RESUMO: O presente artigo tem como escopo analisar a influência da televisão como meio de regulação de relações humanas no favorecimento da manutenção de poder pelas emissoras televisivas e pelos responsáveis pela veiculação das notícias, bem como a estigmatização de pessoas e estereotipização de seletos grupos, abordando viés criminológico do movimento Lei e Ordem e do Labelling Aproach.
Palavras-chave: televisão; seletividade; estereotipização; Movimento Lei e Ordem; Labelling Aproach.
Introdução
A televisão é objeto presente em praticamente todas as residências e vidas brasileiras, sendo que seu fácil acesso permite a veiculação de ampla gama de notícias, informações e entretenimento ao público.
Por outro lado, tal dispositivo atrai fortemente a indústria de consumo e de detentores de poder, já que pode ser utilizado como meio de veiculação de ideias, seleções ou aniquilações de pensamentos, influenciando a sociedade que, muitas vezes sem perceber, se alinha aos ditames do exposto nas imagens, cores e sons.
Este artigo traz, em seu primeiro capítulo, o conceito de televisão utilizada neste trabalho, bem como a presença massiva do objeto nas residências brasileiras, consoante últimas estatísticas realizadas. Ainda, são levantados motivos pelos quais a população brasileira adere massivamente ao consumo televisivo.
No segundo capítulo são trazidos fundamentos justificantes da seletividade presente no meio televisivo pelos seus detentores de poder, quais conseguem conquistar os telespectadores conforme suas finalidades.
Por conseguinte, as relações existentes entre a sociedade televisiva e as teorias criminológicas são expostas, no tocante ao Movimento Lei e Ordem e ao labelling aproach, sendo este também conhecido como etiquetamento social.
Por fim, o programa nacional trazido pelo vizinho Uruguai, chamado “Estrategias por la vida y la convivencia”, ganhou destaque em capítulo próprio neste artigo, sendo apresentados motivos e políticas que levaram tal país à regulamentação, fiscalização e restrição da veiculação de programas policiais televisivos em canais abertos.
1. A televisão como instrumento midiático e sua massiva presença nas residências brasileiras
Embora a televisão possua uma gama distinta de conceituações – aparelho receptor de imagens televisionadas (MICHAELIS, 2018) transmissão e recepção de imagens visuais (MICHAELIS, 2018), emissora que transmite imagens (MICHAELIS, 2018), meio de comunicação (MICHAELIS, 2018), exposição perigosa das diferentes esferas de produção (BOURDIEU, 1997, p. 7), bem selecionado pelo sistema espetacular (DEBORD, 1997, p. 21), dentre tantas outras –, este artigo terá como escopo seu conceito a partir de um “dispositivo formador de comunidade” (TIBURI, 2011, p. 15), isto é, regulador de relações humanas por intermédio da via acessível que a televisão-objeto oferece.
O referido dispositivo é quase que totalmente presente nos lares brasileiros, vez que 97,2% das residências no país possuem, ao menos, uma televisão-objeto, conforme dados do IBGE (IBGE, 2016) de 2016 – porcentagem, inclusive, 7,18% maior quando comparada aos dados de 2003 (IBGE, 2003).
Contudo, o objeto não apenas existe nas residências brasileiras, de maneira isolada ou esquecida. A televisão ainda é o meio de comunicação mais procurado pelas pessoas quando o assunto é informação e notícias, consoante pesquisa realizada pelo IBOPE. Além disso, mais de três quartos do grupo pesquisado assistem-na todos os dias da semana e, como tempo médio de acesso, supera-se três horas diárias (SECRETARIA ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, 2016).
A presença massiva da televisão nos lares e os grandes números que transparecem sua cotidiana vivência com os telespectadores brasileiros são explicadas de diversas maneiras: aproximadamente 75% da população do país possuem algum tipo de analfabetismo funcional, impossibilitando a compreensão de artigos de jornais, revistas, ou outros escritos (NATALINO, 2007, p. 25); incessante exposição da imagem no contexto do tempo da pressa, devido à globalização (TIBURI, 2011, p. 19); ou mesmo o sentimento de presença coletiva ao saber o que, como e onde, possivelmente, outras pessoas também saberão:
“[...] pensemos nesta comunidade constituída no caráter coletivo do olhar televisivo e sua garantia de emoção oceânica. A impressão impagável de que o que se vê é real justamente por ser visto por todos é o que constitui o valor da comunidade a que chamamos de audiência. E, se todos veem, a garantia existencial de que não estamos sós vale mais ainda. [...] Não apenas o desejo de ter audiência, de ser visto, mas de ser audiência, de constituir a comunidade voyeuse, a comunidade ligada pelo olho ideal, o olho de vidro. A comunidade ideal do olho absoluto capaz de realizar todas as fantasias, inclusive a fantasia do real” (TIBURI, 2011, p. 35).
