JÉSSICA LARA LIMA LOPES[1]
(coautora)
MARÍLIA MARTINS SOARES DE ANDRADE[2]
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo tem como tema a liberdade na autonomia da vontade privada sobre o direito de disposição da herança e exclusão da obrigatoriedade dos herdeiros necessários. Buscou-se fazer um estudo sobre a questão da autonomia do testador, visando a real necessidade da manutenção da legítima no ordenamento jurídico brasileiro e os limites da liberdade de testar. Para tanto, fez-se uma análise histórica no surgimento da legítima, bem como sua ausência no ordenamento jurídico de alguns países estrangeiros. Teve-se como objetivo geral analisar a liberdade na autonomia da vontade privada sobre o direito de disposição da herança e exclusão da obrigatoriedade dos herdeiros necessários e como objetivos específicos, demonstrar a evolução da autonomia da vontade no direito sucessório brasileiro, descrever a privação da real vontade do testador e analisar a necessidade de repensar a legítima para maior liberdade do testador. Este foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica do assunto abordado, mediante consulta das bibliotecas eletrônicas: Plataforma Sucupira, Spell (Scientific Periodicals Electronic Library) e Google Acadêmico, além de livros e artigos de doutrina jurídica. Chegou-se à conclusão da necessidade de fazer uma releitura da legítima com a finalidade de compatibilizar a aplicação efetiva do princípio da autonomia da vontade privada.
Palavras-chaves: Sucessório. Direto. Herança. Liberdade. Autonomia
ABSTRACT: This article had as its theme the freedom in the autonomy of the private will over the right to dispose of the inheritance and exclusion from the mandatory requirement of the necessary heirs. In this work, we tried to make a study on the question of the testator's autonomy, aiming at the real need to maintain the legitimate in the Brazilian legal system and the limits of the freedom to test. For this, a historical analysis was made on the emergence of the legitimate one, as well as its absence in the legal system of some foreign countries. Thus, the general objective was to analyze the freedom in the autonomy of the private will on the right to dispose of inheritance and exclusion from the mandatory inheritance required and as specific objectives, to demonstrate the evolution of the autonomy of the will in Brazilian succession law, to describe the deprivation of the tester's real will and to analyze the need to rethink the legitimate one for greater freedom of the tester. This work was developed through a bibliographic search of the subject addressed, through consultation of electronic libraries such as Plataforma Sucupira, Spell (Scientific Periodicals Electronic Library) and Google Scholar, in addition to books and articles of legal doctrine. From all the research, the conclusion was reached of the need to make a re-reading of the legitimate one in order to make compatible the effective application of the principle of autonomy of the private will.
Keywords: Succession. Direct. Heritage. Inheritance. Autonomy.
Sumário: 1. Introdução. 2 Evolução histórico da autonomia da vontade no Direito Brasileiro. 2.1 Princípio da Autonomia da Vontade. 2. 2 Direito Sucessório sob o foco da legítima. 2. 2 Direito Sucessório sob o foco da legítima. 3 Privação da real vontade do testador. 3.1 Formação da liberdade de testar no Direito Internacional. 4 Necessidade de repensar a legítima para maior liberdade do testador. 4.1 Fundamentos que sustentam a manutenção da legítima: necessidade de refutá-los. 5. Considerações Finais. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Entre as vontades de uma pessoa que devem ser respeitadas, destacam-se seus interesses em vida. Pois, acredita-se que todos devem ter o direito de deixar ou não sua herança, patrimônio ou bens para quem julgar achar melhor. No entanto, essa possibilidade não é garantida dentro do direito brasileiro, ou seja, o dono de determinado patrimônio não tem a liberdade de expressar-se livremente acerca do destino de sua herança, posto que, no ordenamento pátrio há diretrizes e restrições a respeito de a pessoa querer expressar tal vontade.
Sendo assim, o presente artigo versará sobre a autonomia da vontade privada e a limitação do direito de testar, em face da legítima, tendo como pressuposto a autonomia da vontade que se justifica a partir da faculdade humana de se autodeterminar.
No direito sucessório brasileiro existem duas vertentes provenientes da sucessão mortis causa: legítima e testamentária. Buscar-se-á aqui apresentar uma posição que defenda a possibilidade de extinção da legítima, dando ao testador total liberdade para dispor de seus bens para depois da morte, rompendo diretamente com esta visão arcaica de que há necessidade de conservar em lei os herdeiros necessários. Assim, permitindo ao testador que o rateio de seus bens não esteja atrelado às ordens expressas na lei, mas como entender ser o melhor para seus herdeiros futuros, tendo assim a sua vontade total demonstrada em testamento.
