RESUMO: Esse trabalho visa investigar o conceito de Teoria do Desvio Produtivo e sua aplicação atual. Inicialmente, seu conceito será delimitado e, posteriormente, será analisada a opinião dos autores e da jurisprudência sobre o modelo. Ademais, objetiva distinguir a Teoria do Desvio Produtivo e a Teoria do Mero Aborrecimento e suas aplicações fáticas. Pretende-se conceituar o tempo juridicamente, bem como o dano provocado pelo seu desperdício. Verificar-se-á a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo de acordo com a jurisprudência, bem como os requisitos para sua configuração.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria do Desvio Produtivo; Teoria do Mero Aborrecimento; tempo útil; dano extrapatrimonial existencial.
ABSTRACT: This article proposes to find the meaning of “Productive Deviaton Theory” and describes its current application. First, its meaning will be explained and, after, judges and author’s opinions about it will be analyzed. Also, it aims to distinguish this Theory from Simple Annoyance Theory e theirs factual applications. It is intended to conceptualize time legally, as well as the damage caused by its waste. The application of the Productive Deviation Theory will be verified according to the jurisprudence. This article discusses, as well, the necessary requirements to verify the existence of a productive deviaton.
1ª SEÇÃO
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal determina que o Estado defenderá os direitos do consumidor (artigo 5, XXXII), e que a ordem econômica observará os princípios relativos à defesa do consumidor (art. 170).
A Lei n. 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, preconiza que é direito básico do consumidor a reparação dos danos morais e patrimoniais, individuais, coletivos e difusos (art. 6º).
O consumidor, não raras vezes, como resposta à má prestação de um serviço ou ao defeito ou ao vício de qualidade de um produto, precisa diligenciar para estabelecer contato com o fornecedor, produtor ou comerciante, a fim de conseguir uma solução ao caso. Frequentemente, a resolução do problema é dificultada pelo fornecedor, tanto na demora para atendimento quanto para conserto da situação. Dessa forma, o consumidor perde tempo precioso, não recuperável, o qual poderia ter sido gasto para seu trabalho ou com sua família.
Diante desse cenário, o advogado capixaba Marcos Dessaune elaborou a teoria do desvio produtivo, segundo o qual:
“o desvio produtivo caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências — de uma atividade necessária ou por ele preferida — para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável.”[1]
Configurado o desvio produtivo, o autor defende que o consumidor deve ser indenizado moralmente.
Tradicionalmente, doutrina e jurisprudência têm entendido que a demora e a dificuldade na resolução de problemas relacionados aos contratos de consumo configuram apenas um mero dissabor, comum na sociedade moderna. Trata-se de desconforto incapaz de gerar abalo nos direitos de personalidade e, portanto, não passíveis de indenização por danos morais.
O presente estudo pretende analisar se a teoria do desvio produtivo pode ser, atualmente, aplicada no Direito do Consumidor e em que medida, considerando a doutrina, a legislação e a evolução da jurisprudência. Objetiva-se analisar se o tempo gasto pelo consumidor por faltas derivadas da atuação do fornecedor são insignificantes a ponto de não ferir qualquer direito do primeiro, ou se são tão relevantes que devem ser indenizadas e ensejar a punição do comerciante.
Muitos fornecedores, inclusive, continuam praticando as faltas da relação de consumo, pois, uma vez que inexiste punição para o tempo gasto pelos consumidores nos contatos de reclamação e de tentativa de solução, a permanência no erro compensa financeiramente. Acrescente-se a isso o fato de que nem todos os consumidores possuem disposição para enfrentar uma linha telefônica permanentemente ocupada, esperar a transferência a diversos ramais, tentar dialogar com funcionários que tentam barrar seus direitos ou, até mesmo, retornar uma ligação telefônica após o descumprimento de acordo inicialmente firmado. Somando-se, portanto, o fato de que poucos consumidores se posicionam ativamente contra o mau serviço e a ausência de punição, a permanência na violação de direitos se mostra viável financeiramente.
