RESUMO: Diante do uso cada vez maior das tecnologias de biometria facial no transporte público brasileiro, se faz necessário um estudo mais detido sobre as questões jurídicas relativas ao assunto. O presente artigo analisa as principais aplicações de tal tecnologia no transporte público brasileiro sob três perspectivas jurídicas: o direito à liberdade, o direito à privacidade e o direito à segurança pública. O propósito é contribuir para a solução de debates presentes e futuros sobre questões práticas relacionadas ao tema. O método utilizado é o dedutivo, baseado na lei e doutrina aplicáveis. Os resultados encontrados estabelecem perspectivas favoráveis à utilização dessas tecnologias, desde que se enquadrem nos parâmetros normativos aplicáveis.
PALAVRAS-CHAVE: Transporte público - Biometria facial – Liberdade – Privacidade - Segurança pública.
ABSTRACT: In view of the increasing use of facial biometrics technologies in Brazilian public transportation, a more detailed study on the legal issues related to the subject is necessary. This paper analyzes the main applications of such technology in Brazilian public transportation from three legal perspectives: the right to freedom, the right to privacy and the right to public security. The purpose is to contribute to the solution of present and future debates on practical issues related to the topic. The deductive method used is based on applicable law and doctrine. The results found establish favorable perspectives for the use of these technologies, as long as they fit the applicable normative parameters.
KEYWORDSs: Public transport - Facial biometrics - Freedom - Privacy - Public security.
SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 A Biometria Facial – 3 O uso da biometria facial no transporte público: 3.1 Utilização da biometria facial no apoio ao monitoramento e segurança pública; 3.2 Utilização da biometria facial como forma de autenticação para pagamento de tarifa e ou acesso ao serviço; 3.3 Utilização da biometria facial para atividades de publicidade e análise de comportamento – 4 Três perspectivas jurídicas sobre o tema no Brasil: 4.1 Perspectiva do direito à liberdade; 4.2 Perspectiva do direito à privacidade; 4.3 Perspectiva do direito à segurança pública – 5 Conclusão – 6 Referências.
1 INTRODUÇÃO
Não há dúvida de que as novas tecnologias estão causando uma alteração profunda no modo de vida humano, levando-nos a crer na existência de uma fase de ruptura entre um passado predominantemente analógico para um futuro essencialmente digital.
As relações sociais passam, dessa forma, a ocorrer num ambiente relativamente novo, o ciberespaço ou espaço virtual.[1] Uma realidade paralela, na qual são produzidos quintilhões de bytes de dados diariamente.[2]
E, para se ter uma ideia do momento em que nos encontramos diante dessa transformação, estatísticas apontam que o volume anual de dados criados na internet mais do que dobrou entre 2015 e 2018 e deve sair dos 33 zettabytes[3] deste último ano citado para atingir os 175 zettabytes anuais em 2025 (SEAGATE, 2019).
Fatores que devem contribuir para esse aumento são, dentre outros, o incremento do volume de pessoas conectadas à internet[4] e o aumento da utilização da inteligência artificial, tecnologia que cada vez mais possibilitará a comunicação entre objetos de forma autônoma e com produção de dados independentemente da intervenção humana (Internet of things – IoT).
Esse volume de dados criados e transmitidos no ambiente virtual serve de matéria-prima para o desenvolvimento de serviços e comunicação assertiva que melhor atendam às necessidades humanas, mas também preocupa alguns pensadores com relação aos riscos que causa à privacidade dos indivíduos.[5]
As divisas entre o espaço público e o espaço privado estão cada vez menos evidentes e tendem a desaparecer, dando origem a uma espécie de sociedade de vidro, facilmente observada através do panóptico digital.[6]
A questão colocada aqui é a possibilidade de novas formas de vigilância e controle, muitas vezes sutis, praticadas não somente pelos governos, mas também por empresas privadas ou outros indivíduos, cujas intenções variam e podem, em algumas situações, tornarem-se perigosas à liberdade.[7]
Como exemplos recentes desse problema, vivenciamos o escândalo da Cambridge Analytica/Facebook sobre a utilização indevida de dados pessoais para a manipulação de opiniões durante campanhas eleitorais em diversas partes do mundo, com destaque aos Estados Unidos da América.[8] Também a existência recente de diversos vazamentos de dados, como o do banco americano Capital One, envolvendo dados de cartão de crédito de 100 milhões de americanos e 6 milhões de canadenses (TERRA, 2019), ou o da rede Marriot de hotéis, envolvendo dados de 383 milhões de registros de números de passaporte e números de cartão de crédito de clientes (CEDEÑO, 2018).
Além disso, lembremos os escândalos envolvendo as divulgações feitas pelo site do WikiLeaks sobre espionagens praticadas pelo governo norte-americano, inclusive quanto a dados pessoais de integrantes do governo brasileiro (G1, 2015).
Esse momento de transição cultural que combina transparência e democratização de informação com vigilância e exploração de dados pessoais é um dos pontos que preocupam os cidadãos no mundo inteiro e fazem com que cada vez mais países busquem regulamentar a questão da proteção dos dados pessoais.
As regulamentações têm, geralmente, duplo sentido, o de proteger os dados pessoais e, portanto, a privacidade, liberdade e dignidade de seus titulares, mas também o de trazer segurança jurídica ao cenário de negócios, de modo a não impactar negativamente na economia.
Atualmente, 58% do total de países do mundo contam com legislações sobre proteção de dados, segundo dados da ONU (UNITED Nations, 2019).
A legislação utilizada como referência para muitos países é o Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu (General Data Protection Regulation), cuja entrada em vigor ocorreu em maio de 2018. Ele inspirou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira (conhecida como LGPD), que foi publicada em 2018 e entrará completamente em vigor em agosto de 2020.
Apesar de a lei específica brasileira para proteção de dados pessoais não estar em vigor, a privacidade dos cidadãos é protegida atualmente, de forma geral, tanto pela Constituição Federal como pelo Código Civil e por algumas outras leis esparsas.[9]
É nesse contexto que novas tecnologias são desenvolvidas, aprimoradas e/ou implementadas: num ambiente de dicotomia entre transparência e privacidade; entre evolução tecnológica, com exploração econômica dos dados, e proteção das liberdades individuais dos indivíduos; onde a vigilância precisa ter limites, mas limites que não impeçam o avanço civilizatório proporcionado pela tecnologia.