Na Roma Antiga não se admitia alguém morrer sem ter deixado testamento, pois significava morrer sem tradição, sem o culto à sucessão. Entretanto, atualmente o testamento deixou de ser instrumento obrigatório, passando a ser utilizando esporadicamente e para finalidades específicas, basicamente patrimoniais, razão pela qual o próprio conceito de testamento do Código de 1916 não nominava a função extrapatrimonial.
Entende-se, contudo, que a lei não dá direito ao testador de dizer o que deseja fazer com seus bens, pois metade já está obrigatoriamente destinada aos herdeiros necessários, que são os descendentes, ascendentes e cônjuge, os quais tem uma participação forçada acondicionada na lei. Quer-se aqui apresentar o testador como pessoa que tem uma vontade a demonstrar.
Diante do pressuposto, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar a liberdade na autonomia da vontade privada sobre o direito disposição da herança e exclusão da obrigatoriedade dos herdeiros necessários. E como objetivos específicos, demonstrar a evolução histórica da autonomia da vontade no direito sucessório brasileiro, descrever a privação da real vontade do testador e analisar a necessidade de repensar a legítima para maior liberdade do testador.
Partindo-se desse argumento, levar-se-á mais a fundo a questão da autonomia da vontade privada tendo por base o direito sucessório internacional, expondo que em outros países leva-se em consideração a vontade do testador acima de qualquer determinação da lei, pois o que realmente é válido para o testador é expor no seu testamento a nomeação de seus herdeiros por vontade própria, e não por imposição da lei.
Para tanto, este estudo utilizará como metodologia a pesquisa qualitativa através de uma revisão bibliográfica, que permite a utilização de conteúdos e paradigmas diversos na literatura. Deste modo, explanar-se-á sobre os significados e fenômenos importantes para se estabelecer conclusões sobre a autonomia da vontade. A partir disso questionar-se-á se esta garantia aos herdeiros necessários ainda se sustenta e se está em conformidade com a legislação atual, onde a autonomia do testador segue altamente suprimida.
Para tanto, este artigo se dividirá em três capítulos. No primeiro se relatará a evolução histórica da autonomia da vontade no direito sucessório brasileiro; no segundo será analisada a privação da real vontade do testador e, por fim, no terceiro capítulo será discutida a necessidade de repensar a legítima para maior liberdade do testador.
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA AUTONOMIA DA VONTADE NO DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIRO
O Direito das Sucessões talvez tenha sido o instituto que mais tenha se modificado ao longo dos tempos, e para se compreender o momento histórico deste, é necessário abstrair a ideia de sociedade capitalista de hoje e mergulhar no túnel da história.
Após a ideia primitiva de tribo, quando não existia ideia de sucessão, organizaram-se os primeiros núcleos sociais, formando as cidades e, dentro delas, a célula mater, constituída pela família, sob a gerência do pater. Sabe-se, por informações dos estudiosos em antropologia que o fortalecimento dos laços de afeição, intimamente ligados nas famílias, principia a transmissão da propriedade de pais para filhos, tornando-se um hábito, arraigando-se nos costumes, gerando desde as leis antigas o reconhecimento dos direitos dos filhos à herança dos pais.
O direito sucessório tem origem remota, desde que o homem deixou de ser nômade e começou a lograr patrimônio. Os bens que antes eram comuns passaram a pertencer a quem deles se apropriou. A sociedade estruturou-se em famílias, fazendo surgir a propriedade privada. Cada núcleo familiar com seus bens e sua religião.
Em Roma, o titular do patrimônio era o pater família. Passava de um a outro por meio de testamento, pois precisava ser mantido mesmo depois da morte do seu titular. Haviam interesses mais de ordem religiosa do que patrimoniais em proceder-se às transferências dos bens. A morte de alguém sem sucessor ensejava a extinção do culto doméstico, trazendo infelicidade aos mortos. Daí a importância da figura do herdeiro para dar continuidade à religião familiar. Como o conceito de família era extensivo, não havia limitações para herdar quanto aos graus de parentesco. Na ausência de herdeiros, a adoção era a forma de assegurar a perpetuação da família (NADER, 2013).