Dessa forma, o artigo científico visa analisar os aspectos positivos da teoria, bem como a existência de alguma característica negativa e, por fim, concluir se sua aplicação é pertinente ao direito do consumidor e delimitar seus parâmetros de incidência.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
O precursor da Teoria do Desvio Produtivo, o autor Marcos Dessaune, conforme Introdução do presente artigo, elaborou o conceito de dano indenizável pelo prejuízo do tempo do consumidor.
O magistrado Luís Flávio Moutinho, citado pelo professor e especialista em Direito do Consumidor Vitor Guglinski, assim explana sobre a teoria em questão:
“O tempo é hoje um bem jurídico e só o seu titular pode dele dispor. Quem injustificadamente se apropria deste bem causa lesão que, dependendo das circunstâncias pode causar dano que vai além do simples aborrecimento do cotidiano, ou seja, dano moral”.[2]
O professor argentino da Universidade de Buenos Aires Sergio Sebástian Barocelli posiciona-se sobre o assunto em seu artigo, com nossa tradução livre, Quantificação de Danos ao Consumidor por Tempo Perdido:
“A perda de tempo implica também um desgasto moral e transtorno espiritual para o consumidor, o qual deve negligenciar seus (compromissos?) para se envolver em uma luta na qual quase sempre há uma clara desigualdade de condições em relação ao fornecedor, devido à fraqueza estrutural e vulnerabilidade dos consumidores nas relações de consumo. [...] No campo do direito do consumidor, de acordo com o disposto no artigo 42 do a Constituição Nacional e 8 bis do LDC, cabe uma indenização para compensar o não cumprimento do direito a tratamento digno e equitativo pelos fornecedores de bens e serviços”.[3]
Nesse mesmo sentido, o Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro André Gustavo Correa de Andrade, segundo o qual:
“Intoleráveis, também, são situações em que os consumidores se vêem compelidos a sair de sua rotina e perder seu ‘tempo livre’ para solucionar problemas causados por atos ilícitos ou condutas abusivas de fornecedores, muitos dos quais não disponibilizam meios adequados para receber reclamações ou prestar informações (...).
A menor fração de tempo perdido de nossas vidas constitui um bem irrecuperável. Por isso, afigura -se razoável que a perda desse bem, ainda que não implique prejuízo econômico ou material, dê ensejo a uma indenização. A ampliação do conceito de dano moral, para englobar situações nas quais um contratante se vê obrigado a perder o seu tempo livre em razão da conduta abusiva do outro, não deve ser vista como indício de uma sociedade intolerante, mas como manifestação de uma sociedade que não está disposta a suportar abusos.”[4]
O Superior Tribunal de Justiça também já aplicou a teoria do desperdício do tempo útil em julgado recente:
“Na hipótese concreta, a instituição financeira recorrida optou por não adequar seu serviço aos padrões de qualidade previstos em lei municipal e federal, impondo à sociedade o desperdício de tempo útil e acarretando violação injusta e intolerável ao interesse social de máximo aproveitamento dos recursos produtivos, o que é suficiente para a configuração do dano moral coletivo”[5] (Grifo nosso).
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já igualmente opinou sobre o tema, posicionando-se pela imposição ao fornecedor do dever de indenização pelo abuso do tempo do consumidor:
“Ora, assim como se defende que o mero inadimplemento contratual não constitui, por si, dano moral, é necessário refletir sobre a ideia de que as empresas que respeitam o tempo e a dignidade dos consumidores não se deparam com a obrigação de indenizá-los.
O fornecedor que impõe ao consumidor o desperdício de seu tempo para "implorar" solução para problemas decorrentes de falha na prestação do serviço não evita a judicialização da questão”.[6]
Observa-se, portanto, que o conceito de perda do tempo do consumidor, antes tratada, na maioria dos casos, como um incômodo corriqueiro da vida moderna, conforme “Teoria do Mero Aborrecimento”, foi paulatinamente modificado, principalmente pela semente lançada pelo autor Marcos Dessaune.
A teoria do mero aborrecimento defendia que:
“ (...) só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo”[7] (Grifo nosso).
