplo, o standard probatório e uma teoria racionalista da valoração da prova.[3]
Lopes Jr. (2019) leciona da seguinte forma:
O estudo dos sistemas processuais penais na atualidade tem que ser visto com o “olhar da complexidade” e não mais com o “olhar da Idade Média”. Significa dizer que a configuração do “sistema processual” deve atentar para a garantia da “imparcialidade do julgador”, a eficácia do contraditório e das demais regras do devido processo penal, tudo isso à luz da Constituição. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal. (LOPES JR, 2019, p. 47)
Lopes Jr (2017) com a finalidade de mostrar a importância dessa identificação do sistema processual leciona que não são os elementos que irão definir de qual sistema se trata, mas sim “o ponto nevrálgico” (LOPES JR, 2017, p. 46).
O Autor entende que a mera separação das funções realmente não seja suficiente para chegar a tal conclusão, porém, a separação das funções e a gestão da prova na mão das partes e não na do juiz, cria-se condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive.
Segundo Ferrajoli (2006, p. 518), são características principais do sistema acusatório: a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, a publicidade e a oralidade do julgamento. Já no sistema inquisitivo, existe a frequente iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.
Gomes Filho (1997) defende o modelo adversarial system e o inquisitorial system. Naquele, cabe às partes a inciativa e a condução do processo, aqui as partes são mais que meros objetos – como considerados por alguns magistrados – aqui as partes regem o processo. Neste último, o juiz é o responsável pela iniciativa probatória e pela marcha processual.
No adversarial system, reconhece a ausência do juiz na produção probatória, que fica inteiramente a cargo das partes. Aqui, segundo o autor, o juiz funciona como um inequívoco garantidor do respeito às regras do jogo, atuando na fiscalização das partes sem se envolver na inciativa probatória. (GOMES, 1997, p. 39)
Obviamente o sistema sofre critica sobre seus métodos a acerca do sistema adversarial americano e sua preocupação constante com o nível de verdade alcançado no processo
A sua vez, Castanho de Carvalho (2014) defende a incompatibilidade Constitucional dos dispositivos que dão aos magistrados o poder de agir, de oficio, na determinação de provas no processo penal, com razão, por receio de tal prática comprometa a imparcialidade necessária para julgar a demanda. (CARVALHO, 2014, p. 200).
Com base nos ensinamentos de Goldschmidt, Lopes Jr. (2012, p. 133) explica que “no modelo acusatório, o juiz se limita a decidir, deixando a interposição de solicitações e o recolhimento do material àqueles que perseguem interesses opostos, isto é, às partes”.
Merece destaque o posicionamento de Cunha Martins (2002, p. 81-82) para quem, para além do sistema acusatório, é o modelo democrático, por tal razão, o inequivocamente contrário ao modelo inquisitório (autoritário). Na lição de Cunha Martins, conclui-se que, não basta que o modelo de processo penal seja acusatório, ele precisa ser democrático.
Geraldo Prado (2014) reconhece que no processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir, que define o horizonte do mencionado processo. (PRADO, 2014, p. 104)
Neste sentido, e conforme exposto, sempre respeitando a doutrina em sentido contrario, partilha-se do entendimento que se vislumbra na iniciativa e na gestão da prova pelo juiz, grandes características de autoritarismos, portanto, elementos fundantes do sistema inquisitório. Pois, o juiz participa da investigação, vai ao encontro das provas e depois emite decisão que ele mesmo coletou.
Neste mesmo sentido, o pacote anticrime aprovado recentemente, traz mudanças ou pelo menos tentou trazer no que se refere essa imparcialidade expressa do magistrado que se coloca como centro das ações e atenções, rebaixando as partes a um papel terciário e como mero objeto. O Pacote anticrime tentou afastar a figura do juiz que é concebido, de forma ilimitada, a liberdade da busca dos elementos (prova) para confirmação de sua crença e convicção já formada, tornando o trabalho da defesa totalmente inútil, pois já se tem um pré-conceito formado desde a produção das provas por ele perquirida.
