DANIEL SIQUEIRA DE ARAÚJO REIS[1]
(coautor)
Artigo de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora do Centro Universitário UNINOVAFAPI, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador (a): Prof. Msc. JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL
RESUMO: Através de pesquisas doutrinárias e legais, usando métodos lógicos, dedutivo e histórico, este trabalho procura abordar o princípio da insignificância (bagatela) e a analisar sua caracterização e ocorrência pela própria autoridade policial diante dos casos que aparecem diariamente no desempenho de suas funções da Polícia Judiciária. Considerando que o chefe de polícia é um dos primeiros agentes estatais a ter contato com a prática de suposta ofensa criminal para que as medidas legais apropriadas restem adotadas, ou seja, é o primeiro a fazer a análise técnico-jurídica, a esta autoridade é incumbida à atribuição de iniciar processos criminais extras juditio. Não há razões pelas quais impede a avaliação da incidência ou não do princípio da bagatela entre suas atividades práticas típicas. Pelo contrário, o cenário jurídico atual, corrobora, apóia e reforça que a autoridade deve e pode prosseguir com o julgamento da análise sobre a configuração ou não do princípio de insignificância, por razões práticas e teóricas.
Palavras-chave: Princípio da insignificância. Bagatela. Autoridade Policial.
Sumário: 1. Introdução – 2. Princípio da insignificância; 2.1 minimalismos penal e o princípio da insignificância; 2.2 conceito; 2.3 Origem e evolução histórica; 2.4 Requisitos construídos pela jurisprudência para aplicação do princípio da insignificância em território pátrio. 3. O papel da polícia judiciária no âmbito do estado democrático de direito; 3.1 O poder de polícia do Estado e a Polícia Judiciária: breve evolução histórica; 3.2 Polícia Judiciária e as atribuições conferidas pela Constituição da República; 3.3 Da função desempenhada pelo chefe de polícia e seu contexto histórico. 4. A autoridade policial atuando no caso concreto para aplicar o princípio da insignificância. 5 Conclusão. 6 Referências Bibliográficas.
Na seara do Direito Penal, assim como em todos os demais ramos do direito, existe uma série de princípios que norteiam tanto a criação como a aplicação da norma penal, o princípio da insignificância está inserido nesse contexto e vem ganhando cada vez mais menções, como é possível notar nas recorrentes decisões dos Tribunais Superiores.
Por conseguinte, conforme assevera Jesus (1980), passou-se a conceituar o crime (segundo a teoria bipartida) expondo que em caso de cometimento de alguma infração (fato típico e ilícito) apenas quando constar a presença de culpabilidade é que se poderá impor a pena ao sujeito. Dentro do fato típico tem-se como subdivisão a tipicidade (além de resultado e nexo de causalidade), que é a exata adequação do fato a uma norma penal incriminadora. Essa adequação tem que ser formal (tipicidade formal) e material (tipicidade material), e é efetivamente nesta que reside o princípio da insignificância, pois uma vez que um fato é meramente adequado à um tipo penal incriminador (tipicidade formal), mas não se amolda com a tipicidade material, ou seja, não se tem um relevante prejuízo ao bem jurídico tutelado, teremos a exclusão do crime pela aplicação do princípio da insignificância.
A aplicação desse norteador jurídico é tema de constantes debates, isso porque sua consequência resulta no reconhecimento da atipicidade do fato. Está consignado no que se chama de concepção penal minimalista (ou Sistema Penal Mínimo) que defende o uso limitado do Direito Penal por ser o instrumento de controle social mais estigmatizador. Pelo fato de não existir positivação (autorizando ou restringindo) em todo o ordenamento jurídico, gera uma instabilidade forense e uma verdadeira desordem, no que se refere a decisões heterogêneas pelos tribunais no país inteiro.
Portanto indaga-se: em que medida se manifesta como sendo necessária a possibilidade da autoridade policial reconhecer a atipicidade da conduta ao aplicar o princípio da insignificância, no sentido de afastar a autuação de prisão em flagrante ou a instauração do inquérito policial?
Então, o objetivo geral da presente pesquisa é analisar, no âmbito do sistema penal minimalista, que a aplicação do princípio da insignificância, por parte da autoridade policial, ensejando o reconhecimento da atipicidade da conduta para afastar uma autuação de prisão em flagrante ou a instauração de um inquérito policial ante a uma situação de bagatela, manifesta-se como dever do delegado de polícia, levando em consideração suas atribuições e sua condição – outorgada pela Constituição da República Federal do Brasil de 1988 e pelas Leis do ordenamento jurídico brasileiro – de operador do Direito.
Para tanto, foram delineados os seguintes objetivos específicos: descrever as particularidades no que se refere o sistema penal minimalista; compreender a origem e evolução do princípio da insignificância no âmbito do sistema judiciário; argumentar que conforme previsto na legislação processual penal brasileira é conferido ao delegado de polícia autonomia para que possa realizar juízo de valor ante a um fato possivelmente criminoso ou não; demonstrar que com a Lei n. 12.830/2013 o Delegado de Polícia é considerado como carreira jurídica; enumerar os vetores do princípio da insignificância conforme o julgado no Habeas Corpus HC 84412-SP pelo Supremo Tribunal Federal (STF); verificar a amplitude da necessidade desta autoridade em reconhecer o princípio em análise, assim como a sua possibilidade de fazê-lo; definir o papel da polícia judiciária perante o Estado democrático de Direito.
Parte-se da hipótese de que, a autoridade policial, por possuir capacidade de proceder na iniciação da Persecutio Criminis (fase que é dividida entre Ministério Público e Polícia Judiciária), é perfeitamente razoável que, seja apto para aplicar tal princípio, pois sua função é iniciar a investigação e, portanto, deve saber filtrar quando um fato constitui crime ou não.
Assim, para viabilizar a tese da hipótese, a metodologia do estudo a ser exposto irá valer-se da elaboração de pesquisas bibliográficas, métodos lógicos, dedutivos, históricos, pesquisas jurisprudenciais, bem como a verificação da posição doutrinária quanto à possibilidade de utilização do referido princípio no plano do direito penal mínimo, para que seja possível a formulação de argumentos técnicos que corroborem o entendimento quanto a exequibilidade do delegado de polícia reconhecer a inexistência de tipicidade material do fato no momento de realização da análise jurídica e técnica no caso concreto.