Assim é que, no presente artigo, aprofundaremos o debate sobre a implementação das tecnologias de biometria facial no transporte público brasileiro, analisando como elas podem impactar os direitos dos usuários desse serviço público e quais seus benefícios e infortúnios, baseados nas normas jurídicas aplicáveis à questão.
2 A BIOMETRIA FACIAL
Quando falamos de biometria, estamos tratando do estudo estatístico de características físicas ou comportamentais dos seres vivos.
A origem da palavra vem da antiga Grécia, da junção das palavras “bios”, que significa vida, e “metrickos”, que significa medida.
Datta, Datta e Banerjee (2016) destacam a utilização da biometria para a identificação de um indivíduo por suas características físicas e biológicas únicas e também sua utilização moderna como ferramenta de autenticação, destinada a estabelecer ou confirmar alguém ou algo como autêntico. Eles elencam três categorias de técnicas utilizadas para tanto, quais sejam: a biometria física, a biometria comportamental e a biometria química.
Dentre as técnicas de biometria física, encontra-se a biometria facial, que nada mais é do que o estudo estatístico das características da face humana. Sua finalidade mais conhecida atualmente é a de identificação de indivíduos, mas essa não é a única, podendo servir, por exemplo, para identificar emoções humanas sem necessariamente identificar o individuo.
Os estudos de biometria facial envolvem técnicas de detecção e de reconhecimento.
A técnica de detecção visa apenas a localizar e extrair a região facial de um contexto (DATTA; DATTA; BANERJEE, 2016, p. 5.), ou seja, ela realiza o processamento de uma imagem e visão computacional para determinar a existência, ou não, de face(s) e, caso exista(m), retorna a informação sobre a localização da(s) mesma(s) (ZHANG, 2010).
Já as técnicas de reconhecimento visam à verificação e autenticação da face, geralmente comparando a imagem teste, extraída do mundo real, com outra ou outras previamente armazenadas (DATTA; DATTA; BANERJEE, 2016, p. 5-6).
Geralmente, a detecção facial ocorre como primeiro estágio do processo de reconhecimento facial.
O primeiro sistema de reconhecimento facial automatizado foi criado pelo professor Takaeo Kanade e reportado em sua Tese de Doutorado em 1973, mas, devido a limitações do poder computacional de processamento de grandes volumes de bases de dados na época, bem como das variações em características faciais, a eficiência do método não foi atingida, deixando a tecnologia adormecida (DATTA; DATTA; BANERJEE, 2016).
No final de década de 1980, o trabalho de Kirby e Sirovich demonstrou que a aplicação de uma técnica de cálculo padrão poderia codificar com exatidão uma imagem de uma face adequadamente normalizada e alinhada, reduzindo o tamanho do arquivo e possibilitando avanços na tecnologia (SIROVICH; KIRBY, 1987).
Em 1991, Turk e Pentland criaram o método de padrões baseado em eigenfaces, método pelo qual dados relevantes são extraídos da imagem facial e transformados em um código. Esse código teste é comparado com um ou mais códigos de referência armazenados numa biblioteca virtual. Esses códigos de referência são formados através da análise de diversas imagens similares de uma mesma face em posições diferentes, para que se obtenha uma margem de tolerância capaz de permitir a detecção e o reconhecimento da face mesmo com uma imagem teste imperfeita (BISSI, 2018).
Durante os últimos 20 anos, diversos algoritmos de reconhecimento facial foram propostos, dentre diversas técnicas existentes, as quais não nos cabe detalhar no espaço deste trabalho. Tais avanços possibilitaram a aplicação dessa tecnologia em diversas áreas que visem identificação de pessoas ou características humanas, desde abertura de portas ou desbloqueio de smartphones, até reconhecimento de criminosos e desaparecidos em vias públicas ou extração de dados biométricos para fins estatísticos.
Atualmente, sua utilização no transporte público vem crescendo mundialmente e gerando algumas discussões, principalmente quanto à privacidade e à liberdade.
3 O USO DA BIOMETRIA FACIAL NO TRANSPORTE PÚBLICO
Encontramos três grandes aplicações da tecnologia de biometria facial no transporte público[10], quais sejam: a) apoio ao monitoramento e segurança pública; b) autenticação para pagamento de tarifa e ou acesso ao serviço de transporte; e c) para atividades de propaganda e análise de comportamento.
Tratemos de cada uma delas.
3.1 Utilização da biometria facial no apoio ao monitoramento e segurança pública
Muitas cidades ao redor do mundo estão ampliando a utilização de tecnologias de detecção e de reconhecimento facial em seus sistemas de segurança pública.
Tais tecnologias permitem a identificação de criminosos e de pessoas desaparecidas, bem como o monitoramento efetivo através de câmeras espalhadas em locais de grande circulação de pessoas.
Sua aplicação no transporte público inclui não somente o monitoramento de terminais de ônibus, aeroportos e estações de trem, como, também, o combate a fraudes, através da identificação de pessoas que se utilizam irregularmente de benefícios públicos, como gratuidade ou descontos em tarifas, passando-se por outras pessoas.
A China é um dos países mais desenvolvidos quanto à aplicação dessa tecnologia. Por lá, já existem policiais que se utilizam de óculos com reconhecimento facial para identificar criminosos em estações de trem (CHAN, 2019). E, além disso, o país conta com um sistema bastante avançado de vigilância e identificação de pessoas através do uso de biometria facial, com apoio de mais de 200 milhões de câmeras espalhadas por diversas áreas de muitas cidades (ZMOGINSKI, 2019).
Nos Estados Unidos, diversos aeroportos já utilizam tal tecnologia para identificar pessoas com vistos vencidos e evitar fraudes na utilização de passaportes (CNN, 2019 e RFI 2018).
No Brasil, a biometria facial tem sido aplicada para identificar criminosos e evitar o contrabando de mercadorias em aeroportos (FREIRE, 2019 e JORNAL Nacional, 2016), bem como para evitar fraudes envolvendo os sistemas de pagamento e o uso indevido de benefícios sociais em ônibus, metrôs e trens.[11]
Para se ter uma ideia da eficiência do sistema e de como ele pode auxiliar a segurança pública, em apenas uma cidade brasileira, São Paulo, mais de 331 mil cartões de Bilhete Único para pagamento da tarifa de ônibus foram bloqueados por fraude entre agosto de 2017 e junho de 2019 (ZVARICK, 2019).
