SARA ELLANNE ARAUJO DE FREITAS [1]
(coautora)
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [2]
(orientador)
RESUMO[3]: O presente trabalho tem por objeto a análise da fragilidade do reconhecimento de pessoas, no intuito de esclarecer o seguinte questionamento: quais os efeitos da aplicação do reconhecimento pessoal no transcorrer da instrução criminal? Por essa razão, o objetivo principal do estudo é discutir sobre o reconhecimento de pessoas no âmbito do processo penal, com foco no estudo dos artigos 226 a 228 do Código de Processo Penal, e o tratamento dado à identificação nas audiências, usando como referência o caso do “Maníaco da Moto do Ceará”. Por sua vez, foi utilizada a técnica bibliográfica, pautando-se em obras que abordem o tema em questão, bem como documental, com uso de legislação e jurisprudência, visando o desenvolvimento do conhecimento acadêmico e científico.
Palavras-chave: Reconhecimento pessoal; Art. 226 do CPP; Maníaco da Moto.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to analyze the fragility of the recognition of people, in order to clarify the following question: what are the effects of the application of personal recognition in the course of criminal investigation? For this reason, the main objective of the study is to discuss the recognition of persons in the context of criminal proceedings, focusing on the study of articles 226 to 228 of the Code of Criminal Procedure, and the treatment given to identification in the hearings, using as reference the case of the “Motorcycle Maniac from Ceará”. In turn, the bibliographic technique was used, based on works that address the topic in question, as well as documentary, using legislation and jurisprudence, aiming at the development of academic and scientific knowledge.
Keywords: Personal recognition; Article 226 of the CPP; Motorcycle Maniac.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2. Considerações gerais do processo penal. 2.1 Sistemas Processuais Clássicos. 2.1.1 Modelo Inquisitorial. 2.1.2 Modelo Acusatório. 2.2 Noções Gerais da Prova no Processo Penal. 2.2.1 Principiologia da Prova. 2.2.1.1 Princípio da Jurisdição. 2.2.1.2 Princípio da Presunção de Inocência. 2.2.1.3 Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa. 2.2.1.4 Princípio do Livre Convencimento Motivado e Persuasão Racional. 3 Teorias acerca da prova. 3.1 Prova como uma Espécie Nonsense. 3.2 Prova no Terreno da Semiótica. 3.3 Prova como Determinação da Verdade. 3.4 A Importância da Cadeia de Custódia na Prova Penal. 4. Reconhecimento Pessoal. 4.1 Conceito e Requisitos do Reconhecimento Pessoal. 4.1.1 Inobservância das Formalidades Legais. 4.2 Prova Penal e Falsas Memórias. 4.2.1 A Falsificação da Lembrança no Ato do Reconhecimento. 4.3 Caso Maníaco da Moto e o Erro no Reconhecimento Pessoal. 5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
1.INTRODUÇÃO
Atualmente, o reconhecimento pessoal tem sido uma das provas mais aceitas e utilizadas no processo penal, dispondo de força suficiente para destituir todo um conjunto probatório produzido, tal que se tornou essencial e umas das mais recorrentes diligências instrutórias realizadas, seja pela polícia judiciária ou por representantes do Ministério público.
Diante de tamanha importância é que o reconhecimento pessoal, seja talvez um dos "mais solenes atos processuais realizados numa persecução criminal" (BADARÓ, 2018) ou, ao menos, deveria ser, uma vez que, hoje se encontra disciplinado nos artigos 226 do Código de Processo Penal Brasileiro.
Todavia, através deste procedimento, criou-se a expectativa que o indivíduo, vítima ou testemunha ocular do fato criminoso, posteriormente, ao pormenorizar alguém que visualizou tempos atrás, possa descrever as características físicas do envolvido em questão no momento presente, ao tempo do reconhecimento.
Há, ainda, previsão para o caso de reconhecimento "sigiloso", caso se receie que o reconhecedor por intimidação, ou outra influência não diga a verdade no momento do reconhecimento, no qual nessas circunstâncias são acionadas algumas medidas específicas, para que a pessoa a ser reconhecida não veja o seu reconhecedor, conforme sugerido pelo Art. 226, III, do Código Processual Penal.
Ressalta-se que quando são crimes com repercussão na mídia, os imbróglios desse processo, são ainda maiores, pois a apresentação pela imprensa induz ao reconhecimento, mesmo quando inviável (BADARÓ, 2018). Não são raros os casos em que o reconhecedor no primeiro momento não podia sequer descrever o acusado, e após a exposição na mídia o reconhece como sendo o autor do crime.
Conforme Badaró (2018) por meio desse ato instrutório, espera-se que uma pessoa, vítima ou testemunha ocular de evento delitivo, após descrever alguém que viu no passado, confirme a identidade desse sujeito no tempo presente quando submetido a reconhecimento, o que é tido por muitos como importante ferramenta comprobatória da autoria do fato investigado.
O caso que repercutiu nacionalmente e ficou conhecido como “Maníaco da moto”, no estado do Ceará, pelo fato de que, houve a prisão durante cinco anos de um inocente que foi identificado/reconhecido pelas vítimas, que por influência do trauma, das fortes emoções sentidas, ocasionam as falsas memórias, o reconhecendo assim, como autor do delito.
À vista disso, o artigo pretende esclarecer o seguinte questionamento: quais os efeitos da aplicação do reconhecimento pessoal no transcorrer da instrução criminal? Por essa razão o objetivo principal do estudo é discutir sobre o reconhecimento de pessoas no âmbito do processo penal, com foco no estudo dos artigos 226 a 228 do Código de Processo Penal, e o tratamento dado à identificação nas audiências, usando como referência o caso do “Maníaco da Moto do Ceará”.
Para alcançar os objetivos apresentados, foi utilizada a técnica bibliográfica, pautando-se em obras que abordem o tema em questão, bem como documental, com uso de legislação e jurisprudência, visando o desenvolvimento do conhecimento acadêmico e científico.
Portanto, é esperado que o artigo em questão, contribua para o melhor esclarecimento da temática proposta e auxilie na reflexão sobre os critérios da validação do reconhecimento pessoal, aprimorando o trabalho investigativo e a instrução criminal para que se alcance um processo penal mais alinhado aos direitos e garantias de todos os envolvidos em questão.
2 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O PROCESSO PENAL
2.1 Sistemas Processuais Clássicos
Inicialmente, poder-se-ia conceituar, sistema processual penal como “o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto”.
Lopes Júnior (2012), adverte que na história do Direito, alternaram-se momentos de amplas liberdades e duras opressões, sendo que os sistemas acusatórios e inquisitivos refletem as exigências do Direito e do Estado da época. Nesse sentido, Goldschmidt (1935) leciona que “los princípios de la politica procesal de uma nación no son outra cosa que segmentos de su política estatal em general”, destacando Zaffaroni (2004) que “todo discurso penal autoritário (y totalitário) es una reiteracióndel discurso inquisitorial”.
Com o passar do tempo, várias formas da busca da “verdade”, ou melhor dizendo, de construção do convencimento foram aceitos do Direito Processual, trazendo à tona um elo entre o regime legal das provas e o sistema processual adotado.