Além do “forte sentimento comunitário transcendental do olhar” (TIBURI, 2011, p. 35), o meio de comunicação televisivo estabelece a relação dentre, de um lado, os detentores de poder midiático e, de outro, os telespectadores, de forma que aqueles o utilizam como sistema de produção, transmissão e recepção de imagens administradas, para que se atinja a massa coletiva passiva das imagens.
O contato de quem assiste à televisão não é apenas com a tela (TIBURI, 2011, p. 33) como bem dito: por trás da tecnologia das imagens há pessoas que comandam o que será veiculado, como será dito e, principalmente, as imagens que serão lançadas, de modo que a finalidade da matéria seja transmitida de maneira simples, comum a todos, viável economicamente e acessível em tempo e espaço.
Como dito pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, o alarmante perigo político presente no uso da televisão se dá devido ao chamado “efeito de real”, isto é, à transmissão de imagens, cores e sons que possuem a capacidade de fazer ver e crer no que se faz ver. Assim, o que é transmitido pode emergir, limitar ou mesmo aniquilar ideias, representações e grupos:
“As variedades, os incidentes ou os acidentes cotidianos podem estar carregados de implicações políticas, éticas, etc. capazes de desencadear sentimentos fortes, frequentemente negativos, com o racismo, a xenofobia, o medo-ódio do estrangeiro, e a simples narração (...) implica sempre uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização (ou de desmobilização).” (BOURDIEU, 1997, p. 25)
A sociedade passa, então, a ser caracterizada de forma massiva e individualista, integrada e idiotizada (HABERMAS, 1997, p. 104) pelos meios de comunicação de massa – inclusa, por óbvio, a televisão -, de modo que se torne psicologicamente adequada aos meios de produção econômico-capitalistas e politicamente incapazes de debater temas e discursos de maneira dialética e pública, reduzindo a capacidade reflexiva dos telespectadores.
Assim, a mídia televisiva mostra-se eficaz em alcançar credibilidade da massa telespectadora, legitimando o poder midiático: “a mídia tem, na contemporaneidade, o poder de instituir o que é ou não real, existente” (GUARESCHI, 2007, p. 9).
2. A seletividade discursiva presente na televisão e sua captação pelo público
A televisão analisada do ponto de vista da regulação de relações humanas difunde imagens e informações como pontos centrais vivenciados de maneira cotidiana pela sociedade, preenchendo o chamado “senso de telerrealidade” ou “senso de hiper-realidade” (NATALINO, 2007, p. 56).
Esse sentimento dividido por grande parte – se não todos – os telespectadores produz o consenso sobre a realidade; contudo, a seleção da exposição acerca da matéria veiculada é realizada pelos planos de referência televisivos e, em especial, pelo telejornalismo.
Sobre este ponto, Bourdieu afirma que tal seleção parte da busca pelo sensacional, pelo espetacular, de modo que a dramatização choque a sociedade, ainda que se utilize de exageros, maiores gravidades ou aumento do caráter trágico (BOURDIEU, 1997, p. 25).
Essa exasperação do fato analisado é chamada, por muitos, de sensacionalismo (SOUZA, 2009, p. 7), sendo que o deslocamento do foco do objeto passa por amplificação exagerada a ser consumida – e adorada – pelos telespectadores da indústria televisiva, pouco importando o deturpamento da notícia ou a inserção de falsas informações.
Seja qual for o método para se chegar ao público alvo, este compreende facilmente o discurso criminológico midiático: a fundamentação de ética simplista, como, por exemplo, a paz, quando comparada aos ditames históricos (“utopias urbanas retrógradas”), ou a ideologias diárias intangíveis, ganha facilmente o receptor autoconsiderado “politicamente correto” (BATISTA, 2002, p. 7). Jock Young aduz que a montagem rápida produzida pela televisão envolve o público, que enxerga rapidamente a fórmula da simplicidade unidimensional e da solução rápida para os problemas vivenciados (YOUNG, 2002, p. 190).