Mas a aplicação da biometria facial no transporte público ainda gera controvérsias quanto a temas como liberdade, privacidade, vigilância e controle social, que se confrontam com seus benefícios relativos à segurança e ao combate à criminalidade. Debateremos o tema a seguir, logo após tratarmos das demais formas de aplicação dessa tecnologia no transporte público.
3.2 Utilização da biometria facial como forma de autenticação para pagamento de tarifa e ou acesso ao serviço
Outro uso recente da biometria facial no transporte público é sua aplicação para autenticar pagamentos e ou para liberar o acesso ao serviço de transporte. Nesse contexto, ela substitui a utilização de senhas, cartões eletrônicos, QR codes e outras tecnologias.
A tecnologia consiste na utilização de um sistema que coleta a imagem da face do usuário e a compara com outra(s) dele mesmo, previamente salva(s) em um banco de dados, autenticando o pagamento da tarifa a ser realizado à empresa de transporte ou mesmo identificando o usuário para acesso ao serviço previamente pago, como no caso de autenticação para acesso à área de embarque em aeroportos.
Tal aplicação está sendo utilizada em algumas cidades ao redor do mundo, como nos trens de Shenzhen, na China (LIAO, 2019) e nos ônibus de Madri, na Espanha (CARVALHO, 2019). Além disso, diversos aeroportos já contam com sistemas de liberação de embarque com utilização de reconhecimento facial,[12] sendo certo que devemos presenciar um rápido aumento do uso de tais tecnologias ao redor do mundo, apesar dos debates sobre a privacidade.
No Brasil, a empresa Gol foi a primeira a utilizar tal tecnologia para liberação de acesso de passageiros à área de embarque do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em 29 de maio de 2019 (TIEGHI, 2019).
3.3 Utilização da biometria facial para atividades de publicidade e análise de comportamento
Uma outra aplicação da biometria facial no transporte público refere-se à atividade de publicidade. Empresas utilizam ferramentas de análise de audiência conjugadas com biometria facial para produzir estatísticas quanto à efetividade da propaganda exposta em locais públicos, como estações de metrô, aeroportos e terminais de ônibus.
A aplicação consiste em coletar a imagem de pessoas que olham para uma publicidade e, através de sistemas de detecção facial e identificação de características como emoções sentidas, faixa etária, gênero e tempo de atenção, produzir estatística.[13]
O sistema vem sendo utilizado em diversos locais de grande circulação de pessoas ao redor do mundo (GILLESPIE, 2019).
O metrô da cidade de São Paulo, no Brasil, utilizou tal tecnologia em sua linha Quatro (Amarela), operada pela empresa Concessionária da Linha 4 do Metrô de São Paulo S.A., em 2018, mas teve sua utilização suspensa devido a uma decisão preliminar em sede de ação coletiva proposta pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, que identificou irregularidades na forma da coleta dos dados, as quais teriam infringido leis nacionais como o Código de Defesa do Consumidor e o ECA e a própria Constituição Federal, dentre outros diplomas.[14]
A justificativa do Metrô para a utilização desses sistemas para a publicidade é a de que isso pode torná-la mais assertiva e pode trazer benefícios para os usuários. Além disso, o dinheiro advindo dessa exploração pode contribuir para reduzir o custo do serviço ao Estado. A defesa argumenta que não há coleta de dados, mas mera detecção facial que não identifica os usuários, não gerando dado pessoal.
A situação desse caso específico, em nossa visão, precisa ser analisada detidamente, com a ajuda de perícia técnica que identifique a arquitetura da aplicação utilizada e o fluxo de dados, de modo a esclarecer como as características faciais são extraídas e como o dado é tratado. De toda forma, qualquer implantação desse tipo de sistema precisa ser vista com calma diante das leis em vigor em cada país.
Apresentadas as três grandes aplicações da tecnologia de biometria facial no transporte público, passemos à análise delas diante da legislação em brasileira.
4 TRÊS PERSPECTIVAS JURÍDICAS SOBRE O TEMA NO BRASIL
Atualmente, não existem leis federais em vigor no Brasil para a regulamentação específica da aplicação da biometria em áreas públicas.
Entretanto, existem três perspectivas jurídicas relevantes sobre o tema, quais sejam: a do direito à liberdade, a do direito à privacidade e a do direito à segurança pública; as quais são lastreadas em diversas normas aplicáveis, das quais passaremos a tratar.
4.1 Perspectiva do direito à liberdade
Quanto à perspectiva do direito à liberdade, os principais debates jurídicos versam sobre a possibilidade de desvirtuação da tecnologia (levando-a a ser aplicada para a vigilância e discriminação dos cidadãos) e o direito ao livre exercício de atividade econômica.
Para tratar de tais pontos, no entanto, é importante termos em mente que o reconhecimento do direito à liberdade do ser humano é relativamente novo, remontando aos ideais iluministas do século XVIII e ganhando proporção mundial apenas em 1948, com a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, da qual o Brasil é signatário e foi um dos primeiros 48 países a aprovar.
Na Constituição Federal de 1988, a liberdade é protegida em diversos dispositivos, sendo certo que uma das finalidades do Estado Democrático brasileiro é garanti-la, conforme preâmbulo da Carta Maior.
O conceito de liberdade não é algo simples, mas, de modo geral, podemos concebê-la como a capacidade de o indivíduo agir por si mesmo, dentro dos limites que não prejudiquem o próximo.
Nesse sentido, a liberdade pressupõe a ausência de fatores externos, que retirem a independência das decisões humanas, bem como pressupõe a existência de consciência, sendo certo que esta precisa de informação, de conhecimento, para existir.
Também, a liberdade não é plena, pois sofre limitações impostas pela liberdade dos demais membros dentro de uma sociedade.[15]
A importância de entendermos a liberdade, neste estudo, é porque uma das discussões sobre o tema da introdução da tecnologia de detecção e reconhecimento facial no transporte público brasileiro é com relação à sua contribuição para a possibilidade de vigilância e controle do comportamento humano.
A vigilância e o controle podem trazer limitações à liberdade na medida em que retirem do indivíduo sua independência e o poder de escolha livre.
Assim, qualquer das três aplicações da biometria facial enunciadas anteriormente, caso extrapolem os limites socialmente admitidos e, portanto, os dispositivos legais de proteção à liberdade, não poderá ser utilizada e, caso assim o seja, estará fadada a ser restringida por instrumentos jurídicos que busquem a efetivação desse direito humano fundamental.
