RESUMO: Para a efetivação de uma proteção mais adequada da prole, que possui o interesse prioritário da relação parental, a aprovação da Lei Federal n° 13.010/2014, popularmente conhecida como “Lei Menino Bernardo” ou “Lei da Palmada”, estabeleceu o direito de toda criança e todo adolescente ser educado e cuidado sem o uso de castigos físicos ou de qualquer tratamento cruel ou degradante, mas trouxe o embate sobre esta introduzir, ou não, majoração da interferência estatal na família. Em suma, a assunção do compromisso internacional pela constituição da cultura de paz deve impedir a retrocessão dos consideráveis avanços advindos da referida inovação legal.
Palavras-chaves: intervenção estatal, melhor interesse, criança e adolescente, palmada, cultura de paz.
ABSTRACT: For effective protection of the offspring, which has the primary interest of the parental relationship, the approval of Federal Law No. 13,010 / 2014, popularly known as “Lei Menino Bernardo” or “Lei da Palmada”, established the right to every child and adolescent should be educated and cared for without the use of punishment or any cruel or degrading treatment, but it brought the clash over this to introduce, or not, an increase in state interference in the family. In short, the assumption of the international commitment for the constitution of a culture of peace must prevent the retrocession of the considerable advances arising from this legal innovation.
Keywords: state intervention, best interest, children and adolescents, spanking, culture of peace.
SUMÁRIO: Resumo 1 Introdução 2 Do embate sobre a “Lei Menino Bernardo” (Lei Federal n° 13.010/2014) 2.1 Peculiaridades da inovação legal 2.1.1 Contexto social prévio e o caso “Menino Bernardo” 2.1.2 A lei e a controvérsia apontada 2.2 O verdadeiro feito da “Lei Menino Bernardo” 2.2.1 O cauteloso avanço brasileiro na proteção dos direitos da infância e da juventude 2.2.2 A implementação da cultura de paz nas relações parentais 3. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A família brasileira é historicamente caracterizada por um longo período de dominação social, durante e após o período colonial, dependendo de outras instituições, como a igreja, a escola e o Estado, para se desenvolver, o que afetou diretamente a proteção infanto-juvenil local por séculos, com a naturalização de castigos físicos e de ordens de comportamento no ambiente doméstico.
Com a redemocratização do país, passou a ser demandada, gradativamente, uma maior inclusão e equalização na família, com a ocorrência de relevantes mudanças culturais e sociais que impulsionaram a busca pela igualdade material entre os indivíduos, em face da mera igualdade formal idealizada pelos ideais burgueses.
À luz do princípio de seu melhor interesse, crianças e adolescentes passam a figurar materialmente no topo da pirâmide das relações com seus genitores, cabendo aos magistrados, observados os demais direitos processuais, preservar prioritariamente referido interesse infanto-juvenil.
Nessa vereda, e para a efetivação de uma tutela mais adequada destes interesses prioritários, a aprovação da Lei Federal n° 13.010/2014, popularmente conhecida como “Lei Menino Bernardo” e “Lei da Palmada”, obteve o condão de modificar a rede de proteção de infantes no Brasil, estabelecendo o direito de toda criança e todo adolescente obter educação e cuidados por seus responsáveis sem o uso de castigos físicos ou de qualquer tratamento cruel ou degradante.
Ocorre que, por apontar o fortalecimento da figura estatal junto aos assuntos inerentes à família, há no momento um cenário contínuo de incertezas quanto à referida inovação do ordenamento jurídico brasileiro, que surgiu com o propósito corrigir falhas legais e evitar que, a exemplo do histórico de violência doméstica no país, ilustrado por Maria da Penha, alvo de duas tentativas de homicídio pelo próprio marido em seu ambiente familiar, o país fosse novamente denunciado internacionalmente por violar direitos humanos de camadas vulneráveis de sua sociedade.