Marcia Tiburi afirma, inteligentemente, a lógica do espectro presente na relação entre a televisão e o telespectador, sendo tal relação considerada como poder de polícia:
“[...] a televisão deve ser lida no cerne desta “lógica do espectro” porque também ela lida com o poder de polícia ínsito na política enquanto se dispõe em imagem soberana aos olhos de quem vê. Poder de polícia é poder de vigiar e punir, não apenas o criminoso que deseja fugir, mas o telespectador em seu corpo docilizado. [...] Se todos vemos o mesmo, se fazemos o mesmo, estamos todos desculpados e irresponsabilizados igualmente como em qualquer sistema corrupto”. (TIBURI, 2011, p. 222-223).
Há, assim, clara indissociabilidade da relação existente entre a seleção dos fatos realizada pelo jornalismo e os grupos ou sociedades que serão atingidas pelas informações. Bourdieu chama tal relação de “estrutura possível” (NATALINO, 2007, p. 49):
“possibilidade de cristalização das relações sociais, somente passível de compreensão a partir da análise de suas características dentro do contexto social em que tal processo de estruturação se concretiza. Em suma, há uma indissociabilidade entre a teoria do jornalismo e sua produção e a investigação empírica do contexto em que se produzem as notícias”.
No tocante ao telejornalismo policial, isto é, programas e jornais televisivos que noticiam fatos oriundos de conflitos (NATALINO, 2007, p. 51), a veiculação da notícia é selecionada do objeto central, qual seja, o fato do ponto de vista do meio de controle social formal da polícia, transpassando-se para um viés de reafirmação de valores sociais vigentes, de normas legais e de punições impostas aos que contrariam à ordem.
Não se deve deixar de dizer que a maneira como o acontecimento será veiculado depende, por óbvio, do telejornalista, de sua equipe, dos chefes editoriais e do viés político pelo qual a emissora e/ou programa se inserem, bem como da captação do público telespectador atingido. Contudo, ampla gama das notícias é trazida de fatos concretos, ainda que exasperados – e não de opiniões, por exemplo -, a fim de que se dê ainda mais credibilidade ao informado.
Nilo Batista menciona em seu artigo “Mídia e Sistema Penal” a eficaz omissão de certos assuntos de base pelo campo informativo, a fim de que se destaque, propositalmente, o merecimento do que se informa, como, por exemplo, a ênfase dada em pessoas que oferecerem drogas para finalidade lucrativa e a boa ousadia dos jornalistas que se passam por usuários-compradores, em detrimento de se camuflar os índices e as razões de desempregos e miséria dos locais analisados (BATISTA, 2002, p. 12).
Assim, em muitos dos casos, o ponto central acontecido na seara conflituosa passa-se pela análise, seleção e acréscimo pelo jornalista de comoção, exasperação e valorização da contraconduta, chegando-se a construção própria da narrativa da notícia. Natalino chama tal construção de “gênero da literatura romântica”, isto é, soa quase que como um romance diário fictício.
Observa-se que o discurso criminológico acadêmico se distancia do discurso criminológico midiático neste ponto, vez que o primeiro, ainda que mais franco, necessita de imposições perante a sociedade, destacando-se de seus concorrentes, a fim de que se legitime e se dê credibilidade às suas conclusões. O discurso criminológico midiático, por outro lado, preenche tais condições, fantasiando ações para chegar, com êxito, à influência devida (BATISTA, 2002, p. 6).
Nos dias atuais, a espetacularização da violência e das notícias referentes a criminalidades e fatos conflituosos se ploriferaram e passaram aos horários chamados de “picos” de audiência televisivos, ou seja, horários acessíveis ao público, propagadas em canais abertos, nos intervalos de almoço e após as 20 horas.
Neste cenário, as notícias sensacionalistas não trazem apenas o fato isolado: além de toda a dramatização, trazem, principalmente, a seletividade de indivíduos em tese autores das notícias conflituosas, desenvolvendo-se categorizações de pessoas na teletransmissão, como “criminosos”, “favelas”, “presidiários”, “traficantes”, dentre tantos outros representativos e marcantes nomes.
O pano de fundo das categorizações vai muito além de pejorativos ou taxativos nomes aos indivíduos e/ou grupos. A pauta de luta política pela “legítima classificação simbólica do mundo” (NATALINO, 2007, p. 57) e a manutenção de poder de classes são estruturas essenciais na política da teletransmissão brasileira:
“Nisso consiste o poder central do telejornalismo: o poder de associar imagens e discursos, sua capacidade de selecionar ações humanas, grupos sociais e instituições e conjugá-los a partir do uso de rotulações e categorias que, por definição, jamais são neutras. É condição inescapável ao próprio exercício do telejornalismo ser difusor de rótulos e categorias que serão internalizadas por seus espectadores”. (NATALINO, 2007, p. 58)
Tem-se, assim, filtros seletivos da realidade vivenciada e das representações coletivas pelo próprio telejornalismo, sendo que estes constroem e delimitam a realidade social de seus telespectadores.