Como vimos, uma das aplicações da biometria facial no transporte público é a de monitoramento de locais públicos para reconhecimento de criminosos e de pessoas desaparecidas. Essa atividade tem fundamento no direito à segurança pública, que restringe a liberdade justamente para garanti-la, pois, como ensina Montesquieu (2004, p. 187), “se um cidadão pudesse fazer o que elas [as leis] proíbem, ele não teria mais liberdade, porque os outros cidadãos teriam do mesmo modo esse poder”.
O Estado tem o dever constitucional de prover a segurança dos indivíduos e, para tanto, precisa acompanhar o desenvolvimento tecnológico, sob pena de, não o fazendo, descumprir uma de suas finalidades e infringir o ordenamento jurídico.[16]
Por isso, se a finalidade for somente prover a segurança pública e ela for utilizada com os cuidados devidos para tanto, a tecnologia estará sendo utilizada nos limites da lei e, portanto, será bem-vinda.
No entanto, se a finalidade da aplicação for obter informações de indivíduos para discriminação étnica, religiosa, perseguição política ou qualquer outra, bem como, se for para a utilização econômica dos dados ou investigações de comportamentos que não tenham relação com ações criminosas ou suspeitas[17], a aplicação pode ser entendida como ilegal, por infringir o direito à liberdade.
Existem preocupações em todo o mundo com o aumento do poder de vigilância do Estado diante dos indivíduos, principalmente pelo uso de Inteligência Artificial combinada com tecnologias como as de reconhecimento facial.[18]
Também, a geração crescente de bases de dados pessoais centralizadas por governos remete às preocupações com relação à má utilização dos dados dos cidadãos para a implementação de medidas restritivas à liberdade, ainda que tal centralização possa melhorar o desempenho dos serviços que envolvam Inteligência Artificial e possam proporcionar melhores serviços públicos.[19]
Quanto à aplicação da tecnologia para a autenticação do pagamento de tarifas e para a liberação de acesso ao serviço de transporte público, essa será legal, na perspectiva do direito à liberdade, sempre que seja utilizada por escolha do usuário, desde que existam outras opções.
Na mesma perspectiva, a aplicação da biometria para a publicidade deve ser vista com cuidado, de modo que não infrinja nem o direito à liberdade de escolha e nem o direito à liberdade de locomoção ou qualquer outro.
Para tanto, o procedimento precisa ser devidamente avisado às pessoas que serão expostas à publicidade e o direito de escolha entre participar ou não precisa ser respeitado, afinal, não se pode obrigar alguém a participar de uma pesquisa estatística com utilização de seus dados pessoais sem que exista um interesse público relevante e legal que justifique.
Nesse contexto, a utilização da biometria facial para a análise das faces de pessoas no metrô de São Paulo não parece ter sido implementada de maneira adequada, juridicamente falando. Isso porque ninguém que foi submetido ao procedimento sabia que seu rosto estava sendo analisado e muito menos que dados como sua idade, gênero e emoções estavam sendo coletados.
Tal coleta de dados, da forma que ocorreu, infringe diretamente a liberdade individual das pessoas que foram submetidas ao procedimento, liberdade essa de dispor sobre os atributos de sua personalidade. Trataremos mais detidamente do tema adiante, quando falarmos da privacidade.
Um outro ponto sobre a liberdade a ser abordado é o direito ao livre exercício de qualquer atividade econômica, previsto no parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal.
Ele reforça a liberdade que os indivíduos têm de explorar uma atividade econômica sem a interferência indevida do Estado. Porém, é mister destacarmos que, assim como os demais direitos relativos à liberdade, ele sofre limitações.
As limitações ao direito à livre exploração de qualquer atividade econômica são derivadas dos demais direitos que visam a proteger a liberdade, como o direito à liberdade de locomoção, o direito à liberdade de pensamento, à intimidade, à vida privada, à imagem, dentre outros.
Dessa forma, no caso das aplicações da biometria facial no transporte púbico, a liberdade de utilização de tais aplicações não é plena, devendo atender às restrições impostas pelas liberdades legalmente protegidas dos usuários do transporte púbico.
4.2 Perspectiva do direito à privacidade
A privacidade é um dos direitos que visa a proteger a personalidade humana, ou seja, que visa a proteger o “conjunto de caracteres próprios do indivíduo” (TELLES JR, 1977, 315).
Quando, no século XVIII, o ser humano foi reconhecido como ser independente do Estado, tal ruptura deu ensejo ao reconhecimento de qualidades próprias dos indivíduos, físicas e psíquicas, sem as quais eles não podem ser entendidos como seres independentes. Dessa forma, a proteção jurídica de tais qualidades se tornou essencial para permitir a existência humana livre e digna.
Assim, ao longo dos anos, foram sendo reconhecidas diversas dessas qualidades e o direito à sua proteção.
Nesse contexto, surge o reconhecimento do direito à privacidade[20], que, apesar de, inicialmente, ter sido entendida como o direito de um indivíduo “ser deixado só” (WARREN; BRANDEIS, 1890, p. 193), atualmente pode ser entendida como o poder de um sujeito revelar-se seletivamente ao mundo (HUGHES, 1993).
Nesse sentido, Stefano Rodotà a define como “o direito de manter o controle sobre as próprias informações e de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada.” Em sua concepção, “o objeto deste direito pode ser identificado no ‘patrimônio informativo atual ou potencial’ de um sujeito” (RODOTÀ, 2008).
No Brasil, atualmente, a privacidade é protegida constitucionalmente principalmente pelo artigo 5º, incisos X, XII e XIV da Constituição Federal, que tratam respectivamente da inviolabilidade da intimidade e da vida privada; da inviolabilidade do sigilo de correspondências, comunicações telegráficas, de dados e de comunicações telefônicas; bem como da inviolabilidade do sigilo profissional.