Assim pode-se destacar que, essa interação como fator protuberante, ocorre para indicar que os direitos e garantias fundamentais não serão suprimidas. É mister lembrar que, analisando o processo penal de uma ação, pode-se perceber como ela detém conceitos de democracia ou autoritarismo, o direito do passado moldando-se ao direito do futuro.
Como traz Lopes Júnior (2019):
“O processo tem por finalidade buscar a reconstituição de um fato histórico (o crime sempre é passado, logo, fato histórico), de modo que a gestão da prova é erigida a espinha dorsal do processo penal, estruturando e fundando o sistema a partir de dois princípios informadores”. (LOPES JÚNIOR, 2019, p.580)
De acordo com Machado (2014), foi o contexto histórico, com toda sua evolução que levaram as distintas aplicações das leis ao longo da história, fazendo também com que surgisse diversos sistemas processuais, que a depender do tempo em que se encontravam poderiam ser mais autoritários, ora mais democráticos.
Diante de tantas mudanças ao longo da história, podemos dizer que uma coisa se fez presente em todas as fases dos sistemas: a pretensão punitiva do Estado, que, independente do sistema processual adotado, é o que se espera diante de um Estado responsável por punir aquele que supostamente cometeu ato delituoso (LIMA, 2019).
E é nesse contexto que vamos classificar os sistemas processuais: como ele conduz essa sanção será como ele será classificado e assim ficará claro, cada com suas peculiaridades, como cada sistema trata tanto os meios de provas como os possíveis autores do fato.
2.1.1 Modelo Inquisitorial
O sistema inquisitório, de maneira pura, é um modelo histórico, onde há um ‘desamor’ pelo contraditório, de acordo com Cunha Martins (2014). Lopes Júnior (2012), esclarece que:
O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma radical. O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da investigação. (...) O juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga. Com relação ao procedimento, sói ser escrito, secreto e não contraditório. (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 122).
O modelo inquisitorial nos traz a figura do juiz ator: ele coordena todos os atos do processo, inclusive a gestão das provas, e como a própria etimologia da palavra fala: é um inquisidor, é ao mesmo tempo, investigador, advogado e juiz.
“Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. De fato, há uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento.” (LIMA, 2019, p. 40).
O processo penal inquisitorial busca a todo custo chegar na verdade real, mesmo que para se consiga tal feito precise passar por cima de todos os limites. Como o agente juiz –inquisidor, quer chegar no resultado almejado –a condenação- não mede esforços para alcançá-lo, e como o mesmo é quem executa todos os atos, inclusive a busca das provas ele irá valorá-las de acordo com sua necessidade de julgado (LOPES JÚNIOR, 2020).
Não há como se distanciar que o fato do conhecimento prévio do juiz acerca das provas influencia diretamente as suas decisões finais: se o mesmo juiz que tem a responsabilidade de julgar é quem também produz as provas, como se tornar imparcial diante de tê-las antes do final do processo? E se esse mesmo juiz é quem levanta as hipóteses dos fatos, como saber se ele já não decidiu conforme seu bem querer e busca provas apenas para justificar sua decisão?
Corroborando com tal questionamento temos o posicionamento de Jacinto Coutinho (2020):
Abre-se ao juiz a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a sua versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro”. E, como prova é crença (fé), obviamente ele crê no que buscou e produziu. (COUTINHO, apud, LOPES JÚNIOR, 2020, p.581)
Por isso é de tal importância o sistema a ser utilizado na admissão das provas: no sistema inquisitorial a gestão da mesma está nas mãos do juiz, o mesmo que optará por sua admissão é o mesmo que fez sua aquisição, tornando o risco de uma decisão pautada na parcialidade e afastando ainda mais a possibilidade do contraditório em todo o processo inquisitorial.
Não existe a distinção entre quem busca e quem faz juízo de admissibilidade, logo não se pode negar que tal juiz não pode medir o quão licito é seu ato ao fazer a admissão da prova que buscou, e é esse o ponto crucial para se questionar o sistema inquisitorial (LOPES JÚNIOR, 2020).
Desta forma fica claro que o processo inquisitório contraria todos os direitos e garantias individuais da Constituição Federal de 1988, transgredindo os princípios processuais penais. É necessário que haja um juiz imparcial, que se mantenha distantes das provas e das partes, para que se possa chegar a uma decisão livre de vícios causados pela sua presença em todos os atos do processo (LIMA, 2019).
2.1.2 Modelo Acusatório
Destoando do sistema inquisitorial o modelo acusatório traz consigo elementos distintos que tira o juiz da figura do inquisidor e o leva para a posição de um juiz expectador: o julgador se mantem equidistante das partes o que permite um olhar imparcial em relação aos fatos e provas apontados no processo.
Aponta, ainda, Lopes Júnior (2012), as seguintes notas características do sistema acusatório, na atualidade:
Clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); procedimento é em regra oral (ou predominantemente); plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); contraditório e possibilidade de resistência (defesa); ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 122).
No processo acusatório o juiz constrói sua opinião baseada nos elementos que lhes são apresentados no decorrer do processo: as partes são as responsáveis por apresentar-lhe os fatos e as provas para tentar convence-lo de suas teses (LOPES JÚNIOR, 2020).
Aliás, a gestão da prova é o núcleo fundante dos sistemas processuais. Dessa forma, a mera separação das funções de acusar e julgar no processo penal não é o que realmente define e diferencia o sistema inquisitório do acusatório.
Dessa forma, cristalino que, num processo democrático, como a sentença depende do “estoque de informações” e da “maneira como foi processada”, outro caminho não há senão o convencimento do julgador basear-se em atos de prova, colhidos sob o crivo do devido processo legal. Aliás, desde Streck (2011), sabemos que debater as condições de possibilidade da decisão judicial é uma questão de democracia.
Portanto há de se falar também na importância da oralidade no sistema acusatório: por ter como umas de suas características a publicidade e a oralidade é necessário que se priorize o discurso apresentado no processo, já que será baseado no mesmo e nas provas que se fará o convencimento do juiz. Como nos traz Lopes Júnior (2020): o ritual judiciário está constituído, essencialmente, por discursos e, no sistema acusatório, forma é garantia. (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 46)
Nesse sistema, além do convencimento do juiz através do discurso, é tarefa das partes também a gestão de provas, competindo ao juiz garantir o cumprimento das “regras do jogo”, protegendo os direitos e garantias fundamentais:
Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal. A separação das funções processuais de acusar, defender e julgar entre sujeitos processuais distintos, o reconhecimento dos direitos fundamentais ao acusado, que passa a ser sujeito de direitos e a construção dialética da solução do caso pelas partes, em igualdade de condições, são, assim, as principais características desse modelo. (LIMA,2019, p.42)
Com acerto, Goldschmidt (1935) ensina que, no sistema acusatório, a produção da prova, ou seja, a apresentação de requerimentos e o recolhimento do material probatório compete às partes, cabendo ao juiz tão-somente decidir.
Coutinho (2001), no mesmo sentido, afirma que “a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador” do sistema processual, apontando que o princípio dispositivo é o núcleo estruturante do sistema acusatório, onde a gestão das provas está nas mãos das partes, sendo o juiz um mero espectador, enquanto no princípio inquisitivo a gestão das provas está nas mãos do julgador, cabendo-lhe a produção de ofício. Alerta, ainda, o referido autor que não existe um princípio misto e, portanto, não haveria um sistema “misto”, como sugere parte da doutrina pátria.