Por meio da lei 13.964/19, Lei do pacote anticrime, que trouxe em seu texto a figura do tão importante Juiz de Garantia, vale lembrar que já se falava desta figura desde a proposta de reforma do Código de Processo Penal, por meio da PL 156/2009. Pois bem, a figura do Juiz de Garantia, finalmente tentou afastar a parcialidade e a busca da prova pelo juiz julgador. Logo no art. 3º da lei 13.964/19 uma importante redação. Veja-se:
Art. 3º-A. o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:
O que se tem, portanto, com o juízo de garantias está para além de uma simples alteração formal nas regras de competência ou no método de organização judiciária. Trata-se, sem qualquer exagero, de uma verdadeira revolução política no campo do processo penal em direção a um paradigma de maior compromisso democrático.
A medida é bastante salutar, pois evita um sério problema de comprometimento decisório prévio em relação ao órgão jurisdicional competente para o julgamento do caso penal. Por óbvio, aquele juiz que acompanhou toda a fase de investigação preliminar, tendo contato muitas vezes direto com o desenvolvimento dos atos de investigação e os próprios órgãos de apuração inicial da notícia-crime, inclusive com a responsabilidade legal de decidir sobre eventuais medidas cautelares pessoais e reais (ex.: buscas e apreensões, prisões preventivas e sequestros de bens), bem como instrumentos de barganha penal (ex.: homologação dos acordos de colaboração premiada) e métodos ocultos de pesquisa criminal (ex.: interceptações telefônicas e infiltração de agentes).
Todavia, a implementação do Juiz de Garantia foi barrada pelos Ministros do STF, são as mais diversas possíveis razões levantadas, dentre elas está o argumento que o vacatio legis, que era tão somente de 30 dias para que começasse valer as novas regras. Obviamente existem outras teorias, que seria para manter, infelizmente, a discricionariedade dos magistrados e tribunais.
Nesta senda, partilha-se que o sistema cariz inquisitório é a inequívoca busca pela condenação – e assim vai perdurar até a figura do juiz de garantia ser posta em prática, haja vista que, para a sociedade e por boa parte dos magistrados, a absolvição é evitada, como se fosse uma praga e sinônimo de impunidade.[4]
Portanto, a busca da concretização do sistema acusatório processual almejado na Constituição Federal, o que se deve é aplicar uma interpretação Constitucional a todos os dispositivos do Código de Processo Penal, procurar meios para que eventuais atuações do juiz na fase do Inquérito Policial não venham a contaminar o julgamento da causa e não condenar por completo o poder instrutório do magistrado durante o processo.
Brevemente, sem fugir do objetivo principal, se faz necessária a compreensão do que vem a ser de fato um princípio e toda sua complexidade, apesar de boa parte da doutrina não se preocupar em discutir isso, identificar o que pode, ou não, ser um princípio Constitucional.
Acerca do in dubio pro societate, somente duas coisas são de fácil percepção com o estudo: que não há pacificação conceitual a respeito do tema, e a segunda é a conclusão do que ele não é um princípio.
De imediato, é de suma importância destacar que a presunção de inocência e o in dubio pro reo não podem ser afastados de maneira alguma no rito do Tribunal do Júri. Ou seja, além de não existir a mínima base constitucional para o in dubio pro societate, este “princípio”, se mostra totalmente incompatível com a estrutura das cargas probatórias definida pela presunção de inocência que é elencada a nível constitucional.
A questão é levantada por Rangel (2002):
O chamado princípio do in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. (...) O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal (RANGEL, 2002, p. 192-194).
A sua vez, Reale (2002), entende que os princípios configuram a chamada “verdades fundantes de um sistema de conhecimento”, por tanto, considerados pelo fato de terem sido comprovados ou evidentes, e claros, por questões de natureza prática.[5]
Interpretação importante de Alexy (2006), onde levanta de forma indireta a atuação do julgador, afirma que os princípios são comandos de otimização que podem ou não ser cumpridos a depender da situação fática e jurídica[6]. Menciona que os princípios enquanto mandamentos de otimização, são aplicados por meio de uma técnica onde o julgador vai ponderar o princípio mais importante. E Streck (2015), entende no sentido que, no Brasil se faz um mau uso de tal teoria, formulada com a finalidade de resolver hipóteses abstratas de conflitos entre princípios. (STRECK, 2015, p. 57)
Percebe-se, que o in dubio pro societate se assemelha, de forma rudimentar de princípio geral do direito ou de brocardo jurídico, quando trabalhado. Logicamente malgrado na genética autoritária, este brocardo é invocado, para afastar o respeito a direito fundamental e a estrutura constitucional voltada a presunção de inocência e a proteção do réu.