Além da Constituição Federal, a privacidade é protegida infraconstitucionalmente por dispositivos do Código Civil (direito à vida privada – art. 21 – e direito à vida privada familiar – art. 1513); do Estatuto da Criança e do Adolescente (direito à intimidade, à imagem e reserva da sua vida privada – art. 100, V); da Lei nº 7.232/1984 (que dispõe sobre a política nacional de informática, determinando o estabelecimento de mecanismos e instrumentos legais e técnicos para a proteção do sigilo dos dados armazenados, processados e veiculados, do interesse da privacidade e de segurança das pessoas físicas e jurídicas, privadas e públicas - art. 2º, inciso VIII); da Lei nº 12.965/2014 (que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, dispondo sobre regras para a proteção da privacidade na rede); da Lei nº 12.527/11 (que, ao tratar do direito de acesso à informação, estabelece o dever dos órgãos e entidades do Poder Público de assegurar a proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso – art. 6,III), dentre outros, contidos em diversos diplomas legais.[21]
Além delas, a lei geral de proteção de dados pessoais, Lei nº 13.709/2018, conhecida como LGPD, a qual entrará completamente em vigor em agosto de 2020, trata especificamente da privacidade quanto a dados pessoais, trazendo diversas regras quanto à coleta, tratamento de destruição dessa espécie de dados.
Nesse contexto, para a introdução da biometria facial no transporte público sob a perspectiva da privacidade, devemos observar todas as regras ora tratadas, tendo em mente que todas elas, na verdade, visam resguardar a personalidade humana e seu desenvolvimento livre.
Com relação à aplicação de tal tecnologia para o apoio ao monitoramento e segurança de áreas públicas, a privacidade sofre restrições com relação ao interesse púbico na preservação da segurança dos indivíduos transeuntes e da sociedade de modo geral. Assim, da mesma forma que ocorreu quando analisamos esta aplicação pela perspectiva do direito à liberdade, caso o monitoramento sirva exclusivamente para identificar criminosos e pessoas desaparecidas, não existirá, a princípio[22], qualquer ilegalidade com relação à proteção da privacidade, nem mesmo a necessidade de consentimento para a coleta do dado biométrico. Tal posicionamento também foi o adotado pelo legislador, quando da redação da LGPD, que, apesar de ainda não estar em vigor, dispõe, em seu art. 4º, sobre a exclusão de sua aplicação quanto ao tratamento de dados pessoais realizados para fins exclusivamente de segurança pública ou atividades de investigação e repressão de infrações penais.
Entretanto, se, eventualmente, tal aplicação da tecnologia de biometria facial servir para a análise de questões da intimidade dos titulares dos dados coletados sem relação com as finalidades de segurança pública ou investigação e repressão penais, ela não estará lastreada no interesse público e, portanto, deverá seguir as normas próprias para o caso.
Como exemplo, podemos citar a situação hipotética de um sistema de reconhecimento facial de monitoramento servir para coleta de dados pessoais para nutrir banco de dados utilizado para a oferta de publicidade. Nesse caso, o consentimento do titular do dado é impreterível.
Quanto à sua aplicação para combate às fraudes com relação ao pagamento de tarifas e benefícios sociais para acesso ao transporte público, sua utilização está baseada no interesse público, sendo certo que independe de autorização do titular do dado a coleta de sua biometria facial e tratamento por meio dos sistemas cujas câmeras são comumente instalados nas catracas limitadoras de acesso. Afinal, caso o consentimento fosse a regra, certamente não haveria vontade por parte dos fraudadores de permitir a coleta de seus dados biométricos. Nesse sentido também aponta a redação do artigo 11, inciso II, alínea “g” da LGPD, quando permite a coleta de dados biométricos, espécie de dados sensíveis, sem o consentimento de seu titular para a finalidade de prevenção à fraude e à segurança do titular nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos.[23]
Já quanto à aplicação da tecnologia de biometria facial para o pagamento de tarifa e acesso ao transporte público sem a finalidade de combate à fraude, cabe ao responsável pela coleta e ao controlador providenciarem o consentimento do titular do dado antes da coleta. Neste caso, a cláusula deve ser destacada das demais como forma de demonstrar que a informação foi dada de forma adequada e ostensiva ao titular do dado e que o consentimento é livre, atendendo ao princípio da boa-fé contratual.[24]
Assim, as empresas que trabalham com esse tipo de negócio podem solicitar o consentimento para a coleta da biometria facial do usuário, ou de seu responsável legal, em caso de incapazes, no momento da compra da passagem ou do crédito para utilização futura, ou mesmo quando do registro de cadastro do cliente, de modo que, quando este utilizar o serviço de transporte, a coleta de seus dados faciais tenha sido previamente consentida.
Veja-se que, quando o manto do interesse público é retirado da situação de uso da biometria facial, a regulamentação é bem mais restritiva, como forma de resguardar os interesses do titular dos dados.
Quanto à aplicação da biometria facial para atividades publicitárias e de análise de comportamento em transporte público, sua análise pela perspectiva da privacidade revela que sua implantação precisa ser cautelosa.
Em primeiro lugar, como vimos, a coleta de dados não pode ser obrigatória, pois, nessa condição, além de infringir o direito à liberdade, também infringiria o direito à privacidade dos titulares dos dados. Além disso, também geraria uma vantagem manifestadamente excessiva à empresa que explora o serviço público e ou ao Estado diante dos consumidores, posto que estes, para exercer seu direito de livre locomoção, teriam que necessariamente ceder seus dados biométricos para análises estatísticas sem justificativa legal, gerando uma obrigação abusiva aos consumidores usuários do serviço e infringindo o art. 39, V do CDC.
Em segundo lugar, precisa existir informação adequada, clara e em língua portuguesa sobre como se dará a coleta e processamento, qual a finalidade do serviço e todas as demais informações relevantes que permitam ao usuário consumidor saber exatamente o que esperar do serviço,[25] inclusive quanto a eventuais riscos à sua segurança ou à segurança de seus dados (art. 6º, inciso III do CDC), bem como permita que o titular do dado aceite ou não ceder seu dado facial.
Também, ainda quanto ao consentimento, ele precisa ocorrer previamente à coleta dos dados e, no caso de pessoas incapazes juridicamente, precisa ser adquirido do responsável legal do incapaz cujo dado será coletado.
A segurança de tais dados precisa ser uma prioridade e precisa ser tratada seriamente tanto pelo ente público responsável pelo serviço quanto pelas empresas que tratarão os dados coletados.
Com a entrada em vigor da LGPD, em 2020, as empresas públicas e privadas deverão seguir diversas normas quanto ao tratamento dos dados e forma de destruição dos mesmos, bem como atender a diversos direitos do usuário, como o de ter acesso e alterar seus dados ou mesmo excluí-los ou portá-los.
Algumas empresas sustentam que sua tecnologia não reconhece faces, mas apenas as detecta e extrai dados anonimizados em tempo real, não causando qualquer risco à privacidade.