Assim, serão tratadas as nuances da “Lei Menino Bernardo”, a fim de que, averiguado o embate existente acerca de suas disposições, seja esclarecido o verdadeiro feito da lei, com a menção sobre a implementação da cultura de paz nas relações parentais e o cauteloso, mas necessário avanço brasileiro na proteção dos direitos da infância e da juventude.
2 – DO EMBATE SOBRE A “LEI MENINO BERNARDO” (LEI FEDERAL N° 13.010/2014)
2.1 PECULIARIDADES DA INOVAÇÃO LEGAL
Em que pese os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na defesa da infância e da juventude, a ausência de um maior amparo legal para a prevenção e combate à violência parental importou em um contexto histórico social e cultural no país de se legitimar o uso de castigos corporais e de tratamentos cruéis ou degradantes em desfavor de crianças e adolescentes, sob o argumento de serem utilizados para a educação destes.
A recomendação efetuada ao Brasil, advinda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pela sua tolerância histórica à violência doméstica contra as mulheres, bem como pela negligência e omissão especificamente na defesa dos direitos humanos de Maria da Penha Maia Fernandes, alvo de duas tentativas de homicídio pelo próprio marido em seu ambiente familiar, alertou acerca da necessidade de se tutelar outros agentes em situação de vulnerabilidade social, sob pena de nova responsabilização estatal perante os órgãos internacionais de direitos humanos. Uma das funções destes organismos internacionais é nomear e constranger (name and shame) os países que infringem suas normas, e o Pacto São José da Costa Rica dispõe em seu artigo 19 que toda a criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de criança requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado.
A aprovação da Lei Federal n° 13.010/2014, reconhecida pelo Congresso Nacional como “Lei Menino Bernardo” em homenagem a Bernardo Uglione Boldrini, assassinado pela madrasta e pelo próprio pai após um histórico de agressões parentais comunicadas e não devidamente solucionadas pelo Judiciário local, possui o propósito de corrigir referida lacuna, mas trouxe consigo o retorno do debate acerca da suposta abusividade na intervenção do Estado na família.
2.1.1 – CONTEXTO SOCIAL PRÉVIO E O CASO “MENINO BERNARDO”
Desde a conclusão do processo de redemocratização do Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, é notável o avanço de inúmeras políticas públicas que foram adotadas em prol da diminuição das desigualdades presentes junto às diversas camadas sociais de sua população, a exemplo do percentual mínimo dos cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência, bem como da atual política de cotas sociais e raciais, regulada pela Lei Federal n° 12.711/2012, ou “Lei de Cotas”, que funciona como uma reserva de vagas em instituições públicas ou privadas em razão de alguma vulnerabilidade social existente.
Com o mesmo intuito, a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, incorporou junto ao ordenamento jurídico brasileiro o sistema de proteção integral dos direitos infanto-juvenis, substituindo a concepção utilizada até então pelo Código de Menores, de 1979, na qual o referido “menor” era considerado apenas um objeto da relação familiar, e não um sujeito de direitos propriamente dito, como se faz atualmente em prol de seu desenvolvimento pleno e humanizado.
No entanto, denota-se que, ainda que com as positivas transformações principiológicas sofridas pelo Direito da Infância e Juventude Brasileiro, o mero amparo formal de colocar crianças e adolescentes a salvo de atos discriminatórios e violentos não alterou o panorama de ser comum se considerar a prole como mera propriedade do casal.
A questão da suposta superioridade dos pais em relação aos seus filhos existe desde a formação histórico-cultural brasileira para legitimar o castigo, seja de forma física, moral ou psicológica, para, em primeiro ou último caso, auxiliar na educação das crianças, ou mesmo para puni-las por alguma conduta considerada reprovável pelos detentores da autoridade familiar.
No ano de 2000 e em média anual, em torno de 6,5 milhões de crianças brasileiras vítimas de algum tipo de violência doméstica no país, enquanto que 18.000 (dezoito mil) infantes eram alvos de violência diária (CONANDA, 2000).