Historicamente a sucessão sempre se operou na linha masculina, sob a justificativa de que a filha não daria seguimento ao culto familiar, pois ao casar adotaria a religião do marido. Também entre os filhos homens existiam privilégios injustos. Na Idade Média, a sucessão se operava ao filho mais velho, para evitar a divisão dos feudos.
O testamento é uma invenção romana. O direito de dispor da própria fortuna por ato de última vontade surgiu com o progresso do individualismo, na medida em que a pessoa se afirmava perante a família (SILVA, 2015).
A ideia da sucessão por causa da morte não aflora unicamente no interesse privado: o Estado também tem o maior interesse de que um patrimônio não reste sem titular, o que lhe traria um ônus a mais. Para ele, ao resguardar o direito à sucessão (agora como princípio constitucional, art. 5º, XXX, da Carta de 1988) está também protegendo o direito de escolha e disposição dos bens. Se não houvesse direito à herança, estaria prejudicada a própria capacidade produtiva de cada indivíduo de se autodeterminar, tendo seu interesse assegurado na Lei Maior onde visa e assegura seus próprios desejos futuros.
2.1 Princípio da Autonomia da Vontade
No ordenamento jurídico brasileiro inexiste autonomia absoluta da vontade quanto ao destino do patrimônio do indivíduo, e só se poderá dispor de metade do que é próprio por testamento, em favor de herdeiros de livre nomeação. O código Civil de 1916 continha as mesmas regras, permanecendo igual no código de 2002, dando-se a real demonstração que no Brasil o testador nunca teve autonomia para se autodeterminar (NETO, 2013).
O princípio da autonomia da vontade, no qual se funda a liberdade dos contratantes, consiste no poder de estipular livremente, como melhor julgarem as partes, mediante acordo de vontades, conforme a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Esse poder de auto-regulamentação dos interesses das partes contratantes, condensado no princípio da autonomia da vontade, envolve a liberdade contratual em algumas vertentes: a determinação do conteúdo da avença, a criação de contratos atípicos, a liberdade de contratar, e alusiva à de celebrar ou não o contrato e à de escolher o outro contratante (SILVA, 2015).
A liberdade de criação do contrato abrange, portanto: a) a liberdade de contratar ou não contratar, isto é, o poder de decidir, segundo seus interesses, se e quando estabelecerá com outrem uma relação jurídica contratual. Todavia, o princípio de que a pessoa pode abster-se de contratar sofre exceções, como, por exemplo, quando o indivíduo tem obrigação de contratar imposta pela lei, como é o caso das companhias seguradoras relativamente aos seguros obrigatórios; b) a liberdade de escolher o outro contraente, embora às vezes a pessoa do outro contratante seja insuscetível de opção, como por exemplo, nas hipóteses de serviço público concedido sob regime de monopólio, ou seja, das empresas concessionárias de serviço público; e c) a liberdade de fixar o conteúdo do contrato, escolhendo qualquer uma das modalidades contratuais reguladas por lei (contratos nominados), introduzindo alterações ou cláusulas que melhor se coadunem com seus interesses e com as peculiaridades do negócio, ampliando ou restringindo os efeitos do vínculo contratual, ou adotando novos tipos contratuais distintos dos modelos previstos pela ordem jurídica, conforme as necessidades do negócio jurídico. Dando origem, assim, aos contratos inominados (TELLES, 2014).
O princípio da autonomia da vontade sofre, portanto, restrições, trazidas pelo dirigismo contratual, que é a intervenção estatal na economia do negócio jurídico contratual, por entender-se que se deixasse o contratante estipular livremente o contrato, ajustando qualquer cláusula sem que o magistrado pudesse interferir, mesmo quando uma das partes ficasse em completa ruína, a ordem jurídica não estaria assegurando a igualdade econômica (SILVA, 2015).
A autonomia da vontade é muitas vezes deixada de lado por excessivas imposições legais que acabam por impedir uma realização mais ampla de uma vontade individual. Assim, Pablo Stolze relata que:
Essa restrição do testador também implica afronta ao direito constitucional de propriedade, o qual, como se sabe, pode ser considerado de natureza complexa, é composto pelas faculdades de usar, gozar/fruir, dispor e reivindicar a coisa. Ora, tal limitação, sem sombra de dúvida, entraria em rota de colisão com a faculdade real de disposição, afigurando-se completamente injustificada. (GAGLIANO, 2014, p. 59)
De acordo com a visão de Luigi Ferri (1969, p. 3), entende-se que a autonomia da vontade tem uma característica de acepção intangível ou de caráter psicológico, tendo foco na demonstração de expressão interna da vontade do indivíduo, ou seja, a verdadeira vontade do ser.
