RESUMO: A evolução do Constitucionalismo proporcionou, ao longo dos anos, mudança quanto à noção de poder; hoje, ainda mais, é preciso se afastar a ideia de particularização da coisa pública. A Constituição de 1988 consolidou, no Brasil, o Estado Democrático de Direito, a submissão de todos, indistintamente, à lei, e, sobretudo no trato da coisa pública, a observância obrigatória de inúmeros vetores, dentre os quais se destacam a impessoalidade, a moralidade e a eficiência administrativas. A licitação pública é um dos instrumentos primordiais para a materialização desse objetivo constitucional, estando expressamente prevista como regra, motivo pelo qual suas exceções devem ser interpretadas da maneira mais restritiva possível. O objetivo do presente artigo é demonstrar que o administrador público deve se ater estritamente ao que dispõe às normas constitucionais e legais no que toca ao seu atuar, vez que administra coisa do povo, assim não cabe interpretar a lei regulamentadora do procedimento licitatório de forma a alargar exceções ao que é imprescindível para a consecução dos fins do Estado, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade material. Foi o que se mostrou, através de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo.
Palavras-chave: Constituição – Licitação – Exceções - Interpretação Restritiva.
ABSTRACT: The evolution of Constitutionalism has, over the years, changed the notion of power; today, even more, it is necessary to move away from the ideia of particularization of public affairs. The 1988 Constitution consolidated, in Brazil, the Democratic State of Law, the submission of all, without distinction, to the law, and, above all in the treatment of public affairs, the mandatory observance of innumerable vectors, among which stand out impersonality, administrative morality and efficiency. Public bidding is one of the primary instruments for the materialization of this constitutional objective, being expressly provided for as a rule, reason why its exceptions should be interpreted in the most restrictive way possible. The purpose of this article is to demonstrate that the public administrator must strictly adhere to the provisions of the constitutional and legal norms with regard to his performance, since he administers things of the people, so it is not appropriate to interpret the law regulating the bidding procedure in order to to extend exceptions to what is essential for the achievement of the purposes of the State, avoiding material inconstitutionality. It was shown, through a bibliografic search, using the deductive method.
Keywords: Constitution – Bidding – Exceptions – Restrictive interpretation.
1. INTRODUÇÃO
Qual a justificativa para os entes políticos contratarem advogados e contadores, entre outros profissionais, via inexigibilidade de licitação, sem demonstrarem a singularidade do serviço no caso concreto? O artigo 25, II, da lei 8.666/1993, que regulamenta a licitação pública, prevista no artigo 37, XXI, da Constituição Federal, é claro ao exigir a cumulatividade dos requisitos da singularidade do serviço e da notoriedade da especialização do profissional a prestá-lo, a serem analisados concretamente, e não de maneira abstrata, como uma operação matemática, afinal apenas na hipótese concreta será possível reconhecer a presença de uma situação especial, que foge à comum. Ademais, é importante lembrar que se trata de exceção a um instrumento cuidadosamente especificado no texto da Carta Magna, motivo pelo qual a interpretação restritiva é medida que se impõe.
O Superior Tribunal de Justiça entende pela necessidade do preenchimento cumulativo dos requisitos trazidos pela lei 8.666/1993, a serem verificados no caso concreto, bem como de sua interpretação restritiva, endossando a ideia de que a contratação fora das hipóteses legais enseja responsabilização por improbidade administrativa, consoante demonstrado no tópico relacionado. Os demais tribunais brasileiros seguem a mesma orientação.
Votou-se, no Congresso Nacional, discordando da jurisprudência brasileira – por muitos, tida como consolidada - , o Projeto de Lei nº 4.489/2019, que pretende emendar o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e o Decreto-lei nº 9.246/1946 (que trata da profissão de contador), em uma tentativa de legalizar tal prática, dispondo que a singularidade existe pelo simples fato de o trabalho de um profissional não se confundir com o do outro.
O Presidente da República vetou totalmente o Projeto de Lei, aduzindo ser o mesmo inconstitucional. Aos deputados e senadores, em sessão conjunta, é-lhes assegurado o direito de fulminar o veto presidencial, razão por que o Projeto ainda pode entrar em vigor.
O escopo deste trabalho não é combater a propositura legislativa mencionada, mas dissertar acerca da necessidade de se afastar a patrimonialização da coisa pública como um todo, propondo uma interpretação teleológica ao que a Constituição Federal e a lei nº 8.666/1993 trazem sobre o tema, o que resulta em se impossibilitar o alargamento injustificado do conteúdo dessas normas, sob pena de ferir-lhes a finalidade. Não há como se defender que a singularidade do serviço a ser contratado pela Administração Pública possa ser delineado abstratamente ou se utilizar de justificativas que não conseguem se autorreferendar.
Demonstrada a problemática a ser discutida e a relevância da questão no atual momento, seguem-se três ordens de considerações que se interligam. A primeira, acerca da evolução do constitucionalismo, a Constituição de 1988 e a licitação pública como instrumento de moralização administrativa; a segunda, dedicada à análise dos detalhes do procedimento licitatório, as hipóteses de inexigibilidade de licitação e o Projeto de Lei nº 4.489/2019; por fim, a última, perfilhando a relação entre a necessidade de se minorar a particularização (no sentido de apropriação privada) da coisa pública e a excepcionalidade das contratações por inexigibilidade de licitação.