De fato, pela inexperiência ou incapacidade de pais educarem seus filhos de uma maneira saudável, o castigo passou a ser considerado, costumeiramente, um método eficaz para a realização do controle de quem, em tese, deveria ter o controle da relação, sendo, inclusive, uma realidade a nível mundial.
Aos pais, se reconhece, pois, o arbítrio no que tange ao exercício do poder familiar, no plano da licitude e da responsabilidade, por óbvio, que alcança, inclusive, o de exigir respeito, obediência e colaboração, e o poder-dever de educar, inclusive utilizando das medidas corretivas necessárias (COMEL, 2003, p. 105), mas é necessário diferenciar o direito de correção - que é inerente ao regular exercício da função familiar - de toda e qualquer agressão ou perturbação, principalmente em se tratando de indivíduos em condição de vulnerabilidade física e social.
O óbito de Bernardo Uglione Boldrini, com apenas 11 (onze) anos de idade, no Rio Grande do Sul, foi emblemático para ilustrar o ambiente de violência familiar vivenciado no país, visto que dentre os apenados até o momento (não houve trânsito em julgado e o consequente arquivamento do processo judicial), incluem-se a madrasta e o pai da criança.
A negligência parental a seu respeito foi tanta que a indiferença do pai havia sido noticiada pelo próprio menino ao Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, órgão ligado à Prefeitura de Três Passos/RS, e, após, encaminhada ao Ministério Público local para ajuizamento da ação cabível.
A promotora de justiça do caso relatou que a criança “teria pedido a oportunidade de viver com uma nova família, visto que era cotidianamente ofendido pela madrasta” (JORNAL R7, 2014), e que “o pai fazia com que Bernardo se alimentasse no prato do cachorro da família, ao passo que era chamado de animal, aos risos dos apenados” (JORNAL G1, 2014).
Diante da ausência de confirmação médica de qualquer agressão física ao garoto, o magistrado responsável entendeu não haver risco iminente ao próprio, suspendendo o processo até nova avaliação, seguindo o rito processual vigente até então, que em respeito ao princípio da prevalência da família, garante a preferência pela adoção de medidas que mantenham ou reintegrem a criança junto à sua família.
No entanto, pouco tempo depois, foi noticiado o falecimento de Bernardo, assassinado pela madrasta que o coagiu a ingerir alta dose de medicamentos nocivos, com a participação do próprio genitor da criança. Já morto, o menino foi ocultado dentro de um saco plástico e enterrado em uma cova, em Frederico Westphalen/RS.
O caso em tela foi alvo de grande repercussão nacional, não apenas pelo fato de Bernardo ter habitado em condições cruéis e degradantes no seio familiar e ter ido a óbito com a participação de seu pai. A surpreendente ineficácia do Poder Judiciário na defesa de interesses de Bernardo, que mesmo suplicando diretamente por auxílio, pouco efetivamente fez na prevenção da violência ocorrida, alertou as autoridades legais acerca da necessidade de se desenvolver uma rede de proteção mais eficaz contra a violência infanto-juvenil, principalmente no âmbito doméstico familiar.
Assim, 11 (onze) anos após o início da tramitação do projeto de lei, foi aprovada a Lei Federal n° 13.010/2014, então consagrada pela Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados como “Lei Menino Bernardo” em homenagem à criança falecida em Três Passos/RS, e que consolidou um sistema de proteção mais rígido e amplo aos infantes brasileiros, como será visto adiante.
2.1.2 – A LEI E A CONTROVÉRSIA APONTADA
Com o objetivo principal de ampliar a rede de proteção as crianças no seio familiar, a Lei Federal n° 13.010/2014, de início, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente para incluir em seu corpo o artigo 18-A, que ampliou o rol de direitos infanto-juvenis previstos ao impedir qualquer espécie de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante no processo de educação e desenvolvimento destes, especificando ainda quais as hipóteses de aplicação do dispositivo:
Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:
a) sofrimento físico; ou
b) lesão;
II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:
a) humilhe; ou
b) ameace gravemente; ou
c) ridicularize.