Realmente, por não haver um princípio unificador “misto” não se pode sustentar a existência de um sistema “misto”, já que a construção de um sistema exige uma viga-mestra. Ademais, os sistemas acusatório e inquisitório, de maneira “pura”, são dados históricos, pois hoje o que existe é uma mescla de elementos dos dois sistemas.
Logo, na atualidade, poderemos ter um sistema nitidamente inquisitorial com adereços do acusatório ou, ao contrário, um sistema predominantemente acusatório com acessórios inquisitoriais. Mas, certamente, na esteira de Coutinho (2001), essa simbiose, nos dias de hoje, dos dois sistemas ao longo da persecutio criminis não configuraria a existência de um sistema “misto”, como se existisse essa terceira espécie do gênero sistema processual.
2.2 Noções Gerais Sobre a Prova no Processo Penal
Diretamente ligada com a evolução da sociedade é o instituto probatório, perfazem relatos que a prova surgiu na Grécia Antiga, sendo a mais pretérita a identificada por Foucault na obra Ilíada, de Homero, quando este afirma em sua obra que esta conquista da democracia grega, este direito de testemunhar, de opor a verdade ao poder, se organizou em um longo processo nascido e instaurado de forma definitiva, em Atenas, ao longo do século V (a.C.) (HOMERO, 2003).
Prova vem da etimologia probo (do latim, probatio e probus), que retrata o sentido de verificação, exame, aprovação ou até mesmo de confirmação, contudo, há três extensões do significado de prova que são: prova como atividade probatória; prova como resultado e prova como meio, sendo cada um tratado no decorrer desse estudo (LIMA, 2019).
Todavia, no ordenamento jurídico brasileiro o direito a prova não é encontrado de forma expressa na Carta Magna vigente, mas o fato é que, compõe o devido processo legal assim como o contraditório tutelados pelo artigo 5º da norma constitucional citada, importante que mesmo sendo garantia fundamental não é direito absoluto, tendo em vista existir limites quando diante de outros preceitos fundamentais.
Os meios probatórios advêm do princípio da liberdade dos meios de provas institucionalizado no artigo 155 do Código de Processo Penal que dispõe ser todos os meios legais, bem como quaisquer outros tipificados em lei, desde que moralmente legítimos (BRASIL, 1941).
Contudo, mesmo a norma infraconstitucional acima citada informando que devem as provas pertencerem a meios legais, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, LVI, determina ser inadmissível nos processos a produção de provas ilícitas, devendo as partes assim como o juiz estarem atentos a cada instante sobre este preceito legal (BRASIL, 1988).
Relatar sobre o instituto da prova dentro do Código de Processo Penal com a finalidade de compreender melhor o reconhecimento pessoal, é de suma importância, porém só é possível com entendimento acerca de seus princípios e teorias que passam agora a serem desenvolvidos.
2.2.1 Principiologia da prova
Primordialmente, cabe esclarecimento sobre o conceito de princípio, que segundo dicionário online Dicio é:
O começo; o que ocorre ou existe primeiro que os demais: princípio dos tempos. Início de uma ação ou processo: no princípio do trabalho era mais feliz. O que fundamenta ou pode ser usado para embasar algo; razão: em que princípio se baseia seu texto? (PRINCÍPIO, 2018).
Sendo assim, princípio é origem, criação que serve de base para o desenvolvimento a qual se subordina. Aplicando-se assim, ao ordenamento jurídico brasileiro os princípios têm força normativa, além de servirem para preencher omissões legais.
Tratar de principiologia da prova é importante diferenciar acima de tudo meio de prova e meios de obtenção de prova, sendo o primeiro o meio pelo qual o magistrado irá conhecer dos fatos, inteirar-se sobre o ato, e logo distinguir ou classificar a sua ilicitude e a culpabilidade do autor, para enfim tomar a decisão mais justa. Já o meio de obtenção de prova, é o modo ao qual se consegue a prova, não é propriamente dito a prova, são por onde pode-se extrair coisas materiais, traços ou declarações com força probatória, ao passo que o destinatário final será a polícia judiciária (YARSHELL; MORAES, 2005).
Corroborando sobre o tema exposto, têm-se o posicionamento de Badaró (2018) citado por Lopes Júnior (2020):
Enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (p. ex., o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (p. ex.: uma busca e apreensão) são instrumento para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (p. ex.: um extrato bancário [documento] encontrado em uma busca e apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos (apud Lopes Júnior, 2020 p. 587).
Logo, enquanto os meios de provas servem diretamente para o convencimento do juiz, os meios de obtenção serão os instrumentos que indiretamente convencerão o magistrado. Outra importante distinção é entre os atos de investigação e atos de prova, pois um será realmente considerado prova processual, portanto pode fundamentar a sentença e o outro é produzido na fase pré-processual com valor probatório limitado, visto que, neste último, alguns requisitos como defesa, contraditório são garantias constitucionais não são obedecidas, portanto não haverá como dá muito valor a esses atos (LOPES JÚNIOR, 2019).
Os atos de provas são aqueles que servem como fundamentos para a sentença, estão compreendidos dentro do processo ou ao serviço do processo, tem como intuito o convencimento do juiz daquele fato ser realmente ilícito ou não, para que ele seja considerado prova necessita obedecer às garantias constitucionais como ampla defesa, contraditório, publicidade, bem como são praticados frente ao juiz que dará a sentença.
Por outro lado, os atos de investigação são realizados preliminarmente ao processo, pois não são consideradas verdades e sim hipótese de que aquele fato possa ter acontecido daquela maneira, não dão suporte à sentença, mas são importantes para que seja decidido se vai passar para a fase processual ou haverá o arquivamento do inquérito. Além de servir para decisões interlocutórias, imposição de medidas cautelares (LOPES JÚNIOR, 2019).
Oportuno é o entendimento sobre a garantia efetiva do direito a prova, ao passo que, encontra-se devidamente positivado em dois tratados de suma importância, tendo em vista foram recepcionados pela Emenda Constitucional de nº 45 no presente ordenamento pátrio, conforme o artigo 5º, na forma do seu § 3º, equivalendo-se às emendas constitucionais. São eles: a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), incorporado pelo Decreto nº 678/69, no seu artigo 8º, e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, incorporado pelo Decreto n. 592/92, no seu artigo 14.1, alínea “e” (BRASIL,1969).
O entendimento, no que tange ao direito fundamental à prova tem como finalidade não só defender as pessoas do abuso do poder que emana do Estado, mas, de buscar promover a igualdade material nas relações jurídicas. Garantindo de maneira eficaz, a proteção aos hipossuficientes, evidenciando assim a real função principiológica das garantias probatórias.
2.2.1.1 Princípio da Jurisdição
A Constituição Federal ora vigente, trouxe em seu artigo 5º, XXXVII, a exclusividade do juiz, devidamente instituído, exercer a jurisdição frente a determinado processo, excluindo assim, a possibilidade de criação de juízos ou tribunais de exceção (BRASIL, 1988).