Logicamente, a estruturação seletiva mencionada é perigosa, já que a densidade política de formação de comunidade é exposta à mercê das produtoras de telejornalismos, que identificam como elementos centrais influenciadores o poder atribuído ao grupo telespectivo, bem como a capacidade de seleção de ações humanas, grupos sociais e instituições, convertendo-os em rotulações e categorias a serem inseridas pelos telespectadores (NATALINO, 2007, p. 58).
Além disso, não se deve afastar também a pressão econômica mercadológica trazida por trás da televisão (BOURDIEU, 1997, p. 81):
“[..] através da pressão do índice de audiência, o peso da economia se exerce sobre a televisão, e através do peso da televisão sobre o jornalismo, ele se exerce sobre os outros jornais, mesmo sobre os mais “puros”, e sobre os jornalistas, que pouco a pouco deixam que problemas de televisão se imponham a eles.”
Isso porque o capitalismo tardio influiu decisivamente para a especificação das notícias televisivas. Os considerados “desajustados” da conjuntura pós-feudal deveriam ser executados a fim de se tornarem mão-de-obra útil do novo panorama econômico, transformando a economia liberalista em poder punitivo onipresente e capilarizado, “para controle penal dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza” (BATISTA, 2002, p. 3).
De uma forma ou de outra, tem-se a comunicação televisiva como meio formador social seletivo, como bem enuncia Zaffaroni ao afirmar as “agências de comunicação social” como uma das eficazes agências do sistema penal (ZAFFARONI, 2003, p. 138), aptas a influir, por meio de imagens, cores e sons, os ideais e as políticas a serem facilmente aderidas pelo público-alvo.
3. Sociedade televisiva diante do Movimento Lei e Ordem e do etiquetamento social
Pierre Bourdieu traz a menção ao fast-thinking, quase que comparado aos fast-foods, teorizando que a acessível e pronta informação de ideias feitas são prestadas pelas mídias televisivas a fim de que as pessoas se satisfaçam de suas fomes sociais – sejam orgânicas, sejam intelectuais –, de maneira rápida e urgente (BOURDIEU, 1997, p. 38).
As ideias feitas conseguem cativar o que já se encontra preconcebido, preenchem o espaço já ocupado da informação, de maneira comum e banal:
“Com efeito, é preciso perguntar por que eles são capazes de responder a essas condições inteiramente particulares, porque conseguem pensar em condições nas quais ninguém mais pensa. A resposta é, ao que me parece, que eles pensam por ‘ideias feitas’. As ‘ideias feitas’ de que fala Flaubert são ideias aceitas por todo mundo, banais, convencionais, comuns, mas são também ideias que, quando as aceitamos, já estão aceitas, de sorte que o problema da recepção não se coloca [...]. A comunicação é instantânea porque, em certo sentido, ela não existe. Ou é apenas aparente”. (BOURDIEU, 1997, p. 40)
O referido autor questiona a possibilidade da reflexão e do pensamento quando a égide da velocidade permeia as relações. Indo além, observa-se que tanto a velocidade como o fluxo constante de novas informações prejudica o pensar, de modo que as ideias feitas são aceitas, aderidas e socialmente solucionadas.
Neste ponto, a chamada “massificação” trazida pelos meios de comunicação de massa, também chamada de mass media, subestima a capacidade pensante de resistência (BOURDIEU, 1997, p. 38), de modo que os passageiros das informações-ônibus são atingidos indistintamente pelos efeitos políticos e culturais resultantes da transmissão.
Não por coincidência, os estereótipos são trazidos como elementos de domínio da comunicação de massa, isto é, como características essenciais ao fortalecimento do senso comum propagado pelo mass media:
“A estratégia de domínio da indústria cultural vem, portanto, de longe e dispõe de múltiplas tácticas. Uma delas consiste na estereotipização [...]. Como a estereotipização da matéria é triunfo do capital investido – que se interessa pelos indivíduos apenas como clientes e empregados – a tendência progressiva da estereotipização para se transformar num conjunto de protocolos é imparável. Mas quanto mais os estereótipos se materializam e fortalecem [...], provavelmente, tanto menos as pessoas modificam suas ideias preconcebidas com o aumento da sua experiência.” (ADORNO, 1954, apud WOLF, 1995: 80).