Na primeira seção, será abordado o conceito do princípio da insignificância bem como a sua origem e evolução histórica, também será analisada a sua conexão com o minimalismo penal e por fim uma breve exposição de sua aplicabilidade no nosso ordenamento jurídico. Já na segunda seção, realiza-se uma inquirição a respeito da polícia judiciária no Brasil, bem como o seu surgimento, o papel desenvolvido, respaldo constitucional, juntamente com o desenvolvimento do conceito de poder de polícia, e, por fim, na terceira seção, será apresentada a forma com qual a autoridade policial atua no caso concreto para aplicar o princípio da insignificância.
Ao final, conclui-se que os objetivos são atendidos e a pergunta resta respondida com a afirmação da hipótese, indicando que se faz necessário o reconhecimento da possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial, pois é ela quem faz, devido a sua natureza híbrida, a primeira análise técnico-jurídica do fato.
2 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Neste capítulo será apresentada uma abordagem do princípio da insignificância no que tange quanto a sua conexão com o minimalismo penal, conceito do referido princípio, origem e evolução histórica, e pôr fim a sua aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro.
2.1 Minimalismo penal e o princípio da insignificância
Inicialmente é importante preceituar do que se trata o minimalismo penal, pelo qual essa vertente filosófica jurídica surgiu como uma forma de confrontar a concepção genuína do sistema penal mais puro, que se assegurava a legitimar o Estado a punir o indivíduo, caso este descumpra algum dos dispositivos legais previamente definidos. Segundo Baratta (2014), um dos expoentes desta corrente doutrinária, se traduz como uma necessidade de o direito penal reduzir sua incidência a um mínimo necessário, ou seja, que ele se aplique apenas quando absolutamente essencial e sobre condutas danosas.
Para expor o quão grandioso e relevante é esse ramo do Direito Penal, denota-se que tal debate já vem de séculos, a destacar a atuação do célebre Cesare Beccaria principal representante do iluminismo penal e da escola clássica do direito penal. Fortíssimo influente que foi, utilizou suas teses para tecer severas críticas ao sistema penal de sua época (século XVII). Beccaria (1999), analisando a cultura e a literatura penais do seu tempo, chegou à conclusão de que:
[...] poucos examinaram e combateram a crueldade das penas e a irregularidade dos procedimentos criminais, embora seja uma parte principal da Legislação, mas tão descuidada em quase toda Europa; pouquíssimos – sabendo os princípios gerais – combateram os erros acumulados de muitos séculos, sujeitando (ao menos com aquela força que têm as verdades conhecidas) o demasiado livre exercício do poder mal dirigido, que tantos exemplos de fria atrocidade nos apresentam (de forma autorizada e repetida) (BECCARIA, 1999, p.24).
Ressalta-se que, majoritariamente no segundo milênio (dos séculos XII-XIII até o Iluminismo), do sistema punitivo, ficaram responsáveis: a igreja, os senhores feudais e os governos absolutos ou monárquicos e correspondia a punições desumanas e totalmente arbitrárias. O “direito” penal medieval, censurado por Beccaria (1999), fazia uso da “crueldade das penas”, assim como da “irregularidade dos procedimentos criminais”.
Desta forma, quem é adepto dessa teoria defende que o Direito Penal deve sofrer uma diminuição em seu campo de atuação, ademais, tratando-se de matéria de ultimaratio, alinhando-se a temas a quais outras matérias não encontrem soluções plausíveis e práticas.
Na vertente minimalista, vislumbra-se a incidência do princípio da intervenção mínima que é de grande valia para o ordenamento jurídico, aonde define que o Direito Penal deve intervir minimamente nas relações sociais, limitando o poder de punir do Estado e consequentemente, tutelar os bens mais indispensáveis para a vida em comunidade. Relativamente equiparáveis, possuem suas particularidades, porém é inegável a influência de um para o outro. Endossa Greco (2015, p.97): “O Direito Penal só deve preocupar-se com a proteção dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade”.
O princípio da insignificância, certamente enquadrando-se no âmago da intervenção mínima, também absorve resquícios doutrinários e ideológicos pertencentes à corrente minimalista, já que é inegável à similaridade conceitual de um e outro. Certamente, analisando de maneira breve, constata-se que proveniente do princípio da insignificância, a atipicidade material, esta que expõe a falta de necessidade punitiva, chega-se a um liame equitativo ao que define a corrente do direito penal mínimo, expondo a necessidade de ambos em pretender a mesma finalidade, que é a mínima interferência estatal em se tratando do Direito Penal.
2.2 Conceito
O princípio da insignificância não está positivado no ordenamento jurídico brasileiro, porém, está consignado implicitamente, podendo ser extraído da própria estrutura do direito penal, que é definida na constituição federal. Tendo este como base a dignidade da pessoa humana e os fundamentos da República que regem a atividade policial e o sistema penal.
Segundo Mañas (1994) o princípio da insignificância traz uma ideia de interpretação restritiva do tipo penal incriminador. Sua implicação se dará nos casos em que a conduta praticada e adequada ao tipo penal, seja completamente desproporcional ante a sua pena, ante a sua consequência jurídica. Esse contexto exige, portanto, uma avaliação mais rigorosa da atipicidade penal, sendo necessário não apenas uma adequação formal, mas ainda uma adequação material.
O referido princípio se traduz como um desdobramento lógico da intervenção mínima (nulla lex poenalis sine necessitate), e, consequentemente, do princípio da fragmentariedade e da subsidiariedade. Acerca de tais princípios citados, define Andreucci (2020), que um tipo penal incriminador só deve ser criado quando a contenção da conduta que lhe deu origem não for suficiente, por exemplo, na esfera cível, ou seja, o substrato da intervenção mínima implica na ideia de que o legislador deve estar munido com demasiada cautela, no momento de eleger as condutas que sofrerão a reprimenda penal, nem tudo, ainda que envolto de ilicitude, deve ser criminalizado.
Quanto à fragmentariedade, assevera Prado (2018), que o referido postulado (também conhecido como essencialidade), denota-se como sendo uma das deduções da intervenção mínima. O dever da lei penal de proporcionar a maior proteção dos bens jurídicos tem de ser relativizado, isto pois, todo o ordenamento jurídico enseja a mesma proteção, todavia, o direito penal vai proteger os bens jurídicos mais importantes, devendo repelir as agressões mais severas e socialmente intoleráveis, portanto, só deverão ser objeto de criminalização as tipologias mais intensas capazes de ocasionar relevante dano ao bem jurídico tutelado.