Portanto, diante deste levantamento jurisprudencial feito acima acerca do que se entende e o que pode ser considerado como princípio, nota-se que o in dubio pro societate não deve ser retratado como princípio, mesmo no reconhecido valor dos princípios gerais do direito.
Sergio Pitombo (2000) segue essa premissa e leciona que, o in dubio pro societate não passa de um aforismo, obviamente em decorrência de sua incompatibilidade com o sistema Constitucional. (PITOMBO, 2000, p. 55)
O in dubio pro societate não possui sequer profundidade científica e bibliográfica de um princípio, não justificando, portanto, a invocação deste para servir como standard probatório nesse sistema constitucional.
Diferentemente deste, o in dubio pro reo tem grande representatividade no processo penal, podendo, inclusive, ser norteador da identificação do sistema. Conforme refere o Lopes Jr. (2011, p. 177), a presunção da inocência trata-se de princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia).
A questão foi tratada com muito por Rangel (2002), que ao atacar tal construção, afirma que o In dubio pro societate é não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco do réu. (RANGEL, 2002, p. 78).
Com razão, Rangel (2002) destaca que não há nenhum dispositivo legal que autorize esse chamado princípio do in dubio pro societate. O ônus da prova, é do Estado e não do investigado[7].
Já o in dubio pro reo, Ferrajoli (2002, p. 441), menciona que a presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, mesmo que isto acarrete na impunidade de algum culpado, pois, ao corpo social, basta que os culpados sejam geralmente punidos, sob o prisma de que todos os inocentes, sem exceção, estejam a salvo de uma condenação equivocada.
Portanto, correlato processual do princípio da presunção de inocência, insculpido na fórmula nulla poena sine culpa, o princípio in dubio pro reo busca garantir que, sem provas suficientes dos elementos, tanto subjetivos quanto objetivos, do fato típico e ilícito, não seja possível a aplicação de pena. A insuficiência da prova equivale à subsistência de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência de determinado fato ou de sua autoria. Dá-se, então, como não provado o fato desfavorável ao arguido, e, vedado o non liquet em nosso ordenamento, é indicado ao juiz que valore a favor do acusado a prova dúbia. (MONTEIRO, 1997, p.11)
Nesse sentido, em se tratando de um Estado Democrático de Direito, tem, como seu consectário necessário, o in dubio pro reo, tendo em vista que o sistema acusatório é o modelo a ser seguido, conforme determina a Constituição.
Por fim, é no mínimo duvidoso, que um preceito autoritário, consagrado em regimes contrários aos direitos humanos, seja a despeito do processo de constitucionalização, processo esse deflagrado justamente para evitar novas atrocidades contra a humanidade e desrespeito aos direitos fundamentais. E também, consiga prevalecer, sem nenhuma base legal, sobre o in dubio pro reo, que possui amplo amparo legal, inclusive alçado a patamar Constitucional.
O Tribunal do Júri está previsto no art. 5º, XXXVIII, onde se assegura: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. A disciplina legal do Tribunal do Júri está prevista nos arts. 406 a 497 do CPP, tendo sido substancialmente alterada pela Lei n. 11.689/2008, e mais recentemente pela Lei de nº 13.964/19, mais conhecido como pacote anticrime.
A competência do júri é assim muito bem definida no art. 74, § 1º do Código de Processo Penal, de forma taxativa e sem admitir analogias ou interpretação extensiva. Segundo os ensinamentos de Lopes Jr., (2019, p. 982-983), essa competência que trata o artigo em questão dizendo que não impede que o Tribunal do Júri julgue esses delitos ou qualquer outro desde que seja conexo com um crime doloso contra a vida.