Aliada aos efeitos trazidos pela eficaz transmissão televisiva, a cultura brasileira adere, infelizmente, as lógicas hierárquicas de distinção social, motivo pelo qual os telespectadores, de um lado, se consideram “politicamente corretos”, enquanto, de outro, aceitam a taxativa de que o exposto na imagem noticiada é o “criminoso”, já que este ofendeu a ordem imposta.
Tem-se também o sentimento de medo por parte da população, inclusive no tocante ao direito penal, vez que não querem ser expostos aos meios de comunicação, ou sofrer os efeitos de uma condenação criminal, ou mesmo serem vítimas daqueles indivíduos selecionados e noticiados na mídia. Para isso, fecham suas casas, pois o “homem-inimigo” está do lado de fora (FERNANDES, 2007, p. 49).
Natalino afirma que esse medo é ocasionado pela ausência de segurança devida, o que faz com haja penalização das condutas (NATALINO, 2007, p. 64). Assim, surge-se o consenso, o reforço dos laços comunitários, a coerção moral e a pena como instâncias de autoridade em uma “sociedade de indivíduos atomizados”.
Neste contexto, pautam-se as ideologias trazidas por escolas criminológicas caracterizadas pelo Movimento Lei e Ordem e pelo etiquetamento social (labelling aproach).
O Movimento Lei e Ordem surgiu em meados da década de 1970, nos Estados Unidos, em razão da preocupação com o aumento da criminalidade e com o anseio por soluções aos problemas decorridos dos delitos. O movimento é baseado na ideologia repressiva como contensão do inimigo criado através do medo.
O caráter da pena ganha destaque no Movimento Lei e Ordem, caracterizando-se, principalmente, pelo viés do castigo e da retribuição.
Além do enfoque na pena, são trazidas soluções imediatas para o problema da segurança pública, a serem aderidas e defendidas amplamente pelos indivíduos: prisões provisórias, recrudescimento de penas (regime disciplinar diferenciado no Brasil, por exemplo), grande repressão em torno de crimes considerados graves (Lei de crimes hediondos), maior rigidez na execução das penas, dentre outras tantas medidas simbólicas trazidas como cumpridoras da garantia de segurança pública.
Não à toa, tem-se notoriamente crescente o apelo à marginalização e à exclusão social de acusados e/ou condenados de delitos, como, por exemplo, o apoio de 57% dos brasileiros à pena de morte (FOLHA, 2018) – maior índice desde 1991, quando iniciada a pesquisa Datafolha – e a grande margem de 87% dos brasileiros (FOLHA, 2018) que anseiam pela redução da maioridade penal.
A teoria que ganhou mais apelo ao Movimento Lei e Ordem é a chamada “Janelas Quebradas” (Broken Windows), desenvolvida por James Q. Wilson e George Kelling.
Os referidos autores publicaram estudo em 1982, na revista Atlantic Monthly, trazendo a relação de causalidade existente entre desordem e criminalidade. De modo didático, exemplificaram janelas quebradas para explicar de que maneira a desordem e a criminalidade poderiam, aos poucos, se inserirem na sociedade, causando o rebaixamento da qualidade de vida da população:
“O estudo realizado pelos criminologistas teve por base uma experiência executada por um psicólogo americano, Philip Zimbardo. Philip deixou um carro estacionado em um bairro de classe alta na cidade de Palo Alto, Califórnia. Na primeira semana, o veículo permaneceu intacto. Contudo, após ter uma de suas janelas quebradas, após poucas horas o automóvel estava completamente danificado, tendo sido após furtado por marginais locais. Nesse espeque, ampliando a análise situacional, se uma janela de uma fábrica ou escritório fosse quebrada e não fosse, incontinenti, consertada, quem por ali passasse e se deparasse com a cena logo iria concluir que ninguém se importava com a situação e que naquela localidade não havia autoridade responsável pela manutenção da ordem. Logo em seguida, as pessoas de bem deixariam aquela comunidade, relegando o bairro à mercê de gatunos e desordeiros, pois apenas pessoas desocupadas ou imprudentes se sentiriam à vontade para residir em uma rua cuja decadência se torna evidente. Pequenas desordens levariam a grandes desordens e, posteriormente, ao crime.” (ANDRADE, 2001).