A referida lição foi utilizada, por exemplo, como embasamento em julgado do Superior Tribunal de Justiça para indeferir indenização em caso de envio abusivo e reiterado de spam de conteúdo erótico, mesmo após o consumidor ter solicitado sua exclusão como destinatário da lista de envio:
“Acredito que seja, realmente, um incômodo para todos que recebam o indesejado SPAM. Contudo, não vejo como esse veículo de propaganda se constitua ilícito, por falta de previsão legal, além de não ser visto como dano se não contém ataques a honra ou a dignidade de quem o recebe, formalmente, portanto sem nexo causal entre a pretensão judicial de condenação de dano moral e o fato que a justificaria.
Com efeito, Senhor Presidente, após o voto do eminente Relator, preocupa-me realmente a abertura de se abrir um leque muito grande para ações de dano moral por envio de SPAM, que afetaria, sem dúvida, a Política Judiciária de multiplicidade de recursos, de milhares e milhares de ações de igual natureza. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais simples dos aborrecimentos.”[8]
A teoria do desvio produtivo, ao contrário, entende que:
“o evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa”.[9]
2ª SEÇÃO
BUSCA, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A proteção ao consumidor é garantida de forma geral na Constituição Federal e explicitada na Lei n. 8.038/90, conforme a seguir, respectivamente:
“Art 5º (...)
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
V - defesa do consumidor (...)”. (Grifo nosso).
“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(...)
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
(...)
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”. (Grifo nosso).
O Estado, portanto, deve garantir a defesa do consumidor. Ademais, tanto a política nacional quanto os fornecedores devem assegurar produtos e serviços de qualidade. Em caso de defeitos, vícios, erros, o consumidor possui o direito à correção e à reparação.
No intuito de obter reparação, cancelamento ou informação sobre a aquisição de produto ou a obtenção de uma prestação de serviço, o consumidor, frequentemente, passa por um sofrido processo de tentativa de comunicação com o fornecedor. O primeiro desafio é conseguir estabelecer contato com algum responsável ou assessoria do fornecedor, pois não raro os meios de comunicação não são claros. Os mais utilizados sãos os virtuais ou telefônicos. Após a obtenção de algum meio para contatar por telefone, ao consumidor é oferecida uma série de opções de encaminhamento automático, podendo esperar vários minutos ou horas para conseguir falar com uma figura humana, não sendo raras as transferências para diversos setores ou as interrupções da chamada. Os responsáveis pela comunicação, muita vezes, oferecem dificuldade de compreensão da situação, de resolução de assuntos simples ou, até mesmo, prometem uma resposta positiva, mas não cumprem ou demoram abusivamente.
Na referida situação, afora o desgaste emocional, o consumidor perde um bem irrecuperável: o tempo. Na sociedade contemporânea, o tempo se reveste de absoluta preciosidade, não só porque resulta em dinheiro, caso empregado com algum trabalho ou desenvolvimento de capacidade. A duração do tempo, nos dias atuais, aparenta-se relativamente curto, restando poucos momentos para o lazer, a companhia da família, a saúde, a atividade física, pois a prioridade é a atividade produtiva que gere recursos financeiros. Portanto, o tempo perdido com a tentativa de resolução de um problema com o fornecedor representa um prejuízo ao consumidor na geração de riqueza ou uma diminuição do período gasto com situações que lhe dão prazer.
Com relação à classificação jurídica do tempo, compreende-se neste trabalho como um bem jurídico, sobre o qual recai a proteção do direito do consumidor. Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho,
“Em sentido jurídico, lato senso, bem jurídico é a utilidade, física ou imaterial, objeto de uma relação jurídica, seja pessoal ou real. Ainda em uma perspectiva jurídica, porém em sentido estrito, bem jurídico costuma ser utilizado, por parte da doutrina, como sinônimo de coisa, bem materializado (objeto corpóreo). Os bens jurídicos podem ser definidos como toda utilidade física ou ideal, que seja objeto de um direito subjetivo.”