O marco referencial teórico do presente estudo apoia-se, sobretudo, nas obras de Daniel Sarmento, Gilmar Mendes, Paulo Gonet e Maria Sylvia Zanella di Pietro. Através de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, com a ajuda das obras dos escritores supramencionados e as de outros diversos autores, restará completada a análise proposta.
2. A EVOLUÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO, A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A LICITAÇÃO PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE MORALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
A evolução história do Constitucionalismo merece ser, nessa pesquisa, explicitada, embora de modo sucinto, a fim de que se verifique a importância de se garantir o que se conquistou com tanta luta. Após a breve exposição, serão expostas características marcantes da Constituição Brasileira de 1988, imprescindíveis para a visualização dos seus fins. Fecha-se- o tópico expondo-se a relação entre a evolução do Constitucionalismo, a Constituição Brasileira de 1988 e a licitação pública como instrumento de moralização administrativa.
2.1. A evolução do Constitucionalismo
Em uma primeira oportunidade, a ideia de poder residia na origem divina, de onde o rei retirava seu poder, por isso só a Deus deveria prestar contas. Apesar disso, os monarcas, àquela época, tinham o cuidado de não agir de modo manifestamente arbitrário, até para não serem considerados tiranos, o que, em termos de consequência, nada tinham. Paulo Gonet cita, para que o leitor se situe no momento, a obra de Jean Bodin, Os Seis Livros da República, de 1576, acerca da qual disserta:
Para o autor, esse poder é perpétuo e absoluto (...) O poder absoluto não é tido como poder ilimitado. Bodin defende a existência de pelo menos dois limites. O primeiro, ligado à distinção entre o rei e a Coroa, que impede o rei de alterar as leis de sucessão e de alienar os bens que formam parte da fazenda pública. O segundo, relacionada com a impossibilidade de o monarca dispor dos bens que pertencem aos súditos, para não se confundir com um tirano. (...) O núcleo duro da soberania não está disponível para os súditos, acha-se subtraído das forças políticas ordinárias. (BRANCO; MENDES, 2015, p. 40).
Vê-se que, nessa primeira ocasião, o rei é o detentor do poder, sem que os súditos tenham qualquer parcela deste.
O segundo momento é relacionado com a obra de Hobbes, em 1651, quando se pode dizer ter tido início o contratualismo. De acordo com ele, a sociedade, visando sua segurança e paz social, entrega os direitos individuais que cada um de seus membros teria no estado da natureza, exceto o direito à vida, para o Leviatã, que seria o poder soberano (SOARES, 2004). A visão de Hobbes, que remete à ideia do medo, não se coaduna com a teoria dos direitos fundamentais, vez que o Leviatã, poder soberano representado, não precisava prestar contas nem mesmo a Deus (BRANCO; MENDES, 2015).
Após, fala-se no período do “King of Parlament”, em que a nenhuma pessoa era dado desconsiderar os mandamentos parlamentares.
Um quarto instante histórico, na evolução do constitucionalismo, é atribuído a John Locke, com a sua obra O Segundo Tratado do Governo Civil, que, assim como Hobbes, acredita no contratualismo, porém com ares liberais. Para ele, o Estado existe para refinar os direitos fundamentais. De acordo com Sahid Maluf,
Locke desenvolveu os seguintes princípios: o homem não delegou ao Estado senão os poderes de regulamentação das relações externas na vida social, pois reservou para si uma parte de direitos que são indelegáveis. As liberdades fundamentais, o direito à vida, como todos os direitos inerentes à personalidade humana, são anteriores e superiores ao Estado. (MALUF, 2015, p. 77).
John Locke foi o primeiro a cogitar algo sobre tripartição de poderes – não se utilizando dessa expressão, mas defendendo a distinção entre a pessoa que legisla e a que pratica os atos materiais.
Por sua vez, Montesquieu, em O Espírito das Leis, usou a expressão “freios e contrapesos”, alicerçando o pensamento de que, para a boa correção das funções estatais, um poder depende do outro, na medida em que se limitam entre si.
Embora se possa afirmar que Locke e Montesquieu preocupavam-se com a liberdade, a doutrina não os considera democratas, porque eles não se esmiuçaram acerca da titularidade do poder.
Um novo marco, na história do Constitucionalismo, deu-se com Rosseau e sua obra O contrato social. Sobre ele, Paulo Gonet ensina:
O constitucionalismo, até aqui, constrangia os poderes públicos instituídos e também inibia o povo, o que será combatido pelo pensamento de Rosseau. (...) Rosseau desconfia dos governos e propõe que sejam limitados, para prevenir que se desvirtuem pela busca de fins particulares, apartando-se dos objetivos gerais que lhes seriam típicos. Propugna por que o povo mantenha sempre a possibilidade de retomar o que havia delegado aos governantes. (...) (BRANCO; MENDES, 2015, p. 44).