O Movimento divide a população em duas categorias distintas: aquelas pessoas que infringem a ordem e colocam em risco à sociedade, que não se sente mais segura, e aqueles indivíduos politicamente corretos, honestos e que correspondem às expectativas políticas da ordem: os chamados ‘regulares’ e os ‘estranhos’:
“The people were made up of "regulars" and "strangers." Regulars included both "decent folk" and some drunks and derelicts who were always there but who "knew their place." Strangers were, well, strangers, and viewed suspiciously, sometimes apprehensively” (KELLING, George L.; WILSON, James Q., 1982, p. 2).
Ressalta-se que esta corrente traz como brocardo os “direitos humanos para humanos direitos”, isto é, mantém garantias fundamentais existenciais somente para os indivíduos considerados honestos, livres de criminalidade e “politicamente corretos” (MACHADO, 2006, p. 449).
Além da Teoria das Janelas Quebradas, ganhou destaque a Política da Tolerância Zero, iniciada na cidade de Nova Iorque, em meados dos anos 1990. Por meio da utilização de instrumentos e sistemas repressivos drásticos aos delitos considerados de menor potencial ofensivo, reduziram-se os índices de criminalidade:
“A política da Tolerância Zero, símbolo maior da Broken Windows, é marcada pelo excesso do soberano e desumanidade das penas; um funcionalismo bipolar, um tudo ou nada, culpado ou inocente; um sistema binário, muito a gosto de uma pós-modernidade reducionista e maniqueísta”. (COUTINHO, 2003, p. 26).
Jock Young pontua que a política de tolerância zero tornou-se “chavão” da comunidade no tocante à segurança pública atual (YOUNG, 2002, p. 182), caracterizada pelo policiamento ostensivo, pela intolerância com atos contrários a ordem imposta, pela rejeição dos desvios e desviados e pela desordem urbana. A clássica frase “três vezes e você tá fora” ganha espaço e dito público comum à sociedade.
São trazidos seis importantes elementos da política de tolerância zero: 1) redução da tolerância para com crimes e desvios; 2) aplicação de pesadas medidas punitivas; 3) a exaltação do passado respeitoso, civilizado e ordenado; 4) consciência da relação entre as incivilidades cometidas pelos desviados e os delitos, sendo que estes seriam cometidos por conta da “qualidade de vida” do autor; 5) o credo sobre a existência entre a criminalidade e a incivilidade, no sentido de que, ausente esta última, a primeira provavelmente surgirá; 6) a inspiração trazida pelo texto Broken Windows, artigo publicado por James Q. Wilson e George Kelling.
Embora Young traga algumas das consequências vivenciadas pelos Estados Unidos, muitas também se aplicam ao Brasil: altas taxas de encarceramento populacional, política repressiva de guerra às drogas, punição de delitos que não afronta bem jurídico algum.
Em janeiro deste ano o atual presidente brasileiro eleito, Jair Bolsonaro, promulgou decreto executivo (Decreto 9.685/19) permitindo a aquisição de armas de fogo de uso permitido à população, desde que preenchidos requisitos necessários – requisitos estes que atendem características das pessoas autoconsideradas “politicamente corretas”: ser agente público ou militar; ou residente em área rural ou urbana em estados com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil habitantes, segundo dados do Atlas da Violência (todos os estados); ou dono ou responsável legal de estabelecimento comercial ou industrial; ou colecionador, atirador ou caçador registrado pelo exército, desde que tenha curso para tal, ao menos vinte e cinco anos, ocupação lícita, não responda a processo criminal ou inquérito, bem como não tenha antecedentes criminais.
Além do decreto, o presidente mencionou que tratará em seu governo acerca das questões aclamadas por parte da população, como a redução da maioridade penal, o recrudescimento da execução penal aos presos, maiores e mais rígidas penas, dentre outros polêmicos assuntos.
Não por coincidência, as pautas e posicionamentos trazidos pelo novo presidente colidem com parte dos telespectadores fast-thinking, quais, a partir da subjetividade, utilizam o tempo como aniquilação da figura livre e reflexiva do sujeito (TIBURI, 2011, p. 11), limitando-se a absorver os ditos aclamados por outras pessoas e reafirmados por agentes públicos em canais abertos e em horários acessíveis.
Ressalta-se, contudo, que a relação telespectador-televisão não é trazida apenas pelo Movimento Lei e Ordem.
A teoria criminológica do “etiquetamento social”, chamada também de “labelling approach”, surgiu com Howard Becker, Edwin Lemert e Edwin Shur, quais focavam em investigar questões como quem seria o indivíduo que comete ilícitos, como ele se torna um desviante ou, ainda, por que reincide no ilícito.