Segundo Cristina Di Gesu (2014), o princípio da jurisdição baseia-se na competência exclusiva do Poder Judiciário de representar o Estado, possibilitando a definição de existência frente ao delito, no que tange à determinação de materialidade, autoria, imposição de penas por meio dos processos penais. Competência está prevista na Carta Magna.
Seguindo o citado posicionamento, dispõe o nobre doutrinador Lopes Júnior (2020):
A garantia da jurisdição significa muito mais do que apenas “ter um juiz”, exige ter um juiz imparcial, natural e comprometido com a máxima eficácia da própria Constituição (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 84).
Assim, é notável que o Estado por meio do Poder Judiciário é o único que detém poderio de julgamento, devendo ser feito exclusivamente por magistrados que garantem a imparcialidade, responsabilidade e uma formação de acusação certa e determinada, assim como outros procedimentos necessários para a eficácia de um julgamento justo e coeso. Vez que o Estado está lidando diretamente com a liberdade de ir e vir do acusado.
2.2.1.2 Princípio da Presunção de Inocência
O princípio acima citado, encontra-se previsto no artigo 5º, LVII da Constituição Federal 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” (BRASIL, 1988).
Corroborando tem-se o posicionamento de Ferrajoli (2012) apresentado por Lopes Júnior (2020):
Finalmente, consagrados na Declaração dos Direitos do Homem de 1789. A despeito disso, no fim do século XIX e início do século XX, a presunção de inocência voltou a ser atacada pelo verbo totalitário e pelo fascismo, a ponto de MANZINI chamá-la de “estranho e absurdo extraído do empirismo francês (apud Lopes Júnior. 2020, p. 135)
Sendo assim, a denominação de princípio da presunção de inocência, não é em vão, tendo em vista que o indivíduo só poderá ser considerado culpado após todo tramite da ação penal e sentença condenatória, antes disso deve ser considerado e tratado como inocente.
Ademais, Nucci (2016) ao versar sobre as garantias do ônus da prova referente à acusação, deixa cristalino que o acusado não poderá produzir provas contra ele, presumindo-se inocente a todo tempo, buscando provas em seu favor e assumindo ainda o direito de ficar calado, sem que seja presumida a sua culpabilidade, direito este, previsto também na Carta Magna no artigo 5º, LXIII.
Por fim, sintetizando o explicitado, Lopes Júnior (2019) divide a presunção em duas expressões: dever de tratamento e regra de julgamento. Sendo o primeiro, dispor sobre o modo como o acusado deve ser tratado pelo juiz e pelo acusador, que estes sempre pesem pela inocência daquele, além da imposição de limites a publicidade do caso, para que não ocorra a estigmatização do acusado perante a sociedade.
A segunda dispõe que deve ser presumida a absolvição, sendo papel da acusação derrubá-la por meio de provas e evidencias da materialidade e autoria do crime, e somente assim o magistrado poderá decretá-lo como culpado.
2.2.1.3 Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa
O princípio do contraditório e da ampla defesa estão tutelados no artigo 5º, LV da Carta Magna que dispõe:
Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (BRASIL, 1988).
Elevado a posição de garantia fundamental o contraditório garante a outra parte o conhecimento do processo e das informações nele contidas, estando intimamente ligadas as respostas, aos fatos alegados e a apresentação de defesa. Considerando assim, princípio fundamental ao processo, tendo em vista, trata-se de um processo bilateral a qual é indispensável a participação de ambos na elucidação da lide.
De acordo com Eugênio Pacelli (2014), o contraditório não seria apenas um instituto de conhecimento e defesa, mas também, como garantia de paridade de resposta dando o direito da parte de apresentar as contrarrazões com a mesma intensidade e extensão, na busca da isonomia entre as partes.
Robustecendo ao exposto, há o entendimento sumular do Supremo Tribunal Federal de número 707 definindo que:
Constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo (Supremo Tribunal Federal, 2003).
Demonstrando assim, ser necessário o direito do contraditório, pois a falta deste acarretará prejuízo a uma das partes assim como para reconstrução do fato e para o convencimento do juiz, contudo, processos que não obedecem ao direito de defesa são passíveis de nulidade.
No que tange o princípio da ampla defesa, é o direito conferido ao acusado de utilizar de meios lícitos seja com argumentos, teses ou provas para contra-atacar o que foi exposto pelo autor. Persiste na doutrina a divisão de defesa técnica e autodefesa, a primeira corresponde a intervenção feita pelo advogado ou profissional qualificado para tal ato. E a autodefesa são os atos em que o acusado pode praticar em defesa própria, direito de ser ouvido no decorrer do processo como no interrogatório ou interposição da habeas corpus. (MACHADO, 2014).
2.2.1.4 Princípio do Livre Convencimento Motivado e Persuasão Racional
Sobre este princípio da persuasão racional Cintra, Grinover e Dinamarco (2015) deliberam sobre a análise do juiz frente aos elementos e provas dispostos nos autos, para que, por meio deles possam formular opinião própria e julgamento sobre o caso, respeitando o que foi apresentado, e a regulamentação jurídica acerca das evidências, além da necessidade de motivação ao expor a decisão.
No que tange a motivação leciona Lopes Júnior (2020):
A motivação das decisões judiciais é uma garantia expressamente prevista no art. 93, IX, da Constituição e é fundamental para a avaliação do raciocínio desenvolvido na valoração da prova. Serve para o controle da eficácia do contraditório, e de que existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 156)
A necessidade de motivação comentada acima é a interligação da persuasão com o princípio da fundamentação ou do livre convencimento motivado, normatizado no artigo 93, IX da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que versa sobre a obrigação de serem as decisões tomadas pelo poder judiciário devidamente fundamentadas, sendo necessário a demonstração dos motivos que levaram ao julgamento final apresentado.
3.TEORIAS ACERCA DA PROVA
O processo penal é meio pelo qual se faz a reconstituição de um determinado fato. É por intermédio dele que o julgador poderá vislumbrar a reconstrução histórica, e contando com a colaboração das provas, restaurar todo o caminho de volta à um fato ocorrido anteriormente (LOPES JÚNIOR, 2019).
Sendo assim, pode-se classificar as provas como ferramentas a serem utilizadas na retrospectiva de um fato que ocorreu no passado, montando assim todo um contexto para sua discussão no presente.
Baseado nisso, pode-se dizer que as provas possuem três sentidos: o do ato de provar, no qual é usada para verificar a veracidade do que ocorreu; o meio, onde ela é usada como instrumento de reprodução do ocorrido; e o resultado e da ação de provar que são os elementos extraídos da análise dos instrumentos probatórios, oferecidos por meio dos quais se demonstra a “verdade” de um fato. (NUCCI, 2016)
É importante frisar, no que tange a existência de um grande paradoxo temporal, no ritual judiciário, visto que, o julgador avalia no presente o homem pelas ações cometidas em passado distante, com fulcro em provas que foram buscadas em um pretérito mais próximo a qual se projetarão em futuro, sob os efeitos da pena. (LOPES JÚNIOR, 2019)
Deste modo, o episódio reconstruído jamais será real, esse homem também já não será mais o mesmo, e no período que vai do julgamento até sua condenação, ele passará por mudanças intrínsecas, muitas vezes provocadas pelo próprio sistema penal. Reservando assim para o mesmo um futuro de reviver o passado diariamente.
