RESUMO: O presente artigo tem como objetivo demonstrar como a delimitação da jornada de trabalho foi uma conquista importante para todos os trabalhadores, por garantir a dignidade da pessoa humana, visto que protege a integridade física e psíquica do trabalhador. Para isto, lança-se mão de um breve histórico do direito do trabalho, relacionando-o com a jornada de trabalho e as concepções conceituais do termo. Após, realiza-se uma análise sobre a jornada exaustiva dos trabalhadores contemporâneos, e como isso é prejudicial, bem como a escravidão contemporânea, como um dos possíveis desdobramentos da jornada excessiva. Por fim, faz-se um paralelo entre Brasil e Argentina, estudando dois processos de trabalhadores que sofreram danos pelo desrespeito à jornada legal.
PALAVRAS-CHAVE: Jornada de Trabalho. Direito do Trabalho. Jornada Exaustiva.
Sumário: 1. Introdução. 2. Breve histórico do direito do trabalho. 3. A jornada de trabalho. 4. O fenômeno do “overtime”. 5. Jornada exaustiva e escravidão contemporânea. 6. A jurisprudência brasileira e argentina. 7. Conclusão. 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A jornada de trabalho faz parte da vida da maioria da população com alguma ocupação, o seu desenvolvimento ocorreu junto ao direito do trabalho, e além disso, sempre existiu como uma forma de produzir riqueza e dos subsídios à sobrevivência humana.
Deste modo, a jornada de trabalho integra a própria construção do direito do trabalho e a garantia das suas limitações tornou-se um dos direitos sociais mais importantes para o trabalhador. Sendo assim, o limite de horas trabalhadas é pauta de legislações nacionais e internacionais, como um verdadeiro pressuposto da dignidade da pessoa humana.
O direito a uma jornada razoável de trabalho, portanto, é necessário para que violações de direitos não ocorram, visto que uma jornada exaustiva degrada a saúde do trabalhador, e além disso, em alguns casos pode ser enquadrada como condição análoga a de escravidão.
O objetivo deste trabalho é de analisar sobre como a jornada de trabalho limitada tornou-se um direito do trabalhador, e como o capitalismo atual tem a tendência de restringir essa garantia. A busca pelo lucro, dessa forma, é a porta de entrada para que violações ocorram, mascarando uma jornada exaustiva com a desculpa de serem apenas “horas extras”.
Estudar o direito do trabalho sob a égide das novas relações de trabalho possui grande relevância, visto que a legislação deve ser compreendida em seu contexto global e atual, tanto no Brasil, como na Argentina. Sendo assim, apesar de estarmos sob o regime de um sistema capitalista, o direito possui o dever de analisar o caso de acordo com a legislação, garantindo ao trabalhador os seus direitos adquiridos.
2.BREVE HISTÓRICO DO DIREITO DO TRABALHO
O trabalho é uma parte essencial da vida humana, visto que ele faz parte da sua rotina, e é inevitável para a sobrevivência da espécie. Este trabalho pode ocorrer de variadas formas, podendo ser uma atividade física ou intelectual. A própria organização social, visto que as relações sociais decorrem também das atividades laborais, neste sentido Marx afirma:
[...] o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais do seu corpo – brações e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil a vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, 9 ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. (2002, p. 211).
Arendt (2002) conclui que o trabalho produz um mundo artificial, diferente do ambiente natural, o trabalho comporta a vida de cada indivíduo, que reproduz um comportamento para que possa sobreviver. Deste modo, pode-se afirmar que o trabalho vai além de uma ferramenta de sobrevivência, muito além disso, reflete a natureza humana de ter o poder de produzir ou transformar algo.
O trabalho passou por grandes transformações, desde a sociedade pré-industrial, até os dias atuais. O trabalho do escravo marcou a Idade Antiga, no qual a divisão de classes era dura e permitia a escravidão do homem pelo homem, com o advento do cristianismo e do regime feudal a escravidão foi substituída por um novo regime de produção, no qual o vassalo era submetido aos senhores da terra (BEDIN, 2013).
