Resumo: O presente artigo pretende estudar, de maneira introdutória, a universalização e a multiplicação dos direitos sob a égide das três ondas renovatórias de acesso à justiça, bem como busca entender a eclosão da litigiosidade no Brasil. Analisa, a Constituição Federal, a lei infra-constitucional e, também, a doutrina. Ainda, busca-se comprender melhor a necessidade de implementação da terceira onda renovatória de acesso à justiça com a utilização de meios autocompositivos, como a mediação e a conciliação. Ademais, pretende-se desenvolver um raciocinio lógico a partir da construção de uma teoria da argumentação jurídica capaz de solucionar a litigiosidade sob a ótica da mudança de paradigma, passando-se da cultura da sentença para a cultura da paz. Assim, a pesquisa constata que o novo Código de Processo Civil, ao adotar a consensualidade, enfatiza a necessidade da aplicação correta da justiça dita “multiportas”. Assim, vislumbrou-se que é necessário realizar uma reflexão acerca da necessidade da implementação efetiva da terceira onda de acesso à justiça, fomentando a cooperação procesual, com a introdução paulatina do hábito de resolver os conflitos antes de ocorrer a litigiosidade acirrada, trilhando um caminho de pacificação dos conflitos. A metodologia utilizada privilegia o método de abordagem hipotético-dedutivo e a técnica de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Acesso à Justiça; Ondas; Litigiosidade; Multiportas; Consensualidade.
Abstract: This article intends to study, in an introductory way, the universalization and multiplication of rights under the aegis of the three renewal waves of access to justice, as well as to understand the outbreak of litigation in Brazil. It analyzes the Federal Constitution, the infra-constitutional law and also the doctrine. Still, we seek to better understand the need to implement the third renewal wave of access to justice through the use of self-composing means, such as mediation and conciliation. Moreover, it is intended to develop a logical reasoning from the construction of a theory of legal argumentation capable of solving litigation under the perspective of paradigm shift, moving from the culture of the sentence to the culture of peace. Thus, the research finds that the new Code of Civil Procedure, by adopting consensus, emphasizes the need for the correct application of so-called “multiport” justice. Thus, it was seen that it is necessary to reflect on the need for the effective implementation of the third wave of access to justice, fostering procedural cooperation, with the gradual introduction of the habit of resolving conflicts before fierce litigation occurs, following a path pacification of conflicts. The methodology used privileges the hypothetical-deductive approach method and the bibliographic research.
Keywords: Access to Justice; Waves; Litigation; Multiports; Consensuality.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo possui o condão de analisar a universalização e a multiplicação de direitos a partir do século XX e como esse fenômeno foi o responsável por, mais tarde, ocasionar uma litigância judicial em larga escala no Brasil, pretendendo ser solucionada com a efetiva implementação da terceira onda de acesso à justiça e a justiça chamada de “multiportas”, que tem como basilar a consensualidade prévia e adequada ao caso em concreto, evitando processos judiciais que se perpetuam no tempo.
Para tanto, analisar-se-á as três ondas renovatórias de acesso à justiça, com a finalidade de verificar a origem e os seus desdobramentos no processo. Na sequência, no segundo tópico, verificar-se-á a eclosão da litigiosidade no Brasil e a problemática acerca dos mecanismos de justiça. Por fim, concluir-se-á a necessidade da implementação da terceira onda de acesso à justiça para buscar a consensualidade na relação processual, mais voltada para a cultura da paz e evitando a cultura da sentença, que leva tempo e desgasta os partícipes da lide.
Assim, a presente pesquisa restou estruturada de modo a realizar uma pesquisa, para verificar, com base na estruturação de premissas, que é necessária a ampliação da consensualidade processual e a utilização da mediação e da conciliação para que justamente o processo se resolva de maneira rápida, efetiva e prévia, para evitar os litígios que costumam durar anos e anos no judiciário brasileiro, respeitando, assim, o princípio processual da celeridade.
Espera-se, nesta senda, construir uma argumentação jurídica capaz de demonstrar que devemos realmente efetivar os ditames dispostos no Código de Processo Civil, utilizando a consensualidade em consonância com a justiça multiportas e efetivando a terceira onda de acesso à justiça.