Assim, “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” (BRASIL, 1941).
Conceituar prova na visão de Capez (2016) é:
“ O conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz e por terceiros, destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma informação, podemos dizer que as provas ocupam papel de destaque, pois são os “olhos do processo” (CAPEZ, 2016, p. 370).
Sendo assim, pode-se afirmar que até o conhecimento e apreciação das provas, o juiz é, por natureza um leigo, pois ele não tem conhecimento do fato e o fará através da prova. (LOPES JÚNIOR, 2019)
A priori, a classificação das provas entre indireta e direta é controversa, pois, com exceção dos delitos que acontecem no interior da sala de audiência, todas as provas são de cunho indireto, tendo em vista trata-se de suposições do fato.
Consoante a isto, a prova está intimamente ligada a atividade analítica para o convencimento do juiz, que chegará a uma convicção e dará legitimidade a condução da sentença.
Ademais, pode-se dizer que as provas possuem uma função persuasiva: direcionam o julgador para uma decisão de acordo com o caminho traçado pelas mesmas. (LOPES JÚNIOR, 2019).
Perceber-se que, tal função persuasiva tem como embasamento a fé dos destinatários em relação as falas dos locutores. Essa crença, aliada as interpretações subjetivas e emocionais farão com que o julgador chegue a um resultado.
Sendo assim, chega-se a uma das questões incessantes do processo penal: a luta pelo controle punitivo, ao qual será perceptível no momento entre a valoração da prova e a decisão do magistrado. Essa dualidade traz a necessidade do haver um controle epistêmico, baseado na admissão, produção, valoração e decisão a respeito da prova. (LOPES JÚNIOR, 2019).
Não é suficiente que haja um controle rígido no acolhimento das provas, havendo brechas para decisões pautadas na pessoalidade. É preciso que ocorra - além de estabelecer os requisitos específicos frente a sua produção e admissão - uma delimitação do peso que as provas recebidas terão, no que tange a reconstrução do processo e na decisão do julgador.
Corroborando a isto tem-se o entendimento do autor Lopes Júnior (2019):
A epistemologia jurídica – e nossas considerações são epidérmicas e introdutórias –, enquanto ramo da filosofia que se ocupa de uma teoria do conhecimento e dos problemas relacionados a ele, é fundamental para o direito probatóri. A prova penal, enquanto meio através do qual o juiz ignorante (porque ignora os fatos) conhece de algo que, em não conhecendo, precisa muito conhecer para julgar, dialoga constantemente com a epistemologia (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 563).
Contudo, a verdade é que, através das provas se reconstrói o fato ocorrido, sendo meio viável para o julgador conhecê-lo, mas não se pode desprezar os meios pelas quais aquelas provas foram produzidas.
É preciso salientar a importância do processo de conhecimento das provas, e que a ele sejam impostos limites: no caso por exemplo, de exposição de uma prova ilícita, não se pode utiliza-la sem ferir o devido processo, e é aí que se apresenta o controle epistêmico.
Baseado nessas nuances se levanta o questionamento acerca da verdade no processo penal. É sabido que muitos autores acreditam que a função do processo penal é a busca da verdade, porém ignorasse a impossibilidade de alcançar tal objeto, visto que a verdade é substancial e relativa.
Assim, não há como reconstituir um fato no processo, visto que o mesmo aconteceu no passado, e mesmo que se tente, no presente não é possível construir uma realidade fiel do mesmo (MACHADO, 2014).
Ademais, não há que se falar em verdade real, e sim em uma “verdade” reconstruída no processo, através das provas, fatos e argumentações, fazendo ligação entre o passado e o presente no processo.
Dessa forma, baseando-se em tudo que se foi estabelecido a respeito de prova, é necessário que se estabeleça os meios pelos quais se pode obter a prova e os requisitos para que chegue a uma sentença condenatória ou absolutória caso não se consiga chegar ao standard probatório.
Vale frisar que o standard possui papel de destaque no desenvolvimento do processo de produção probatória, é o parâmetro para que determinada prova possa ser considerada relevante para provar determinado fato.
Segundo Lopes Júnior (2019):
Podemos definir como os critérios para aferir a suficiência probatória, o “quanto” de prova é necessário para proferir uma decisão, o grau de confirmação da hipótese acusatória. É o preenchimento desse critério de suficiência que legitima a decisão (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 574).
Logo, citar-se, baseado na teoria adotada ao longo do tempo os principais padrões adotados na composição desse standard: prova clara e convincente; prova mais provável que sua negação; preponderância da prova e prova além da dúvida razoável. (LOPES JÚNIOR, 2019).
O padrão mais importante, devido ao seu nível de exigência é o da prova além da dúvida razoável, portanto o mais utilizado na sentença penal, já que no processo penal deve se adotar a prova com maior força probatória afim de não levantar dúvida razoável. (LOPES JÚNIOR, 2019).
Assim, perceber-se que além de desempenhar função persuasiva, as provas têm a função de induzir os cidadãos que o processo penal procura chegar a verdade dos fatos através da reconstrução dos mesmos, com a finalidade que se criar uma sensação de segurança, embora não se possa afirmar que isso aconteça na realidade, já que não se pode afirmar a existência de uma verdade real.
Vale ressaltar, que a epistemologia correlaciona-se diretamente com o standard da prova, mas, não com a escolha da qual será utilizado no processo, essa é uma escolha política feita dentro do processo baseado no benefício da dúvida que se queira dar a cada parte para que alcance uma paridade de armas.
Portanto, existem três teorias que discorrem sobre as funções da prova: se de fato há uma relação entre a mesma e a verdade judicial, e se essa verdade efetivamente traz consigo o fim do processo, e posterior a isso, o que acontece se essa relação sofre uma ruptura.
3.1 Prova como uma espécie de Nonsense
De acordo com essa concepção as provas são vistas como algo ilusório, não sendo possível assim contribuir para o esclarecimento da verdade dos fatos.
Esse pensamento – oriundo tanto daqueles que acreditam que a verdade dos fatos não pode ser conhecida no processo de modo racional; quanto daqueles que julgam que o processo não possui respaldo para alcançar a verdade- demonstra uma visão irracionalista da decisão judicial, que leva a desconsideração do valor da prova (DI GESU, 2014).
Logo, as provas não seriam meios para demonstrar os fatos como um todo, apenas seriam uma forma de esclarecer os procedimentos ocorridos, valendo-se de protocolos para corroborar com a opinião pública, tal qual objetiva induzir que o sistema processual além de elaborar, também respeita os valores positivos (DI GESU, 2014).
Assim, a prova e seus procedimentos de obtenção não seriam nada mais que uma falsa impressão da existência do “fumus boni juris” para se legitimar de forma racional, uma espécie de teatro, que tem como real objetivo deturpar a realidade irracional – e algumas vezes desprovidas de justiça – das sentenças.
Portanto, a prova não teria o papel de recriar os fatos, mas sim de legalizar de forma racional o procedimento.
3.2 Prova no terreno da Semiótica
De acordo com essa corrente o processo seria o lugar onde as histórias são contadas, baseadas nos fatos envolvidos. Todavia, para essa concepção a relação entre a narrativa e a realidade baseada no senso comum é mínima, visto que, o importante é o discurso (DI GESU, 2014).