Rosseau defendia que nenhuma lei, nem mesmo o contrato social, aquele consignado entre o povo e os governantes, poderia ser obrigatória em relação ao primeiro, não podendo impossibilitar que a nação retomasse o poder quando desejasse.
E, então, vieram as Revoluções Francesa e Norte-americana, no final do século XVIII, que impuseram o Estado de Direito, inaugurando a fase do constitucionalismo clássico, liberal ou moderno. Essa fase se subdividiu em duas, que se completaram entre si, tendo em vista a evolução no tempo. Na primeira, a liberdade ascendeu como valor primordial, do qual se decorreram o individualismo, o absenteísmo estatal, a proteção do indivíduo e a correlação entre direitos fundamentais e os direitos da burguesia (liberdade e propriedade privada). Já a segunda, teve como marco a Revolução Industrial e a igualdade como vetor primeiro, passando o Estado a adotar uma posição intervencionista. Relativamente ao Brasil, influenciada por esse momento histórico, restou editada a Constituição Brasileira de 1934, cuja novidade verificada, em relação à anterior, foi a previsão dos direitos sociais (SARMENTO; SOUZA NETO, 2012).
Por fim, o constitucionalismo contemporâneo adentrou a história, na forma do pós-positivismo, em que se defende a reaproximação entre o Direito e a Moral, preocupando-se com o aspecto material da norma. Deriva daí o que alguns doutrinadores denominam de neoconstitucionalismo. Essa reaproximação entre o Direito e a Moral foi importante, na medida em que, no Estado meramente legalista, positivista, cumpriam-se as leis sem se esmiuçar acerca de serem corretas ou não.
A diferença entre neoconstitucionalismo e o constitucionalismo moderno consiste, dentre outros, no fato de que o caráter ideológico do constitucionalismo moderno seria limitar o poder, enquanto o do neoconstitucionalismo a tônica está em concretizar os direitos fundamentais, sem se esquecer da limitação aos governantes. No neoconstitucionalismo, busca-se algo ainda mais amplo e com um maior substrato. Como bem expõe Luís Roberto Barroso, a doutrina da efetividade merece o devido reconhecimento relativamente à sua contribuição para o advento do neoconstitucionalismo, contexto histórico em que se localiza a Constituição Brasileira de 1988 (BARROSO, 2019).
O atual momento de Estado não se presta a inaugurar um modelo completamente novo, mas valorizar as conquistas dos anteriores e superar seus erros, trazendo a soberania popular como seu valor norteador. Chega-se a um momento da história do Constitucionalismo em que a Constituição é o centro do sistema jurídico, tendo força normativa (HESSE, 1991) e a grande preocupação é efetivar o que disposto no texto da Lei Maior. Perde força, assim, o pensamento de Ferdinand Lassale de que a Constituição jurídica seria uma “mera folha de papel”.
As palavras de Miguel Carbonell sobre o neoconstitucionalismo aclaram o exposto:
Se trata de Constituciones que no se limitan a establecer competencias o a separar a los poderes públicos, sino que contienem altos niveles de nromas materiales o substantivas que condicionan la actuación del Estado por médio de la ordenación de ciertos fines y objetivos. Ejemplos representativos de este tipo de Constituciones lo son la española de 1978, la brasileña de 1988 y la colombiana de 1991. (CARBONELL, 2007, p. 10).
Estudar a evolução do Constitucionalismo importa perpassar por três ideias básicas, quais sejam, a garantia de direitos, separação de poderes e governo limitado. O que importa para o presente estudo é verificar que, ao longo dos anos, a partir de uma luta árdua e difícil, tem se conseguido obter sucesso no que toca a concretizar efetivamente o disposto nas Cartas Maiores dos Estados Democráticos de Direito.
2.2. A Constituição Federal de 1988
A Constituição Brasileira de 1891 já se comprometia, na teoria, com o Estado de Direito. As Constituições seguintes, com idas e vindas, propiciaram, ao Brasil, avançar na matéria até se chegar ao momento da Carta-mãe atual.
O preâmbulo da CF de 1988 aduz ser o Brasil um Estado Democrático, e o artigo 1º, da Carta Magna, prevê que o Brasil é um Estado Democrático de Direito.
Embora para o Supremo Tribunal Federal vigore a teoria da irrelevância jurídica do preâmbulo no que toca ao acostado à CF de 1988, não se discute que ele explicita os valores a serem perfilhados ao longo do texto (ADI 2076). Nesse sentido, Luís Roberto Barroso afirma que “conterá este documento, como regra, as principais motivações, intenções, valores e fins que inspiraram os constituintes”(BARROSO, 2013, p. 105).
Separem-se os termos da expressão Estado Democrático de Direito, para a sua mais clara compreensão. Estado Democrático é o modelo utilizado para se administrar a sociedade. Compulsando-se o dicionário, democracia é um substantivo que significa:
a) Governo em que o poder é exercido pelo povo; b) sistema governamental em que os dirigentes são escolhidos através de eleições populares; c) Regime que se baseia na ideia de liberdade e soberania popular, em que não existem desigualdades e/ou privilégios de classes: a democracia, em oposição à ditadura, permite que os cidadãos se expressem livremente (DEMOCRACIA, 2020).