A sociedade está dividida em camadas sociais, que dificulta a ascensão dos trabalhadores à modos melhores de sobrevivência, ao mesmo tempo que produzia e sustentava as camadas sociais superiores, sendo relegados à uma situação de inferioridade (BEDIN, 2013).
O advento da burguesia e da sociedade industrial, fez com que o Antigo Regime ruísse, dando espaço a uma reorganização social. O modo de produção capitalista exigia um novo modelo de sociedade, muito mais controlado do que os anteriores, pois a fábrica deveria funcionar para maximização do lucro do burguês.
A Revolução Francesa ocorrida em 1789 marcou uma nova era, durante a Idade Moderna a sociedade passou a primar pela liberdade individual, dando a possibilidade de exercer a profissão livremente (BARROS, 2011). A liberdade contratual auxiliou no progresso da indústria, porém essa situação agravou as condições sociais dos trabalhadores, devido a inexistência de uma tutela para garantia de condições mínimas.
Proscurcin (2007), relata que as condições dos trabalhadores eram exaustivas, e devido à falta de terras para cultivo, os trabalhadores migraram do campo para a cidade que oferecia muitos empregos, mas estes eram degradantes. Salários baixos, condições péssimas de trabalho, jornadas sem limites, trabalho infantil, diferença salarial por gênero eram as regras ditadas pelos empregadores, com base na lei do mercado (CASSAR, 2011).
A sociedade pós-industrial, por sua vez, tem como característica predominante a tecnologia eletrônica. Nascimento (2009) afirma a sistemática do trabalho se altera, com a progressiva substituição da grande indústria, e como consequência, há um decréscimo de trabalhadores industriais, que passam a ser desempregados ou a incorporar o setor de serviços.
A formação do direito do trabalho, de acordo com Delgado (2019), tem seu momento inicial em 1802, estendendo-se até 1848. O Peel’s Act no âmbito do direito inglês marca a proteção dos menores no mercado de trabalho. A segunda fase é marcada pelo Manifesto Comunista, redigido por Marx e Engels, esse período resultou na liberdade de associação e a criação do Ministério do Trabalho. A terceira fase vai de 1890 até 1919, com a Conferência de Berlim e a Encíclica Rerum Novarum, referentes à necessidade de abordar a questão social no direito do trabalho. A partir de 1919, a quarta fase é marcada pela autonomia do Direito do Trabalho, com a criação da Organização Internacional do Trabalho e pelas Constituições Sociais (DELGADO, 2019).
A última fase, que se inicia logo após a Primeira Guerra Mundial, denominada como a fase da institucionalização do Direito do Trabalho como ramo autônomo. A Constituição de Weimar e a criação da OIT foram os marcos dessa última fase. O direito do trabalho passa a ser um direito cidadão:
O dado fundamental é que o Direito do Trabalho se institucionaliza, oficializa-se, incorporando-se à matriz das ordens jurídicas dos países desenvolvidos democráticos, após longo período de estruturação, sistematização e consolidação, em que se digladiaram e se adaptaram duas dinâmicas próprias e distintas. De um lado, a dinâmica de atuação coletiva por parte dos trabalhadores — dinâmica essa que permitia inclusive aos trabalhadores, mediante a negociação coletiva, a produção autônoma de normas jurídicas. De outro lado, a estratégia de atuação oriunda do Estado, conducente à produção heterônoma de normas jurídicas (DELGADO, 2019, p.111).
Deste modo, a institucionalização do Direito do Trabalho nas Constituições Contemporâneas foi incorporada com diretrizes gerais de valorização do trabalho, com ênfase na dignidade da pessoa humana e seus desdobramentos, como a inviolabilidade física e psíquica do ser humano, valorização do trabalho e emprego e a função social da propriedade.
A primeira Conferência Internacional do Trabalho ocorreu no ano de 1919, e em na Convenção de número 1 restou estabelecido que a duração da jornada de trabalho deveria ser de oito horas diárias ou 48 horas semanais, e em 1935 o posicionamento foi revisado e diminuído para 40 horas semanais.
Uma das garantias básicas do trabalhador é a jornada de trabalho limitada, para que possa usufruir de seus direitos ao lazer e a vida privada.