No que tange à subsidiariedade, Nucci (2019) entende que a grande parte dos infortúnios que se surgem na sociedade representa paridade com os demais ramos do Direito, sendo estes suficientes para suprimir os ilícitos que não ocasionam dano extremo. Por essa razão o direito penal se traduz como sendo a última cartada do legislativo, devendo ser usado quando somente a imposição de sanção penal for capaz de conter o agressor. Isto posto, diz-se que o direito penal é subsidiário em relação aos demais ramos, quando as outras formas de punição fracassam é que o Estado deve se armar com a lei penal, no intuito de coibir os comportamentos mais desregrados ocasionadores de lesão aos bens jurídicos tutelados.
Demais disso, a avaliação do caso concreto que enseja a aplicação do princípio da insignificância levará em consideração as consequências exteriorizadas com a utilização do instrumento de controle social manifestada pelo Direito Penal, que é extremamente violento e é estigmatizado, juntamente com a proporcionalidade da conduta praticada e a respectiva pena.
No meio doutrinário encontramos teses acerca da origem do princípio da insignificância, como bem iremos apresentar brevemente de maneira detalhada, pois é fato que, há diversas vertentes a qual defendem que o surgimento se deu com o Direito Romano, de cunho civilista e tinha como preceito minimis non curat praetor, ou seja, "o pretor, não cuida de minudências". Todavia, há severas críticas quanto à origem romana, pois, o Direito Romano estava estruturado ao direito privado, havendo pouco conhecimento acerca do Direito Penal, bem como preceitua Masson (2019). Ainda neste mérito, Ribeiro Lopes (2000) afirma que:
O Direito Romano foi notadamente desenvolvido sob a óptica do Direito Privado e não do Direito Público. Existe naquele brocardo menos do que um princípio, um mero aforismo. Não que não pudesse ser aplicado vez ou outra a situações de Direito Penal, mas qual era a noção que os romanos tinham do princípio da legalidade? Ao que me parece, se não nenhuma, uma, mas muito limitada, tanto que não se fez creditar aos romanos a herança de tal princípio (RIBEIRO LOPES, 2000, p.41-42).
Demais disso, com infortúnio ocasionado da decorrência das duas grandes guerras mundiais, surgiu, após estas, demasiado aumento de furtos de objetos e valores irrelevantes, muito por conta da miséria em grandes proporções, desemprego em massa e a crítica falta de gêneros alimentícios. As referidas transgressões conceberam o que se chama “crime de bagatela” (bagatelle delikte), justamente por conta dos ínfimos valores compreendidos, assim afirma (FLORENZANO, 2018).
O amadurecimento do princípio da insignificância, segundo Greco (2015) ficou em grande parte, a cargo de Claus Roxin. Bittencourt e Prado (1996), partem do raciocínio que a amoedação do princípio da insignificância foi firmada primordialmente por Claus Roxin, sendo inserido em sua obra Política Criminal y Sistema del Decrecho Penal.
Roxin (1986) propôs a interpretação restritiva aos tipos penais, com a exclusão da conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais. Como define o jurista alemão, o legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas a bens jurídicos.
Em terras “Tupiniquins”, o princípio da insignificância teve como termo inicial, no que se refere a sua menção, o julgamento realizado pelo STF do Recurso de Habeas Corpus HC 66.869/PR, conforme se depreende pelo voto do Relator Ministro Aldir Passarinho:
[...] deste modo, tendo-se que o acórdão inegavelmente admite, conforme considerações que antes reproduzi, o princípio da insignificância da lesão, e que a prova dos autos – e seguramente outras já não seriam possíveis obter mais de um ano depois – mostram que inexpressiva foi realmente a lesão sofrida pela vítima, tenho que não é de deixar-se prosseguir a ação penal que a nenhum resultado chegaria, só mais sobrecarregando o serviço da justiça e incomodando inutilmente a própria vítima (BRASIL, 1988, p. 195).
Tal julgado teve como objeto uma lesão corporal no âmbito de acidente de trânsito, ocasião a qual se apurou que, em decorrência da irrelevante lesão, quedou-se entendido que o crime não fora configurado, não persistindo motivos para a instauração da ação penal.
2.4 Requisitos construídos pela jurisprudência para aplicação do princípio da insignificância em território pátrio
Conforme fora supramencionado, o princípio da insignificância não se encontra positivado de forma expressa no ordenamento jurídico brasileiro, portanto, as peculiaridades de cada caso concreto possuem peso fulcral a fim de qualificar se o ilícito é relevante para o Direito Penal. De acordo com Gomes (2013, p.135): “os juízes adeptos da ideologia punitivista da segurança tendem a aplicar a insignificância restritivamente, ao contrário, os juízes que seguem a ideologia humanista da equidade tendem a admitir a insignificância formal mais ampla”.
Por conseguinte, apesar de o referido princípio ser oriundo de uma criação doutrinária, fora, devidamente, abraçado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mediante julgado do Habeas Corpus n. 84.412/SP, a partir deste delimitou-se os chamados vetores do princípio da insignificância, servindo como norteadores de aplicação ante o caso concreto, conforme é possível extrair de voto do relator, Ministro Celso de Mello:
A mínima ofensividade da conduta do agente; a nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público (BRASIL, 2004, p. 235).
Demais disso, registra-se o furto simples praticado com ausência de violência e grave ameaça, sendo realizada com o fim de se alcançar a satisfação de uma necessidade urgente e relevante, como na hipótese de um determinado agente que furta biscoitos ou feijão, buscando por meio de tal transgressão ínfima saciar sua fome, tal situação manifesta-se como um exemplo do chamado furto famélico, praticado quando o agente necessita do bem subtraído para subsistência, ocasião em que, segundo Capez (2008) se é analisada a proporcionalidade do referido bem, assim como outras circunstâncias do caso concreto.
Destarte, infere-se que o possível reconhecimento da atipicidade da conduta pode ser verificado em caso de transgressão na qual o agente subtraia gêneros alimentícios em uma situação que remeta ao contexto do furto famélico, de acordo com o voto, aplicando a insignificância, proferido pelo relator, Ministro Dias Toffoli, “sua conduta foi praticada sem violência física ou moral a quem quer que seja, sendo certo, ademais, que os bens furtados foram restituídos à vítima, afastando-se, portanto, o prejuízo efetivo” (BRASIL, 2018, p.6).