Contudo, é importante que o fluxo de coleta e tratamento dos dados seja analisado, posto que, geralmente, ele segue etapas que não são realizados no local da coleta, exigindo o envio dos dados coletados para processamento externo, que pode até mesmo ocorrer em outro país.[26]
Caso o dado pessoal seja transmitido para outros países, após a entrada em vigor da LGPD existirão regras de transferência internacional que precisarão ser cumpridas. Também, é necessário que se observe a legislação internacional aplicável, posto que alguns documentos podem ser exigidos, a depender do caso.
Ainda, todo tratamento e toda a transmissão de dados precisa garantir níveis aceitáveis de segurança, envolvendo técnicas que evitem o vazamento dos dados.
Portanto, veja-se que a aplicação das tecnologias de reconhecimento facial no transporte público brasileiro enfrentam diversos desafios quanto à privacidade, os quais, no entanto, servem para resguardar o devido desenvolvimento da personalidade humana e, em conjunto com outros direitos, como o da liberdade, proporcionar uma vida digna aos indivíduos.
4.3 Perspectiva do direito à segurança pública
De acordo com o artigo 144 da Constituição Federal, a segurança pública é um dever do Estado e um direito e responsabilidade de todos. Ela é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
De modo geral, são as polícias e o corpo de bombeiros que detêm o poder de manter a segurança pública.
O poder de polícia do Estado serve como limitador às liberdades individuais dos cidadãos, na medida necessária à manutenção da ordem, segurança geral e da paz social, bem como de qualquer outro bem tutelado pelos dispositivos legais.[27]
Nesse contexto, a aplicação da biometria facial com a finalidade específica de apoio ao monitoramento e à manutenção da segurança dos locais destinados à prestação do serviço de transporte público, combatendo a criminalidade, atende aos ditames constitucionais.
Na esfera infraconstitucional, a Lei nº 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), estabeleceu como diretrizes da PNSPDS o fortalecimento das instituições de segurança pública por meio de investimentos e do desenvolvimento de projetos que envolvam inovação tecnológica (art. 5º, VII), bem como a padronização de tecnologia (art. 5º, XI), ou seja, a utilização e padronização de tecnologias para suporte à atividade policial só deve aumentar no país.
Porém, tal desenvolvimento deve atender aos princípios constitucionais e àqueles que a própria lei ora tratada elenca em seu artigo 4º, dentre eles, o respeito ao ordenamento jurídico e aos direitos e garantias individuais e coletivos, bem como a proteção dos direitos humanos, com o respeito aos direitos fundamentais e promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Destaque-se que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD não será aplicável às atividades que visem exclusivamente ao tratamento de dados para a finalidade de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou atividades de investigação e repressão de infrações penais (art. 4º, III). Dessa forma, não será necessário existir qualquer tipo de consentimento dos indivíduos para a coleta e tratamento de seus dados faciais para as finalidades ora elencadas, contanto que sejam utilizadas dentro dos parâmetros legais e constitucionais.
Já quanto à aplicação da biometria facial para pagamento de tarifas e acesso aos serviços de transporte público, pela perspectiva da segurança pública, ela é recomendável, como forma de evitar fraudes aos usuários e ao erário público. Porém, deve cumprir com as questões relacionadas ao direito à liberdade e à privacidade, como vimos anteriormente, pois, se assim não ocorrer, ela passará a atentar contra a segurança pública, uma vez que, por exemplo, o acesso indevido de hackers às bases de dados relativos à biometria facial que sirvam para autenticar pagamentos pode favorecer o cometimento de cibercrimes, o que cada vez mais se torna um desafio às polícias.
Por fim, quanto à aplicação dessa tecnologia para atividades de publicidade e análise de comportamento humano, a perspectiva da segurança pública não nos parece trazer novidades, posto que a legislação relativa à essa perspectiva será aplicável somente em caso de situações que coloquem em risco a segurança dos usuários ou que atentem à ordem pública, ou, ainda, quando houver interesse pelos órgãos de segurança no acesso aos dados coletados para procedimentos investigatórios.
Dessa forma, para essa aplicação é importante ter em mente o que tratamos quando falamos do direito à liberdade e à privacidade.
5 CONCLUSÃO
Como vimos, estamos vivendo uma profunda transformação tecnológica, que faz com que as relações sociais passem cada vez mais do ambiente analógico para o ambiente digital.
Essa nova Era nos traz desafios quanto à forma que tratamos os dados transmitidos pela internet, que cada dia ganham maiores proporções em termos de volume.
Transparência e controle são desafios dos novos tempos, que enfraquecem a privacidade humana e põem em risco, em alguns casos, a liberdade.
Por outro lado, a manutenção da segurança é necessária, inclusive para nos mantermos livres.
É nesse contexto que tecnologias que se utilizam de biometria facial, como as de detecção e reconhecimento facial, estão ganhando espaço no ambiente do transporte público mundial. Com aplicações no apoio ao monitoramento e segurança; na autenticação para a realização de pagamentos de tarifas e ou acesso aos serviços de transporte; e para atividades de propaganda e análise de comportamento humano.
Analisando juridicamente tais aplicações pelas perspectivas da liberdade, da privacidade e da segurança pública no cenário brasileiro, encontramos pontos positivos e negativos, sendo certo que a utilização de cada uma daquelas aplicações sofre algum tipo de restrição legal. Contudo, isso não deve inibir sua implantação, mas, sim, contribuir para que ela seja efetuada de maneira condizente com o ordenamento jurídico pátrio.
O objetivo do trabalho não foi abranger toda a legislação aplicável sobre o tema, até mesmo porque não existe regulamentação federal específica ainda em vigor. Mas foi o de abordar algumas questões relevantes que contribuam para entendimento básico das tecnologias e traga perspectivas jurídicas para o debate sobre casos concretos, que já estão ocorrendo e devem aumentar com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
As aplicações da biometria facial através de tecnologias de detecção e reconhecimento facial chegam ao transporte público brasileiro com perspectivas de crescimento quanto ao combate à criminalidade e a fraudes e devem também ser vastamente utilizadas quanto aos sistemas de pagamento num futuro próximo. Além disso, a publicidade deve ser aprimorada com a utilização de coleta e estudo de dados faciais em ambientes públicos. Mas tudo isso precisa estar de acordo com os parâmetros legais, para que contribua com a liberdade, o desenvolvimento da personalidade humana, bem como a manutenção da segurança pública.