É através do estudo da prova no campo da semiótica que se pode observar que os fatos são apenas partes que compõem as narrações, não podendo ser determinados como verídicos. (DI GESU, 2014).
Sendo assim, as provas possuem função de justificar a narrativa do advogado ao juiz, ao fazer a ligação da mesma no campo linguístico e semiótico. Contudo não se pode excluir a importância da prova para a escolha da história que mais se aproxime da realidade (DI GESU, 2014).
Nessa corrente as provas adquirem caráter persuasivo, para que se unindo ao diálogo de umas das partes, consigam convencer de aquela “verdade” que eles narram é a que de fato deve ser levada em conta na decisão final.
Sendo assim, deixando de lado as verdades das teorias, a sentença nada mais é do que a escolha de um dos lados da narrativa, sendo esta conseguida através do caráter persuasivo da prova, para que se dê idoneidade a tese de um dos lados e encarada como verdadeira a quem é contada (DI GESU, 2014).
3.3 Prova como determinação da verdade
A terceira corrente versa sobre a prova ser determinante para se chegar as verdades dos fatos no âmbito do processo. (DI GESU, 2014)
Diante disso, é preciso primeiramente que se fale sobre a verdade no Processo Penal.
A verdade que se busca no Processo Penal não é de forma alguma absoluta, e sem aquela que se pode ser contada e relacionada entre as provas e a narrativa. (MACHADO,2014)
Apesar de sempre se buscar a “verdade real” é necessário que se diga que não é aquela verdade real dos sistemas inquisitórios, visto que de acordo com Lopes Júnior (2019):
O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o “interesse público” (clausula geral que serviu de argumentos para as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma verdade a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura do juiz-ator (inquisidor) (LOPES JÚNIOR, 2019, p.372).
Essa “verdade real” trazia consigo inúmeros prejuízos, visto que, para se chegar a ela eram admitidas toda e qualquer prática inquisitiva. (LOPES JÚNIOR, 2019).
Assim sendo, o processo penal busca uma verdade processual, alcançada através da produção de provas diretamente ligadas com os fatos narrados pelas partes que o compõem. (MACHADO, 2014).
Logo, a prova usada como determinação da verdade traria uma relação entre a mesma e a veracidade dos fatos, onde a prova teria a função de confirmação das teorias. A prova determinaria a existência ou não do fato, de forma racional, justificando as teorias de construção dos fatos.
Assim, a prova poderia adquirir três definições diferentes: a primeira indicaria se o fato realmente existiu; a segunda traria um caráter formal a prova, na qual a mesma apenas daria formalidade aos fatos do narrador no processo. E a terceira diria que à prova tem a função de convencimentos do juiz, através do seu caráter persuasivo, relacionando-a com as verdades dos fatos.
Ora pois, se tratando do processo penal é possível dizer que a teoria mais plausível é o uso da prova como ferramenta para se obter o convencimento do magistrado no processo.
Portanto, depois de se observar toda exposição acerca da prova, e afastando a possibilidade de uma “verdade real”, pois se torna impossível a reconstituição dos fatos de forma absoluta, como o processo pode ser conduzido?
É preciso que o mesmo se utilize da desconstrução da verdade, juntamente com os estudos das teorias citadas para se determinar que “a prova se encontra num entre lugar” (DI GESU, 2014).
3.4 A importância da Cadeia de Custódia na Prova Penal
Devido à grande importância da temática probatória para o processo penal, é preciso salientar o quanto a cadeia de custodia se destaca no âmbito da prova penal.
Contextualizando legalmente cadeia de custódia seria, o procedimento em que acontece a documentação histórico ou cronológica em que se registra a sequência de atos desde a custódia até a disposição de evidências físicas ou eletrônicas.
De acordo com o Pacote Anticrime que conceitua cadeia de custodia como:
Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.” LEI Nº 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2019.
Assim, é mister que, para que o processo aconteça de forma mais idônea possível, haja uma preservação das fontes de prova, principalmente daquelas em que a produção ocorre fora do processo, tal preservação poderá garantir a maior veracidade dos fatos.
De acordo com Geraldo Prado (2019), toda modificação nas fontes da prova traz um risco grandioso ao processo. Essa alteração afeta os meios e acabam contaminando a credibilidade do mesmo. Por mais que se tente persuadir acerca do “livre convencimento”, ao se utilizar uma prova que possa ter sido alvo de alteração, se abre margem para questionamento posterior.
Toda essa cautela em relação a preservação da cadeia de custódia se deve a necessidade de preservar ao máximo sua natureza, com o objetivo de impedir que haja a incriminação ou a absolvição injusta de alguém, e evitar que ocorra uma decisão diferente daquela que seria tomada (LOPES JÚNIOR, 2019).
Para isso não se pode contar apenas com a presunção de boa-fé ou de má fé daqueles que manusearam à prova, mas sim, que ocorra a garantia que os mesmos agirão com a obrigatoriedade de manutenção da veracidade da prova, independente do elemento subjetivo do agente.
Todo esse cuidado vai refletir diretamente no processo, em que o juiz encontra-se pautando na idoneidade das provas, decidirá não apenas de acordo com sua vontade, mas sim, considerando aquilo que as provas conseguem demonstrar.
Inclusive pode-se citar alteração feita pelo pacote anticrime diante de provas que são inadmissíveis, em seu artigo 157, § 5º da citada norma, o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão.
Nesse caso, o juiz que tiver acesso a prova ilícita não poderá proferir sentença, sendo substituído por novo julgador. Porém o Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia de tal dispositivo cautelarmente, tal suspensão ocorreu porque o relator considera a norma vaga já que não esclarece o que de fato seria o “conhecer das provas”.
É importante dá certa atenção às provas com caráter de evidência, visto que, são elas, por si só, que podem levar a presunção da tão desejada verdade, tendo em vista, foram elas que acabaram de iludir os sentidos e prejudicar o contraditório. Daí o motivo da preocupação com rompimento na cadeia de custódia em relação a sua obtenção, principalmente por serem provas adquiridas fora do processo.
O próprio pacote anticrime traz em seus artigos 158-E e 158-F, a necessidade que cada Instituto de Criminalística tenha uma Central de Custódia, para que as provas, principalmente as de caráter de evidencia sejam processadas e preservadas de maneira mais idônea possível, como dispõe a seguir:
Art. 158-E. Todos os Institutos de Criminalística deverão ter uma central de custódia destinada à guarda e controle dos vestígios, e sua gestão deve ser vinculada diretamente ao órgão central de perícia oficial de natureza criminal.
‘Art. 158-F. Após a realização da perícia, o material deverá ser devolvido à central de custódia, devendo nela permanecer.
Parágrafo único. Caso a central de custódia não possua espaço ou condições de armazenar determinado material, deverá a autoridade policial ou judiciária determinar as condições de depósito do referido material em local diverso, mediante requerimento do diretor do órgão central de perícia oficial de natureza criminal.” LEI Nº 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2019.
Entende-se que as provas devam se pautar em dois princípios, de acordo com Geraldo Prado (2019): o da “mesmidade” que seria a garantia que a prova submetida seria exatamente a mesma que foi colhida e o Princípio da Desconfiança, que seria a exigência que a prova fosse levada a um procedimento que confirmasse sua veracidade, visto que sempre se deve desconfiar do poder.