Para Giovani Sartori, “democracia é, acima de tudo, um critério de legitimidade (...). Nenhum democrata rejeita que o poder apenas é legítimo quando tem origem no povo e assenta no seu consenso” (SARTORI, 2018).
De outro turno, Robert Dahl afirma que a democracia proporciona inúmeras vantagens à sociedade, entre as quais se destacam a participação efetiva, a igualdade de voto, a aquisição do entendimento esclarecido e o exercício do controle definitivo do planejamento. Dissertando acerca da democracia moderna, destaca algumas de suas características fundamentais:
Funcionários eleitos. O controle das decisões do governo sobre a política é investido constitucionalmente a funcionários eleitos pelos cidadãos. Eleições livres, justas e frequentes. Funcionários eleitos são escolhidos em eleições frequentes e justas em que a coerção é relativamente incomum. Liberdade de expressão. Os cidadãos têm o direito de se expressar sem o risco de sérias punições em questões políticas amplamente definidas, incluindo a crítica aos funcionários, governo, o regime (...) (DAHL, 2001, p. 99-100).
Estado de Direito, por sua vez, liga-se à ideia de um Estado em que o Governo encontra balizas na Constituição, as quais o limita (TAVARES, 2020); remonta ao pensamento de respeito à hierarquia das normas e dos direitos fundamentais, não à vontade exclusiva do governante. Nesse sentido, Aristóteles:
(...) pois melhor é o elemento que não pode estar submetido a paixões que o elemento em que as paixões são conaturais. Ora, a lei não tem paixões, que, ao contrário, encontram-se necessariamente em cada alma humana (...) (ARISTÓTELES, 2001, p. 1286a).
Pugna-se, em seu momento, por evitar o que Platão dizia acontecer nos tempos antigos:
Foste tão longe no conhecimento do justo e da justiça, do injusto e da injustiça, que ignoras que a justiça é, na realidade, um bem alheio, o interesse do mais forte e daquele que governa e a desvantagem daquele que obedece e serve; que a injustiça é o oposto e comanda os simples de espírito e os justos; que os indivíduos trabalham para o interesse do mais forte e fazem a sua felicidade servindo-o, mas de nenhuma maneira a deles mesmos (PLATÃO, 380 a.C., p. 32).
Nesse cenário, entende-se o que a Constituição Federal de 1988 quis designar por Estado Democrático de Direito, com que define a República que fundou. De acordo com Daniel Sarmento,
Além dos direitos fundamentais, o outro “coração” da Constituição de 88 é a democracia. Dentre outras medidas, ela consagrou o sufrágio direto, secreto, universal e periódico para todos os cargos eletivos – elevado, inclusive, à qualidade de cláusula pétrea -; concedeu o direito de voto ao analfabeto; erigiu, às bases pluralistas e liberais, o sistema partidário; e consagrou instrumentos de democracia participativa, como o plebiscito, o referido e a iniciativa popular de leis (SARMENTO, 2012, p. 129).
O autor prossegue:
Apesar da forte presença de forças que deram sustentação ao regime militar na arena constituinte, foi possível promulgar um texto que tem como marcas distintivas o profundo compromisso com os direitos fundamentais e com a democracia, bem como a preocupação com a mudança das relações políticas, sociais e econômicas, no sentido da construção de uma sociedade mais inclusiva, fundada na dignidade da pessoa humana (SARMENTO, 2012, p. 126).
A Constituição Brasileira adveio de um verdadeiro “choque de democracia” ocorrido na Constituinte entre 1987 e 1988 (NOBRE, 2013). E, apesar de não se poder afirmar que, de fato, já se concretizou a plena democracia, são inegáveis os avanços conquistados pela população do país quanto a distanciar o bem público de interesses meramente pessoais de quem governa.
2.3. A evolução do Constitucionalismo, a Constituição Brasileira de 1988 e a licitação pública como instrumento de moralização administrativa
A nossa Carta Magna, editada no contexto do neoconstitucionalismo, goza de força normativa, ou seja, é de observância obrigatória, sem que se faça preciso intermediação por meio de legislação infraconstitucional, e, por ser o centro do nosso ordenamento jurídico, seus valores e fins devem ser observados pelos membros de todos os Poderes da República, no desempenhar de suas funções (BARROSO, 2019).
O artigo 37, da mesma, em seu caput, menciona alguns dos princípios que regem a Administração Pública, os chamados princípios explícitos, quais sejam, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. Estes regem, nas palavras de Carlos Ayres Britto,
qualquer das modalidades de administração pública com que inicialmente trabalhamos: a administração pública enquanto atividade e a administração pública enquanto aparelho ou aparato de poder. Logo, princípios que submetem o Estado quando da criação legislativa de órgãos e entidades, assim como submetem todo e qualquer Poder estatal quando do exercício da atividade em si de administração pública (BRITTO, 2013, p. 822).
O vetor basilar da legalidade aponta que, ao administrador público, só é lícito fazer o que a lei determina. Contrasta, pois, com o princípio da legalidade voltado aos particulares, para os quais só é vedado agir se a lei assim disser.