3.A JORNADA DE TRABALHO
A jornada de trabalho é o lapso de tempo para a execução de uma atividade laboral, no qual o trabalhador dispõe de seu tempo e de sua força física ou intelectual para a concretização de um produto. Esse período é composto das horas diárias de trabalho, apesar de a expressão jornada de trabalho ser comumente confundida com duração do trabalho (horas semanais ou mensais). No Brasil, a duração do trabalho está disposta no artigo 7°, XIII, da Constituição Federal:
São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. (grifei).
No direito argentino, a limitação está posta no artigo 1º da Lei 11.544, in verbis:
Artículo 1° - La duración del trabajo no podrá exceder de ocho horas diarias o cuarenta y ocho horas semanales para toda persona ocupada por cuenta ajena en explotaciones públicas o privadas, aunque no persigan fines de lucro.
No están comprendidos en las disposiciones de esta ley, los trabajos agrícolas, ganaderos y los del servicio doméstico, ni los establecimientos en que trabajen solamente miembros de la familia del jefe, dueño, empresario, gerente, director o habilitado principal.
La limitación establecida por esta ley es máxima y no impide una duración del trabajo menor de 8 horas diarias o 48 semanales para las explotaciones señaladas.
A limitação da jornada de trabalho tem como base o combate a fadiga do trabalhador, que precisa de horas mínimas entre um dia e outro de trabalho para o devido descanso. O empregador determina, pelo contrato de trabalho, as horas a serem trabalhadas e o horário de entrada e saída, respeitando os limites da lei trabalhista.
De acordo com Delgado (2019), a jornada é a principal obrigação do empregador no contrato de trabalho e mede a principal obrigação contraposta (do empregado) no contrato, que é o tempo que será disposto ao empregador. A jornada é a medida principal da obrigação do empregado e a medida da vantagem empresarial, é por isso que as regras referentes a jornada são relevantes ao direito do trabalho.
A jornada de trabalho está relacionada diretamente ao salário, sendo um dos temas que foram alvo das lutas constantes dos trabalhadores. O salário pode ser considerado como o montante devido peça força de trabalho dispensada, Delgado (2019) afirma que não há regra jurídica que, sendo alterada, não influa no salário.
Outro tema que se relaciona com a jornada do trabalho é a saúde laboral. O ambiente do trabalho não é sempre salubre, e quando existem agentes nocivos é devido a necessária proteção e reduzida jornada de trabalho:
Essas reflexões têm levado à noção de que a redução da jornada e da duração semanal do trabalho em certas atividades ou ambientes constitui medida profilática importante no contexto da moderna medicina laboral. Noutras palavras, as normas jurídicas concernentes à duração do trabalho já não são mais — necessariamente — normas estritamente econômicas, uma vez que podem alcançar, em certos casos, a função determinante de normas de saúde e segurança laborais, assumindo, portanto, o caráter de normas de saúde pública (DELGADO, 2019, p.1026).
Delgado (2019) também faz um paralelo da jornada de trabalho e o emprego, concluindo que a diminuição das horas trabalhadas auxilia no combate ao desemprego, por abrir novos postos de trabalho. Essa redução também auxilia na redistribuição social dos ganhos de produtividade alcançados pelo avanço tecnológico, pois a criação de novos empregos pelo encurtamento da jornada é um reflexo da democratização da tecnologia.
Cabe aqui ressaltar as diferenças de alguns conceitos semelhantes a jornada de trabalho para a sua melhor compreensão. A duração do trabalho corresponde às horas em que o trabalhador presta serviços ao empregador, podendo ser mensurado em uma unidade de tempo (dia, mês, ano). A jornada de trabalho é mais restrita, é o lapso temporal diário que o trabalhador se coloca à disposição do empregador.
O horário de trabalho, por sua vez, é o lapso temporal exato entre o início e o fim da jornada laborativa. Esse horário deve estar anotado em registro de acordo com o art. 74 da Consolidação das Leis Trabalhistas, podendo a jornada ser controlada, não controlada ou não tipificada.
4.O FENÔMENO DO “OVERTIME”
Apesar de todas as garantias trabalhistas construídas sobre a jornada de trabalho, que possuem como fundamento as normas internacionais e na dignidade da pessoa humana, um fenômeno crescente é a jornada exaustiva de trabalho, o que afeta diretamente a vida do trabalhador.