Para buscar soluções, os autores realizaram estudos que buscavam analisar a formação da “identidade” desviante e do “desvio secundário”, os motivos pelo qual havia o etiquetamento do indivíduo que divergia da ordem imposta, bem como a constituição do desvio frente ao comportamento social vivenciado, o poder punitivo e seu detentor e, por fim, o papel das agências de controle social.
Segundo a teoria, a chamada “delinquência primária” sustenta como a reação social ou a punição de um comportamento primário desviante gera a “delinquência secundária”, isto é, a mudança da identidade social do indivíduo estigmatizado, tendente a “permanecer no papel social no qual a estigmatização o introduziu” (BARATTA, 1999, 89).
Alessandro Baratta menciona, ainda, que:
“[...] as conotações da criminalidade incidem não só sobre os estereótipos da criminalidade, os quais, como investigações recentes têm demonstrado, influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a, desse modo, socialmente ‘seletiva’, mas também sobre a definição corrente de criminalidade, que o homem da rua, ignorante das estatísticas criminais, compartilha”. (BARATTA, 1999, p. 103).
A atualidade vivenciada traz os alicerces mercadológicos como fatores transformadores das esferas de produção e de consumo em larga escala, motivo pelo qual Jock Young afirmou que a certeza material e os valores incontestáveis deram lugar aos riscos e às incertezas, precárias economicamente e ontologicamente. Tal transição, infelizmente, é acompanhada por uma sociedade excludente (YOUNG, 2002, p. 15-23).
5. Política restritiva uruguaia sobre a teletransmissão de notícias policiais
A questão da violência sempre se legitima pela sua propagação, motivo pelo qual Hannah Arendt aduziu a necessidade de instrumentos para sua concretização (ARENDT, 1970, p. 4).
Enxergando nitidamente a televisão como um destes instrumentos eficazes utilizados pelas instâncias informais de poder, o Uruguai desenvolveu em 2012 o programa “Estrategias por la vida y la convivencia”, qual ensejava quinze pontos a serem politicamente implantáveis pelo país a fim de apaziguar discriminações e intolerâncias, bem como ameaças e violências.
Importante mencionar que a questão da influência midiática propagada pela televisão é colocada pelo referido programa ao lado de catorze outros pontos importantíssimos político-socialmente, como os casos de consumo problemático de drogas, da violência doméstica e da necessidade de transparência na atuação policial (URUGUAY, 2012, p. 10-15).
Especialmente no tocante ao ponto abordado sobre a televisão, o programa adotado pelo Uruguai expressamente menciona como fatores justificantes da abordagem:
“[...] em tanto los medios de comunicación, en especial la TV, ya no sólo reflejan la realidad sino que pueden amplificarla y multiplicarla, al generar imágenes e informaciones que terminan incluso, aunque no sea su intención, exaltando la violencia y estimulando conductas agresivas. Esto pasa cuando algunos medios manejan la información de manera irresponsable y sensacionalista, conviertiendo la información en um espectáculo, ya sea reiterando imágenes de violencia excessiva o mostrando imágenes ostensiblemente crueles o que exaltan el sufrimiento de personas u otros seres vivos.” (URUGUAY, 2012, p. 13).
O país menciona também a busca pelo equilíbrio entre o direito de informação individual sobre questões e debates públicos, principalmente os propagados pela televisão, e os direitos das pessoas divulgadas nos próprios meios (URUGUAY, 2012, p. 14), de modo de cada um reflita e dialogue sobre os limites existentes.
Ademais, o programa nacional ressalta as responsabilidades e as obrigações que as emissoras e os meios possuem quanto aos assuntos veiculados, de maneira que suas atuações sejam pautadas pela ética, imparcialidade e informação à sociedade.
Para atingir ao proposto, o país adota política restritiva dos meios de comunicação, qual seja, a obrigatoriedade de limitação de horário a programas policiais e de acompanhamentos de crimes em canais abertos, quais só podem veicular das 22 às 06 horas.
Primeiramente, observa-se que tal horário restrito obviamente diminui, proporcionalmente, o acesso à população a tais programas, vez que vai de encontro aos grandes horários de pico já mencionados, como horários de almoço e próximo às 20 horas.
Além deste aspecto, adota-se tal restrição com a finalidade de reduzir a criminalidade e seletividade veiculada em programas televisivos, afastando os telespectadores da fácil acessibilidade, principalmente no tocante às crianças e aos adolescentes.