O procedimento do júri é dividido em duas fases: instrução preliminar e julgamento em plenário. Lopes Jr., (2019, p. 983-984) faz uma importante observação sobre a instrução preliminar, destacando a importância de não confundir com a investigação preliminar, pois são coisas distintas, pois está trata da fase pré-processual da qual o inquérito policial é a principal espécie.
Ressalta ainda que “instrução preliminar pressupõe o recebimento da denúncia ou queixa”, sendo assim, o registro do nascimento do processo. Portanto, conclui-se que, a instrução preliminar está entre o recebimento da denúncia ou queixa, e a decisão de impronúncia.
Como dito acima, duas são as fases do Tribunal do Júri, iniciando-se assim pela instrução preliminar. Após o inquérito policial, que acaba se tornando regra nesse tipo de delito, segundo os ensinamentos de Lopes Jr., (2019), o art. 46 do Código de processo penal é objetivo ao determinar que, o Ministério Público poderá oferecer a denúncia no prazo de 5 (cinco) dias, se o imputado estiver preso, ou em 15 dias se o mesmo estiver em liberdade. Caso o prazo se escorra e a denúncia não seja oferecida pelo Ministério Público, abrirá margem para atuação da vítima, caso essa se faça presente, ou de seu representante que consta no rol do art. 31 do CPP, para que ofereça a queixa-crime subsidiária que trata o art. 29 do Código de Processo Penal, pois restou configurado a inércia do órgão competente pra tal oferecimento.
O tramite é conhecido, pois, após a denúncia ou a queixa subsidiária, fica a cargo de o juiz receber ou então rejeitar nos casos expressos no art. 395 do CPP. Caso receba, o magistrado citará o acusado para que em 10 dias ofereça sua defesa escrita e faça desde logo o arrolamento das testemunhas, limitando se a 8 testemunhas, assim como arguir todas as preliminares que se compreende cabível, fazer juntada de documentos e postular suas provas, também se entende pelo momento ideal para formular, em autos apartados as exceções de incompetência conforme o art. 95 a 112. (LOPES JR., 2019, p. 985)
Uma critica relevante que é feita por Lopes Jr., é que posteriormente a isto, é dada a oportunidade do Ministério Público se manifestar sobre “eventuais” exceções e preliminares alegas pela defesa, assim como tomar conhecimento de documentos e outras provas juntadas pela defesa. É justamente essa possibilidade de nova manifestação do Ministério Público que gera discussão, falando se em “uma possibilidade de réplica desequilibrada da estrutura dialética do processo” (LOPES JR., 2019).
Visto isso, o que se nota é que erroneamente se permite um novo ataque por parte do Ministério Público, diferentemente do primeiro, que era dirigido ao acusado, desta vez se ataca a defesa. Porém, se deve obedecer à contraditória e ampla defesa, ou seja, a defesa sempre falar depois da acusação. Demonstrando, assim, portanto, uma violação ao art. 5º, LV, da Constituição Federal.
LV – Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e os acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Por óbvio que o Ministério Público tem direito a se manifestar, mas não neste momento, podendo assim fazer ao longo da demanda ou no final desta de forma oral. Lopes Jr, (2019) seguindo o entendimento de MARQUES, que, o que não se deve admitir é a ampliação do debate em torno das alegações da defesa, permitindo que a acusação tenha prazo para livre manifestação no momento exatamente anterior à ida dos autos para decisão sobre as provas.
Na sistemática do direito processual penal, não é lícito à acusação falar depois da defesa, pois a violação dessa ordem importa quebra dos princípios constitucionais norteadores do devido processo legal, conforme referido pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. (LOPES JR., 2019, p. 986-987)
Dito isso, ainda ocorrerá à oitiva da vitima se possível, as testemunhas da acusação, posteriormente as da defesa, peritos, findo disso, caso haja, fará as acareações no termo do art. 229 e 230 do Código de Processo Penal e dará se fará o interrogatório do réu, constituindo assim, o direito a última palavra.