A realização de horas extras por parte dos trabalhadores vem se tornando parte da rotina de muitos trabalhadores, sendo quase uma parte da jornada normal de trabalho. Empregadores que exigem um esforço descomunal de seus funcionários para o alcance de metas, permanecendo em um ambiente controlado, e muitas vezes essas horas são sequer remuneradas, o que contraria a legislação, que exige o pagamento diferenciado dessas horas, contudo:
[...] apesar do que está definido em lei, há o problema de que em alguns países, como no Brasil, há muito tempo a utilização das horas extras perdeu o sentido de trabalho extraordinário, ganhando um significado de trabalho cotidiano a mais. Isto é, no dia-a-dia trabalha-se além da jornada normal de trabalho (DIEESE, 2007, p. 21).
A adesão às horas extras dá a ilusão de um aumento de renda do funcionário, que também imagina estar agradando o empregador e garantindo sua posição na hierarquia da empresa. É exigido do empregado que permaneça realizando horas extras como uma demonstração de lealdade à empresa, como se fosse o próprio empregado que houvesse assumido o risco da atividade econômica, criando um ambiente concorrencial entre os próprios colegas de trabalho.
Esse problema tem reflexo em vários locais da vida do empregado, que não possui tempo para o lazer, família, crescimento pessoal e saúde. Isso é uma herança dos tempos industriais, onde o emprego era submetido à um esquema de exploração, como afirma Masi (1999, p.59)
Foi à indústria que transformou milhões de trabalhadores autônomos e camponeses subempregados em ‘dependentes’ submetidos a uma disciplina paramilitar, sob o comando de um chefe hostil e um ritmo estressante de labuta da aurora ao crepúsculo. Foi à indústria que transformou radicalmente o conceito de trabalho, caracterizando-o como atividade de múltipla programação e direcionamento que se presta a um estranho em troca de ‘consumo’ e ‘urbanismo’, inspirou outros como ‘alienação’, ‘autonomia’, ‘exploração’ e ‘estresse’.
Assim, as horas extras, remuneradas ou não, passa a ser um comportamento naturalizado e até esperado pelo empregador. A necessidade de se manter empregado faz com que o funcionário se torne tão dependente do emprego que passa o dia todo no escritório, sem refletir sobre como isso afeta a sua vida pessoal. Masi (2000) conclui que essa é uma dependência psicológica, em uma relação não saudável na qual o chefe não consegue abrir mão de seus empregados e esses não conseguem viver sem a subordinação.
Em muitos casos, promessas de melhores remunerações por bom comportamento e esforço para a obtenção de lucro são os mecanismos de manipulação psicológica que os chefes utilizam para submeter o empregado.
Neste sentido, essa situação pode ser resumida no fenômeno do “overtime”, que é trabalhar além do horário regular estabelecido por contrato de trabalho, convenção ou pela legislação. Esse fenômeno traz consequências graves à saúde do trabalhador. Um estudo realizado pela Cicardian (2014), demonstra que aqueles que trabalham de 50 a 60 horas por semana tem tendência a terem conflitos familiares, como divórcio, e também a terem problemas mentais e embriaguez. Além disso, se a carga horária for mais que 40 horas semanas, é possível que se desenvolva o vício em cigarro e bebidas alcoólicas, e tendem a ter sobrepeso e depressão.
Esses fatores contribuem também para que a segurança do empregado seja deficitária por não ter o horário de descanso devido, visto que as obrigações da vida comum continuam existindo mesmo com a sobrecarga de trabalho, principalmente para as mulheres que enfrentam dupla jornada. A fadiga pode acarretar em acidentes ou uma performance não ideal das funções laborais.
Cabe destacar ainda que não se está aqui a generalizar o exercício de labor em jornada suplementar como regra em todas as empresas, mas sim a evidenciar que várias empresas agem de maneira a não se preocupar com a saúde e qualidade oferecidas ao obreiro, visando um lucro exacerbado em contraste as condições laborais oferecidas.