Outra adição importante ao Estatuto trata do artigo 18-B, indicando os sujeitos passíveis de punição em qualquer hipótese de incidência do artigo 18-A, incluindo pais, demais integrantes da família e responsáveis, apresentando ainda o rol de medidas aplicáveis nesta hipótese, que poderão ser aplicadas independente de outras sanções também previstas no ordenamento, a depender da gravidade do caso em tela. Veja-se:
Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:
I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
III - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;
V - advertência.
Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.
Ainda, como exposto pelo parágrafo único do artigo 18-B, o legislador transferiu ao respectivo conselho tutelar a responsabilidade de realizar os devidos encaminhamentos ou advertências a quem infringir a inovação legal, tanto que a Lei Federal n° 13.010/2014 também alterou o artigo 13 do Estatuto para incluir referido encargo ao órgão administrativo municipal.
Por fim, outro avanço importante advindo da “Lei Menino Bernardo” foi a inclusão do artigo 70-A ao Estatuto, que atribuiu à Administração Pública Direta - União, estados, Distrito Federal e municípios - o dever de “atuar de forma articulada na elaboração de políticas públicas e na execução de ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes”.
Importante salientar que apenas as violências físicas e psicológicas foram abrangidas pela “Lei Menino Bernardo”, visto que já há dispositivos legais que preveem o combate das demais transgressões. É o caso das Leis Federais n° 12.015/2009 e Lei nº 13.718/2018, que tratam especificamente dos crimes de violência sexual, por exemplo.
A novidade no ordenamento ganha importância para que a história de Bernardo não seja esquecida, mas principalmente para fomentar o desenvolvimento de políticas públicas que promovam a alteração do contexto social de violência às crianças e aos adolescentes brasileiros em seu ambiente social e familiar, bem como para evitar a hipótese de nova denúncia do Brasil perante os organismos internacionais de proteção aos direitos humanos.
Contudo, ao mesmo tempo em que a lei tende a corresponder a um progresso legal na proteção de indivíduos vulneráveis na sociedade, houve uma enorme repercussão negativa acerca de sua aprovação.
Ainda, aponta-se o processo de aceitação cultural pelo qual o castigo físico é legitimado, ainda que como último recurso, com o objetivo de auxiliar na educação da prole, sendo tratado como forma de punição disciplinar. Por ser popularmente reconhecida como “Lei da Palmada” desde o início do trâmite dos projetos de lei junto à Câmara dos Deputados, a impressão de que a lei impediria os pais de se beneficiarem da famigerada “palmada” na educação de seus filhos significou inúmeras críticas a seu respeito.
Tem sido retomada a ideia de que o Estado esteja interferindo em assuntos privativos à família, a exemplo do professor OLIVEIRA (2014), segundo o qual “nossa própria Lei Maior garante aos pais livre gerência da sociedade conjugal, certamente abarcando a opção de educar os filhos”, ao passo que “já existem tutelas que podem se demonstrar eficazes, desde que aplicadas de maneira coesa com o sistema e com nossa sociedade”.
Portanto, tratando polemicamente da intervenção do Estado nas relações parentais, há indubitável importância na realização de uma análise precisa acerca dos apontamentos críticos ora apresentados em relação à “Lei Menino Bernardo”.
2.2 – O VERDADEIRO FEITO DA “LEI MENINO BERNARDO”
É importante desde já desmistificar a ideia de que a Lei Federal nº 13.010/2014 tenha proibido a utilização de todo e qualquer método para a correção dos filhos, motivo que justifica a popular referência à referida legislação tal como “Lei da Palmada”. As inúmeras críticas à lei estariam ligadas a uma possível exacerbada intervenção no âmbito familiar, embora parte da doutrina já adote o posicionamento de que o ideal a ser construído é, de fato, a gradual proibição de toda e qualquer punição aos menores de idade [2].