A fase preliminar do Júri pode ser encerrada por meio de quatro decisões, todas preferidas pelo juiz togado, quais sejam: absolvição; impronuncia desclassificação e pronúncia. Essas são as quadro decisões que pode encerrar a primeira do Tribunal do Júri.
Segundo os ensinamentos de Lopes Jr., (2019), a segunda fase do rito tem seu ponto inicial com a confirmação da pronúncia e se estende até decisão proferida no julgamento realizado no plenário do Tribunal do Júri. Segundo o autor, na nova morfologia do procedimento do júri, a segunda fase ficou reduzida, praticamente, ao plenário. Antes dele, há um único momento procedimental relevante, que é a possibilidade de as partes arrolarem as testemunhas de plenário. (LOPES JR, 2019, p. 984).
Conclui-se, portanto, que, o processo pode findar nessa primeira fase, conforme a decisão do juiz (os detalhes de cada tipo de decisão serão analisados na continuação). E a segunda fase somente se inicia se a decisão do juiz for de pronúncia, tem por ápice procedimental o plenário e finaliza com a decisão proferida pelos jurados.
Lopes Jr. (2019) inicia indagando que a pronúncia trata-se de uma decisão interlocutória mista. Está previsto no art. 413 do Código de Processo Penal, onde traz os fundamentos que o magistrado poderá valer-se para pronunciar o acusado ao Tribunal do Júri. (LOPES JR, 2019, p. 990)
Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.
§ 1º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena.
§ 2º Se o crime for afiançável, o juiz arbitrará o valor da fiança para a concessão ou manutenção da liberdade provisória.
§ 3º O juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código.
Portanto, entende-se que a pronúncia tem sido entendida como uma decisão interlocutória na qual o magistrado, motivadamente, como citado acima com a redação do art. 413 do CPP, considera admissível a decisão formulada pelo Ministério Público (regra). Passando para os juízes leigos, digamos assim, a responsabilidade de analisar o mérito da causa.
Lopes Jr (2019) menciona que a pronúncia é a decisão que apenas verifica a “admissibilidade da pretensão acusatória, tal como feito quando do recebimento da denúncia, mas, e não é demasia dizer, trata-se de verdadeiro re-recebimento da denúncia, agora qualificada pela instrução judicializada”.
Assim como em qualquer outra decisão do magistrado, ele deve fundamenta-la. Portanto, não pode o juiz condenar previamente o réu, pois não é ele o competente para o julgamento. Por outro lado, merece especial cuidado a fundamentação do julgador, pois, a depender de sua fundamentação, pode-se falar em contaminação dos jurados, que são facilmente influenciáveis pelas decisões proferidas por um juiz profissional e, mais ainda, por aquelas proferidas pelos tribunais.
Lopes Jr. (2019) leciona que deve o juiz, como determina o § 1º do artigo anteriormente transcrito, limitar-se a indicar a existência do delito (materialidade) e a existência de “indícios suficientes” de autoria ou de participação. Não pode o juiz afirmar a autoria ou a materialidade (especialmente quando ela é negada pelo réu), sob pena de induzir ao prejulgamento por parte dos jurados. Devendo fazer um juízo de verossimilhança.
Essa transparência é fundamental para que os jurados julguem sem influencia do juízo de (des)valor realizado pelos magistrados. Para sustentar essa premissa, a Lei de 11.689 de 2008 alterou o rito do Tribunal do Júri, pretendendo essencialmente barrar o excesso do magistrado na pronúncia.
Neste momento se depara com um ponto importante, segundo Lopes Jr. (2019) “bastante problemático é o famigerado in dubio pro societate. Segundo a doutrina tradicional, neste momento decisório deve o juiz guiar-se pelo “interesse da sociedade” em ver o réu submetido ao Tribunal do Júri, de modo que, havendo dúvida sobre sua responsabilidade penal, deve ele ser pronunciado”. (LOPES JR. 2019, p. 993).
Pois bem, Lopes Jr (2019) faz a seguinte pergunta em sua obra, que outrora já foi discutido acima: qual a base constitucional do in dubio pro societate? Responde-se: nenhuma.