5.JORNADA EXAUSTIVA E ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA
É muito tênue a linha que separa a recorrência de horas extras e a jornada exaustiva de trabalho, na qual os trabalhadores se submetem a 14, 15, 16 horas diárias. Caso não sejam as horas de trabalho diferenciadas, permitidas pela legislação, como o turno ininterrupto de revezamento, estará caracterizada a jornada exaustiva prevista no art. 149 do Código Penal.
Expor o trabalhador a uma jornada exaustiva que ultrapassa os limites legais, pode ser caracterizado como trabalho em condições análogas à de escravo. A escravidão contemporânea pode ser resumida como uma submissão a trabalhos de modo forçado ou a jornada exaustiva pretendendo extrair do trabalhador, uma prestação de serviço além do normalmente exigido, que ultrapassa suas limitações físicas, no intuito exclusivo de beneficiar o empregador.
A sujeição à condição degradante de trabalho, mesmo que o labor se desenvolva em limites físicos moderados, representa para o empregador maior oportunidade de lucro, porque se paga por prestação de serviço de baixo custo.
A intenção do empregador de sujeitar o trabalhador a uma jornada superior à legal, que vai além da sua capacidade física e mental, com o objetivo de lucrar com a exaustão do outro, é o que Marx (2002) chama de impulso imanente da produção capitalista, com o objetivo de utilizar toda a força de trabalho.
Marinho e Vieira (2019) afirmam que o trabalhador não é mais reconhecido como uma característica pessoal, mas sim como um apêndice da lógica totalitária do capital, ou seja, ele não controla mais seu próprio tempo e é submetido ao ritmo da produção.
A caracterização do trabalho escravo contemporâneo depende de quatro fatores:
a) sujeição da vítima a trabalhos forçados;
b) sujeição da vítima a jornada exaustiva;
c) sujeição da vítima a condições degradantes de trabalho; e
d) restrição por qualquer meio da locomoção da vítima em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Vale ressaltar que essas condições não são excludentes, mas concorrentes, além da imputação criminal não necessitar do aparecimento de todos os elementos, ou seja, basta que apenas uma condição seja cumprida. Para melhor percepção desses componentes, destacamos contribuições do Direito para o segundo item descrito pelo MTE (VIEIRA; MARINHO, 2019, p.352).
A jornada exaustiva é aquela imposta a alguém, além do limite legal extraordinário estabelecido na legislação, que é capaz de causas prejuízos à saúde física e mental decorrentes da situação de sujeição forçada que anulem a vontade do trabalhador. A OIT, neste sentido, aprovou a Convenção 105, que dispõe sobre a abolição do trabalho forçado:
Artigo 1º. Qualquer Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma; a) como medida de coerção, ou de educação política ou como sanção dirigida a pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica, à ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico; c) como medida de disciplina de trabalho; d) como punição por participação em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa. (1957).
O trabalho escravo contemporâneo apesar de aparentar ser uma realidade distante, não o é. No Brasil, o Ministério do Trabalho exclusiva para a fiscalização desses casos, o Grupo Móvel de Erradicação do Trabalho Escravo, que visam os grupos mais vulneráveis, sendo esses aqueles que demandam força física para o trabalho, como os trabalhadores rurais e da construção civil.
Do mesmo modo, os trabalhadores das indústrias têxteis, que empregam muitos imigrantes bolivianos, paraguaios e peruanos que não possuem visto permanente, acabam por serem abusados pela indústria da moda, sendo forçados a trabalhar sob maus tratos, condições precárias de saúde, assédio moral, sexual e físico, com jornadas superiores a 16 horas diárias (VIEIRA; MARINHO, 2019).
Assim, é necessário que se conheça o problema da escravidão contemporânea, para que possamos caracterizá-la e combatê-la, neste sentido:
Não podemos deixar de destacar que a intensidade, por si só, não pode ser levada em conta nas relações de trabalho abusivas e patológicas. A necessidade do uso da força, da duração e da complexidade da atividade sofrem variações conforme o setor de mercado, a aceitabilidade da sociedade, a regulação da jornada conforme cada país, entre outros aspectos. Por isso, é importante lembrar que a longa jornada e o trabalho excessivo, além de estar ligados, estão relacionados ao risco de bem-estar e à saúde do trabalhador, e a inúmeras outras questões de impacto social, como o nível de desemprego, a força de trabalho inserida em subempregos e a multiplicação de pessoas em mais de um emprego (VIEIRA; MARINHO, 2019, p.358).