O tempo, portanto, é bem jurídico lato sensu, uma utilidade imaterial, o qual é objeto de uma relação jurídica pessoal.[10] Tendo em vista a vulnerabilidade do consumidor, que é a parte mais fraca na relação consumerista, cujo tempo é constantemente desperdiçado pelos fornecedores, foi necessária a publicação de um Decreto[11] para determinar as formas minimamente adequadas de tratamento desse bem jurídico pelo serviço de atendimento ao consumidor dos fornecedores:
“Art. 4o O SAC garantirá ao consumidor, no primeiro menu eletrônico, as opções de contato com o atendente, de reclamação e de cancelamento de contratos e serviços.
§ 1o A opção de contatar o atendimento pessoal constará de todas as subdivisões do menu eletrônico.
§ 2o O consumidor não terá a sua ligação finalizada pelo fornecedor antes da conclusão do atendimento.
§ 3o O acesso inicial ao atendente não será condicionado ao prévio fornecimento de dados pelo consumidor.
§ 4o Regulamentação específica tratará do tempo máximo necessário para o contato direto com o atendente, quando essa opção for selecionada.
Art. 5o O SAC estará disponível, ininterruptamente, durante vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana, ressalvado o disposto em normas específicas.
(...)
Art. 10. Ressalvados os casos de reclamação e de cancelamento de serviços, o SAC garantirá a transferência imediata ao setor competente para atendimento definitivo da demanda, caso o primeiro atendente não tenha essa atribuição.
§ 1o A transferência dessa ligação será efetivada em até sessenta segundos.
§ 2o Nos casos de reclamação e cancelamento de serviço, não será admitida a transferência da ligação, devendo todos os atendentes possuir atribuições para executar essas funções.
(...)
Art. 12. É vedado solicitar a repetição da demanda do consumidor após seu registro pelo primeiro atendente.
Art. 17. As informações solicitadas pelo consumidor serão prestadas imediatamente e suas reclamações, resolvidas no prazo máximo de cinco dias úteis a contar do registro.
Art. 18. O SAC receberá e processará imediatamente o pedido de cancelamento de serviço feito pelo consumidor.”
A teoria do desvio produtivo ou do tempo útil, desenvolvida por Marcos Dessaune, entende que o tempo é bem jurídico de elevado valor, razão ela qual seu desperdício por um problema criado pelo fornecedor, é dano extrapatrimonial de natureza existencial, indenizável in re ipsa.
O termo dano significa lesão a um bem jurídico. O dano, então, pode ser patrimonial, o qual lesiona um aspecto material ou financeiro do indivíduo, ou pode ser extrapatrimonial, o qual atinge a dignidade do indivíduo.
O dano extrapatrimonial, por sua vez, é subdividido em dano moral, estético e existencial. “O dano moral, espécie de dano extrapatrimonial, é comumente definido como a lesão a um dos direitos da personalidade, como a honra, imagem, nome ou identidade.”[12] “Já o dano estético, é qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa.”[13] O dano existencial, por fim, objeto deste estudo, “é a conduta praticada por alguém que cause à vítima prejuízo à vida pessoal, familiar ou social (...) A vítima tem um prejuízo no seu projeto de vida, no seu projeto familiar.”[14]
O abuso do tempo do consumidor é dano existencial, portanto, por acarretar desvio da atenção e, por que não, de parte da vida do consumidor, em detrimento dos seus propósitos pessoais, para suplicar ao fornecedor a atitude corretiva do seu mau atendimento ou prestação.
Independente da forma como o consumidor deseja usar seu tempo, seja com o trabalho, com a família, ou com até mesmo com o ócio, a usurpação de qualquer período de vida pelo fornecedor em razão de atitude abusiva é indenizável. O tempo pertence a seu detentor, ainda que não utilizado para atividade produtiva. É inalienável; não permite a assunção de sua titularidade por terceiro em razão do seu não exercício em tarefas frutíferas.