Portanto, chega-se à conclusão de que quando os requisitos de aplicação que ensejam o reconhecimento da insignificância forem cumulativos e compatíveis com as circunstâncias inerentes a cada caso concreto, a resposta estatal punitiva não deve prosperar, visto que é envolta de irracionalidade e demasiada violência, acarretando na injusta desproporcionalidade com a conduta praticada, que pode se amoldar formalmente com o tipo penal, mas, quando materialmente não for capaz de provocar relevante prejuízo ao bem jurídico tutelado, levando em consideração uma concepção minimalista e mais humanizada do direito penal, este instrumento de controle social não deve ser municiado, sendo objeto de outro ramo do direito, evidenciando aqui o caráter subsidiário daquele.
3 O PAPEL DA POLÍCIA JUDICIÁRIA NO ÂMBITO DO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO
No presente capítulo, almeja-se realizar uma inquirição a respeito do poder de polícia Estatal e sua influência para o desenvolvimento da polícia judiciária no Brasil, abordando a sua evolução histórica tanto no âmbito internacional como nacional. Também é objeto da presente seção, expor as atribuições conferidas pela Magna Carta à polícia judiciária brasileira, e por fim será elencado o papel desempenhado pelo Delegado de polícia, no que se refere a sua função legalmente prevista.
3.1 O poder de Polícia do Estado e a Polícia Judiciária: breve evolução histórica.
É de suma importância, primordialmente, trazer o conceito de Poder de Polícia, onde em sua essência está conectado com a atuação da administração pública, a qual obriga limites aos direitos e liberdades a população. Este “condão” consiste, em suma, na diligência da autoridade pública para fazer cumprir a todos os cidadãos o dever de não perturbar, bem como preleciona (MAYER, 1950).
Explicitam-se aqui os entendimentos oriundos de Medauar (1995), cujo fazendo uma análise mais profunda, etimologicamente falando, atentou-se para o termo “polícia”. Proveniente do latim politia e do grego politeo, associado como termo política, ao vocábulo pólis. É relevante notabilizar, especificamente em sua linha cronológica, a sua ligeira evolução no que se refere a seu conceito e aplicação. É de consagrado conhecimento que, o referido termo está ligado a soberania dos príncipes e serve de base para as autocracias históricas, a exemplo disto, episódios na era medieval traduzem o que é exposto, ademais, a utilização de meios essencialmente opressores e descaradamente deploráveis, revelam como era tencionado e manuseado esta concepção para com aqueles que detinham o poder.
Perfilando o crescimento relevante do poder de polícia durante séculos, podemos averiguar numerosos repertórios doutrinários acerca da polícia propriamente dita. O primeiro foi publicado pelo francês Delamare (1707) intitulado Traité de la police; o autor adotou que a assimilação da polícia ao conjunto do direito público era equívoca e lhe deu sentido restrito: polícia visa à ordem pública de cada cidade. Dando continuidade, outras obras sobre a polícia passam a ganhar notoriedade nesse período. Por exemplo, na Alemanha, a de Justi (1756), “Princípios da ciência da polícia” (MEDAUAR, 1995).
Medauar (1995) abrilhanta-nos mais uma vez com os seus conhecimentos, ao expor que, este período de culminância, coincide com o chamado “Estado de polícia”, no fim do período absolutista, Estado esse que até então, se apoderava de maneira arbitrária na vida dos particulares. De aí em diante, o sentido amplo de polícia começa a dar lugar a noção de administração pública, principalmente sob influência das ideias da Revolução Francesa, da valorização dos direitos individuais e da concepção do Estado de direito e Estado liberal.
Preliminarmente, surge a expressão “polícia administrativa” na França, quando o Código do 3º Brumário do ano IV (1795 apud MACEDO GONÇALVES, 2005) mencionou a divisão em polícia administrativa e judiciária. E deu como objeto a manutenção habitual da ordem pública em cada lugar e em cada parte da Administração Geral. Já na Alemanha, certifica-se a influência de Pütter (1754), no seu Elementa iuris publici germanici, a qual salvaguardou que a prosperidade não era responsabilidade própria da polícia, sendo o seu papel somente negativo, o que foi por muito tempo, posteriormente, defendido por diversos autores (MACEDO GONÇALVES, 2005)..
Segundo Tácito (1952), a expressão “poder de polícia”, vigente em nosso ordenamento é proveniente da tradução de police power. A expressão fora semeada primitivamente no ordenamento legal a partir do julgamento da Corte Suprema norte-americana, no caso Brown contra Maryland, de 1827. Adentrando no ordenamento jurídico brasileiro, entende-se que segundo Meirelles (1993), na Constituição de 1824, especificamente em seu Art. 169 (BRASIL, 1824), concedeu a uma lei disciplinar as funções municipais das câmaras e a formatação das suas posturas policiais.
No que se refere à doutrina, a primeira obra de direito administrativo, de autoria de Pereira do Rego (1857 apud MEDAUAR, 1995) usufrui do vocábulo “polícia” para delimitar a temática, repartindo-a em polícia administrativa e polícia judiciária, sob nítida influência francesa; afirma que polícia possui como dever manter a convivência ordenada, a liberdade, a propriedade e a segurança dos cidadãos; e complementa que a polícia também, já nessa época, intervém na indústria e no comércio.
Registra-se pôr fim ao surgimento da polícia judiciária no Brasil, conforme destacado por Gonzáles e Sesti (2006), aonde se constata o ano de 1841 com a promulgação da Lei n. 261, que instituiu o cargo de delegado de polícia seguida pelo Regulamento 120/1942, dividindo a polícia em administrativa e judiciária.
Com o advento da Carta Magna de 1988 tornou-se notório o vislumbre de uma nova ordem constitucional, está ensejando uma blindagem quase que suprema principalmente no que tange aos direitos individuais. Por essa razão é possível extrair uma série de garantias consignadas na Lei Maior, denotando a intenção do constituinte em proteger o cidadão, inclusive da prepotência do Estado, conforme já se pôde observar em outros tempos. Desse modo, o legislador buscou uma descentralização do poder, conferindo a cada instituição suas respectivas atribuições.