A questão da jornada exaustiva, portanto, extrapola as questões de sobrecarga pessoal do trabalhador. Os seus próprios direitos humanos acabam mitigados a despeito da busca pelo lucro exacerbado.
6.A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E ARGENTINA
Os tribunais do trabalho enfrentam os processos que versam sobre a jornada exaustiva de trabalho. Sendo assim, cada caso necessita ser analisado em suas questões concretas, visto que apenas a hora extra não caracteriza uma jornada exaustiva.
Contudo, o judiciário brasileiro, pelo Tribunal do Trabalho, aponta ser favorável aos trabalhadores que são prejudicados por uma jornada exaustiva, como no processo a seguir:
DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXCESSIVA. Entendimento majoritário da Turma no sentido de que a prova carreada aos autos justifica a condenação por ter sido exigido da reclamante o cumprimento de extensas jornadas, com labor inclusive nos finais de semana, o que culminou com problemas de saúde, inclusive com desmaios e mal estares no local de trabalho. Decisão por maioria, vencido o Relator. (BRASIL, 2019).
Como o processo trata do dano existencial, é importante relacionar os artigos que tratam do tema:
Artigo 5º [...]
X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
O dano existencial será real quando a jornada exaustiva ocorrer por longo período, impondo ao empregado um novo estilo de vida, o qual depende da vontade do empregador, com a privação dos direitos da personalidade, como o direito ao lazer, à educação e à convivência familiar e social.
A dignidade da pessoa humana é um valor e um princípio fundamental, que prevê que o titular desse direito, caso sofra abuso, é passível de indenização, conforme os arts. 12, 186 e 927 do Código Civil.
No caso concreto do processo analisado, a reclamante trabalhava no escritório da empresa, na área administrativa. As testemunhas arroladas citaram que ela desenvolveu problemas de saúde dentro da empresa, e os outros funcionários percebiam a quantidade exacerbada de trabalho e as horas excedentes trabalhadas. O mal-estar era visível, e em duas oportunidades a reclamada passou mal em horário de trabalho, sendo encaminhada para o hospital.
A funcionário exercia um cargo de gerência, e não estava submetida ao controle horário, mas costumava trabalhar das oito horas da manhã até as vinte horas, sendo que em poucas oportunidades conseguiu sair antes das dezessete horas. As rotinas de viagem eram recorrentes, e os trabalhos nos finais de semana também, refletindo em sua vida familiar.
O processo foi julgado procedente, e a reclamante percebeu o valor de 20.000 reais em indenização, pelos transtornos causados pela jornada exaustiva de trabalho na empresa.
O direito argentino também enfrenta a questão da jornada exaustiva, no processo n° 13.202, o Tribunal do Trabalho de Mendoza deu procedência ao pedido do autor, que teve consequências físicas decorrentes da sua jornada de trabalho:
A través de la prueba testimonial rendida en las presentes actuaciones, han sido demostradas las situaciones estresantes relatadas en la demanda a las que habría sido sometido el actor, trabajando sobre exigido, en atención a las extensas jornadas, que lo exponían a una sobrecarga de trabajo, debiendo hacerse cargo de dos sectores de la empresa el solo y de su personal, también se acreditó un espisodio ocurrido en la empresa, cual fue el desmayo y golpe del actor, por lo que concluyo en que en el particular caso de autos, las condiciones de su prestación configuraron una razón de estrés apreciablemente mayor que la que puede suponerse normal, en la vida de una persona sometida al ambiente en que se mueve, de modo que las condiciones laborales han actuado en forma activa y protagónica en la producción del daño (ARGENTINA, 2017).
Nesse último caso, o autor sofria estresse no ambiente de trabalho, o que acarretava problemas psicológicos e físicos, devido ao assédio e exigência de uma constante produção elevada. Os juízes do processo concluíram que essas demandas não são passíveis da natureza do trabalho, e excedem qualquer situação normal de trabalho. O autor era remetido a um regime de trabalho ininterrupto e de alerta constante.