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[1] O termo “Cyberspace” [ciberespeço] foi cunhado por William Gibson e popularizado em sua obra de ficção cientifica denominada “Neuromancer”, publicada em 1984, podendo ser entendido, conforme explica Pierre Lévy, como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Ele engloba o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos – incluindo os conjuntos de redes hertzanas e telefônicas clássicas –, na medida em que transmitem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização” (LÉVY, 2008, p. 92). Importante destacar que “o ciberespaço não existe como realidade física: não é um Estado soberano, mas apenas uma representação audiovisual criada e mantida por sistemas informáticos e programas de computador, presente em quase todos os países do mundo” (LEONARDI, 2012, p. 127). Isso é relevante na medida em que, se concebêssemos o ciberespaço como um ambiente autônomo e soberano, estaríamos diante de um território em que as leis dos Estados existentes não seriam aplicáveis.
[2] Estima-se que a produção diária de dados na Internet é de cerca de 2,5 quintilhões de bytes (MARR, 2018). Para acompanhar em tempo real as estatísticas, indicamos ver: INTERNET Live Stars em https://www.internetlivestats.com/.
[3] Um zettabyte é igual a um trilhão de gigabytes.
[4] A “International Telecomunications Union” estima atualmente que cerca de 54% da população mundial está conectada à internet, segundo dados do relatório “Measuring digital development: Facts and figures 2019” (ITU Publications, 2019).
[5] Uma das esferas da privacidade é a intimidade. E, ao tratar dela em sua obra sobre a sociedade da transparência, Byung-Chu Han (2019, p. 79-80) explica que, desde o século XVIII até os dias atuais, houve uma alteração fundamental na forma de interação humana. Antes, as pessoas, no espaço público, usavam sua aparência para preservar sua intimidade, mas, atualmente, as pessoas acabam por se expor na Web de forma muitas vezes narcisista e mercantilista, explorando a si mesmas. Assim, diz ele: “O século XVIII é caracterizado como theatrum mundi, no qual o espaço público é equiparado a um palco. A distância cênica impede o contato imediato entre corpos e almas. (...) Na Modernidade, renuncia-se cada vez mais a distância teatral em favor da intimidade. (...) Hoje, o mundo não é um teatro no qual são representadas e lidas ações e sentimentos, mas um mercado onde se expõem, vendem e consomem intimidades. O teatro é um lugar de representação, enquanto que o mercado é um lugar de exposição”.
[6] O panótipo digital aqui trazido é baseado no ideal prisional de Jeremy Bentham, que propunha a construção de uma prisão cujo prédio seria em formato de anel, com uma torre interna no centro da construção, a qual teria visibilidade de todo o prédio. A construção periférica seria composta por celas com duas janelas, uma interior, correspondendo às janelas da torre, e outra para o lado exterior do prédio, permitindo a entrada de luz. Nesse contexto, poder-se-ia reduzir a quantidade de vigias e causar uma sensação contínua de vigilância nos prisioneiros. Foucault (2014, p. 194-195). chama a atenção para esse último ponto, destacando-o como o efeito mais importante do panóptico, pois induz no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Para Byung-Chul Han (2018, p. 123), “os habitantes do panóptico digital não são prisioneiros. Eles vivem na ilusão de liberdade. Eles abastecem o panóptico digital com informações que eles emitem e expõem voluntariamente. A autoexposição é mais eficiente do que a exposição por meio do outro”. E Bauman (2013, p. 29-30) completa nossa constatação alertando para o fato de que esse modelo de vigilância (panóptica digital) foi construído inclusive com o apoio de seus opositores. Assim, explica: “Creio que o aspecto mais notável da edição contemporânea da vigilância é que ela conseguiu, de alguma maneira, forçar e persuadir opositores a trabalhar em uníssono e fazê-lo funcionar de comum acordo, a serviço de uma mesma realidade. Por um lado, o velho estratagema pan-óptico (‘Você nunca vai saber quando é observado em carne e osso, portanto, nunca imagine que não está sendo espionado’) é implementado aos poucos, mas de modo consistente e aparentemente inevitável, em escala quase universal. Por outro lado, com o velho pesadelo pan-óptico (‘Nunca estou sozinho’) agora transformado na esperança de ‘Nunca mais vou ficar sozinho’ (abandonado, ignorado e desprezado, banido e excluído), o medo da exposição foi abafado pela alegria de ser notado”.
[7] Byung-Chu Han (2018, p. 125) destaca o fato de uma certa empresa privada americana deter dados sobre cerca de 300 milhões de cidadãos norte-americanos e, evidentemente, segundo o autor, saber mais sobre os cidadãos dos Estados Unidos do que o FBI ou o IRIS (o serviço norte-americano de imposto de renda).
[8] Para mais detalhes, assista ao documentário “The Great Hack” (traduzido para português como “Privacidade hackeada”).
[9] Na Constituição Federal da República, a privacidade é protegida pelo artigo 5º, incisos X, XII e XIV, que tratam respectivamente da inviolabilidade da intimidade e da vida privada; da inviolabilidade do sigilo de correspondências, comunicações telegráficas, de dados e de comunicações telefônicas; bem da inviolabilidade do sigilo profissional. Já pelo Código Civil sua proteção é prevista no art. 21 (direito à vida privada) e no art. 1.531 (direito à vida privada familiar). Abordaremos outras legislações adiante.
[10] Veja reportagem interessante sobre o tema em: CNN Business. Facial recognition could revolutionize public transportation. YouTube. Publicado em 14 de dezembro de 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8pjLuEbLsk0>. Acesso em: 09 dez. 2019.
[11] A título de exemplo, veja algumas cidades que já contam com o sistema: em redes de ônibus: Belém/PA (G1 PA, 2019); Distrito Federal/DF (G1 DF, 2018); Recife/PE (REDE Brasil Oficial, 2018); Santos/SP (PREFEITURA de Santos, 2018); e Suzano/SP (G1, 2018). Em trens: Santos/SP (ROBERTO, 2019). E no metrô: São Paulo/SP (G1 SP, 2019).
[12] 200 aeroportos chineses (NG, 2019) e diversos americanos já implementaram a tecnologia (REYNOLDS, 2019). Na América Latina, alguns aeroportos também já a testaram, como o aeroporto de Montevidéu, no Uruguai (BALBI, 2019),, e o de Galeão - RJ, no Brasil (MAIA, 2019).