Por conseguinte, registra que é nesse contexto que se insere a atividade policial, está a cargo da Administração Pública, desempenhada por meio de duas polícias com atuações específicas. A chamada polícia administrativa atua de maneira preventiva, ou seja, sua função se molda na tentativa de impedir a ocorrência de um crime, por outro lado a polícia judiciária tem a incumbência de proceder com a investigação criminal, tentando alcançar a elucidação dos ilícitos já cometidos, de acordo com (MELLO, 2009).
A partir do exposto, no âmbito da polícia judiciária, objeto do presente tópico, tem-se a Polícia Federal e as Polícias Civis das respectivas unidades federativas da nação conforme se extrai do artigo 144 §§1° e 4° da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Foi dada, a tais instituições, a função constitucional de conduzir as apurações de transgressões penais, e mais precisamente às Polícias Civis, a investigação de fatos criminosos comuns, tendo-se como exceção às infrações praticadas por militares, caso em que a referida função ficará a cargo das respectivas corporações militares.
Cumpre destacar, como bem exposto por Alves (2017), que as polícias judiciárias brasileiras são chefiadas por delegados de polícia, cargo este que está envolto no campo das carreiras jurídicas, o que se manifesta como um importante triunfo, visto que tal qualificação permite à chamada persecutio criminis uma maior capacidade de supri-la de fundamentos com pertinentes respaldos jurídicos.
Portanto, significa dizer que se trata de uma polícia que concilia a aplicação da legislação juntamente com a segurança pública, tendo um caráter misto, aliando o combate ao crime com a inteligência investigativa ao respeitar os direitos individuais do cidadão, revestindo-se, dessa forma, como sendo égide que garante a paz social, pois não pauta suas atividades somente na utilização da força bruta, uma vez que é chefiada por operadores do direito, estando consequentemente inserida no contexto da nova ordem constitucional, manifestando-se como um importante componente do estado democrático de direito, conforme trata.
Isto, pois, o simples fato de ser investigado já acarreta na estigmatização do indivíduo, ocasionando-lhe severo constrangimento, demais disso, tem-se que durante o desenvolvimento das diligências investigativas, quando se procede, por exemplo, com uma interceptação telefônica, a restrição de direitos fundamentais, por isso, o ideal é ajustar o sopesamento dos direitos a uma investigação eficaz para se evitar arbitrariedades, traduzindo-se em uma adequação ao estado democrático de direito, conforme assevera Coutrim Lima Filho (2016).
Diante disso, na esfera do referido estado democrático de direito inexiste a ideia de maior ou menor em matéria de poder público, todas as suas instituições, com as suas respectivas autoridades, ostentam uma competência que foi outorgada previamente tanto por lei e, principalmente, pela Constituição Federal, lei suprema de uma nação, portanto, nenhuma competência está em condição de subordinação para com outra, posto que todas emanam de um poder constituinte originário, e em razão disso, refere-se a uma aspiração dos legítimos detentores do poder: o povo, de acordo com a exposição de Gomes e Sciliar (2008).
Por fim, a atuação da polícia judiciária ostenta a independência supramencionada, não havendo hierarquia entre esta, a defesa, o ministério público e tampouco o juiz, pois sua função pauta-se na busca pela verdade do fato apurado, não o resultado processual. Consequentemente, a referida independência vai viabilizar que o ministério público ou querelante tenha os elementos de autoria e materialidade para fins de eventual inicial acusatória, e que o acusado/investigado tenha a sua defesa municiada com os elementos realmente necessários, a partir da reconstrução do fato criminoso.
3.3 Da função desempenhada pelo chefe de polícia e seu contexto histórico.
Conforme explicita Macedo (1956), houve um tempo em que as atividades policiais legais foram realizadas pelas próprias Câmaras Municipais, com capitães-costumes, prefeitos e bandidos para auxiliar juízes comuns. Somente em 1808, com a chegada da corte portuguesa, a Intendência da Polícia Geral foi criada, evidentemente chefiada pelo Intendente Geral Polícia, culminando na aparição do Chefe de Polícia.
Isso ocorre porque, bem como preleciona Holloway (1997), o Intendente recebeu autorização para nomear outra pessoa para representá-lo nas províncias, dada a ampla extensão geográfica do Território brasileiro. Esse representante recebeu a denominação de “delegado”, pelo fato de assentir suas funções por meio da delegação do Intendente Geral. Posteriormente, com a introdução do Juiz de Paz no país, que incluía poderes policiais e judiciais, a figura do Delegado foi extinto e só reapareceu em nossa Lei em 1841.
Foi com a Lei nº 261 de 1841 (BRASIL, 1841) que o sistema começou a fornecer e estabelecer expressamente as atribuições legais das autoridades policiais. A referida lei estabeleceu que no município do tribunal e em cada província haveria um chefe de polícia junto com delegados e subdelegados subordinado a isso.
Também prescreveu que os Chefes de Polícia seriam escolhidos dentre Juízes e juízes de direito, enquanto delegados e subdelegados seria nomeado entre quaisquer juízes e cidadãos. O mesmo texto jurídico também estabeleceu várias funções para autoridades policiais. De fato, previa que os chefes de polícia e seus delegados e subdelegados competiram pelas mesmas atribuições anteriormente conferidas pelo Código de Processo Penal para Juízes de Paz - v.g. prosseguir para o corpo auto de ofensa e conceder fiança.
Além das funções típicas anteriormente exercidas pelos juízes de paz, A Lei nº 261, de 1841 (BRASIL, 1841) determinou que as autoridades policiais fossem responsáveis por monitorar e garantir a manutenção da segurança e tranquilidade públicas, examinar prisões, inspecionar teatros e shows, conceder mandados de busca e, envie também quando julgar conveniente todos os dados, evidências e esclarecimentos sobre a ofensa aos juízes competentes.
O chefe de polícia é designado principalmente desde a primeira disposição legal de suas funções, a tarefa de realizar investigações criminais com o objetivo de elucidar os fatos. Considerando que a Autoridade Policial é a principal responsável por conduzir investigações criminais, é necessário levantar a questão, embora de maneira sucintamente, os modelos de investigações criminais em vigor no mundo.
Existem três: Tribunal de Instrução, Promotor-Investigador e Inquérito Policial. A partir da cognição de Rangel (2009), depreende-se que pelo sistema do Tribunal de Instrução, atualmente adotado pelo Espanha e França, a presidência das investigações é delegada para um magistrado que agora é chamado de “juiz investigador” ou “juiz investigador”. Para isso é responsável por coletar todas as evidências necessárias elucidar os fatos, bem como conduzir os interrogatórios necessários. Os poderes instrucionais estão concentrados na pessoa do juiz instrutor, de modo que a defesa e o órgão de acusação é o responsável apenas por solicitar a devida diligência. Por sua vez, o a polícia realiza atividades meramente auxiliares e é subordinada ao juiz investigador.