Por seu turno, o princípio da impessoalidade, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro,
estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que deve nortear o seu comportamento. Aplicação desse princípio encontra-se, por exemplo, no art. 100, da CF, referente aos precatórios judiciais; o dispositivo proíbe a designação de pessoas ou de casos nas dotações orçamentárias e nos créditos abertos para esse fim (DI PETRO, 2019, p. 219).
A moralidade, de acordo com Fernanda Marinella, “é composta não só por correção de atitudes, mas também por regras de boa administração, pela ideia de função administrativa, interesse do povo, do bem comum” e acrescentou:
A Constituição Federal, ao consagrar o princípio da moralidade, determinou a necessidade de sua proteção e responsabilização do administrador amoral ou imoral. Para tanto, encontram-se no ordenamento jurídico inúmeros mecanismos para impedir atos de imoralidade, como, por exemplo, regras sobre improbidade administrativa, no art. 37, §4º, da CF e na lei n. 8429/92; (...) e, recentemente, a Lei n. 12.846/2013, denominada Lei Anticorrupção, além de outros instrumentos (MARINELLA, 2018, p. 87).
Na visão de Gilmar Mendes, o vetor liga-se a uma dimensão ética e necessita estar aliado a outros valores fundamentais, a fim de se legitimar como instrumento de controle do agir do administrador (BRANCO; MENDES, 2015). Assim, quando se afirma que determinado ato afronta tal vetor, a ofensa também existe, simultaneamente, em relação a outros inúmeros valores imprescindíveis para uma boa administração.
O princípio da publicidade proporciona um maior controle pelos administrados, na medida em que ordena a transparência na gestão da coisa pública, enquanto o da eficiência remonta ao pensamento de que se deve buscar obter melhores resultados com o menor dispêndio de recursos possível.
Dissertando acerca dos princípios constitucionais da Administração Pública, Carlos Ayres Britto é direto:
Não basta aplicar a lei, pura e simplesmente, mas aplicá-la por um modo impessoal, um modo moral, um modo público e um modo eficiente. Modos que são, de parelha com a lei, as primeiras condições ou os meios constitucionais primários de alcance dos fins para os quais todo poder administrativo é legalmente conferido. (...) A administração pública somente alcança o patamar da legitimidade plena quanto aos seus meios ou meios de atuação, se, impulsionada pela lei, a esta consegue imprimir o selo dos outros quatro princípios. Operando, estes, como fatores de legitimação conjunta da própria lei, do Direito como um todo e da atividade administrativa em especial (BRITTO 2013, p. 822).
Vê-se, desse modo, que a Constituição de 1988 colacionou a correlação indispensável entre os vetores administrativos, sejam eles explícitos ou implícitos, de maneira que um dê substrato ao outro, que um complemente o significado e o escopo do outro.
Em soma, o texto constitucional previu instrumentos por meio dos quais materializa os princípios da Administração pública, como a licitação e o concurso público, os quais, indiscutivelmente, promovem, sobretudo, a impessoalidade, a moralidade e a eficiência administrativas.
3. O PROCEDIMENTO LICITATÓRIO, AS HIPÓTESES DE INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO, O PROJETO DE LEI Nº 4.489/2019 E A OFENSA AOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS NA INSISTÊNCIA DA PATRIMONIALIZAÇÃO DA COISA PÚBLICA
No tópico que se apresenta, examinar-se-á a licitação pública como procedimento, as hipóteses em que é inexigível e se discorrerá, brevemente, acerca do Projeto de Lei que se relaciona ao tema. Ao final, analisar-se-á a ofensa aos princípios administrativos na insistência da patrimonialização da coisa pública com o alargamento dos casos de inexigibilidade licitatória.
3.1. O procedimento licitatório
O artigo 37, XXI, da Constituição Federal, prevê:
Art. 37. XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
De acordo com Luciano Ferraz,
São dois os principais objetivos da licitação: o primeiro, de natureza econômica, consiste na obtenção da maior vantagem para a Administração (seleção da proposta mais vantajosa), em homenagem ao princípio constitucional da economicidade (art. 70, caput, CR); o segundo, de sede constitucional, visa possibilitar oportunidades iguais a todos os particulares interessados em oferecer bens, serviços ou obras ao Poder Público, bem como aos que desejam adquirir bens pertencentes a ele. É, portanto, procedimento garantidor da isonomia e da livre concorrência (arts. 5º e 170, da Constituição) (FERRAZ, 2013, p. 884).
Maria Sylvia ensina:
No direito privado, em que vigora o princípio da autonomia da vontade, o contrato celebra-se mediante a apresentação de uma oferta que o outro aceita. No Direito Administrativo, a licitação equivale a uma oferta dirigida a toda a coletividade de pessoas que preencham os requisitos legais e regulamentares constantes do edital; dentre estas, algumas apresentarão suas propostas, que equivalerão a uma aceitação da oferta de condições por parte da Administração; a esta cabe escolher a que seja mais conveniente para resguardar o interesse público, dentro dos requisitos fixados no ato convocatório (DI PIETRO, 2019, p. 756).
