1.Introdução
A Constituição Federal de 1988 estipula em seu artigo 37 que a Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá ao princípio da eficiência. Atualmente, o modelo de administração gerencial é aquele adotado pela Administração Pública, visando à eficiência e ao afastamento do ultrapassado cenário de burocracia dos aparelhos estatais.
Segundo essa perspectiva, enfatizam-se as descentralizações política e administrativa, a implantação de formatos organizacionais com reduzidos níveis hierárquicos, a flexibilidade, o controle de resultados, o estímulo à confiança, o diálogo, o consenso e, por fim, a atenção voltada para o atendimento do cidadão e aberta ao controle social.
Essa ideia tem consonância com o denominado Estado consensual, cuja filosofia de sustentação foi assim descrita pela doutrina de Moreira Neto:
“Perfil estatal em um mundo globalizado, [que] alude à figura do Estado consensual, que é pautado pela procura constantemente da solução negociada de seus conflitos, pois o diálogo entre sociedade e administração pública viabiliza com mais chances o cumprimento espontâneo das decisões consensuais, na medida em que há a concordância das partes envolvidas, reforçando, inclusive, a sua legitimidade.
(...)
“Essas posturas indicam a busca incessante das soluções negociadas, nas quais a consensualidade aplaina as dificuldades, maximiza os benefícios e minimiza as inconveniências para todas as partes, pois a aceitação de ideias e de propostas livremente discutidas é o melhor reforço que pode existir para um cumprimento espontâneo e frutuoso das decisões tomadas. O Estado que substituir paulatinamente a imperatividade pela consensualidade na condução da sociedade será, indubitavelmente, o que garantirá a plena eficiência de sua governança pública e, como consequência, da governança privada de todos os seus setores”[1]
Nesse cenário, urge discutir ponto bastante sensível na seara da Administração Pública concernente às relações de trabalho existentes no seu âmago, vale dizer, entre servidores públicos, em especial de diferentes graus hierárquicos.
2.Da consensualidade nas relações de trabalho no ambiente público
Não se nega a existência de diversos poderes-deveres da Administração Pública, entre eles o denominado hierárquico com o fito de organizar e distribuir as funções de seus órgãos, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores públicos, elemento cotidiano da organização e ordenação dos serviços administrativos.
Pela hierarquia é determinado ao subordinado a estrita obediência das ordens e instruções legais superiores. Em consequência, o superior hierárquico poderá dar ordens e fiscalizar o seu cumprimento, delegar e avocar atribuições, além de rever atos dos subordinados.
Em que pese este cenário, não se pode olvidar que o modelo gerencial de Administração Pública não tem o seu foco no fortalecimento dos vínculos de subordinação hierárquica. Pelo contrário, a ênfase é justamente no sentido inverso a fim de que haja a maior horizontalização possível nas relações de trabalho.
A título de exemplo, a Lei Delegada Estadual nº 47/2015, institui o modelo de gestão da Administração Pública do Poder Executivo de Alagoas, e fixa a seguinte diretriz:
CAPÍTULO III
DAS DIRETRIZES
Art. 5º O Poder Executivo, como agente do sistema de administração pública estadual, objetivando a melhoria das condições culturais e sociais do povo alagoano, bem como a correta aplicação dos meios e recursos que mobilizam sua ação executiva, agirá pautado nas seguintes diretrizes:
(...)
IV – horizontalidade nas relações de trabalho, de forma a proporcionar a divisão de responsabilidades dos servidores ocupantes de cargos e funções estruturais e que estejam posicionados em qualquer das linhas da administração do Estado;
No mesmo sentido, a Lei Estadual de Alagoas nº 6.754/2006 já dispunha que:
Art. 2º O exercício de cargo efetivo ou em comissão, emprego público ou função de confiança exige conduta compatível com os preceitos deste Código e com os demais princípios da moral individual, social e funcional, em especial com os seguintes:
(...)
XV - o servidor público que trabalha em harmonia com a estrutura organizacional, respeitando seus colegas e cada concidadão, colabora e de todos pode receber colaboração, pois sua atividade pública é a grande oportunidade para o crescimento e o engrandecimento do Estado de Alagoas.
Art. 4º São deveres fundamentais do servidor público:
(...)