No que se refere a metodologia utilizada, privilegia-se o método de abordagem hipotético-dedutivo e a técnica de pesquisa bibliográfica.
2 A UNIVERSALIZAÇÃO E A MULTIPLICAÇÃO DOS DIREITOS: AS TRÊS ONDAS RENOVATÓRIAS DE ACESSO À JUSTICA
No século XX ocorre o desenvolvimento teórico e prático dos direitos humanos em duas direções: a universalização e a multiplicação. Observa-se, assim, o fenômeno da multiplicação de direitos com a proliferação de novos bens e interesses jurídicos, ocorrendo, de maneira inteligível, o maior número de processos em tramitação no Brasil.
Para que se possa entender, de forma mais concreta, a universalização e a multiplicação de direitos, necessário se faz estudar as chamadas “ondas renovatórias de acesso à justiça”, em que foi realizado um estudo nos sistemas jurídicos de 23 países, nos anos de 1973 até 1978, que foi chamado de “Projeto Florença”, partindo dos óbices do acesso à justiça. O relatório do estudo foi publicado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, sob o título “acesso à justiça”, em que são explicadas as três ondas renovatórias.
À vista disso, a primeira onda de acesso à justiça diz respeito a impossibilidade dos pobres acessarem o judiciário, sendo dever do Estado estudar mecanismos e desenvolver estratégias para efetivar o direito de acesso à justiça aos impossibilitados de tê-la de maneira concreta e efetiva.
Desta forma, necessário se faz a implementação da assistência judiciária e da justiça gratuita aos pobres, para que estes pudessem ter seus direitos tutelados pelo Podes Judiciário. O Brasil foi um dos percursores no que se refere à implementação da primeira onda de acesso à justiça, pois com a promulgação, em 1950, da Lei 1.060/1950, estabeleceu-se normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados. Ainda, passados mais de 40 anos, a criação das Defensorias Públicas da União e dos Estados corroboraram para a implementação da primeira onda de acesso à justiça no país, pois conferiu a possibilidade para que os cidadãos hipossuficientes pudessem ser atendidos por advogados públicos, de maneira gratuita e de forma integral.
Assim, observa-se que com a ocorrência da primeira onda renovatória de acesso à justiça, bem como com a ocorrência da maior efetividade e proteção dos direitos, iniciou-se a eclosão da litigiosidade no Brasil.
A posteriori, no que se refere ao fenômeno da segunda onda renovatória de acesso à justiça, que tentou minimizar os efeitos da proliferação de ações individuais, percebeu-se a normatização da tutela coletiva. À vista disso, verifica-se que a tutela coletiva teve seu início com a Lei da Ação Civil Pública, com a Lei da Ação Popular e o próprio Código de Defesa do Consumidor.
Maria Cecília de Araujo Asperti (2017) analisa a questão da promulgação das leis acima referidas sob a perspectiva da abertura das portas do judiciário para a tutela coletiva de direitos, regulamentando, no caso do Código de Defesa do Consumidor, os direitos dos consumidores, sua defesa em juízo e a tutela transindividual desses direitos, ampliando a atuação do Judiciário com a constitucionalização de direitos sociais e coletivos, conferindo guarida para as garantias processuais, como o acesso à justiça, devido processo legal, ampla defesa, contraditório etc.