“Nesses casos, a indenização pelo dano moral deve ser reconhecida, na medida em que o dano sofrido pela perda do tempo livre se encontra num patamar distinto de meros aborrecimentos cotidianos, bem como de prejuízo material, posto que a perda do tempo de forma desarrazoada, causada por fatores que fogem à vontade e livre escolha do consumidor, não é algo que pode ser devolvido ou recuperado, pois o tempo perdido não é substituível, não podendo, por isso, ser compensado. No entanto, pode e deve ser indenizado”.[15] (Grifo nosso).
“Vale dizer, uma indevida interferência de terceiro, que resulte no desperdício intolerável do nosso tempo livre, é situação geradora de potencial dano, na perspectiva do princípio da função social.”[16] Grifo nosso.
Assim, qualquer subtração arbitrária de tempo do consumidor enseja a indenização por danos extrapatrimoniais, prescindindo de sentimentos de dor, de humilhação e de fracasso daquele. Tais emoções são as consequências do dano, não o dano em si.
A verificação da lesão é objetiva, através da conduta abusiva do fornecedor, a perda do tempo do consumidor e o nexo de causalidade. O prejuízo existencial, dessa forma, é in re ipsa, ou seja, presumido, tendo em vista que o consumidor não pode usar seu tempo da forma que bem entende em razão da atitude despótica do fornecedor. A lesão indenizável é a perda do tempo irrecuperável, o desvio do seu projeto de vida.
“O dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras da experiência comum. Assim, por exemplo, provada a perda de um filho, do cônjuge, ou de outro ente querido, não há que se exigir a prova do sofrimento, porque isso decorre do próprio fato de acordo com as regras de experiência comum”[17].
A subtração do tempo indenizável independe de valorações acerca do perfil do consumidor, ou seja, se aposentado, se trabalha oito horas por dia ou se permaneceu um mês em isolamento domiciliar em virtude de uma pandemia. Qualquer minuto do consumidor deve ser utilizado de acordo com sua livre vontade, valorado de acordo com sua consciência, sem justificativas para usurpação de outrem. A justiça da indenização é verificada pela presença do fato ofensivo, segundo o seguinte esquema:
Comportamento abusivo do fornecedor |
Perda do tempo do consumidor |
Nexo de causalidade |
Deve ficar claro, nesse contexto, que a Teoria do Mero Aborrecimento, apresentada na revisão bibliográfica, ainda é aplicada na jurisprudência atual, afinal não é qualquer descumprimento contratual que gera dano aos direitos de personalidade:
“A negativa de cobertura pela Ré, ora Apelada, quanto ao fornecimento de exame médico a que deveria ser submetido o paciente, ainda que indevida, não enseja a configuração de danos morais passíveis de reparação pecuniária.
Inexistem dúvidas de que o dano moral constitui o prejuízo decorrente de dor imputada à pessoa e que provoca constrangimento, mágoa ou tristeza em sua esfera interna em relação à sensibilidade moral.
Desse modo, a dor moral, decorrente da ofensa aos direitos da personalidade, apesar de ser deveras subjetiva, deve ser diferenciada do mero aborrecimento, ao qual estamos sujeitos.
Para que incida o dever de indenizar por dano moral, o ato tido como ilícito deve ser capaz de imputar um sofrimento físico ou espiritual, impingindo tristezas, preocupações, angústias ou humilhações, servindo a indenização como forma de recompensar a lesão sofrida.
A esse respeito, inexiste o dever de reparar quando a vítima submete-se a meros aborrecimentos decorrentes de inadimplementos contratuais e insatisfações atinentes à vida em sociedade, incapazes de lhes afetar o psicológico, não se prestando a adentrar o núcleo protetivo imaterial dos direitos da personalidade da pessoa humana, inexistindo, pois, dano moral, sendo exatamente esse o caso dos autos.