Tais princípios demonstram sua importância corriqueiramente, visto que, em várias situações é possível perceber manipulações das provas de acordo com os interesses das partes que as apresentam, de acordo com aquilo que elas queiram que o juiz decida.
Por isso a exigência de um procedimento rígido na cadeia de custódia, com o mínimo de pessoas manipulando as provas para que não ocorra contaminação. Quanto menos exposição as provas passarem, maior a chance que seja preservada sua credibilidade.
Toda conservação no procedimento na cadeia de custódia, tem por objetivo garantir que os indivíduos sejam julgados de acordo com a real prova colhida, e não com a prova que seja mais conveniente a acusação. À defesa cabe conhecer toda a origem do procedimento e toda a extensão da prova, para que possa apresentar tese cabível com a mesma.
Portanto, conclui-se que a importância da cadeia de custódia na prova penal diz respeito principalmente a garantia que sua legitimidade seja preservada, e assim possa chegar a uma decisão pautada não apenas na vontade do julgador, mas sim, no mais próximo à verdade processual que as provas podem oferecer.
4. RECONHECIMENTO PESSOAL
4.1 Conceito e Requisitos do Reconhecimento Pessoal
Segundo Capez (2016) ao tratar do reconhecimento o conceitua da seguinte forma:
É o meio processual de prova, eminentemente formal, pelo qual alguém é chamado para verificar e confirmar a identidade de uma pessoa ou coisa que lhe é apresentada com outra que viu no passado (LIMA, 2016, p.451).
Em consonância com a referida definição, o reconhecimento é o meio de prova do processo penal que, através das percepções pretéritas, passa identificar, certificar ou reafirmar atos anteriormente vivenciados, seja para constatar a autoria do delito ou objetos que foram utilizados no momento do crime.
Sendo assim, a natureza jurídica do reconhecimento pessoal e das coisas, trata-se de um meio de prova, conforme leciona Nucci (2016), tendo em vista, ser através de tal procedimento a provável ocorrência de identificação de pessoas ou objetos do delito. Que possam vir a elucidar o crime.
Desta feita, o doutrinador Greco Filho (2015), divide o reconhecimento em dois aspectos, formal e informal. No que tange ao primeiro, é o reconhecimento obtido por meio do procedimento previsto no art. 226 e seguintes úteis do Código de Processo Penal de 1941.
Por outro lado, o informal tem caráter confirmatório, pois ocorre no momento da audiência, pois é nesta ocasião, o magistrado pergunta à vítima ou as testemunhas se reconhecem o acusado como autor do crime, ou o objeto utilizado para cometer o delito. A informalidade consiste em ignorar o método que está disposto no artigo supracitado.
Com base no exposto, tem-se o artigo 226 e 228 do Código de Processo Penal, que descreve sobre a forma a qual deve ser realizado o reconhecimento como meio de prova, dispondo:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
Art. 228. Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas (BRASIL, 1941).
É notável que o mecanismo a ser adotado é simples e acessível, tornando-se fácil de ser empregado, sendo assim, o inciso I versa sobre a necessidade de descrever as características para possibilitar a busca por pessoas, que entrem no padrão especificado pela vítima ou testemunha.
Além disto, colocará pessoas de aparência semelhantes em um local determinado, com o intuito de que a vítima as observe e possa apontar o possível autor do delito, sendo assim, o segundo requisito a ser obedecido, previsto no inciso II.
Logo, tem-se o que está disposto no inciso III, determinando que havendo razões em que a vítima possa sentir-se intimidada ou influenciada a mentir ao fazer o reconhecimento pessoal, deverá as autoridades preservá-la, utilizando de métodos de proteção a vítima, para possibilitar a realização deste meio de prova.
E o art. 228 discorre sobre o modo como deve proceder quando houver mais de uma pessoa para realizar o reconhecimento pessoal, sendo necessário ser feito uma por vez, separadamente, para que não ter comunicação e influências na identificação.
No que tange ao valor probatório do reconhecimento pessoal, é plausível o entendimento de Bonfim (2015) ao afirmar:
O reconhecimento, como meio de prova, tem valor probatório variável. É certo que, se feito exclusivamente em sede de inquérito policial, não será admissível como único elemento de prova. Entretanto, como já se disse, a valoração da prova é livre, desde que consigne o magistrado na motivação das decisões as razões que a justifiquem (BONFIM, 2015, p. 481).
Sendo assim, é cristalino que os meios de prova são elementos fundamentais para a convicção do julgador, portanto, o magistrado pode vir a deliberar sobre a valoração, porém, elementos constituídos na fase pré- processual não podem ser considerados absoluto e unicamente capaz de motivar uma condenação, devendo ser necessário a consideração de outros fatores para a fundamentação da sentença.
4.1.1 Informalidades no Procedimento do Reconhecimento Pessoal
Diante do já apresentado, há previsão dos requisitos a serem utilizados para a execução do reconhecimento pessoal. No entanto, entendimentos jurisprudenciais pátrios vêm relativizando as formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal. Como decidiu e entendeu o Superior Tribunal de Justiça, no julgado abaixo:
[...] NULIDADE NO AUTO DE RECONHECIMENTO PESSOAL. INOBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ARTIGO 226 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DISPOSITIVO QUE CONTÉM MERA RECOMENDAÇÃO LEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. 1. Esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento no sentido de que as disposições insculpidas no art. 226 do CPP configuram uma recomendação legal, e não uma exigência, cuja inobservância não enseja a nulidade do ato. Precedentes. 2. Na hipótese em tela, o auto de reconhecimento da paciente não contém qualquer eiva capaz de impedir a sua utilização como prova nos autos [...] (STJ, HC 252156/SP, rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 16/12/2014). (STJ, 2015, online)
Deste modo, o Superior Tribunal de Justiça incita a prática de relativização, dispondo que os preceitos estabelecidos, são definidos como meramente recomendáveis, e sua inobservância não acarreta nulidade ao processo. Gerando assim, uma insegurança jurídica, visto que, desobedece a forma do reconhecimento pessoal tutelado na norma infraconstitucional citada, e dificultando ainda mais obtenção da autoria real do crime.
4.2 Prova Penal e Falsas Memórias
Sobre a formação de falsa memória, tem-se por conhecimento o entendimento de Di Gesu (2014) dispondo:
Há tanto a possibilidade de as pessoas expostas à desinformação alterarem a memória de maneira previsível ou espetacular, de forma dirigida, quanto espontaneamente, ou seja, sem que haja sugestionabilidade externa (DI GESU, 2014, p. 107).
Desta forma, a falsa memória pode ser a junção das percepções individuais, e as informações advindas de outras pessoas, que por fazerem sentindo ou ter proximidade a realidade do ocorrido, podem alterar a memória, fazendo assimilar as questões internas e externas, originando uma falsa verdade.
Ademais, Di Gesu (2014) ressalta a interligação da memória com a emoção, em que esse, pode fortalecer ou enfraquecer a compreensão do fato, sendo assim, mais um fator que conjuntamente a consciência na hora forma a percepção do ocorrido.