De acordo com o modelo do Promotor-investigador, adotado nos EUA e Itália, endossa Andrade (2008) que, por exemplo, como o nome sugere, é o órgão acusador que realiza a atividade de investigação destinada a apurar os fatos, de modo que cabe à Polícia o simples papel de auxiliar esse órgão. Como no sistema anterior, não há exercício do adversário e a ampla defesa nesta fase, característica que se assemelha às peculiaridades do inquérito policial em nossa ordem.
De fato, o modelo atual difere pouco do modelo anterior, pois apenas a autoridade competente é alterada. Por sua vez, através do sistema de inquérito policial adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, originário do modelo inglês, as investigações são conduzidas pela polícia. Assim explica Mossim (1998) que é de responsabilidade única e exclusiva da Autoridade Policial definir a linha de investigação e executar as etapas que julgar pertinentes à elucidação dos fatos.
Portanto, a Autoridade Policial é o verdadeiro detentor da investigação criminal. É responsável por desempenhar o papel de investigador do Estado na busca de reunir materialidade criminal e fornecer elementos suficientes para apoiar a respectiva autoria e possibilitar a possível ação criminal. O inquérito policial, segundo Nucci (2015) é o instrumento à disposição da Polícia Judiciária para atingir os fins institucionais que lhes são impostos por ações investigativas, a fim de elucidar o fato criminal.
Esclarece Capez (2012), que a investigação é considerada como um procedimento administrativo, indisponível, inquisitorial, confidencial, escrito, discricionário, não oficial e preparatório para a ação criminal, presidida pelo chefe de polícia, que consiste em um conjunto de atos investigativos realizados com o objetivo de coletar informações sobre a materialidade e autoria da conduta criminal. Dizem que não está disponível porque a autoridade policial não pode arquivá-lo. Uma vez estabelecido, o depósito somente ocorrerá mediante solicitação do representante do Ministério Público e posterior avaliação judicial.
É confidencial garantir que as medidas adotadas durante as investigações sejam totalmente eficazes e não sejam frustradas porque são conhecidas pela pessoa investigada. É um procedimento elucidado por uma imposição legal que todas as suas partes devem ser reduzidas a escritas ou digitadas. Queiroz (2000) ensina que a discricionariedade reside no fato de que os passos a serem determinados pela autoridade policial não precisam observar nenhum rigor processual. Não há formalismo exacerbado. E acrescenta que, sua característica de não oficialidade reside na determinação de que a autoridade policial, ao saber do ato criminoso, será obrigada a agir e proceder de acordo com as disposições legais. Para isso, apenas a tipicidade formal do fato é necessária.
4 A AUTORIDADE POLICIAL ATUANDO NO CASO CONCRETO PARA APLICAR O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O ser humano é sujeito de direitos e obrigações, como todo homem e mulher, buscam objetivos, de forma geral, através de atitudes canalizadas, que alteram o estado natural do ambiente pelo qual se confrontam. Com isso, o Direito estabeleceu e vem estabelecendo limites, para a harmonia social ser alcançada, tendo em vista que algumas atitudes podem ser prejudiciais à sociedade, verdadeiros anseios contrários ao ordenamento jurídico.
Desta forma, ensina Acquaviva (2011) que se destaca a Teoria Finalista da Ação no Direito Penal pátrio ao entender que a intervenção estatal só se dará se a conduta voluntária humana tiver a finalidade que o legislador perpetuou no ordenamento jurídico, ou seja, o indivíduo cometer a conduta com anseio próprio e ter como fim o previsto pelo legislador, seja regra comissiva ou omissiva, é necessário que a conduta contenha o elemento volitivo advindo da norma, ao ser criada.
A teoria finalista (bipartida), bem como assevera Monteiro de Barros (2003), prevê que o crime possui os elementos: fato típico e a ilicitude. O primeiro nada mais é do que um fato existente e concreto que se amolda a uma conduta típica prevista no ordenamento jurídico, seja ela omissiva ou comissiva, que causa um resultado material, tendo relação de causalidade (nexo) e a própria tipicidade que se divide em formal e material.
A ilicitude, de acordo com a sapiência de Mirabete (2007), por sua vez, é a ação (conduta) contrária ao Direito, ao próprio ordenamento jurídico, sendo adjetivadas de ilícita. Sendo assim, o ilícito diferente do injusto, pois o injusto tem cunho filosófico, é perto do coração moral e social e mais distante do Direito material. Já a ilicitude é mais objetiva, tende apenas a demonstrar a afronta da conduta com o próprio ordenamento jurídico concreto.
O princípio da insignificância, conforme mencionado anteriormente reside na caracterização da aludida atipicidade, em casos que normalmente se aplicaria o tipo penal, por esses não violarem o bem jurídico em tela de forma significativa, ou seja, a tipicidade material é afastada. Dessa forma, conforme leciona Capez (2018) a tipicidade formal é a adequação perfeita entre o tipo previsto na norma penal com o fato concreto.
Já a tipicidade material, por sua vez, conforme Queiroz (2001) é a análise do impacto da conduta do agente ao perpetrar o crime, tendo em vista os parâmetros da lesão causada. Em outras palavras, a lesão deve ter causado prejuízo efetivo ao bem jurídico protegido. Portanto, a conduta, além de ter de se amoldar perfeitamente ao tipo penal descrito, nullum crimen sine previa lege, este fato também deve causar ofensa relevante ao bem jurídico.
Neste diapasão, encontramos a presença do princípio da insignificância. Quando a conduta se amolda perfeitamente, mas não ofende de forma significante o ordenamento jurídico, ela será considerada atípica e, por conseguinte, não será fato típico, por não possuir o elemento da tipicidade material.
Por disposição legal, o cargo de Delegado de Polícia exige que você possua formação jurídica. O acesso ao cargo é através de um árduo concurso público de provas, ou provas e títulos. Como dito, a formação acadêmica do candidato é obrigatória na ciência do direito, da mesma forma que exigido para outras posições jurídicas - por exemplo: magistratura e promotores. De acordo com o entendimento de Nucci (2015), diz-se que o chefe de polícia é o primeiro juiz do caso, ou o juiz pré-processual, uma vez que é o primeiro agente legal do estado a encontrar o crime ou contravenção supostamente cometida.