A Lei nº 8.666/1993 regulamenta o artigo 37, XXI, da CF, dispondo, detalhadamente, sobre a sucessão dos atos – e sua forma de ocorrência - que compõem o procedimento.
Logo em seu artigo 3º, a legislação aponta os objetivos da licitação pública: isonomia, seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Em seguida, explicita os princípios que a regem: legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório, julgamento objetivo e demais correlatos.
Maria Sylvia contribui:
Pela licitação, a Administração abre a todos os interessados que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de apresentação de proposta (DI PIETRO, 2019, p. 756).
Vê-se claramente, no bojo do procedimento, a presença dos vetores constitucionais explícitos, delineados no tópico anterior, dos implícitos, bem como o respeito aos princípios primeiros do Direito Administrativo, denominados de “pedras de toque” por Celso Antônio Bandeira de Mello, indisponibilidade do interesse público e supremacia do interesse público sobre o privado (MELLO, 2019). Ademais, afirme-se que a licitação é garantia de princípio e valor fundamental da Carta Magna: o princípio democrático.
3.2. As hipóteses de inexigibilidade de licitação
A regra, no âmbito da Administração Pública, é a feitura de licitação, a fim de resguardar o direito de participação a um maior número de administrados e proporcionar ao ente político verificar a melhor proposta em relação ao seu objetivo.
Porém, o próprio artigo 37, XXI, da CF, trouxe situações excepcionais, em que a licitação não ocorrerá, ou poderá não ocorrer. Estes casos se subdividem em dois: a) hipóteses de dispensa; e b) hipóteses de inexigibilidade.
A dispensa de licitação é caracterizada na situação em que o certame pode ocorrer, entretanto a lei permite sua não realização. Quando a legislação diretamente dispensa o procedimento, a licitação é denominada de dispensada, ficando à discricionariedade do governante, a escolha entre realizá-la ou não.
Em outra vertente, a inexigibilidade de licitação se caracteriza pela inviabilidade jurídica de competição, presentes as circunstâncias peculiares de caso concreto. É tão importante a análise dessa inviabilidade concretamente que o legislador previu um rol apenas exemplificativo; afinal, somente no momento em que apresentada a situação ao gestor, ele poderá aferir se o caso é de inviabilidade de competição.
O artigo 25, da lei nº 8666/1993, disciplina a inexigibilidade licitatória, prevendo, em seu inciso II, a sua ocorrência para a contratação de serviços técnicos enumerados no artigo 13, do mesmo diploma legislativo, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade no tocante a serviços de publicidade e de divulgação.
Resta-se assentado, assim, que só se fala em licitação inexigível nas hipóteses em que a natureza singular do serviço se soma à contratação de um profissional notoriamente especializado. Dessa forma, os requisitos legais devem estar em conjunto, não sendo suficiente a notória especialização daquele que desenvolverá o serviço.
A singularidade do serviço se caracteriza na oposição ao trabalho corriqueiro, rotineiro, comum, usual, do ente político. A natureza singular é sinônimo de excepcionalidade, atividade, trabalho ou serviço impossível de ser efetivado por quem executa os serviços ordinários, cotidianos, existentes diariamente no âmbito da Administração, embora detentor de imensa competência. Nesse sentido, as palavras do Des. Leandro dos Santos, em julgamento no Tribunal de Justiça da Paraíba:
(…) nem todo serviço advocatício pode dispensar a licitação. Há que se identificar uma situação complexa, de especial característica, que assume a configuração de singularidade. Conforme já consignado, serviços advocatícios rotineiros, que podem ser prestados, sem qualquer singularidade do objeto contratual, não têm o condão de dispensar a licitação, exigindo-se, portanto, o caráter único do serviço advocatício a ser contratado (MS 0001842-31.2017.815.0000, TJPB, Rel. Des. Leandro dos Santos, julgamento em 15/05/2019).
Em suas decisões, os tribunais brasileiros têm-se inclinado por uma interpretação restritiva quanto à inexigibilidade. O Superior Tribunal de Justiça afirma ser caso de improbidade administrativa a contratação, via inexigibilidade licitatória, quando não preenchidos cumulativamente os requisitos da lei (RESP - RECURSO ESPECIAL - 1444874 2013.03.52355-7, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:31/03/2015; AgInt no REsp: 1600264 GO 2016/0122163-9, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 11/09/2018, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/09/2018; AgRg no AgRg no REsp 1288585 / RJ – 1ª Turma - DJe 09/03/2016 - Ministro OLINDO MENEZES [DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO]).
Ainda sobre inexigibilidade de licitação, Marcelo Alexandrino lembra que a mesma “deve ser expressamente motivada, com apontamento das causas que levaram a administração a concluir pela impossibilidade jurídica da competição” (ALEXANDRINO; VICENTE, 2017, p.757), sob pena de se violar o artigo 26, da lei nº 8.666/1993, que o exige.
3.3. O Projeto de Lei nº 4.489/2019
O Projeto de Lei nº 4.489/2019 foi recentemente aprovado pelo Congresso Nacional. O seu trâmite teve início na Câmara dos Deputados, apresentado pelo Deputado Efraim Filho.