XVIII - facilitar a fiscalização de todos os atos ou serviços por quem de direito;
As normas acima citadas, de modo exemplificativo, ratificam esse pensamento segundo o qual não há espaço para imposições e condutas autoritárias no âmbito da Administração Pública. As decisões administrativas devem se pautar pela busca do diálogo, da colaboração e da horizontalização de relações de trabalho, na perspectiva da construção de consensos.[2]
Volvendo os olhos para o tema da consensualidade, a conduta dos servidores públicos deve ser o debate e a negociação constante com interessados nas medidas ou reformas que se pretende adotar, individualmente ou em grupos, na tomada de decisões das autoridades administrativas. Por exemplo, mediante conselhos, comissões, reuniões e grupos de trabalhos, entre outras formas de diálogo institucional.
Não por outra razão, a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) – Decreto-Lei nº 4.657/1942 – garante o seguinte:
Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.
Em outras palavras, deve haver a busca pela concretização do princípio da consensualidade na tomada de decisão no âmbito do serviço público. A doutrina de Odete Medauar já alertava para essa perspectiva, há quase 2 (duas) décadas, conforme abaixo se transcreve:
A atividade de consenso-negociação entre Poder Público e particulares, mesmo informal, passa a assumir papel importante no processo de identificação de interesses públicos e privados, tutelados pela Administração. Esta não mais detém exclusividade no estabelecimento do interesse público; a discricionariedade se reduz, atenua-se a prática de imposição unilateral e autoritária de decisões. A Administração volta-se para a coletividade, passando a conhecer melhor os problemas e aspirações da sociedade. A Administração passa a ter atividade de mediação para dirimir e compor conflitos de interesses entre várias partes ou entre estas e a Administração. Daí decorre um novo modo de agir, não mais centrado sobre o ato como instrumento exclusivo de definição e atendimento do interesse público, mas como atividade aberta à colaboração dos indivíduos. Passa a ter relevo o momento do consenso e da participação.[3]
A par disso, no trato das relações de trabalho na seara do setor público é necessário que haja um fortalecimento constante do aspecto consensual. O consenso favorecerá, indubitavelmente, a uma cultura de participação, compreensão, empatia, cooperação, reciprocidade, compartilhamento, feedback, estímulo, motivação, valorização, acolhimento, iniciativa, autoestima e respeito, além de ser fomentador da legitimação de decisões administrativas.
É preciso estimular a criatividade nas relações humanas laborativas. O ato de criação no serviço público é essencial para a evolução estatal. E sem liberdade não há criação. Inexistindo criação, o avanço não virá. Esse fator é mais sentido, inclusive, em cargos ou empregos públicos cujas atribuições são de natureza intelectual, como advogados, arquitetos, professores, pesquisadores, médicos, entre outros.
Em que pese relevantes, pouco adianta se falar em métrica, auditoria, governança, metas, accountability (responsabilização), transparência, inteligência artificial, informatização, teletrabalho, planejamento estratégico, produtividade, gestão, inovação, qualidade, probidade, combate à corrupção, entre tantos outros valores de uma Administração Pública pautada no modelo gerencial, se o principal elemento não for valorizado: o ser humano. O desprezo à humanização é a falência da Administração Pública, porque as pessoas são o combustível que move a máquina estatal.
O pressuposto para a realização de todos estes valores é, indiscutivelmente, o aspecto humano. A humanidade nas relações de trabalho deve imperar, pois sem ela não existirá o êxito que se procura na valorização do trabalho humano. Muitas vezes, por exemplo, um não bem dito é melhor que um sim mal dito. O diálogo sincero, aberto e plural desarma. Isto acontece porque a sensibilidade é algo inato ao ser humano. E isto se aplica às relações de trabalho, haja vista que o convívio laboral sem diálogo e consenso é um caminho sem frutos positivos para os servidores públicos envolvidos.