Não se tem fundamentação para aceitar tal expansão da “soberania” a ponto de negar a presunção Constitucional de inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com carga probatória. (LOPES JR. 2019, p.994).
Não se pode tolerar que os juízes pactuem com acusações infundadas, usando de brocardos para esconder-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário.
Gustavo Badaró (2019, p. 26), explica que o art. 409 (atual 414) estabelece um critério de certeza: “o juiz se convencer da existência do crime”. Assim, se houver dúvida sobre se há ou não prova da existência do crime, o acusado deve ser impronunciado. Já com relação à autoria, o requisito legal não exige a certeza, mas sim a probabilidade da autoria delitiva: deve haver indícios suficientes de autoria. É claro que o juiz não precisa ter certeza ou se convencer da autoria. Porém, caso a dúvida permaneça, o in dubio pro reo deve ser aplicado.
Streck (2014), de forma precisa defende a urgência de um efetivo controle hermenêutico das decisões judiciais, com a finalidade de barrar a discricionariedade e arbitrariedade dos magistrados.
Por fim registra-se: quando digo que a discricionariedade abre as portas para arbitrariedade é justamente porque, tanto numa quanto noutra, o problema é o mesmo, ou seja, a falta de controle conteudíssimo. Pode-se dizer que o espaço disso que se chama discricionariedade é um espaço de “anomia”, no qual o intérprete põe o direito. (STRECK, 2014, p. 57) .
Portanto, o caminho possível para enfrentar o problema é dominar a discricionariedade, assumindo, assim, portanto, a radicalidade do elemento interpretativo que reveste a experiência jurídica.
Portanto, conforme explicado quando se tratou do in dubio pro societate, percebe-se, com base em apanhados bibliográficos e jurisprudenciais, que tal brocardo é incompatível com a estrutura Constitucional vigente no Brasil, devendo o in dubio pro societate ser afastado da fase de pronúncia, e sempre, quando necessário interpretar qualquer norma conforme a constituição, e não recorrer a brocardos. A Constituição da República deve ser o parâmetro de leitura dos julgadores para qualquer espécie de decisão, observando os princípios constitucionais.
Em sessão realizada no STF, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal firmou importante posicionamento no que tange às discursões relacionadas à busca por uma persecução efetiva para verificação dos fatos imputados com a sanção de culpados materializada no in dubio pro societate e a preservação das garantias individuais com o prevalecimento do in dubio pro reo.
O julgado traz relevantes pontos para o estudo e aprimoramento em prol do sistema penal brasileiro, uma delas é a necessidade de uma teoria da valoração racional da prova, pois devido à superação da teoria da prova tarifada, ou legal, onde as provas são sopesadas antecipadamente pelo legislador, não sobrando, portanto, qualquer margem para que o juiz faça sua própria valoração, ficando assim vinculado a critérios de valoração abstratamente fixados na lei, houve a consolidação do sistema de “livre convencimento motivado”, que determina que a eficácia de cada prova para a determinação dos fatos seja estabelecida em cada caso concreto, seguindo critérios não predeterminados, discricionários (em tese) e flexíveis, baseados essencialmente em pressupostos racionais.
O sistema foi contemplado com a premissa que seria uma liberdade regrada, mas são diversos os acervos bibliográficos que nos ensinam a desconfiar daqueles que tem poder, e essa liberdade regrada, nem sempre seria regrado, o convencimento motivado, nem sempre foi e será motivado, pois isso abriria margem para a discricionariedade do magistrado que não se submente a critérios e pressupostos, em outras palavras, a parcialidade do julgador.
Ocorre que o juízo de primeiro grau, não verificando os indícios de autoria do crime que justificasse a submissão de dois, dos três acusados ao Tribunal do Júri, como manda o Código de Processo Penal a luz da Constituição Federal, acertadamente, impronunciou ambos por ausência de indícios da autoria do crime. Portanto, obedecendo à risca os princípios constitucionais e respeitando os direitos fundamentais e individuais. [8]
Todavia, O Ministério Público, não satisfeito, recorreu ao Tribunal de Justiça e obteve sucesso em sua demanda. O Tribunal de Justiça a sua vez, como fundamentação de sua decisão usou o brocardo do in dubio pro societate, e de forma desregrada, resolveu valorar provas que não foram submetidas ao crivo do contraditório e ampla defesa ao invés daquelas produzidas durante o devido processo legal.