Conclui-se, portanto, que muitas das atividades desenvolvidas pela Autoridade Policial refletem diretamente no status dignitatis do indivíduo investigado, interferindo em sua honra e intimidade pelo simples fato de serem vistas na sociedade como objeto de investigação e por ter sua vida aberta para declarar ações investigativas, seja restringindo sua liberdade ao impor medidas pessoais.
Mas não cabe ao delegado agir apenas para alcançar a função investigativa repressiva e invasiva do Estado; pelo contrário, a autoridade policial deve, de fato, observar, salvaguardar e fazer cumprir os direitos e garantias individuais da pessoa sujeita ao escrutínio policial. Portanto, usando sua “Teoria Geral do Direito Policial”, Valente (2009) ensina que:
A Polícia, como atividade de defesa da liberdade democrática, garante segurança interna e direitos dos cidadãos, não pode ser vista apenas do ponto de vista sociológico, nem do ponto de vista político - seu braço ou instrumento -, nem do ponto de vista operacional - estratégico, tático e técnico. É necessário um aprofundamento jurídico teórico e prático da atividade policial, que justifique e justifique a necessidade de um órgão organizado com ius imperi na busca de uma das tarefas fundamentais do Estado: defesa dos direitos e liberdades fundamentais (VALENTE, 2009, p.7).
Dito isto, o chefe de polícia se apresenta como o primeiro garantista da liberdade individual, justiça e outros direitos individuais, conforme bem explicitado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Melo em seu voto proferido no HC 84548/SP (BRASIL, 2015), visto que seu desempenho sob a lei - cujo conhecimento é exigido dele – impede ou interrompe a atividade abusiva de outras forças estatais ou mesmo particulares.
Veja como exemplo a condução de uma pessoa à delegacia porque indivíduos particulares acreditam que ele foi preso em situações flagrantes quando, na realidade, diz respeito às hipóteses dos artigos 302 e 303 do Decreto-Lei n. 3689, de 3 de outubro de 1941 (BRASIL,1941). Da mesma forma, cita-se como exemplo, a apresentação de uma pessoa detida por milicianos acusada de cometer um crime que, de fato, não ocorreu.
Agora, é o chefe de polícia que, ao avaliar a situação e circunstâncias, terá o dever de determinar a libertação dessas pessoas e, assim, fazer valer os direitos constitucionalmente reservados ao cidadão. Portanto, é apropriado relacionar, o desempenho do Delegado de Polícia à luz de seu papel legal de manter as liberdades individuais do indivíduo diante da prática de ofensas criminais - aquelas cujo efetivo dano ao bem legal é de gravidade mínima e irrelevante e, portanto, não deve implicar nenhuma forma de constrangimento para o sujeito.
O direito penal não existe como meio de instrumentalizar repressão estatal, mas para dar aos cidadãos a garantia de não sofrer interferência arbitrária em sua vida privada, consagrando mais uma vez o entendimento de Roxin (1986). O que se quer dizer é que as garantias relacionadas à esfera criminal não são direcionadas a seus atores, ou seja, a criminosos. Pelo contrário, é a sociedade como um todo que essas regras se destinam a impedir que os cidadãos sejam sujeitos a abusos injustificáveis e irreversíveis antes de um procedimento persecutório.
Masson (2013) ensina que o princípio da insignificância remove a tipicidade do fato e, portanto, sob pena de banalizar o Direito Penal e esquecer outros princípios relevantes, como o da intervenção e subsidiariedade mínimas, não se pode conceber, por exemplo, a obrigação de desenhar um mandado de prisão em flagrante quando a Autoridade Policial se depara com o fato de estar coberta por esse princípio. Diante de situações dessa natureza, não se pode aceitar que o Chefe de Polícia seja obrigado a adotar tais medidas se o princípio da insignificância se aplicar.
Se a lesão é irrelevante e torna o fato materialmente atípico, descartando a existência do crime em si, como exigir que a autoridade prossiga com as medidas embaraçosas e restritivas e as medidas inerentes à investigação policial para, finalmente - na esfera judicial - resultar em absolvição? Qual é a razão para submeter o indivíduo ao procedimento investigativo desconfortável e indesejável, simplesmente porque sua conduta é única e somente formalmente típica? É certo que o surto de processo criminal, ou mesmo a elaboração de um flagrante ou elaboração de um termo detalhado, em ocorrências claras do princípio da insignificância não está em conformidade com a ordem jurídica atual e também prejudica princípios substanciais, como razoabilidade e proporcionalidade.
Concorda-se aqui que a ação policial, bem como a de toda a administração pública, está sujeita à estrita observância das leis e princípios de informação. No entanto, a atividade funcional não pode basear-se estrita e exclusivamente na redação textual da lei em vigor. O princípio da legalidade não deve ser seguido para aplicar o brocado dura lex, sed lex. De fato, o princípio da legalidade deve ser observado em harmonia com outro princípio administrativo - o da moralidade. Destarte, conclui-se ainda que quando é dada ao Delegado de Polícia a legitimidade para afastar a tipicidade material, este, conforme corroboram Khaled Júnior e Rosa (2014) vem a agir como um filtro contentor do poder irracional do Estado (revestido no jus puniendi).
Para cumprir a moral administrativa, um princípio expressamente previsto no texto constitucional em seu artigo 37 (BRASIL, 1988), não basta que o agente cumpra formalmente a lei na frieza de sua carta, como é necessário cumprir com a letra e o espírito da lei, que ao legal se junte ao ético. Por esse motivo, conforme ensina Alexandrino e Paulo (2013), costuma-se dizer que o princípio da moralidade complementa ou torna mais eficaz, materialmente, o princípio da legalidade.
Além da observância da moralidade administrativa e da legalidade, a atividade estatal deve se submeter ao princípio da Justiça como resultado inequívoco de um Estado de Direito Democrático para impor os valores da dignidade humana, igualdade e equidade, compartilhando entendimento trazido por Canotilho (2002). Afinal, a justiça é o principal valor norteador de toda atividade estatal. Todos esses valores e princípios fundamentais de estruturação estabelecidos por nossa lei tendem a se tornar meros textos e ideais desprovidos de quaisquer valores se for entendido que a Autoridade Policial não tem o poder de aplicar o princípio da insignificância.