Contudo, a prova penal possui como objetivo:
A prova judiciária tem um objetivo claramente definido: a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica (OLIVEIRA, 2014, p-327).
Portanto, a falsa memória pode acarretar sérios prejuízos no processo penal, tendo em vista que, necessita-se de maior aproximação da realidade do fato para obtenção de uma sentença justa.
4.2.1 A Falsificação da Lembrança no Ato do Reconhecimento
Com base na memória, Lopes Júnior (2019) atenta para a questão designação do valor probatório do reconhecimento pessoal, sugerindo que deve se considerar mais alguns fatores, sendo eles:
A gravidade do fato (a questão da memória está intimamente relacionada com a emoção experimentada); o intervalo de tempo entre o contato e a realização do reconhecimento [...] as condições psíquicas da vítima (memória, estresse, nervosismo etc.); a natureza do delito (com ou sem violência física; grau de violência psicológica etc.) (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 492).
No tocante a memória no reconhecimento pessoal, Di Gesu (2014) diz que é mais presente na hora da descrição das características, pois através dessa definição que haverá a seleção dos mais parecidos com o autor, de acordo com a lembrança da vítima ou testemunha. Deste modo, há necessidade de percepção de memória mais próxima a realidade do ocorrido.
Outrossim, Eugênio Bonfim (2014) acrescenta à discussão, a fenômeno da transferência inconsciente, em que o reconhecedor aponta como autor, indivíduo que estava próximo ou no local do delito, porém, não teve nenhuma participação nele.
4.3 Caso Maníaco da Moto e o Erro no Reconhecimento Pessoal
Tomando por base publicações feitas e entrevistas cedidas ao site do g1.com/ceara. Tendo em vista que, o processo corre em sigilo judicial, o caso conhecido como do Maníaco da Moto aconteceu na Cidade de Fortaleza no Estado do Ceará em meados de 2014. Ocorre, que um homem utilizando de uma moto vermelha, abordava mulher na rua de bairros periféricos da referida cidade, fazendo uso de uma arma branca para intimidar as vítimas, as guiando a lugares ermos ou ruas poucos movimentadas para estuprá-las.
Porém, o Delegado do 5º Distrito Policial tomou conhecimento dos casos através de denúncia das vítimas. Após ouvi-las, foi realizado o reconhecimento pessoal em busca da autoria do delito. Inicialmente duas das vítimas reconheceram o senhor Antônio Claudio Barbosa como autor do delito, o que incentivou as outras vítimas a fazerem o reconhecimento e todas afirmaram veementemente que o citado acusado era o autor do crime. Depois de todas diligências fora encaminhado a denúncia para o Ministério Público. Após julgado, Antônio foi condenado.
Posteriormente, em novo julgamento no Tribunal de Justiça do Ceará Antônio Cláudio Barbosa foi inocentado após 5 (cinco) anos preso. As evidências apresentadas pela defesa, foi um vídeo em que estava o real estuprador, demonstrando assim, uma enorme diferença no que tange ao porte físico, pois o autor do delito tem em média 1,80 cm (um metro e oitenta centímetros) e Antônio Claudio tem 1,58 cm (um metro e cinquenta e oito centímetros). Restou demonstrado também, que a referida moto vermelha não era de propriedade do suposto autor do delito.
Por fim, A advogada Flávia Rahal afirma também que "a única coisa que sustentou a condenação foi o reconhecimento feito pela vítima”. Deste modo houve um erro no reconhecimento pessoal causado por falsas memórias e percepções pós traumáticas.
5.CONCLUSÃO
O respectivo estudo procurou demonstrar a necessidade de controle sobre os procedimentos de identificação de pessoas realizados no âmbito de uma persecução criminal, ao ser considerado o caso do Maníaco da Moto do Ceará, pois evidenciou o perigo que permeia a produção desta espécie de prova, já que ela depende de algo muito frágil e impreciso, que é a memória humana.
Porém, o respectivo caso em questão, mostrou que o processo penal vive um conflito com relação a sua razoável duração: de um lado, o processo não pode demorar demais, para não configurar negação à jurisdição e prejudicar a memória das vítimas e testemunhas acerca do fato ocorrido; por outro, diante da maturação do ato de julgar, o imediatismo da instrução pode desrespeitar garantias fundamentais como a ampla defesa e levá-lo a uma condenação precipitada e injusta.
Apesar de serem determinadas algumas medidas simples, como colocar o suspeito com outras pessoas semelhantes a ele na roda de reconhecimento, ou advertir a testemunha de que o suspeito pode nem estar presente, são imprescindíveis para se obter uma identificação minimamente confiável. Além disso, utilizar o reconhecimento sequencial e não simultâneo pode contribuir para a racionalização do procedimento, de modo a evitar reconhecimentos malfeitos.
Ao ser analisado a situação do Brasil quando comparado a nível internacional, o que se percebe é que há um atraso considerável no âmbito de identificação de pessoas, pois sequer se confere ao acusado o direito à presença de seu advogado no momento do procedimento. Além disso, como se denota da análise doutrinária, as regras que disciplinam o procedimento sequer são observadas, pois são consideradas meras recomendações (FARRAJOLI, 2002).
Todavia, a reflexão de alguns julgados dos tribunais superiores nacionais permitiu que, se concluísse que, o controle jurisdicional de provas testemunhais provenientes de identificação de pessoas ainda é muito incipiente como aconteceu no caso do Maníaco da Moto do Ceará, que foi acusado por diferentes vítimas e somente quase oito anos posteriores à sua prisão, conseguiu provar a sua inocência.
Vale ressaltar que, esse caso não é exclusivo no Brasil, pois constantemente tem sido noticiado pela mídia a detenção de pessoas acusada inocentemente. Realidade essa que, deve ser pesada pela aplicabilidade dos procedimentos realizados de maneira totalmente informal e discricionária, sem respeitar minimamente as regras estabelecidas no Código de Processo Penal.
Lopes Júnior (2006), analisando o binômio tempo/velocidade dentro do processo penal, explica que existe uma insuperável incompatibilidade entre verdade e o paradoxo temporal ínsito ao ritual judiciário (LOPES JÚNIOR, 2006, p. 280-281). O crime sempre é passado, logo, história, fantasia, imaginação e depende, acima de tudo, de memória. Assim, os acontecimentos não são apreendidos, uma vez que as imagens não se fixam e escapam pela fluidez da velocidade.
Em síntese, em face a realidade encontrada no Brasil, é possível concluir que sem o devido controle, os procedimentos de identificação continuam sendo realizados de forma arbitrária e, consequentemente, os direitos do réu diante da persecução penal permanecem sendo violados.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivany. Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
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BRASIL, Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.ht. Acesso em: 16 de maio de 2020.
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[1] Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected]
[2] Orientador. Professor do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) E-mail: [email protected]
[3] Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como complementação dos créditos necessários para obtenção do título de Graduação (Bacharelado) em Direito no Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Teresina-PI.
Bacharelanda do Curso de Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Anna Rayssa de Oliveira. Reconhecimento pessoal como fonte maior de prova: caso maníaco da moto no Ceará Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 maio 2020, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54597/reconhecimento-pessoal-como-fonte-maior-de-prova-caso-manaco-da-moto-no-cear. Acesso em: 23 dez 2024.
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