Assim, o nível de estresse, atestado pelos médicos peritos do processo, foi tão alto que acarretou em episódios de desmaio e colapso nervoso, e a sua ausência no trabalho gerou pressões psicológicas ao autor. A consequência disso foi o que o perito apresenta:
En consecuencia, tratándose de una acción sistémica, corresponde su evaluación de conformidad a la normativa que rige la materia, así, el suscripto en virtud de las amplias facultades otorgadas por su jurisdicción, considera que la enfermedad psicopatológica que presenta el actor encuadra según baremos de la ley 24557, decreto 659/96, como Reacción Vivencial Anormal Neurótica con Manifestación Depresiva Grado II, que le otorga una incapacidad del 10 % de IPP.
Ello es así, por cuanto de la prueba pericial rendida surge que si bien el actor no presenta alteraciones en el pensamiento, concentración o memoria, necesita de algún tipo de tratamiento medicamentoso o psicoterapéutico (ARGENTINA, 2017).
Deste modo, fica demonstrado pela jurisprudência brasileira e argentina que o direito e seus operadores possuem o grande desafio de verificar nos casos concretos a violação do direito a uma jornada dentro dos limites legais, e que não seja exaustiva.
7.CONCLUSÃO
A limitação da jornada de trabalho, desde sua gênese, possui o intuito de proteger o trabalhador em seus direitos, visto que a sua obrigação com o empregador não é sua única responsabilidade. Poder usufruir de todos os outros direitos que a Constituição Federal concede exige um tempo livre, para que possa ter momentos de lazer, poder se instruir e cuidar de sua família.
Para isso, é necessário que o empregador não enxergue o trabalhador como um adendo da empresa, servindo apenas para que o empresário aufira lucro, mas sim como um sujeito de direitos, reconhecendo-o em sua subjetividade.
Assim, a limitação da jornada não é mera liberalidade do empregador nem do empregado, os quais devem reconhecer que as horas extras são de fato extraordinárias, devendo serem utilizadas em casos específicos, e não se tornarem parte da rotina diária do trabalhador.
Respeitando o limite legal, casos como os apresentados na análise jurisprudencial poderão ser evitados, preservando a saúde do trabalhador, por poder laborar em um ambiente saudável, e também evitando que o empregador precise dispor de indenizações para reparar o dano causado.
8.REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
ARGENTINA. Tribunal do Trabalho. Sentença nº 13.202. Lista. Mendoza, 12 jun. 2017.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 7 ed. São Paulo: LTr. 2011
BEDIN, Gilmar Antônio. A idade média e o nascimento do estado moderno: aspectos históricos e teóricos. 2 ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2013.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Jornada de Trabalho em Países Selecionados. Relatório. São Paulo, 2007.
BRASIL. TRT da 4ª Região. Acórdão nº 0000501-07.2014.5.04.0234. D.O.U. Porto Alegre, 28 set. 2019.
CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 5 ed. Niterói: Impetus, 2011.p. 15.
CICARDIAN. 5 Negative Effects of High Overtime Levels. 2014. Disponível em: https://www.circadian.com/component/k2/itemlist/tag/shift%20scheduling.html?start=10. Acesso em: 14 mar. 2020.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais. 18. Ed. São Paulo : LTr, 2019.
MARINHO, Maiara Oliveira; VIEIRA, Fernando de Oliveira. A jornada exaustiva e a escravidão contemporânea. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 17, n. 2, p. 351-361, Jun. 2019 .
MARX, Karl. O capital: Critica da economia política. 19. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MASI, Domenico de. O futuro do trabalho. Milão: Unb, 1999.
______. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 34. ed. São Paulo: LTr, 2009.
PROSCURCIN, Pedro. Compêndio de direito do trabalho: introdução à relações de trabalho em transição à nova era tecnológica. São Paulo: LTr. 2007.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PALHARES, Denis de Oliveira. A jornada exaustiva de trabalho: uma análise sobre os perigos ao trabalhador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2020, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54757/a-jornada-exaustiva-de-trabalho-uma-anlise-sobre-os-perigos-ao-trabalhador. Acesso em: 23 dez 2024.
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