Desta forma, o STF fora requisitado por meio de Recurso Extraordinário com Agravo 1.067.392 (ARE), com o argumento que o Tribunal de Justiça em sua decisão reconheceu a existência de dúvida da autoria do crime, e que o mesmo, ainda valorou provas colhidas no inquérito policial ao invés de provas constituídas durante o devido processo legal.
Ora, reconhecida a existência de dúvida razoável, é inegável que a decisão deveria ser a favor dos acusados, tendo em vista a presunção de inocência conferida pela Constituição Federal[9], e pelo Código de Processo Penal[10], e não invocar um brocardo utilizado pelos magistrados para esconder sua discricionariedade e seus falsos paradigmas de magistrados democráticos.
Desta forma, O STF reconheceu a equivocada valoração da prova realizada pelo Tribunal, à incongruência do Tribunal ao reconhecer a existência da dúvida razoável e não confirmar a impronuncia do juízo de primeiro grau diante da ausência de indícios de autoria e o uso do infundado in dubio pro societate, totalmente contrario a Constituição da República. Diante disso, negou seguimento do recurso e reestabeleceu sentença de impronuncia diante do reconhecimento da inexistência de indícios de autoria do crime, fazendo valer o peso dos princípios constitucionais e os direitos fundamentais e individuais.
A necessidade da criação de uma nova teoria da valoração da prova deve ser visto como prioridade, pois a reconstrução dos fatos é um ponto fundamental no processo penal, visto que, sua função é a verificação da acusação a partir do lastro probatório nos autos, pois se verificada vícios nessa reconstrução dos fatos, como por exemplo, a parcialidade, todo o devido processo legal fica prejudicado, inclusive o resultado.
O outro ponto de possível estudo e que ajudaria com o problema diante do uso do in dubio pro societate quando invocado para esconder e justificar\fundamentar a atuação discricionária do magistrado, inclusive, indo de encontro com princípios basilares do direito penal, como o in dubio pro reo, seria o estudo do standard probatório para a decisão de pronúncia, junto ao infundado in dubio pro societate.
Um dos pressupostos fundamentais para consolidação de uma nova teoria racionalista da prova é literalmente a definição de standards probatórios, denominados “modelos de constatação”. Trata-se de níveis de convencimento ou de certeza, que determinam o critério para que se autorize e legitime o proferimento de decisão em determinado sentido.
O que nota-se, portanto, é o uso desenfreado de brocardos como o standard probatório, pois tal invocação é feita por magistrados que tem por finalidade esconder-se atrás destes para que sua fundamentação inconstitucional tenha alguma validade. O in dubio pro societate não deve ser considerado como um standard probatório, e sim seguir provas constituídas no processo e tentar chegar a níveis de convencimento ou certeza.
Desta forma, assim como entende o Ministro do STF, Gilmar Mendes, entende-se que a criação do in dubio pro societate traz efeitos problemáticos, sendo este usado como critério de decisão para juízo de pronúncia ao júri. Onde de forma inconstitucional um brocardo é sopesado sob um princípio constitucional (in dubio pro reo).
Por fim, a titulo de sustentação daquilo que foi levantado nesta pesquisa, ao delimitar-se a análise da legitimidade do in dubio pro societate no espaço atual do direito brasileiro não há como sustentá-la por duas razões básicas: a primeira se dá pela absoluta ausência de previsão legal desse brocardo e, ainda, pela ausência de qualquer princípio ou regra orientadora que lhe confira suporte político-jurídico de modo a ensejar a sua aplicação; a segunda razão se dá em face da existência expressa da presunção de inocência no ordenamento constitucional brasileiro, conferindo, por meio de seu aspecto probatório, todo o suporte político-jurídico do in dubio pro reo ao atribuir o ônus da prova à acusação, desonerando o réu dessa incumbência probatória.