Na visão de Natália Berti (2014, p. 83), ela descreve:
A autonomia da vontade está diretamente relacionada a elementos subjetivos, etéreos, baseados na psique dos contraentes [...] era, pois, o poder do indivíduo de criar e regular os efeitos jurídicos de sua contratação, sem a intervenção externa: o contato era uma esfera de livre atuação dos particulares.
Em consonância com este pensamento, entende-se que o indivíduo deve ter importância para o direito, sendo importante valorizar seus direitos fundamentais e individuais, estando estes elencados no artigo 5º da Constituição Republicana de 1988.
2. 2 Direito Sucessório sob o foco da legítima
A sucessão legítima é assim denominada porque decorre e é regulamentada por lei, prescindindo de qualquer manifestação de vontade da pessoa falecida. Trata-se justamente de um regramento cogente aplicado quando o falecido não deixa ato de última vontade ou, quando tendo deixado, dispõe apenas de parte dos seus bens, caso em que se aplica a sucessão legítima aos bens não contemplados pelo ato discricionário. A normativa é aplicada, ainda, em casos de nulidade ou caducidade do testamento.
Segundo Gonçalves (2018), quando o de cujus falece ab intestato, a herança, como foi dito anteriormente, é deferida à determinadas pessoas. O chamamento dos sucessores é feito, porém, de acordo com uma sequência denominada ordem da vocação hereditária. Esta consiste, portanto, na relação preferencial pela qual a lei chama determinadas pessoas à sucessão hereditária.
A sucessão legítima se faz sempre a “título universal”. Os herdeiros participam da totalidade do ativo e passivo, excetuados os bens comprometidos com legados, mediante quotas. Para definir os herdeiros, a lei obedece à regra e à ordem da vocação hereditária. Diz-se que tem vocação hereditária a pessoa apta a herdar (de forma legítima ou testamentária).
Na sucessão legítima, têm vocação hereditária, segundo o artigo 1.798, do Código Civil, as pessoas já nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Tartuce e Simão (2017) ressaltam que apenas as pessoas naturais herdam por sucessão legítima. Os já concebidos à época da abertura da sucessão, conhecidos como nascituros, têm seu direito sucessório condicionado ao nascimento com vida, momento em que se consolida sua personalidade civil. Assim, os autores acima citados observam que os direitos patrimoniais do nascituro são subordinados a uma condição suspensiva: o nascimento com vida.
Essa capacidade para suceder é definida segundo a lei vigente à época da abertura da sucessão (art. 1.787) e não pressupõe a capacidade de fato. Havendo uma condição, a lei reguladora será a do momento em que esta se verifica, pois, consoante Clóvis Beviláqua, é quando a propriedade se transmite. Em relação aos nascituros, estes sucedem quando nascem com vida, hipótese em que os seus direitos retroagem ao momento da abertura da sucessão (NADER, 2013).
Para melhor compreensão da ordem da vocação hereditária é imprescindível a compreensão do conceito de “classe de herdeiros”. Trata-se de grupos de herdeiros com semelhanças entre si. Atualmente, existem quatro diferentes classes de herdeiros: a dos descendentes do falecido (parentes em linha reta), a dos ascendentes, também parentes em linha reta, a do cônjuge ou do companheiro (que não possuem vínculo de parentesco) e a dos parentes colaterais (parentes sem relação de ascendência ou descendência direta com o falecido). Esses grupos geralmente não coexistem em uma sucessão, uma vez que a existência de herdeiros de uma classe automaticamente exclui a classe seguinte.
Outro conceito importante antes de iniciar a ordem sucessória é o de “parentesco”. Segundo prelecionam Tartuce (2017), parentesco é a ligação existente entre pessoas que provém de um mesmo progenitor. Essa linha (parentesco) pode ser reta ou colateral. O parentesco em linha reta, previsto no artigo 1.591, do Diploma Civilista, dá-se entre pessoas vinculadas por ascendência e descendência e é caracterizado por sua infinidade, uma vez que não há limites finais para o parentesco em linha reta.