Sob a perspectiva brasileira, Cândido Rangel Dinamarco dispõe sobre a segunda onda renovatória de acesso à justiça:
A segunda onda renovatória o direito brasileiro manifestou adesão também já a partir da década de 80, mediante a edição da Lei da Ação Civil Pública. Chegava então a nós a onda consistente na abertura da Justiça a valores transindividuais, com renúncia à rigidez do individualismo reinante desde as origens. A onda de coletivização da tutela jurisdicional foi adiante quando sobreveio o Código de Defesa do Consumidor e, em sua esteira, outros diplomas também voltados à tutela coletiva, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (LGL\1990\37) e o dos Portadores de Deficiência Física. E a nossa geração, que tinha no espírito outros conceitos e outra percepção do processo e da missão do Poder Judiciário, assistia atônita a toda essa transformação. Assistia, mas não só assistia. Assistia e também participava. Foi grande a participação dos processualistas na elaboração daqueles estatutos inovadores, havendo eles próprios levantado a bandeira das inovações. Participei eu próprio da elaboração do anteprojeto da Lei das Pequenas Causas, em uma comissão na qual se destacava o idealismo de Kazuo Watanabe pela remoção dos perversos inconvenientes da litigiosidade contida. Veio depois a comissão que apresentou o primeiro anteprojeto da Lei da Ação Civil Pública, marco histórico de outra postura idealista palpitante ainda hoje, com destaque para a fértil produção de Ada Pellegrini Grinover. Essa segunda onda, a onda da coletivização do exercício da jurisdição, ainda não se exauriu e está muito longe de exaurir-se - sendo uma realidade o Projeto de Código de Processo Coletivo, no presente em tramitação no Congresso Nacional (RANGEL, 2009, p. 02, grifo do autor).
Já a terceira onda renovatória de acesso à justiça, repercute-se no âmbito da adoção de formas diversas de solução da lide, diferentemente da visão do processo judiciário comum, como a utilização da mediação, da conciliação e da arbitragem. Assim, o objetivo principal cinge-se na ideia de solucionar pequenos conflitos por meios de alternativas, uma justiça denominada de multiportas, que pode vir a combater, se aplicada de maneira adequada, o grande número de processos em tramitação no Brasil.
Conforme Teófilo Marcelo de Arêa Leão Júnior:
Neste contexto, a terceira onda renovatória de Cappelletti e Garth busca instrumentos que assegurem o aprimoramento da tutela jurisdicional como um meio para a ampliação de formas pelas quais haja o acesso à Justiça, de tal modo que, a construção de instrumentos processuais, seja por meio do legislador processual, seja por meio do juiz, é um meio de implementação da terceira onda renovatória para propiciar o acesso à Justiça, garantido o efetivo acesso a uma ordem jurídica justa, pois será assegurado que o processo corresponda às exigências do direito material. Assim, para a terceira onda renovatória de Cappelletti e Garth, um dos meio de se promover o acesso à Justiça ocorrer por meio da criação de tribunais especializados a fim de promover, sobretudo, a tutela jurisdicional dos demandas relativas aos juizados especiais para pequenas causas, direitos do consumidor e direitos difusos e coletivos (TEÓFILO JÚNIOR, 2018, p. 05).
Mauro Cappelletti (2014, p. 02) chama a terceira onda de acesso à justiça de terceiro obstáculo no ínterim do acesso à justiça como movimento de reforma, asseverando que “o terceiro obstáculo, mais diretamente relacionado com os métodos alternativos de solução de conflitos, em sentido técnico, é o que proponho denominar de processual, porque significa que, em certas áreas, são inadequados os tipos ordinários de procedimento.”
Assim, as três ondas renovatórias de acesso à justiça de Mauro Cappeletti e Bryant Garth se mostram, primeiramente, como uma proteção ao indivíduo para acessar o judiciário – à exemplo da primeira onda – e, posteriormente, uma alternativa à litigiosidade verificada no transcurso temporal – à exemplo da segunda e da terceira onda.
3 A ECLOSÃO DA LITIGIOSIDADE NO BRASIL: UMA PROBLEMÁTICA ACERCA DA GESTÃO DOS MECANISMOS DE JUSTIÇA
A eclosão da litigiosidade no Brasil deu-se, em verdade, pela multiplicação e universalização de direitos que ocorreu depois da redemocratização, em 1985, e, principalmente, depois Constituição Federal de 1988, em que se garantiu, em um rol taxativo e exaustivo, diversos direitos fundamentais aos cidadãos. Nesta senda, ocorreu um engrandecimento e fortalecimento do Poder Judiciário – assim como ocorreu com o legislativo e o executivo –, uma instituição que foi fortalecida com a Constituição, para garantir o efetivo cumprimento da lei.