Diferente do que se habituou a dizer ainda durante o trâmite dos projetos de lei, houve tão somente a alteração do sistema de proteção de crianças e adolescente no que tange a utilização de métodos excessivos (físicos, cruéis ou degradantes) pelos pais ou responsáveis, além da assunção do compromisso estatal na constituição da “cultura de paz”, doutrina enfatizada mundialmente desde a criação da ONU.
Em verdade, embora pouco reconhecida, a “Lei Menino Bernardo” foi muito eficaz em seu objetivo de, diante dos dados estatísticos elevados que apontavam para uma ampla quantidade de agressões de crianças e adolescentes sofridas no seio familiar, instituir melhorias e aperfeiçoamentos em sua rede de proteção a estes incapazes, alterando dispositivos específicos do Estatuto da Criança e do Adolescente sem ofender os limites à intervenção estatal na seara da família.
2.2.1 – O CAUTELOSO AVANÇO BRASILEIRO NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
O viés pacifista que é incorporado pela novidade legal possui como ponto alto de sua controvérsia um suposto avanço da intervenção do Estado no âmbito doméstico, como já havia acontecido anteriormente com a aprovação da “Lei Maria da Penha”, e o temor quanto ao avanço de um Estado mais presente na vida dos cidadãos.
Antes de tudo, denota-se que o alarmismo populacional acerca do fortalecimento da figura do Estado tem se intensificado nos últimos anos, diante do crescimento da ideologia neoliberal no Brasil e mundo afora, caracterizada, entre outros fatores, pelo afrouxamento do controle estatal à vida privada dos cidadãos, bem como pelo crescimento.
Mistificada por essa ótica, a Lei Federal n° 13.010/2014 passou a ser analisada pelo senso comum como “mais uma” inconcebível intervenção do Estado nas relações parentais, e uma das questões levantadas é a de que a lei pouco acrescentaria ao ordenamento jurídico pré-existente.
O fato de antes mesmo da aprovação da lei já estarem positivadas no Direito Brasileiro algumas normas aplicáveis ao caso de violência parental - como a hipótese de perda do poder familiar ao responsável que castigue imoderadamente a prole, prevista no artigo 1.638, inciso I, do Código Civil de 2002 -, fomentou a ideia de haver redundância frente a uma punição já prevista no ordenamento jurídico, pouco beneficiando, portanto, a instituição familiar propriamente dita.
É o caso da opinião de CAVALCANTE (2014), que além de salientar que as agressões conceituadas pelo art. 18-A da lei possuem conceituação subjetiva, comenta que “os castigos físicos e o tratamento cruel ou degradante já eram punidos por outras normas existentes, como o Código Civil, o Código Penal e o próprio ECA”.
É bem verdade que a Lei Federal n° 13.010/2014 não tipifica nenhum crime diverso daqueles previstos pela legislação civil, penal e infanto-juvenil, apenas adiciona a reflexão acerca da agressão na educação de crianças e adolescentes (como já salientado), além de impulsionar a elaboração de políticas públicas de prevenção a este tipo de agressão, bem como de proteção a eventuais vítimas de violações no âmbito familiar.
Contudo, é necessário salientar a importância da abertura do olhar estatal ao caso de violência moderada contra os infantes, hipótese em que o infrator responsável poderá sofrer alguma das sanções previstas no atual artigo 18-B do Estatuto. Isso porque essa inovadora modalidade de infração não se encaixa no rol de crimes previstos na esfera penal, e que são aplicados em caso de violência imoderada, caso do crime de lesão corporal.
Para diferir uma modalidade de outra, BETIATE (2018), que é coordenador de seminários sobre direitos humanos e temas relacionados à infância e juventude e ao conselho tutelar, comentou em palestra anexada junto ao portal ECA-Capacita, que “o sensor de aplicação da lei será a própria sociedade, que denunciará apenas aquilo que entender ser excesso na conduta dos pais ou responsáveis”.