A linha colateral, por sua vez, constrói-se entre pessoas que advêm de um só tronco sem descenderem umas das outras. Esse parentesco limita-se até o 4º grau, conforme dispõe o artigo 1.592, do Código Civil (BRASI, 2002). Quando reconhecido como filho afetivo de alguém, a pessoa torna-se membro da família do novo pai ou da nova mãe, assumindo o seu papel de parentesco tanto em linha reta quanto em linha colateral, como se biológico fosse: sem limitações.
O que importa, de fato, é perceber que essa nova relação entre pai/mãe socioafetivo e filho socioafetivo cria vínculos de parentesco indiscutivelmente iguais aos existentes entre pais e filhos biológicos e, ainda, indiscutivelmente aptos a gerar as exatas mesmas consequências sucessórias a todas as figuras dessa relação, seja entre avó e neto, pai e filho, filho e irmão (TELLES, 2014).
Do mesmo modo, se essa nova relação está devidamente registrada ou é devidamente reconhecida judicialmente em coexistência com uma relação de parentalidade biológica caracterizando uma situação de multiparentalidade, não deve haver qualquer diferença sucessória.
Como já demostrado, no diploma legal de 2002, existe a permissão de testar, entretanto, tal capacidade estará restrita a apenas a metade dos bens, independente da forma de aquisição. Dessa forma, os herdeiros de livre nomeação, só poderão receber parte do patrimônio do de cujus, pois a metade já é destinada a seus herdeiros intitulados “necessários”. Assim, resta clara a necessidade de uma nova ordem jurídica para resguardar a autonomia dos anseios particulares.
3 PRIVAÇÃO DA REAL VONTADE DO TESTADOR
A própria Constituição de 1988, consagra o direito à herança, mas em nosso ordenamento Civil, o testamento não pode colidir com a legítima (cinquenta por cento reservado para os herdeiros necessários). Caso isso ocorra os desejos manifestados no testamento não serão cumpridos.
Deve-se observar que as normas legais da sucessão legítima não podem ser contrariadas pela vontade do testador, não sendo possível compreender porque o atual Código Civil de 2002 continua consagrando institutos que privam a manifestação inerente ao direito de se autodeterminar e manifestar suas intenções no momento de se dispor de sua propriedade.
As privações que são impostas ao autor da herança são tão fortes, que no Brasil, não se tem como algo comum a produção de testamentos, pois a lei já traz um rol taxativo de herdeiros necessários, liberando apenas, metade, para livre nomeação, e o testador pode se sentir um mero objeto, diante da formação do direito sucessório brasileiro.
O impedimento dessa disposição começa pela imposição do cônjuge ou companheiro do direito de participar da sucessão mesmo tendo sua cota parte reservada num processo anterior, o da omissão, como expõe o Art. 1.829 do Código civil, que permite ao cônjuge a concorrência tanto com seus próprios descendentes e com os ascendentes do de cujus (BRASIL, 2002). Deste modo, não há a necessidade de ser incluído no rol de participantes no momento da sucessão.
Pode-se iniciar pelo fato da previsão legal do cônjuge ou companheiro de participar da sucessão, mesmo já tendo levado sua cota referente à meação. Nesse caso não deveria haver necessidade de ser tido como um participante no momento da sucessão, como expõe o Art.1.829 do Código Civil (BRASIL, 2002), que permite ao cônjuge a concorrência tanto com seus próprios descendestes como com os ascendentes do de cujus. Esta previsão legal do cônjuge participar da sucessão imposta pelo legislador mostra que não houve uma análise clara de que o testador é uma pessoa que deseja manifestar seu desígnio e não está atrelado às normas duras, o que o impede de demostrar seus anseios para com seus bens.
Como se pode notar o testador não pode estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima, como cita o Art. 1.848 do mesmo diploma, demostrando que o mesmo sequer pode onerar os referidos bens, não tendo poder de demostrar seu desejo para o futuro de seus bens sobre aquilo que deve ter uma história ou relação puramente íntima para sua conservação.
Acredita-se que deve ser contemplada a “ética da autonomia” para onde os direitos relacionados à personalidade são conduzidos, sendo definidos por Stacioli (2010, p. 78), como sendo o local onde:
As pessoas dotadas de história produzem, voluntariamente, normas de direito positivo, que também serão dotadas de historicidade (vinculadas a espaço e tempo), e compartilhadas por sujeitos de direitos capazes de argumentação e de fala.