No caso em exame, a negativa apresentada ao paciente certamente lhe causou sentimentos de insatisfação, angústia e até intolerância. Entretanto não ficou evidenciada a ocorrência de sofrimento físico exagerado e, por consequência, abalo emocional.”[18]
Contudo, houve expressiva mudança de entendimento jurisprudencial nos parâmetros de aplicação da Teoria do Mero Aborrecimento e da Teoria do Desvio Produtivo. Acontecimentos que antes eram considerados como um dissabor normal da vida moderna, atualmente, foram classificados como lesão ao tempo útil do consumidor, podendo ser indenizados, independente da geração de sentimento de sofrimento exagerado ao consumidor:
“Tenho, em acréscimo, como incontroverso o fato de o Autor, em razão da falha manifestada pelo serviço, ter buscado a solução do problema durante tempo considerável, efetuando dezenas de ligações - conforme protocolos indicados na inicial e não impugnados pela parte contrária - com esse objetivo.
Sabe-se que para fazer jus a indenização por dano moral, é assente a jurisprudência pátria no sentido de que não precisa o autor comprovar o seu sofrimento, que se presume.
Basta que faça prova de fato que, ao senso comum, tenha o efeito de causar abalo emocional anormal, resultante de sofrimento por natural revolta, tristeza, angústia e impotência.
Em tais condições, evidente se mostra que a Autor não sofreu mero aborrecimento, comum do cotidiano. Na verdade, foi desrespeitada em seu direito de consumidor.
O que ela experimentou, a meu aviso, constituiu situação suficiente para ensejar danos morais, pelos sentimentos supramencionados, pois foi submetida - como já mencionado - a uma espécie de via crucis na tentativa de resolver a questão, uma vez obrigada a realizar dezenas chamadas telefônicas e reclamações perante agência reguladora, tendo, ao final, frustrado seu objetivo.”[19]
Nem toda situação de uso do tempo do consumidor, portanto, é uma lesão ao seu direito existencial, sob pena de transformar a parte vulnerável em carrasco, em evidente abuso do direito. O fornecedor, muitas vezes representado por pessoa jurídica de grande expressão, é também composto por seres humanos, falíveis por excelência. Assim, erros ingênuos podem acontecer no cotidiano dos consumidores.
Até mesmo o decreto mencionado neste artigo consagra a possibilidade de ocorrência de equívocos, pois disciplina a forma como o consumidor deve ser atendido pelo fornecedor para correção dos erros e como deve ser feita a resolução do problema.
Conforme já evidenciado, a forma como o consumidor usaria seu tempo, caso não tivesse que resolver a situação conflitiva, não interfere na verificação do dano. O tempo pertence a seu titular, e a avaliação da qualidade da sua utilização apenas interessa ao seu detentor, como um projeto de vida. O que condiciona a existência da lesão, entre outros fatores, é a relação quantitativa do tempo. Dessa forma, a verificação de inúmeras tentativas de resolução (conforme o último julgado citado) é indício do desvio arbitrário do tempo. Ainda que existisse uma única ligação telefônica, mas sua duração fosse demasiadamente longa, seria um indício do abuso.
Contudo, não basta que o consumidor disponibilize seu tempo, é necessário que sua solicitação seja pertinente e que o contato não decorra de equívoco do consumidor. Obviamente, embora efetue vários contatos com o fornecedor sem resolução do problema a seu contento, não há dano indenizável, caso o consumidor não detenha a razão na situação ou caso o problema tenha originado do seu próprio ato.
Assim, ainda que a verificação do dano necessite de uma avaliação quantitativa do tempo oferecido, é inevitável a verificação do caso concreto, com as ponderações das circunstâncias ensejadoras do imbróglio, como as condutas das partes e a análise do núcleo do direito em questão.
Fato é que a análise do tempo como bem jurídico foi paulatinamente valorizada pela jurisprudência e pela doutrina, para proteger os projetos existenciais dos consumidores perante a desconsideração do fornecedor.
A doutrina do desvio produtivo, portanto, ainda que em seus primórdios, já produziu mudança social, no sentido de chamar a atenção do fornecedor para o dever de eficiência, o que ainda não tinha sido tão largamente observado apenas com a legislação consumerista e o decreto do “call center”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo pretendeu apresentar o conceito da Teoria do Desvio Produtivo, de elaboração de Marcos Dessaune, bem como as definições dos demais autores que abordaram o tema. Objetivou-se também a definição da Teoria do Mero Aborrecimento.