Atualmente, ao se falar em boa administração pública não se pode rejeitar essa preocupação do aspecto dialógico, como bem leciona Juarez Freitas:
(A) o direito à administração pública transparente, que supõe evitar a opacidade (salvo nos casos em que o sigilo apresentar justificável, e ainda assim não-definitivamente), com especial ênfase para o direito à informação inteligível sobre a execução orçamentária e sobre o processo de tomada das decisões administrativas que afetarem direitos; (B) o direito à administração dialógica, com garantia do contraditório e da ampla defesa – é dizer, respeitadora do devido processo (inclusive com duração razoável), que também implica o dever de motivação consistente; (C) o direito à administração pública imparcial, isto é, aquela que não pratica nem estimula discriminação negativa de qualquer natureza e, ao mesmo tempo, promove discriminações inversas ou positivas (redutoras das desigualdades injustas); (D) o direito à administração pública proba, que veda condutas éticas não universalizáveis, sem implicar moralismo ou confusão entre o legal e o moral, uma vez que tais esferas se vinculam, mas são distintas; (E) o direito à administração pública respeitadora da legalidade temperada, ou seja sem a “absolutização” irrefletida das regras; (F) o direito à administração pública preventiva, precavida e eficaz (não apenas eficiente), pois comprometida com resultados harmônicos com os objetivos fundamentais da Constituição, além de redutora dos conflitos intertemporais, que só fazem aumentar os chamados custos de transação.[4]
Esse direito à administração dialógica acima citado pelo eminente doutrinador recomenda que as relações de trabalho no âmbito estatal sejam interativas e não meramente impositivas. Traduzam-se em meios de crescimento pessoal do servidor público, notadamente como garantia do seu direito à saúde física e mental. É urgente enxergar o ser humano que existe em cada servidor público e tratar as relações de trabalho no serviço público sempre sob esta premissa.
E é isto que se pretende na presente discussão: lançar luzes sobre a obscuridade que não pode persistir no desprezo do aspecto humano em pseudos modelos gerenciais de Administração Pública. É preciso ser real. Ser verdadeiro. Ser humano.
3.Conclusão
Em síntese, a valorização das relações de trabalho deve existir com o fim de garantir a dignidade da pessoa humana. Sem as pessoas não há eficiência real no serviço público, mas mera dissimulação de resultados, quando não ausência destes.
E, muitas vezes, pela falta do consenso não se atinge a meta constitucional de prestar um serviço público de qualidade. O desafio é superar o pensamento antiquado do modelo de gestão burocrática, substituindo a ordem impositiva por um simples e saudável diálogo. A ausência deste gera a falta de reciprocidade, com resultados desastrosos.
A partir dos consensos e dos diálogos se constroem os entendimentos que geram as mudanças e transformações. O simples ato de dialogar, na acepção do princípio da consensualidade, rejeita os radicalismos e violências institucionais, trazendo a marca da sociabilidade. O consenso e o diálogo nas relações de trabalho, em essência, são as sementes de uma nova Administração Pública. É preciso regá-las, não as desprezar. Enfim, ter em mente e colocar em prática que deve haver menos verticalização e mais horizontalização nas relações de trabalho.
4.Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 04 jun. 2020.
_____. LINDB. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm>. Acesso em: 04 jun. 2020.
_____. Lei Delegada nº 47/2015. Disponível em: < http://www.gabinetecivil.al.gov.br/legislacao/>. Acesso em: 04 jun. 2020.
_____. Lei Estadual nº 6.754/2006. Disponível em: < http://www.gabinetecivil.al.gov.br/legislacao/>. Acesso em: 04 jun. 2020.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, direito e Estado: o direito administrativo em tempos de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 142-143
POMPEU, Gina Vidal Marcílio; MARTINS, Dayse Braga. A autocomposição de conflitos no contexto do neoprocessualismo civil e o princípio da consensualidade. Scientia Iuris, Londrina, v. 22, n. 2, p. 85-114, jul. 2018.
MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 211.
FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 20-21.
[1] In Poder, direito e Estado: o direito administrativo em tempos de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 142-143
[2] POMPEU, Gina Vidal Marcílio; MARTINS, Dayse Braga. A autocomposição de conflitos no contexto do neoprocessualismo civil e o princípio da consensualidade. Scientia Iuris, Londrina, v. 22, n. 2, p. 85-114, jul. 2018.
[3] In O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 211.
[4] In Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 20-21.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Princípio da consensualidade e horizontalização das relações de trabalho na Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2020, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54662/princpio-da-consensualidade-e-horizontalizao-das-relaes-de-trabalho-na-administrao-pblica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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