Outros fatores podem contribuir para que não se faça uso de testamentos, dentre os quais, é possível citar: a ausência de possibilidades múltiplas referentes ao uso; o custo; a questão da formalidade; a necessidades de algumas testemunhas, algo já determinado pelo sistema anterior; ou até mesmo, a maneira cultural de algumas pessoas de não pensar na morte como a ocorrência de um processo natural. Desse modo as pessoas acabam deixando de fazer testamentos, que quando são feitos, normalmente provém de pessoas mais idosas.
Com o novo sistema codificado e a alteração substancial na ordem de disposição hereditária há uma grande limitação testamentária, que é resultado do impedimento de se testar diante do fato de a lei Civil não disponibilizar a oportunidade da expressão da vontade do testador em sua integralidade. Desta forma, o legislador impõe uma obrigatoriedade sobre parte da herança a ser deixada para seus herdeiros necessários, remontando a uma proteção patriarcal que a sociedade atual vem tentando eliminar e garantir independência ao mesmo tempo em que busca o conhecimento de forma substancial destes possíveis futuros sucessores.
É certo que a vontade social e pessoal do testador não é atendida. Além disso, foram criadas regras duvidosas e sem clareza na quase totalidade dos capítulos do Código Civil (BRASIL, 2002) que estabelecem o direito sucessório. Várias situações não foram previstas e ainda outras o foram de forma equivocada, como por exemplo, a imposição da averiguação da culpa do falecido, para garantir, dessa forma, o direito ao cônjuge, mesmo que este esteja separado por um período de mais de 2 anos. (BRASIL, 2002)
Denota-se de imediato que a única e eficaz alternativa capaz de suprir as distorções e minimizar as injustiças impostas pela codificação Civil, seria o uso do testamento como ferramenta para um melhor planejamento sucessório.
Embora a herança seja uma unidade abstrata e ideal que pode até mesmo prescindir da existência de bens materiais, não se deve acreditar, de plano, que seja indivisível. Quando existem vários herdeiros chamados a suceder o de cujus, divide-se entre eles em partes ideais, fracionárias, de metade, um terço, um quarto, etc (VELOSO, 2010).
Além disso, por meio de um testamento é possível atribuir bens determinados a determinadas pessoas. É o que se chama de legado: um ou vários bens atribuídos a alguém pelo testador. Podem ser bens certos ou bens fungíveis (Código Civil 85): substituíveis por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Os beneficiários recebem o nome de legatários e são os sucessores a título singular. Só existe legado, e consequentemente a figura do legatário, no testamento (RODRIGUES, 2014).
Se o testamento for nulo, não há legado. O valor dos bens do legado não pode comprometer a legítima dos herdeiros necessários. Ainda que haja excesso, ou seja, deixando o testador para o legatário mais do que podia dispor, o testamento deixa de ser válido. Caso isso ocorra, cabe simplesmente reduzir o valor do legado atribuindo ao beneficiário menos bens ou fração do bem que lhe foi destinado. Pode ser instituído legado tanto em favor dos herdeiros legítimos como dos herdeiros testamentários. Nada impede que alguém, que seja herdeiro legítimo, necessário ou testamentário, também seja legatário. Nada impede que herdeiro legítimo, necessário ou testamentário. Bens de pequeno valor podem ser atribuídos a legatários por meio de codicilo.
O legatário é a pessoa a quem o testador destina um ou mais bens individualizados. A ele o testador lega bens determinados. Por isso é chamado de herdeiro singular. Quanto aos bens cuja transmissão só ocorra após a morte, diz serem recebe a título, o que, ao fim e ao cabo, nada mais é do que uma doação para depois da morte. Ainda que sobrevenha, a posse do bem não ocorre automaticamente quando da abertura da sucessão, mas sim somente quando acontece a partilha (HESSE, 2013).
Nada impede que o testador beneficie os próprios herdeiros necessários com a parte disponível do seu patrimônio. Somente nesta hipótese não necessita respeitar a igualdade dos quinhões, princípio que só prevalece quanto à sucessão legítima. O que o herdeiro receber por vontade do testador não se confunde com a herança a que faz jus como herdeiro legal.