Todavia, essa multiplicação de direitos é uma via de mão dupla, vez que os cidadãos, após um longo período de ditadura civil-militar, começaram a ingressar no judiciário com mais animosidade e com mais frequência, por justamente saberem que é o Estado/Juiz o garantidor na eventualidade da ocorrência do desrespeito a um direito individual ou coletivo. Atualmente, estima-se que a cada três pessoas, uma delas têm processo em tramitação sem trânsito em julgado.
No Brasil, pelos dados do CNJ – através do “Justiça em Números” –, chegou-se ao patamar de 80,1 milhões de processos que aguardam uma solução definitiva. A eclosão da litigiosidade verifica-se, como mostrado pela primeira onda de acesso à justiça e também pela implementação da Constituição Federal no Brasil, garantindo maiores direitos e possibilidades de ingresso ao judiciário, como no caso da implementação do Juizado Especial Cível, a ocorrência de uma morosidade sem precedentes, não garantido, assim, o efetivo direito à duração razoável do processo e a celeridade processual adequada, institutos garantidos no Código de Processo Civil.
À luz do entendimento de Nelson Nery Junior (2016) o Estado brasileiro pode, inclusive, responder pela duração exagerada do processo, sendo esta uma violação iminente dos direitos humanos, utilizando-se do exemplo da lei da Itália, que garante que o Estado italiano responda pelos danos causados pela duração exagerada do processo.
O nosso sistema processual civil, apesar de ter técnicas para garantir a tutela coletiva de direito, calca-se, primordialmente, pela tutela individual de direitos, muito por culpa no nosso microssistema de processos coletivos que não é pensado da forma correta, privilegiando a individualidade de acesso à justiça, rechaçando-se a técnica do opt-in.
Justamente por isso verifica-se a eclosão da litigiosidade individual. Nas palavras de Heitor Vitor Mendonça Sica (2017, p. 03):
Por força desse e de outros fatores, o Poder Judiciário brasileiro, desde meados da década de 1990, passou a enfrentar um quadro crônico de congestionamento, que pode ser atribuído em grande medida à litigiosidade repetitiva. Essa afirmação se baseia em alguns dados estatístivos do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), que se propôs a identificar os “100 maiores litigantes do Brasil”. Constatou-se que 79,23 milhões de processos (num universo de aproximadamente de 83,4 milhões), tem em um dos seus polos um desse seleto grupo de litigantes habituais, destacando-se nesse universo os entes da Administração Pública, direta e indireta, em esferas federal, estadual e municipal, (51%), bancos (38%) e empresas de telefonia (6%). Esses sujeitos seriam candidatos naturais a serem réus em processos coletivos, pois se relacionam necessariamente com pluralidades indetermináveis de indivíduos. Contudo, em vez disso, tornam-se parte de milhões de processos individuais.
Ainda, os indivíduos também carregam uma efetiva culpa para que o judiciário seja moroso, pois se percebe que estes ingressam com causas ínfimas e de fácil solução consensual, somente por amor ao debate, bem como por cultuar o entendimento de que o somente o Estado/Juiz seria capaz de resolver determinada lide, tanto é verdade que muitas vezes verifica-se a célebre frase advinda de um cidadão, que quer mostrar que o judiciário poderia resolver determinado imbróglio, quando este diz: - “Eu sei os meus direitos, vou procurar a Justiça.”
Verdade é que os conflitos humanos, por vezes menos complexos, sendo possíveis de solução fora do Judiciário, são levados à baila da “justiça”, ocasionando, de maneira inteligível, a litigância repetitiva e, como consequência, o assoberbamento dos próprios mecanismos de justiça.
Como bem elucida Giovani dos Santos Ravagnani e Marcely Ferreira Rodrigues (2019, p. 02):
No Brasil, referido fenômeno é impulsionado, além de tudo, pelo grau de importância que se dá à figura do Estado, que, em muitas vezes, pelas mãos do Poder Judiciário, é colocado para resolver o problema entre dois indivíduos tal qual uma mãe se coloca entre o conflito de seus filhos, uma vez que os filhos não conseguem se resolver sem o envolvimento de um terceiro, hierarquicamente superior. Em linhas gerais, o brasileiro se conforta com a bênção estatal na resolução de seus conflitos e tende a supervalorizar essa opção.