Ou seja, em havendo alguma situação de violência contra criança ou adolescente, a sociedade, como ente legitimada constitucionalmente da obrigação de cuidado e proteção destes, terá o dever de analisar o caso em tela e não se manifestar, em se tratando de uma conduta tolerante, comunicar a ocorrência de violência moderada ao conselho tutelar (alternativa acrescida pela Lei Federal n° 13.010/2014), ou comunicar a ocorrência de violência imoderada às autoridades penais, não tendo o que se falar em redundância da lei, nesse sentido.
A “Lei Menino Bernardo” trouxe um implemento ao rol de agentes sujeitos a sanções pela quebra da proteção infanto-juvenil, sendo estendido esse dever, originariamente destinado apenas aos pais, agora também aos demais integrantes da família ou qualquer pessoa responsável em cuidar do infante, ultrapassando o ambiente doméstico, portanto.
Tem-se que garantia constitucional de proteção prioritária e absoluta dos direitos da criança e do adolescente, além de colocá-los a salvo de toda forma de violência, crueldade e opressão, com a presença de dados comprobatórios que escancaravam o cenário de violência aos menores de idade no país, legitima a adoção de políticas públicas que busquem reparar o referido cenário.
2.2.2 – A IMPLEMENTAÇÃO DA CULTURA DE PAZ NAS RELAÇÕES PARENTAIS
O hábito brasileiro de se recorrer a alternativas violentas para solução de conflitos inerentes à educação infanto-juvenil, principalmente pelo castigo físico, foi consagrado pela atribuição de legitimidade no uso da força a diferentes atores sociais ao longo da história.
Nesse sentido, ganha destaque o apanhado histórico elaborado por LONGO (2005) acerca do processo pelo qual a punição corporal passou a ser considerada usual e parte de um sólido costume no Brasil, primeiramente pelos padres jesuítas, no século XVI, e depois por outras instituições sociais, até a legitimação do uso da violência pela família.[1] Necessário salientar que, dentre as instituições sociais que possuem o dever de preservar ou fomentar os valores através da educação, apenas a família ainda ultrapassava os limites impostos ao Estado e à escola, que há décadas já haviam perdido o direito de utilizar métodos violentos na correção de crianças e adolescentes.
Houve o consenso popular de que os pais possuíam não só o direito, mas também o dever de castigar seus filhos, inclusive com o uso de métodos violentos, sob o entendimento moral de a “palmada” ser um método que, de geração para geração, teria mantido forte eficácia no processo de formação e desenvolvimento dos menores de idade, ao passo que, aparentemente, seria pouco danosa sua utilização e, de qualquer modo, importante para evitar maiores aborrecimentos no futuro.
Para ilustrar isso, o instituto de pesquisas Datafolha registrou, no ano de 2010, à época de discussão do projeto de lei, que, dentre 10.905 (dez mil, novecentos e cinco) entrevistados, 54% (cinquenta e quatro por cento) dos brasileiros eram contrários à aprovação da “Lei Menino Bernardo”, ao mesmo tempo em que 72% (setenta e dois por cento) afirmaram que apanharam dos pais.[2]
Não se contesta aqui que o dever de corrigir seja uma atribuição indispensável para o pleno exercício do poder familiar, que certamente contribui para a formação de caráter dos infantes, o que inclui o direito-dever de penalizá-los, ao passo que “aos pais, se reconhece, pois, o arbítrio no que tange ao exercício do poder familiar, no plano da licitude e da responsabilidade, por óbvio, que alcança, inclusive, o de exigir respeito, obediência e colaboração, e o poder-dever de educar, inclusive utilizando das medidas corretivas necessárias” (COMEL, 2003, p. 105).
Porém, quando esta correção é exercida de maneira imprudente, implicando em traumas físicos ou psicológicos à parte mais vulnerável da relação parental, que sempre será a prole, insurge o dever do Estado em assolar a dignidade da pessoa humana desta.