Assim, além de necessário, ele é também herdeiro testamentário. Caso as disposições testamentárias ultrapassem a parte disponível dos bens, a rigidez do testamento não é comprometida. É considerado ineficaz o que exceder o limite da disponibilidade de testar. Excluído o excesso de modo a não comprometer o quinhão dos herdeiros necessários, tudo é válido conforme o Art. 1.967 (BRASIL, 2002). O que não pode o testador se tem herdeiros necessários, é dispor da metade dos bens da herança que constitui a legítima (DINIZ, 2018).
Não atribuindo o testador a totalidade da parte disponível de seus bens aos herdeiros testamentários, o restante é destinado aos herdeiros necessários ou legítimos. Igualmente ficarão para os herdeiros a totalidade dos bens na hipótese de o testamento ser nulo ou vier a ser anulado.
Também em caso de caducidade, ou seja, ineficácia do testamento, se tem o testamento como não escrito e a totalidade do acervo patrimonial resta para os herdeiros legais: necessários ou legítimos. Tal ocorre por força do princípio da sobra, disciplina no Código Civil de 2002 em seu art. 1.788 (BRASIL, 2002). Na hipótese de inexistirem herdeiros legítimos, os bens são recolhidos como herança jacente, por não terem dono. Depois de declarada a vacância, o acervo é atribuído ao ente público onde se localizam os bens.
3.1 Formação da liberdade de testar no Direito Internacional
O panorama legislativo atual a respeito da legítima não é favorável à liberdade de testar. Na maioria dos sistemas jurídicos estrangeiros não existem regras que limitam a liberdade de testar por intermédio do instituto da legítima, também chamada “reserva legal” em favor de determinados parentes do testador.
Sob outro aspecto, o moderno direito das sucessões foi o produto de um embate prolongado entre o direito romano e o antigo direito germânico, com certa influência do direito canônico. Efetivamente caracterizou-se pelo absoluto respeito à liberdade de testar, compreensiva de todo patrimônio do testador.
Essa liberdade constituía a mais enérgica expressão do individualismo romano. Estes tinham verdadeiro horror pela morte sem testamento. Para eles nenhuma desgraça superava a de falecer ab intestato; maldição alguma era mais forte do que a de morrer sem testamento. Finar-se ab intestato redundava numa espécie de vergonha.
Pode-se classificar a sucessão em legítima e testamentária, oriunda de testamento válido ou de disposição de última vontade. Todavia, ante o sistema da liberdade de testar limitada adotada pela lei pátria, se o testador tiver herdeiros necessários, ou seja, cônjuge sobrevivente, descendentes e ascendentes sucessíveis só poderá dispor de metade de seus bens uma vez que a outra metade constitui a legítima daqueles herdeiros (BRASIL, 2002, DINIZ, 2018).
Assim sendo, no atual sistema brasileiro, o patrimônio do de cujus será dividido em duas partes iguais: a legítima, que cabe aos herdeiros necessários, a menos que sejam deserdados conforme art. 1.961, e a porção disponível, da qual pode livremente dispor, feitas as exceções dos artigos 1.801 e 1.802, ambos do Código Civil, concernentes à incapacidade testamentária passiva (BRASIL, 2002). Assim, e conforme Diniz (2018), A porção disponível é fixa, compreendendo a metade dos bens do testador, qualquer que seja o número e a qualidade dos herdeiros (DINIZ, 2018).
Se o falecido deixou testamento válido, tem-se nesse caso a sucessão testamentária, e observa-se então, o que o testador houve por bem determinar, atribuindo-se assim a herança às pessoas indicadas pelo disponente no ato da última vontade. Importa frisar, para logo, que não é absoluta a liberdade de testar, como outrora sucedia no primitivo direito romano. Atualmente, pelo direito brasileiro, se o testador tem herdeiros necessários, isto é, descendentes, ascendentes e cônjuge sucessíveis art. 1.845 do Código Civil, somente poderá dispor da metade de seus bens art. 1.789 (BRASIL, 2002). Como sugere o próprio nome, sucessão testamentária é a transmissão da herança por meio de testamento. Ocorre quando houver manifestação de vontade da pessoa – claro que enquanto viva estava - elegendo quem deseja que fique com o seu patrimônio depois de sua morte. A sucessão legítima é a regra e a testamentária é a exceção (DINIZ, 2018).