Nesta senda, verifica-se que somente com um Estado efetivamente engajado em dar solução ao problema da morosidade do poder judiciário e da solução das controvérsias é que se poderão pretender soluções sérias e eficientes ao problema, atuando na implementação das novas possilidades trazidas pela terceira onda renovatória de acesso à justiça.
Sob o égide da interpretação de Alexandre Freitas Câmara (2013) é de suma necessidade a criação (ou evolução) da cultura da autocomposição no Brasil, sob pena da perpétua reclamação do excesso de processos que chegam ao Judiciário, do excesso de litigiosidade e da incapacidade do Estado de dar solução adequada a tudo que a ele é levado.
Sabe-se que o direito e o processo pertencem à cultura do povo, sempre sujeita aos fatos da vida social, estando, assim, em constante movimento, sendo modificado pela própria experiência do ser humano. Assim, o processo deve se adaptar às inovações da sociedade, tentando evoluir e transmutar-se.
No que se refere a questão cultural, Sérgio Cruz Arenhart (2014, p. 67) assim leciona:
O grau de litigiosidade de um povo, o seu conhecimento a respeito dos próprios direitos e a orientação do Poder Judiciário em relação ao serviço a ser prestado têm relevância muito maior, até porque esses elementos são capazes de plasmar os outros dois, aparando eventuais arestas e defeitos destes outros. [...] Todavia, o baixo grau de instrução do povo brasileiro em geral e o pequeníssimo nível de conhecimento a respeito dos seus direitos é algo de conhecimento geral e que, seque, exige demonstração. Também carece de maior demonstração a conclusão de que o Brasil não tem o hábito de recorrer a vias alternativas de resolução de controvérsias, o que poderia prestar-se para absorver ao menos parte da demanda social exigente.
O direto processual deve estar preparado para enfrentar um contingente populacional mundial que ultrapassa o patamar de seis bilhões de pessoas, as relações de massa expandem-se continuamente, bem como o alcance de problemas correlatos, frutos do crescimento da população, dos meios de comunicação e de consumo. Multiplicam-se as lesões sofridas pelas pessoas, decorrentes de circunstâncias de fato ou relações jurídicas comuns.
Neste ínterim, busca-se, em verdade, a desjudicialização das relações, priorizando um sistema resolutivo de conflitos, em que cada causa seja tratada da maneira adequada, buscando resolvê-la o quanto antes possível, para que o conflito entre as partes não perpetue-se no tempo, trazendo consequências sistêmicas para todos os envolvidos na relação.
Marco Félix Jobim (2012, p. 136) entende que é necessário repensar o processo a partir de novas inovações e mudanças, asseverando que por isso “devem-se abrir os horizontes para que novas concepções auxiliem como forma de melhoria, uma vez que se não houver mudanças, principalmente iniciando pelo próprio pensamento do homem, as soluções pensadas não sairão do papel [...].”
Desta forma, a desjudicialização somente poderá ser concretizada com a efetiva aplicação da terceira onda de acesso à justica, conforme supramecionada, em que se busca métodos alternativos à resolução de conflitos, migrando da cultura do conflito à cultura da paz, cuja finalidade é, além de resolver de maneira célere a lide, desafogar o judiciário com processos longos que poderiam ser resolvidos rapidamente se as partes pudessem ter a oportunidade de dialogar da maneira correta, o que justamente os CEJUSC’s espalhados pelo Brasil buscam fazer.
4 UMA REFLEXÃO ACERCA DA NECESSIDADE DA IMPLEMENTAÇÃO EFETIVA DA TERCEIRA ONDA DE ACESSO À JUSTIÇA: DO CÓDIGO À PRÁTICA
No Brasil, o novo Código de Processo Civil adotou a consensualidade como princípio norteador de todo o sistema jurídico processual, buscando, sempre que possível e viável, a adoção de métodos que vislumbrem a cooperação entre todos os sujeitos processuais, um claro fomento à consensualidade.