Com o avanço da jurisprudência, foi possível observar uma mudança de aplicação fática das teorias citadas, tendo em vista o crescente empoderamento do consumidor, com valorização do seu tempo.
Procurou-se estabelecer requisitos para aplicação adequada da Teoria do Desvio Produtivo, tendo em vista seu caráter objetivo, mas sem desconsiderar que a análise do caso concreto é imprescindível.
O tempo foi definido como bem jurídico, cuja violação injusta acarreta dano extrapatrimonial de caráter existencial.
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[1] DESSAUNE, Marcos. Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[2] GUGLINSKI, Vitor. Danos morais pela perda do tempo útil: uma nova modalidade. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21753.
[3] BAROCELLI, Sergio Sebastián. Cuantificación de daños al consumidor por tiempo perdido. Revista de Direito do Consumidor, v. 90, p. 119, 2013. “La pérdida de tiempo implica también un desgaste moral y un trastorno espiritual para el consumidor, quien debe desatender sus para enfrascarse en una lucha en al que está casi siempre en clara desigualdad de condiciones frente al proveedor, en razón de la debilidad y vulnerabilidad estructural en que se sitúan los consumidores en las relaciones de consumo. [...] En el ámbito del derecho del consumidor, de conformidad con las previsiones de los artículo 42 de la Constitución Nacional y 8 bis de la LDC, constituye un supuesto particular indemnizable el incumplimiento del derecho al trato digno y equitativo por parte de los proveedores de bienes y servicios”.
[4] ANDRADE. André Gustavo Corrêa de. Dano Moral em caso de descumprimento de Obrigação Contratual. 2002. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=a2768f6d-cc2b-4bc6-bc84-d02365e35763&groupId=10136
[5] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1737412/SE, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI. publicação em 08/02/2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201700670718&dt_publicacao=08/02/2019
[6] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível 1.0145.15.001216-2/001. Relator Desembargador Manoel dos Reis Morais. 20ª CÂMARA CÍVEL. Data de publicação: 5/3/2020.
[7] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas, 2009.
[8] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 844.736 – DF. Relator para o Acórdão: Ministro Honildo Amaral de Mello Castro. Data de Publicação: 27/10/2009. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200600946957&dt_publicacao=02/09/2010
[10] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: abrangendo os Códigos Civis de 1916 e 2002. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
[11] BRASIL. Decreto n. 6.523, de 31 de julho de 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6523.htm
[13] DOS SANTOS, Dione Conceição. Dano existencial como espécie autônoma de dano extrapatrimonial. 2017. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/24560/1/SANTOS%2C%20Dione%20Concei%C3%A7%C3%A3o%20dos%2C%20%20-%20Dano%20Existencial%20como%20esp%C3%A9cie%20aut%C3%B4noma%20de%20dano%20extrapatrimonial..pdf
[14] GERMANO, Luciana. Dano Extrapatrimonial nas Relações de Emprego à luz da Reforma Trabalhista e a Questão do Tabelamento das Indenizações. 2018. Disponível em: http://repositorio.ufjf.br:8080/jspui/bitstream/ufjf/10222/1/lucianagermano.pdf
[16] STOLZE, Pablo. Responsabilidade civil pela perda do tempo. Revista Jus Navigandi. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23925.
[17] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas, 2009.
[18] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível 1.0879.14.001717-6/001. Relator: Desembargador Márcio Idalmo Santos Miranda. 9ª Câmara Cível. Data de publicação: 13/3/2020.
[19] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível 1.0000.19.038985-8/001. Relator: Márcio Idalmo Santos Miranda. 9ª Câmara Cível. Data de publicação: 10/6/2019.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais em 2011. Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera em 2012. Analista de Direito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais desde 2014.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Héllen Matos. Teoria do Desvio Produtivo: Breve Análise Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun 2020, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54641/teoria-do-desvio-produtivo-breve-anlise. Acesso em: 23 dez 2024.
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