No próprio projeto de lei, Maria do Rosário, deputada federal na época, abrangeu a tentativa de modificação desta cultura de educação violenta no Brasil, principalmente no âmbito doméstico, no sentido de que esta pode e deve ser enfrentada por diversas vias, dentre elas a valorização da infância e adolescência, a percepção da criança como um ser político, sujeito de direitos e deveres, e, ainda, o conhecimento e disseminação de métodos de resolução de conflitos, incluindo a vedação do castigo infantil, ainda que moderado e para fins pretensamente pedagógicos.
Para essa idealizada mudança de paradigma, que atinge não somente a questão parental como toda e qualquer relação propensa à existência de conflitos, denomina-se cultura de paz, expressão originada pela ONU e que pode ser entendida como um “conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados no respeito à vida, ao fim da violência, à prática da não-violência por meio da educação, diálogo e cooperação” (UNESCO, 1999).
É notável o propósito da lei em privilegiar a resolução pacífica dos conflitos parentais, que obteve o respaldo de profissionais psicólogos, que em sua maioria afirmam que as agressões sofridas podem ser prejudiciais à esfera psicossocial da criança, que passa a naturalizar o uso da violência para situações do cotidiano. Enfatizando isso, Sanira Amaral Logrado, coach e especialista em Psicologia Sistêmica, comenta que “o aspecto positivo dessa lei é que chama atenção para o fato de que a educação tem que ser diálogo, não violência. Os pais necessitam ter o exercício do diálogo e compreender que a violência não pode fazer parte da educação. A discussão provocada por essa medida é interessante para que a sociedade avalie a violência cometida contra a criança dentro de muitos lares de forma ‘educativa”.
Portanto, a principal novidade da “Lei Menino Bernardo” é promover a rediscussão acerca do uso da violência para educar ou corrigir os menores de idade, sendo pertinente a abordagem de Josiane Rose Petry Veronese a respeito:
A leitura atenta desta nova lei revela-nos que, em momento algum está implícita a ideia de desautorizarmos a família do seu básico papel de educar seus filhos. O que a nova lei faz é trazer, isto sim, uma nova cultura para a família [...] Atualmente, como resultado de todo um esforço que resultou nas convenções internacionais e conferências sobre direitos humanos e específicos na área do Direito da Criança e do Adolescente, a violência intrafamiliar, não está mais confinada à esfera privada. Passou a ser uma questão pública que se estende pelas academias, sindicatos, partidos políticos, organizações de base, movimentos sociais e presente, inclusive, como política pública. Não resta dúvida que a violência doméstica afeta os direitos humanos, a liberdade pessoal, a convivência familiar, a saúde física e psíquica do indivíduo. A falta de afeto na família, atinge, principalmente, no desenvolvimento emocional da criança e do adolescente. Neste sentido, a intervenção do Estado no contexto familiar tem caráter complementar, devendo assegurar políticas sociais básicas, programas de assistência social, orientação e apoio familiar, proteção jurídica, serviços de prevenção e atendimento às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, etc. conforme estabelecido na Constituição Federal, de 1988, em seus artigos 226 e 227 e no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 3º, 4º e 7º. (VERONESE, 2014).
Para dar eficácia a essa rediscussão dos processos de educação e pedagogia no Brasil, será necessária uma majoração de campanhas educativas e políticas públicas por parte do próprio Estado, bem como a realização de denúncias vindas de terceiros, como vizinhos, amigos e educadores, tratando de uma condição fundamental para a plena atuação do conselho tutelar ou outra autoridade competente na averiguação destas denúncias, sem que se acarrete em demasiada intervenção estatal à intimidade da família.
3. CONCLUSÃO
Após a compreensão acerca do contexto social brasileiro anterior à aprovação da “Lei Menino Bernardo”, foi possível esclarecer a intenção do legislador por trás da inovação legal: a reparação de um amplo histórico de violência envolvendo crianças e adolescentes no país, principalmente dentro do ambiente doméstico.