Seria a perpetuação de um absurdo teorizar um desempenho com ponto de apoio em certos valores e aceitar na prática um desempenho contrário ao que foi determinado. Assim, é inegável que o chefe de polícia tem não apenas o poder, mas também o dever de analisar e aplicar o princípio da insignificância diante dos casos que lhe ocorrem durante o exercício de suas funções. Além de ser uma medida consistente com os ideais práticos e lógicos, a ordem atual mantém normas que apóiam esse entendimento.
A Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013 (BRASIL, 2013), prevê investigação criminal conduzida pelo chefe de polícia. Esse diploma normativo, além de estabelecer que o cargo de Delegado de Polícia é de natureza jurídica, conferiu à classe várias prerrogativas, dentre elas a determinação expressa de que a acusação é um ato privado do delegado de polícia e ocorrerá por meio de análise jurídica do fato. Fica claro, portanto, que a autoridade policial tem discrição para analisar a possível classificação do fato investigado, corroborando ainda mais a legitimidade, de modo que também afeta a conclusão do crime.
Cite-se, ainda, dispositivo da Constituição do Estado de São Paulo que determina a independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária, assim previsto no artigo 140, § 2º (SÃO PAULO, 1989). A autoridade policial não é e nem deve ser mera cumpridora de preceitos legais limitando-se a atuar de forma robotizada e automatizada. Pelo contrário, é atividade que exige atuação pessoal, valorativa e circunstancial, de modo que possa atender de forma integral e justa sua função garantista. Igualmente, há de se registrar a Portaria DGP 18/1998 do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 1998) que instrui seus delegados a não instaurarem inquérito quando os fatos levados a sua consideração não configurarem manifestamente qualquer ilícito penal.
Assim, tendo em vista a atual posição jurídica do Chefe de Polícia conferida pelos diplomas legais acima mencionados, em harmonia com os princípios de intervenção mínima e subsidiariedade do Direito Penal, proporcionalidade e dignidade humana, não é aceitável e nem sequer há apoio legal para que o chefe de polícia, um executor típico e especialista na lei, não possa usar seu conhecimento pessoal e profissional, técnico e jurídico para aplicar definitivamente o princípio da insignificância. Deve-se concluir que é dever da autoridade policial analisar e implementar concretamente o princípio da insignificância
5 CONCLUSÃO
Ante todos os argumentos mostrados no presente trabalho, o Princípio da Insignificância está, ainda, em evolução. Ficou demonstrada a análise subjetiva do caso concreto, não levando em conta só seu aspecto formal, mas também a tipicidade material, ainda assim, fazendo parte do subjetivismo a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, sendo assim a aferição da cautela presente, todos esses elementos de forma conjunta.
Esta pesquisa objetivou analisar, a partir da compreensão da vertente minimalista penal, que a aplicação do princípio da insignificância, por parte da autoridade policial, ao tempo em que, há o reconhecimento da atipicidade da conduta para afastar uma autuação de prisão em flagrante ou a instauração de um inquérito policial ante a uma situação de bagatela, insurge como uma obrigação do delegado de polícia, levando em consideração suas atribuições e sua condição – outorgada pela Constituição da República Federal do Brasil de 1988 e pelas Leis extravagantes – de operador do Direito.
Para tanto, é importante atentar, no que se refere às dificuldades em elaborar o presente estudo, as más interpretações oriundas nas faltas de dogmas, bem como na divisão da doutrina em defender ou não o aludido princípio. Existem muitos juristas ainda que defendam a não aplicação do princípio, mas também existem outros, em outra mão, que o aplicam de forma desenfreada. Resta-nos alcançar a ponderação de um meio termo pretendido, e, finalmente, a criação de ordem legal expressa e pacífica, sem possibilitar margens para dúvidas.
Não obstante, constata-se que para chegar aos resultados pretendidos, houve uma ampla análise desde o conceito analítico de crime, percorrendo-se posteriormente pela concepção histórica e evolutiva do princípio da insignificância e por fim reconhecendo-se a possibilidade do encaixe apropriado da aplicabilidade do aludido princípio para com a função desempenhada pela autoridade policial.
Ademais, observou-se que para galgar êxito na busca em legitimar o objetivo do presente estudo, foi-se necessário expor julgados provenientes dos Tribunais superiores, aliados com uma parcela da doutrina, que em grande parte manifesta-se como sendo convergente com o objeto do artigo em tela, bem como proceder-se com a interpretação de dispositivos legais, a fim de preencher as lacunas existentes.
Reconhecendo que a função policial engloba um grande caráter garantidor, na medida em que cabe a ele proteger os direitos individuais do cidadão, pode-se dizer que, portanto, os objetivos foram alcançados visto que, demonstrou-se que a autoridade policial tem o poder de impor o princípio da insignificância desde então nos casos apropriados, removendo a tipicidade penal e impedindo que o sujeito seja submetido a procedimentos penais embaraçosos e traumáticos, materializando assim os princípios de dignidade humana, razoabilidade e proporcionalidade, igualdade, liberdade, subsidiariedade, fragmentaridade e intervenção mínima.
Assim, a aplicação da insignificância, é extremamente importante no que diz respeito aos direitos individuais garantidos constitucionalmente à pessoa humana, uma vez que sua incidência impede que os cidadãos sejam submetidos a atos coercitivos e repressivos sem justa causa.
Por fim conclui-se que como o chefe de polícia é o primeiro agente a operar a lei e com o conhecimento técnico necessário, nada é mais coerente, razoável e lógico, do que reconhecer essa autoridade como tendo total autonomia para, desde o momento da notitia criminis, valorizar e aplicar ou não o Princípio da Insignificância para avaliar a tipicidade material do ilícito, seja pelo apoio que pode ser extraído do sistema jurídico, seja pela necessidade e viabilidade prática, dado que a autoridade policial é um agente público com o mesmo conhecimento jurídico exigido para outras posições jurídicas e que restringir seu desempenho a tal ponto é uma medida irracional e não atende ao interesse público de forma alguma.
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Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário UNINOVAFAPI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SERAFIM, Vinícius Kantonar Costa. A viabilidade da aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial em análise aos “crimes de bagatela”. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2020, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54715/a-viabilidade-da-aplicao-do-princpio-da-insignificncia-pela-autoridade-policial-em-anlise-aos-crimes-de-bagatela. Acesso em: 23 dez 2024.
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