Não resta dúvida que o in dubio pro societate é antidemocratico e, portanto, autoritário. Não se deve reduzir essa questão relevante a algo particular, pois trata-se de interesse geral, de toda coletividade e também do Estado de que os direitos humanos sejam observados, considerados e respeitados. Com o uso desenfreado do in dubio pro societate, o judiciário começa perder posição de último guardião dos direitos fundamentais, partindo, assim, para uma atuação menos científica e liberal.
É de fácil percepção que o Direito Processual Penal pátrio não se democratizou. O Código de Processo Penal ainda carrega raizes do sistema inquisitório e conserva os poderes instrutórios do e de ofício ao juiz. Vislumbrando assim facilmente uma estrutura incompatível com a regra constitucional, que a sua vez segue a premissa da imparcialidade do julgador.
Foi demonstrado também como as categorias processuais penais, oriundas de um clima político autoritário foram capazes de se manter intactas, mesmo com a Constituição de 1988. A forma processual para o sistema acusatório, não deve estar desprovida de um controle sistemático incidente sobre as provas produzidas, garantindo sua higidez, mas da mesma maneira, todos os atos processuais orientam-se pela preservação das regras do jogo – as garantias fundamentais.
Se percebe à necessidade de que os magistrados superem a filosofia de julgar conforme a consciência, bem como a genética autoritária do sistema processual penal. Pois a discricionaridade judicial tem que ser vencida, haja vista que essa interpretação co.oca os direitos fundamentais do Estado democrático e constitucional, em risco. Pois nota-se que o autoritarismo trata o acusado como se não fosse uma pessoa.
Portanto, há necessidade da criação de uma teoria racional da prova, pois desde que superada a teoria da prova tarifada ou legal, onde as provas eram sopesadas antecipadamente pelo legislador, não sobrando, portanto, qualquer margem para que o juiz fizesse sua própria valoração conforme sua convicção, os direitos e garantias individuais são esmiuçados e esquecidos pelos juízes, ou como no caso em tela, por tribunais.
O sistema acusatório merece ter validade e aplicabilidade, tendo em vista que este, está voltado à proteção dos direitos e garantias do réu. Princípios constitucionais devem ser priorizados ao invés de brocardos sem a mínima base legal, reformas de grande valia para o sistema processual penal, como o Juiz de Garantia, devem ter seu lugar no Código de Processo Penal, devendo ser visto sempre de uma ótica constitucional, não devendo o magistrado se valer de outras normas antes, ou contrarias a constituição.
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[1] Guilherme da Costa Mesquita, graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected]
[2] Juliano de Oliveira Leonel, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. – UCB. E-mail: [email protected]
[3] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Metástases do Sistema Inquisitório. In: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen (Org.). Sistemas Processuais Penais. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 15.
[4] DIAS. Paulo Thiago Fernandes. A Decisão de Impronúncia Baseada no In Dubio Pro Societate: um estudo crítico sobre a valoração da prova no processo penal constitucional. Florianópolis: EMais, 2018, p. 84
[5] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, VitalSource Bookshelf Online, 2002, p. 303
[6] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 90
[7] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 6. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002. p. 79
[8] “Não vislumbro nos autos qualquer indício de autoria do crime ora perpetrado que possa ser atribuída aos referidos réus, pois as testemunhas presenciais não os viram chutando ou arremessando pedras na vítima. Ressalta ainda que todas as testemunhas oculares afirmam que não viram os réus agredirem a vítima, de forma que sobre elas não pairam sequer indícios de autoria. Assim, o simples fato dos denunciados terem corrido atrás da vítima não indica sua adesão à conduta do corréu” (RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.067.392, eDOC 14, p. 4)
[9] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Brasil, 1988)
[10] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Flávio. Entendimento do STF em conformidade com a Constituição: decisão de impronúncia diante da ausência de indícios da autoria do crime Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 maio 2020, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54595/entendimento-do-stf-em-conformidade-com-a-constituio-deciso-de-impronncia-diante-da-ausncia-de-indcios-da-autoria-do-crime. Acesso em: 23 dez 2024.
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