A proposição normativa acrescenta o artigo 3º-A à lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil) e §§1º e 2º ao artigo 25, do Decreto-lei nº 9.295/1946, que regulamenta a atividade de contador, dispondo que os serviços profissionais de advogados e contadores seriam, por sua natureza, técnicos e singulares quando comprovada sua notória especialização nos termos da Lei e que teria notória especialização o profissional ou sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e, indiscutivelmente, o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato(http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0020190607000940000.PDF#page=243).
Na realidade, a minuta inicial referia-se apenas à singularidade do serviço do advogado, no sentido de que os serviços prestados por esses profissionais seriam, por si, técnicos e singulares, bastando que ficasse comprovada, para cada caso posto, a notoriedade de sua especialização, quando, então, os requisitos do artigo 25, II, da lei nº 8.666/1993 estariam preenchidos, e a contratação poderia se dar de forma direta, perfazendo hipótese de inexigibilidade licitatória.
O trabalho de estender tal disposição aos contadores, utilizando-se dos mesmos argumentos, foi do relator da propositura na Comissão de Constituição e Justiça da Casa iniciadora, para o qual “os advogados, na verdade, são singulares em razão da sua notória especialização intelectual e da confiança depositada pelo constituinte”, estando a singularidade dos serviços consubstanciada no fato de que “somente ao profissional da advocacia é dado realizar assessoria ou consultoria jurídica e o patrocínio ou a defesa de causas judiciais” (http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0020190607000940000.PDF#page=243).
No Senado Federal, o relator Veneziano Vital do Rêgo, em seu parecer, afirmou que o Projeto merece ser aprovado diante das condenações sofridas pelos profissionais, após a assinatura de contratos com entes públicos, para o simples desempenho de atividades que lhe são próprias. Nesta Casa, o PL foi referendado e encaminhado para a sanção presidencial(https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=8055783&ts=1578925734665&disposition=inline).
Porém, em 08/01/2020, o Diário Oficial da União trouxe a publicação do veto do Presidente da República Jair Bolsonaro, justificando tê-lo feito por entender a proposição contrária ao interesse público e inconstitucional. A mensagem aduziu que o Ministro da Justiça Sérgio Moro, consultado, manifestou-se pela não aprovação, tendo em vista o princípio constitucional de licitar, porque “a contratação de tais serviços por inexigibilidade de processo licitatório só é possível em situações extraordinárias” (ANGELO, 2020, em https://www.conjur.com.br/2020-jan-08/bolsonaro-veta-dispensa-licitacao-contratar-advogados) (http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=08/01/2020&jornal=515&pagina=2&totalArquivos=51).
Mesmo sem esmiuçar especificamente o texto normativo proposto, veem-se nele várias impropriedades.
Primeiramente, diga-se que um serviço não pode ser considerado singular pelo fato único de ser prestado por profissional da área e, assim, justificar o afastamento da devida licitação, como delineado pelo relator do PL na Câmara. Ora, no edital do regular procedimento licitatório, isso seria uma das condições trazidas, a ser preenchida por todos os que almejassem contratar com o Poder Público. O outro argumento, da confiança, não se sustenta, pois, no âmbito público, a contratação deve ser completada em atenção ao previsto em lei, e não de acordo com a conveniência ou vontade particular do gestor.
Ademais, o autor, Deputado Efraim Filho, defendeu que os serviços seriam, por sua natureza, técnicos e singulares, desde que demonstrada a notória especialização do laborante, condição que, por sua vez, restaria preenchida quando se pudesse inferir que o seu trabalho é essencial e, sem dúvidas, o mais adequado ao objeto do contrato. Diante disso, cabe questionar sobre a quem caberia concluir pela imprescindibilidade do trabalho daquele advogado ou contador e se esse legitimado teria mais condições de o fazer do que um procedimento pautado pela impessoalidade.
Como assentado acima, a singularidade do serviço se dá na ocasião em que se foge ao rotineiro, quando a Administração Pública precisa de um trabalho não cotidianamente realizado pelos profissionais daquela área, relacionando-se intrinsecamente com a excepcionalidade da não realização de procedimento que promova a igualdade de oportunidades.
Por outro lado, a notoriedade do profissional, que não se confunde com a singularidade do serviço, é consubstanciada na dedicação e obtenção de êxito reconhecidas, relativamente à determinada área, pelo profissional a quem se confiará tal mister.
As argumentações acostadas pelos parlamentares são insuficientes para fundamentar o afastamento da regra geral de licitação pública, através da qual se preserva incontáveis vetores cuidadosamente escolhidos pelo constituinte originário.
3.4. A patrimonialização da coisa pública mediante o alargamento dos casos de inexigibilidade licitatória
A partir do instante em que se afasta, sem suficiente motivo, a realização do certame previsto na lei nº 8.666/1993 os princípios democrático, republicano, da igualdade, da isonomia, da impessoalidade, da legalidade, da moralidade, da eficiência, da vedação ao retrocesso, da cidadania são afrontados e se desconsidera a luta da população brasileira pelo reconhecimento de seus direitos.