À luz de Mauro Cappelletti (2014, p. 5):
Essa idéia [sic] decerto não é nova: a conciliação, a arbitragem, a mediação foram sempre elementos importantes em matéria de solução de conflitos. [...]. Os métodos alternativos de solução de conflitos constituem uma área na qual a Fundação Ford já em 1978 promovia programa pioneiro, que desencadeou ampla procura daquilo a que chamou “novos enfoques da solução de conflitos”, com particular atenção para “conflitos complexos sobre políticas públicas, “conflitos regulatórios”, “conflitos oriundos de programas de bem-estar social”, tudo com a finalidade de “encontrar caminhos para tratar de conflitos fora do sistema formal”. O que se emergiu dessa pesquisa foram especialmente formas conciliatórias, não contenciosas, de alternativas, assim como tribunais especiais, frequentemente integrados por juízes leigos. No Projeto Florentino de Acesso à Justiça, dedicou-se todo um volume (vol. 2, em dois tomos) a tal pesquisa. Os exemplos são inumeráveis e de variadíssimas espécies. Sobressai a conciliação. O que se deve preliminarmente dizer é que, embora nos dois últimos séculos, pouco mais ou menos, as civilizações ocidentais tenham glorificado o ideal de lutar pelos direitos de cada qual (o famoso Kampf ums Recht de Jhering), conviria admitir que, em certos setores, um enfoque diferente – a que costumo chamar “Justiça coexistencial” – pode ser preferível e mais apto para assegurar o acesso à Justiça.
A adoção de métodos alternativos de resolução de conflitos surgiu no direito norte-americano e foi popularizado a partir da expressão ADR (Alternative Dispute Resolution), tendo seu marco inicial nos movimentos sociais que tinham por meta a afirmação dos direitos civis. Segundo Marco Antônio Garcia Lopes Lorencini (2012), o movimento da solução alternativa de conflito teve consagração também a partir dos agentes econômicos, eis que estes viram nos ADR’s uma maneira rápida e barata de se obter uma solução de controvérsias no mundo dos negócios.
O modelo cooperativo, adotado a partir do Código de Processo Civil de 2015, distancia-se do modelo adversarial adotado no Código de Processo Civil de 1973, pois as partes tornam-se atores principais do processo, conectando-se ao princípio da relação dialogada. O novo Código de Processo Civil seguiu, em verdade, uma tendência mundial de consensualidade no Processo Civil mundial, como na Inglaterra (case menagemen) e em Portugal (princípio da adequação formal), em que a relação processual se mostra mais horizontal do que verticalizada.
Por este norte, João Luiz Lessa Neto (2015, p. 02) leciona:
O sistema processual civil brasileiro, a partir de uma decisão política que culmina com o Novo Código de Processo Civil – NCPC, passou a seguir o modelo multiportas de resolução de disputas. Consoante este modelo, cada disputa deve ser encaminhada para a técnica ou meio mais adequado para a sua solução. A mediação e a conciliação passam a ser fortemente estimuladas, num esforço de aproximação das partes e de empoderamento dos cidadãos, como atores da solução de seus conflitos. Trata-se de uma mudança de grande envergadura em todo o funcionamento do sistema de justiça civil brasileiro. É uma mudança de concepção, que reclama uma mudança na estrutura funcional e física dos fóruns e tribunais brasileiros e que, igualmente, requer uma modificação cultural e de formação dos operadores jurídicos.
Logo de início, o Código de Processo Civil de 2015 já enfatiza a adoção da consensualidade, pois no art. 3º, § 2º, dispõe que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” e o § 3º assevera no mesmo sentido, dispondo que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”
Sob o mesmo prisma, o art. 6º do CPC é assertivo quando trata do modelo colaborativo, eis que assevera que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”
Verifica-se, portanto, a sensibilidade adotada no Código de Processo Civil para a resolução consensual dos conflitos, mudando a perspectiva do processo, do modelo “ganha-perde” para o modelo “ganha-ganha”, onde as partes têm o dever fundamental de dialogarem para chegar em um consenso amigável.