[13] Dados extraídos do site da empresa Ad Mobilize, uma das principais empresas que trabalham com essa tecnologia no mundo e a qual forneceu ela para a utilização no Metrô de São Paulo (AD Mobilize, 2019).
[14] Ação Civil Pública. Processo nº 1090663-42.2018.8.26.0100, que tramita na 37ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo (SP).
[15] A própria declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, já trazia a questão da limitação da liberdade quando disse: “Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei” (UNIVERSIDADE de São Paulo, ____)
[16] Assim diz o preâmbulo constitucional: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (grifos nossos). E o artigo 144 da mesma Carta: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio...”. Quanto ao dever de aprimoramento tecnológico contínuo, a Lei nº 13.675/2018 estabeleceu como diretrizes da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social o fortalecimento das instituições de segurança pública por meio de investimentos e do desenvolvimento de inovação tecnológica (art. 5º, VII), bem como a padronização de tecnologia e de equipamentos de interesse da segurança pública (art. 5º, XI).
[17] É preciso ter cuidado para que a classificação de uma pessoa como “suspeita” não seja utilizada para o monitoramento e perseguição de indivíduos sem qualquer vínculo com atividades ilegais e nem tenha cunho discriminatório, como no caso de ser entendido suspeito qualquer cidadão com certa cor de pele ou etnia.
[18] Sobre o tema, leia: AI now Report 2018 (AI Now Institute, 2018).
[19] A China impressiona com seu formato de vigilância, chegando a ter mais de 100 câmeras por cada 1.000 pessoas em diversas de suas cidades, além de utilizar de forma extensiva sistemas de detecção e reconhecimento facial (KEEGAN 2019). A União Europeia pretende criar um banco de dados centralizado, que deverá significar a maior base de dados biométrica do mundo (KECH, 2019). No Brasil, o Decreto nº 10.046/19 instituiu o Cadastro Base do Cidadão, que centralizará num banco de dados federal diversos dados pessoais dos cidadãos brasileiros.
[20] Apensar de terem existido elementos de certa proteção à privacidade anteriormente, desde a antiguidade, podemos considerar como marco de uma concepção moderna de privacidade e de sua proteção o ensaio de Warren e Brandeis, the Right to Privacy, de 1890.
[21] A exemplo: Código de Processo Civil (proteção ao sigilo de fatos – art. 388, inciso II e artigo 448, inciso II; privacidade de documentos de negócios de família ou protegidos por segredo – art. 404, inciso I e IV) do Código Penal (inviolabilidade de correspondência – art. 151 a 154; invasão de dispositivo informático – art. 154-A e 154-B; proteção ao segredo profissional – art. 325), Código de Processo Penal (proteção ao sigilo em razão de função, ministério, ofício ou profissão – art. 207); Consolidação das Leis do Trabalho (proteção ao segredo industrial/comercial – art. 482, alínea “g”) e Código Tributário Nacional (sigilo econômico ou financeiro de sujeito passivo ou terceiro – art. 198), além de previsões em diversas leis esparsas, como as leis nos 6.538/1978, 7.232/1984, 8.069/1990, 8.906/1994, 9.279/1996, 9.296/1996, 9.472/1997, 12.965/2014 e 13.709/2018.
[22] Dizemos a princípio pois em alguns casos concretos a pessoa dada por desaparecida na verdade pode querer se isolar em relação a certos indivíduos, inclusive familiares e, tendo em vista que ela tem esse direito (de “revelar-se seletivamente ao mundo” – direito à preservação de sua intimidade e vida privada), caso não seja um criminoso, entendemos que não seria adequado revelar sua localização. Contudo, esse tema merece uma análise mais profunda que não cabe no espaço desse trabalho.
[23] “Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: (...) II - sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para: (...) g) garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos, resguardados os direitos mencionados no art. 9º desta Lei e exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais”.
[24] Algumas regras aplicáveis ao caso são as previstas no artigo 138 a 144 do Código Civil, que tornam anuláveis os negócios jurídicos resultantes de erro justificável sobre as circunstâncias do negócio jurídico; artigos 113 e 187 do Código Civil, que tratam da boa-fé contratual e extracontratual; artigo 54, §4º do Código de Defesa do Consumidor, que, ao tratar dos contratos de adesão, estabelece que “as cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão” e o artigo 11, I, da LGPD, que determina que o tratamento de dados sensíveis somente poderá ocorrer na hipótese de consentimento “quando o titular ou seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas”.
[25] Assim explica o professor Geraldo Brito Filomeno, um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, ao tratar do direito à informação: “Trata-se, repita-se, do dever de informar bem o público consumidor sobre todas as características importantes de produtos e serviços, para que aquele possa adquirir produtos, ou contratar serviços, sabendo exatamente o que poderá esperar deles” (GRINOVER et al, 2011, p. 154).
[26] Um sistema tradicional de comunicação entre máquinas e mundo físico exige um sensor que colete o dado do mundo físico e o transmita para um processador que, por sua vez, trabalha o dado sob o comando de uma aplicação (software), interagindo com a memória, que geralmente detém bases de dados para cruzamento. Após isso, caso seja exigida alguma interação com o mundo físico novamente, para devolver um dado ou executar uma operação, o processador, sob o comendo da aplicação (software) envia esses dados para um atuador (hardware), que interage com o mundo físico. Esses elementos podem se encontrar em uma mesma máquina, como um computador com processador, memória e câmera integrados, e serem alimentados por uma mesma fonte de energia, por exemplo, uma ligação direta na tomada, ou podem estar separados, comunicando-se por cabos ou mesmo por ondas eletromagnéticas (sem fio). Neste último caso, mais comum atualmente, o sensor (ex.: câmera) pode estar numa estação de trem e o processador, bem como a memória (ex.: servidor) podem estar em qualquer lugar do mundo.
[27] Guido Zanobini (1950 apud MORAES, 2019) define polícia como “a atividade da administração pública dirigida a concretizar, na esfera administrativa, independentemente da sanção penal, as limitações que são impostas pela lei à liberdade dos particulares ao interesse da conservação da ordem, da segurança geral, da paz social e de qualquer outro bem tutelado pelos dispositivos penais”.
Jayme Souza é mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas-FGV/SP, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Gestor jurídico com atuação nacional e internacional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, JAYME APARECIDO DE SOUZA. O uso da biometria facial no transporte público brasileiro: três perspectivas jurídicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jul 2020, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54883/o-uso-da-biometria-facial-no-transporte-pblico-brasileiro-trs-perspectivas-jurdicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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