O princípio da vedação ao retrocesso é, de forma ampla, reconhecido em nossa Nação. Entendido como vetor implícito na Carta Magna, o Supremo Tribunal Federal inicialmente o garantia em situações relacionadas a aspectos sociais do Estado, demandadoras de prestações positivas, mas, com o tempo, tornou-se um limitador aos Poderes instituídos nas suas mais diversas atuações (exs.: ADI 4.350/DF; STF - ARE: 745745 MG, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 02/12/2014, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-250 DIVULG 18-12-2014 PUBLIC 19-12-2014). A estes incumbe promover em grau crescente a vontade do povo e afastar involuções desproporcionais ao conquistado, sobretudo se o movimento regressivo beneficia interesses de quem representa publicamente a vontade popular.
É forçoso reconhecer que esses princípios são alguns – se não quase todos – dos responsáveis pela estruturação do país em sua forma de administrar, possuindo o seu desrespeito, pois, uma conotação imensamente perigosa.
Ingo Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero relacionam igualdade e justiça: “a igualdade passou a constituir valor central para o direito constitucional contemporâneo, representando verdadeira ‘pedra angular’ do constitucionalismo moderno” (MITIDIERO; MARINONI; SARLET, 2017, p. 615).
O ente político, quando contrata diretamente os profissionais que lhe prestarão serviços, afronta, em outra vertente, o concurso público, também corolário do vetor da isonomia, outro instrumento trazido pela Carta Magna, com o escopo de selecionar os mais competentes para formar os seus quadros.
Não se defende a inocorrência da inviabilidade jurídica da competição em todos os casos; se essa inviabilidade for real, o afastamento de todo o trâmite da licitação regular deve acontecer, e o ente político precisa efetivá-lo. O que se argumenta é que não se pode contornar o dever de impedir a patrimonialização da coisa pública, não cabe abrir sem limites que gestores escolham, aleatoriamente, as pessoas que beneficiarão, enquanto governantes.
Peter Häberle ensina: “A teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática”(HABERLE, 2002, p. 14) – pensamento atualíssimo. Há, pois, razões bastantes para que a interpretação das hipóteses de inexigibilidade de licitação observe os valores e as finalidades do buscados pelo constituinte.
4. A NECESSIDADE DE SE MINORAR A PATRIMONIALIZAÇÃO DA COISA PÚBLICA E A EXCEPCIONALIDADE DA CONTRATAÇÃO POR INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO – CONCLUSÃO
A licitação pública, a ordem dos precatórios judiciais, o concurso público, a vedação de o candidato à reeleição se fazer presente em inaugurações de obras realizadas por ele enquanto gestor, entre outros, são instrumentos perfilhados pela Constituição, de maneira explícita ou implícita, com o fito de garantir a observância de seus princípios, sobretudo aqueles primordiais.
A Lei Maior de 1988 é a mais democrática de nossa história, resultado de um longo processo evolutivo e de conquistas únicas pela sociedade brasileira. Possui vetores que a estruturam e, em consequência, a República Federativa do Brasil, como os da legalidade, igualdade, impessoalidade, moralidade, eficiência, cidadania, proporcionalidade, vedação ao retrocesso.
No contexto do neoconstitucionalismo, a Constituição Federal vigente se preocupa imensamente com a efetivação dos direitos fundamentais, no âmbito dos quais se fala na teoria dos limites dos limites. O primeiro dos limites seriam os próprios direitos fundamentais, na medida em que o Estado não poderia retroceder a ponto de fulminá-los; os limites dos limites, em outra vertente, basear-se-iam na ideia de que, em selecionados momentos, os direitos fundamentais podem ser afetados, desde que respeitado o respectivo núcleo-duro ou núcleo-essencial, do que já conquistado.
Assim, interpretar restritivamente hipóteses excepcionais ou situações em que se retiram direitos é regra amplamente aceita na hermenêutica jurídica, com maior razão quando se trata de retirar o significado de normas constitucionais em que se possibilita desconsiderar o que se assentou como regra a preservar os valores da Carta Magna. As interpretações restritivas e teleológicas adequam-se ao objeto do estudo.
A lei nº 8.666/93 regulamenta – e bem – o intuito do constituinte. Afastar a licitação fora das hipóteses abarcadas pela lei, para com isso relacionar situações que facilmente se entende impróprias do ponto de vista da teleologia constitucional, denota falta de percepção do atual momento evolutivo, em que já não mais se tolera a patrimonialização do que pertence ao povo, pelo gestor, em inequívoco detrimento do interesse público.
O interesse público encorpado nos valores e finalidades da Constituição Federal de 1988 não pode ser relegado em atenção a interesses obscuros ou francamente desprezíveis.
REFERÊNCIAS
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Advogada. Pós-Graduada pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. Pós-Graduada pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, MARCELLA VIEIRA DE QUEIROZ. A necessidade de se minorar a patrimonialização da coisa pública e a excepcionalidade das contratações por inexigibilidade de licitação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jul 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54831/a-necessidade-de-se-minorar-a-patrimonializao-da-coisa-pblica-e-a-excepcionalidade-das-contrataes-por-inexigibilidade-de-licitao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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