Já no que se refere ao tratamento adequado dos conflitos, o Poder Judiciário, a partir do Conselho Nacional de Justiça e da Resolução 125/2010, instituiu a chamada Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, que instituía a necessidade do Poder Judiciário oferecer às partes meios consensuais de solução de controvérsias, como a mediação e a conciliação. Essa resolução serviu como um parâmetro para o Código de Processo Civil de 2015 também adotasse tais mecanismos de solução adequada de conflitos, a qualquer tempo processual.
Paulo Eduardo Alves da Silva (2012, p. 09) explica a importância da Resolução 125 do CNJ:
O Conselho Nacional de Justiça, recém-instituído, apoiou iniciativas setorizadas e formalizou as bases para uma política nacional de resolução de conflitos, centrada na integração entre os mecanismos formais e decisionais aos mecanismos baseados em consenso. Segundo suas próprias justificativas, a Resolução n. 125 do CNJ significou, neste aspecto, mais do que um marco legal que permitiu a instalação de setores de conciliação junto aos fóruns. Tratou-se do marco de uma política pública judiciária, pela qual a resolução consensual dos conflitos seria paulatinamente organizada na sociedade civil a partir do próprio Poder Judiciário. A partir dele, os tribunais organizaram os seus setores de conciliação judicial e, em alguns casos, capitanearam a organização de núcleos comunitários de solução de conflitos. E é este o ponto em que hoje se encontra o movimento em prol dos ADR no Brasil: constatado que a questão é de cultura jurídica, mais que de carência legislativa, parte-se para as políticas públicas de apoio e disseminação da resolução consensual. Uma das medidas, talvez a mais frutífera, é o investimento na formação de base dos atores do sistema de justiça, para instrumentalizá-los com cultura e técnicas que permitam operar métodos variados e adequados conforme o conflito em questão (grifo nosso).
Lessa Neto (2015, p. 04) assevera que a Resolução supracitada “estabeleceu uma política nacional para o tratamento adequado de conflitos no âmbito do Poder Judiciário. Ou seja, o Poder Judiciário não é mais um local apenas para o julgamento, mas para o tratamento adequado de conflitos.” Outrossim, o “tratamento adequado significa perceber as particularidades de cada caso e as potencialidades de cada técnica e meio. Não se trata de uma mera questão semântica, mas do próprio paradigma organizacional da sociedade civil.”
Neste viés, o art. 165. do Código de Processo Civil impõe ao Poder Judiciário a necessária criação de centros de solução consensual de conflitos, discorrendo que “os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.”
Certo é que a legislação processualista preocupou-se, de maneira severa, com a implementação da terceira onda renovatória de acesso à justiça, pois além de impor a implementação destes centros judiciários para a solução amigável de conflitos, determinou a necessidade de realizar audiências de conciliação (quando não há vínculo entre as partes) e mediação (quando há vínculo entre as partes) antes da audiência de instrução, com o claro objetivo de solucionar a lide muito antes da audiência de instrução e julgamento.
Segundo Asperti (2017, p. 09):
A preocupação com o efetivo acesso à justiça permeou algumas das mais importantes reformas processuais dos últimos anos. Ainda que diferentes diagnósticos e agendas de pesquisa tenham embasado essas reformas, esteve presente a noção de que o efetivo acesso depende da remoção dos diferenciados óbices que se colocam entre o indivíduo e o acesso à justiça (ordem jurídica justa), o que significa dizer que cada pessoa deve conseguir acessar um sistema que lhe proporcione iguais condições para dele obter uma efetiva tutela de direitos.
Neste norte, pode-se chamar a fase atual da justiça de multiportas, uma vez que pretende dar a solução adequada para cada caso em concreto. A utilização da autocomposição mostra-se como uma verdadeira revolução processual, pois se amolda a cada caso, verificando se em determinada situação é possível a utilização da conciliação ou da mediação de conflitos.