É possível afirmar que muitas das críticas levantadas à lei foram fundadas em equívocos e pouco conhecimento acerca do seu real feito, qual seja, a abertura para uma proteção mais eficaz à integridade de crianças e adolescentes, o que não se fez com a tipificação de novos crimes, ou a inserção de penas mais rígidas, mas com a consolidação de uma cultura de paz na resolução de conflitos de natureza parental.
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JORNAL R7. Caso Bernardo: menino pediu “nova família” antes de morrer, mas deu chance ao pai. Três Passos, 17 abr. 2014. Disponível em: https://noticias.r7.com/cidades/caso-bernardo-menino-pediu-nova-familia-antes-de-morrer-mas-deu-chance-ao-pai-29082014. Acesso em 03, mai. 2020.
OLIVEIRA Junior, Eudes Quintino. Lei da palmada. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/eudesquintino/2014/07/07/lei-da-palmada/. Acesso em 08, jan. 2020.
JORNAL G1. ‘Ele deixava Bernardo comer no prato do cachorro', diz promotora sobre pai. Três Passos, 15 mai. 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardo-boldrini/noticia/2014/05/ele-deixava-bernardo-comer-no-prato-do-cachorro-diz-promotora-sobre-pai.html. Acesso em 03, mai. 2020.
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz. Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/download/Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de%20A%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20uma%20Cultura%20de%20Paz%20-%20ONU.pdf. Acesso em 04, abr. 2020.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Lei Menino Bernardo: por que o educar precisa do emprego da dor? Disponível em: http://jus.com.br/artigos/29790/lei-menino-bernardo-por-que-o-educar-precisa-do-emprego-da-dor. Acesso em 06, mai. 2020.
[1] Matheus Mocelin é advogado inscrito na OAB/PR sob o n° 95.867 e membro consultor da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR, é graduado em Direito pelo UNICURITIBA e especialista em Direito de Família e Sucessões pela ABDConst. É, ainda, graduando em Ciências Sociais pela UFPR e pós-graduando em Direitos Humanos e Questão Social pela PUCPR.
[2] Josiane Rose Petry Veronese, professora da UFSC, Doutora em Direito e Pós-Doutora em Serviço Social, em sua palestra “O paradigma da proteção integral e a sua influência no direito de família”, realizada junto ao X Congresso do Mercosul de Direito de Família e Sucessões, opinou pela incompatibilidade do sofrimento com o processo de educação da prole, independente da agressão ser moderada ou não, apoiando a proibição absoluta do uso da “palmada” ou qualquer outro método na educação de crianças e adolescentes que implique no uso de violência aos mesmos.
[1] LONGO, Cristiano da Silveira. Ética disciplinar e punições corporais na infância. Butantã, v. 16, n. 4, mai. 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642005000300006>. Acesso em: 04, jan. 2019.
[2] DATAFOLHA, Instituto de Pesquisa Datafolha. 54% dos brasileiros são contra a lei da palmada. São Paulo, jul. de 2010. Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2010/07/1223479-54-dos-brasileiros-sao-contra-a-lei-da-palmada.shtml. Acesso em 04, jan. 2019.
Advogado inscrito na OAB/PR sob o n° 95.867 e membro consultor da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR, é graduado em Direito pelo UNICURITIBA e especialista em Direito de Família e Sucessões pela ABDConst. É, ainda, graduando em Ciências Sociais pela UFPR e pós-graduando em Direitos Humanos e Questão Social pela PUCPR.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOCELIN, Matheus Amaral. A defesa da cultura de paz como fundamento para subsistência da controversa “Lei Menino Bernardo” Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2020, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54762/a-defesa-da-cultura-de-paz-como-fundamento-para-subsistncia-da-controversa-lei-menino-bernardo. Acesso em: 23 dez 2024.
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