Contrariamente ao país vizinho, o Brasil não desenvolveu nenhuma política neste sentido, deixando à mercê dos proprietários e das grandes emissoras a faculdade de horário, matéria e abordagem a ser adotada por cada um.
Interessante trabalho desenvolvido por Suzana Varjão aponta que, diante da ausência e/ou ineficiência de mecanismos estatais brasileiros, a própria sociedade civil e órgãos legitimados, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, denunciam frequentemente as ocorrências de violações de direitos veiculadas pela televisão (VARJÃO, 2015, p. 9). Contudo, há poucos resultados, vez que a alegação defensiva esbarra em direitos constitucionais de liberdade de informação e vedação a censuras, comumente atendidas pelo poder judiciário:
“No entanto, no Brasil, a defesa da liberdade de expressão tem sido usada para garantir a opinião justamente dos que possuem o aparato comunicacional, ou seja, os grandes grupos de comunicação. Ao serem questionados sobre o conteúdo que veiculam, tais grupos se utilizam desse direito fundamental para tentar garantir o seu próprio direito de reproduzir, em massa, discursos que ferem a dignidade de diferentes grupamentos e pessoas. É prática recorrente das emissoras de rádio e TV tacharem de censura qualquer esforço para se estabelecer uma regulação mínima para o campo da comunicação de massa. Assim, além da hegemonia da audiência, garantem a hegemonia do discurso que reproduzem. Segue, portanto, valendo a lei do mais forte, mesmo nos casos em que há sanções previstas em leis infraconstitucionais.” (VARJÃO, 2015, p. 11).
Por outro lado, diversos países além do Uruguai possuem políticas adotadas para regular e avaliar o conteúdo televisivo veiculado, não sendo apenas por meio de regras legislativas e normas sobre o assunto, vez que também possuem órgãos específicos de fiscalização e acompanhamento: Estados Unidos, França, Reino Unido, Canadá, Argentina e Portugal (VARJÃO, 2015, p. 12).
Nos países mencionados a avaliação e fiscalização são feitas efetivamente, influenciando inclusive o preenchimento de condições no momento da renovação de outorga da emissora com o governo, pois suas justificativas se pautam no caráter público do serviço prestado por empresas concessionárias de televisão.
Considerações finais
As estatísticas expostas ao longo deste artigo reafirmam a importância da televisão na vivência diária dos brasileiros, quais consomem a produção televisiva por diversos motivos, como a facilidade da veiculação diante dos índices de analfabetismo funcional no país, ou a exposição rápida e eficaz da imagem no tempo da pressa e da globalização, ou mesmo diante do “sentimento transcendental do olhar”, isto é, da obtenção de conhecimento que possivelmente outras pessoas também terão.
Os veículos propagados pela mídia no campo televisivo são legitimados e respeitados pelo público telespectador, sendo totalmente absorvidos pelo poder dos mandatários e detentores da massa televisiva. Facilmente a sociedade adere à seletividade de grupos marginalizados e às ideologias da violência, do medo e da punição.
O Uruguai adotou em 2012 política pública importante no tocante à restrição de tal violência, seleção e influência propagada pela televisão, qual seja, a restrição de horário para veiculação de programas de cunho policial ou de acompanhamento de supostos delitos, para os horários das 22 horas às 06 horas. Tal horário, consoante já debatido, se encontra longe dos chamados “horários de pico”, limitando, por óbvio, a frequência dos telespectadores em assisti-los.
O Brasil, por sua vez, deixa a desejar no tocante à efetividade de políticas públicas, de normas ou de diretrizes atuantes na avaliação e fiscalização das emissoras responsáveis pela veiculação de notícias, informações e entretenimento, sendo tais serviços prestados sem qualidade, com desrespeito aos direitos humanos e com grande seletividade e estigmatização das pessoas utilizadas como bodes-espiatórios das finalidades políticas-econômicas ali visadas.
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pós-graduanda em Políticas Públicas e Sociais da Criança e do Adolescente pela UNIARA. Graduada em Direito pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BALASTEGHIN, ANAMARIA ANDRADE. A influência da televisão como meio de manutenção de poder e de seleção de indivíduos e a relação aos movimentos lei e ordem e labelling approach Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jun 2020, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54704/a-influncia-da-televiso-como-meio-de-manuteno-de-poder-e-de-seleo-de-indivduos-e-a-relao-aos-movimentos-lei-e-ordem-e-labelling-approach. Acesso em: 23 dez 2024.
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