Paulo Afonso Brum Vaz (2011, p. 01) compartilha seu entendimento sobre a conciliação, asseverando que com ela “abre-se uma nova e mais eficaz técnica de gestão do processo, que é a consensual, possibilitando ao Poder Judiciário prestar um serviço mais qualificado e melhorar o atendimento e o nível de satisfação dos seus usuários.“
Já no que se refere a mediação, Adolfo Braga Neto (2012, p. 107) enfatiza que esta busca a promoção do “resgate do respeitar das individualidades de todos, sempre a partir de seus limites e perspectivas pessoas individuais” e que “por isso, vários autores identificam seu caráter didático na gestão dos conflitos, pois muitas vezes as pessoas passam a prevenir de maneira mais frequente futuros conflitos entre elas.”
Desta forma, os meios autocompositivos de conflitos refletem a real necessidade de adequação do sistema judiciário como um todo, devendo-se criar, em todo o Brasil, mais centros de mediação e conciliação, investindo em profissionais capazes de tratar os conflitos da maneira correta, deixando a figura do Estado/Juiz o tanto quanto possível de lado, focando na resolução de conflitos para que a própria população crie uma mentalidade voltada à consensualidade e a cooperação processual como formas apropriadas de resolver os problemas, o que pode servir para barrar a continuação do processo judicial, gerando uma economia processual sem precedentes, diminuindo, de forma gradativa, os processos que perduram anos esperando uma sentença no judiciário.
Assim, em que pese o nosso sistema processual estar avançado em termos de aplicação da terceira onda renovatória de acesso à justiça, ainda há muito trabalho pela frente, tanto na criação e ampliação de CEJUSC’s em todo o Brasil, como na efetivação da mediação e conciliação da maneira correta, deixando a cargo do mediador e conciliador judicial a tarefa de tentar resolver a lide de maneira eficaz, gerando, por consequência lógica, a diminuição de processos em tramitação.
Por fim, necessário se faz a introdução paulatina do hábito de resolver os conflitos antes da litigiosidade acirrada, trilhando um caminho de pacificação dos conflitos. Assim, como bem ensina Fernanda Tartuce (2012, p. 153) “para mudar o padrão de comportamento, porém, deverá ser envidado grande esforço coletivo. Não basta mobilizar apenas um dos elos; a adoção de técnicas diferenciadas exige significativa mudança de postura de todos os integrantes da cadeia do conflito [...].’’
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como escopo o estudo da universalização e da multiplicação de direitos a partir do século XX, bem como pretendeu analisar as três ondas renovatórias de acesso à justiça, fruto de um estudo realizado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth.
Assim, foi analisada a Constituição Federal de 1988, o Código de Processo Civil de 2015 e a doutrina acerca do tema.
Ainda, abordou-se que com a positivação de mais direitos a partir da Constituição Federal, os cidadãos começaram a assoberbar o judiciário com vários processos, gerando a eclosão da litigiosidade e a falta de mecanismos para lidar com toda essa problemática.
Ademais, verificou-se que as lides poderiam ser facilmente sanadas com a consensualidade e foi justamente por isso que o novo Código de Processo Civil adotou esta como princípio norteador de todo o sistema jurídico processual, buscando a adoção de métodos que vislumbrem a cooperação entre todos os sujeitos processuais, um claro fomento à resolução rápida da lide, gerando economia processual e um alívio para o judiciário em si.
Em síntese, o presente artigo teve a intenção de demonstrar, a partir da construção da argumentação jurídica e de uma análise procedimental e lógica, que se faz necessária a efetiva implementação da terceira onda de acesso à justiça, saindo do Código de Processo Civil para se tornar prática, acarretando no dever do judiciário adequar-se para a resolução da lide através dos meios autocompositivos de conflitos.
REFERÊNCIAS
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Mestranda em Direito Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP e advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PELEGRINI, LUIZA BESKOW. A litigiosidade no Brasil: considerações acerca da multiplicação dos direitos e da implementação da terceira onda de acesso à justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2020, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54649/a-litigiosidade-no-brasil-consideraes-acerca-da-multiplicao-dos-direitos-e-da-implementao-da-terceira-onda-de-acesso-justia. Acesso em: 22 nov 2024.
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