Há um grupo de países que reconhecem o direito à liberdade de testar, que, tradicionalmente, correspondem àqueles de Direito Anglo-saxão, decorrentes da formação da common law onde a liberdade de testar é absoluta, a exemplo nos países a serem citados a seguir, fundamentando sua formação e apoiando o testador, tornando-o sujeito de direito na manifestação de sua vontade.
De início, alguns países que estão na mesma rota social que o Brasil, limitam a liberdade absoluta de testar a apenas uma pequena contraprestação de auxílio. Como exemplo tem-se o México que em seu Código Civil adota o sistema, permitindo a liberdade de testar, apenas obrigando o testador a deixar uma pensão alimentícia ao cônjuge, a certos parentes de sangue em linha reta e, até mesmo, ao companheiro, caso este não esteja em condição apta ao trabalho, cessando a partir do momento que cesse a necessidade ou caso contraia novas núpcias. Na mesma linha seguem os sistemas dos Códigos Civis da Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Panamá.
Existem países que têm uma sistemática intermediária, onde os herdeiros necessários só teriam direito à legítima na hipótese de necessitarem. Ou seja, a legítima teria um caráter assistencial. Isso é o que acontece, por exemplo, na Rússia, onde o atual Código Civil aceita o princípio da liberdade de testar com a mínima imposição presente em seu artigo 1.149, que dá aos filhos menores do falecido, ao cônjuge deficiente e/ou aos pais com deficiência o direito de requererem pelo menos a metade da herança.
Também na Estônia se prevê (§104 da Lei sobre Herança) que:
Se o falecido em um testamento ou contrato sucessório deserdar um ascendente, um filho ou cônjuge que estejam incapacitados para o trabalho, ou tiver reduzido seus quinhões hereditários em comparação com a quota que lhes corresponderiam na sucessão legítima, esses parentes e cônjuges têm direito a reivindicar a legítima.
Por outro lado, existe a Alemanha que consagra em sua própria Carta Magna, a liberdade de testar como uma garantia fundamental e inviolável:
O artigo 14 da Constituição (GG) garante a liberdade de testar juntamente com o direito de propriedade como direito fundamental e individual do falecido e seus sucessores, e como uma instituição de direito privado” (EN ALEMANIA, 2010, p.: 49 – 50).
O direito Americano em sua formação relativiza a matéria acima denotada como uma matéria de competência estadual. Em regra, busca respeitar a vontade do testador.
Um grande sinal de liberalização tem ocorrido nos requisitos formais da vontade de um testamento eficaz. A tendência é decisivamente para a aplicação da vontade do testador, mesmo que o testamento não cumpra os requisitos formais, se a intenção do testador puder ser verificada de forma segura e sem suspeita de atividades fraudulentas (SCALISE JR, v. 54, 2006, p. 110).
Atendendo à vontade do testador sob a essência do seu anseio manifestado em testamento, serão postos de lado os requisitos formais e atendidos seus desejos. Isso é o que a maior parte dos tribunais dos estados americanos tem decidido acerca da matéria.
Portanto, pode-se afirmar que o testamento no direito internacional, é tratado como manifesto de uma revelação de última vontade, na qual um indivíduo dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens, não estando atrelados a regulamentos ou imposições de lei. Devido ao fato desta livre manifestação de vontade gerar efeitos jurídicos, o testamento é considerado um negócio jurídico, devendo assim, ser respeitado.
Portanto, a finalidade do testador é concretizar os efeitos de sua disposição de última vontade. Tais disposições podem ser patrimoniais ou extrapatrimoniais ou até mesmo as duas espécies de disposições sem que, por isso, o testamento passe a não produzir certos efeitos ou dependa exclusivamente de uma das formas previstas em lei. É, efetivamente, ato de liberalidade e, por esta razão, deve-se permitir ao testador dispor sobre seus bens e interesses da maneira que lhe melhor aprouver.
4 NECESSIDADE DE REPENSAR A LEGÍTIMA PARA MAIOR LIBERDADE DO TESTADOR
A família estava dentro de um círculo de proteção, sendo que os seus descendentes tinham diretos já garantidos por expressão de cuidado patriarcal, era baseado numa formação agrária onde a família trabalhava em conjunto para prover alimentos. Nela se formava um círculo de relação, onde todo o sustento era partilhado e daquela forma se perpetuavam, de modo que os filhos viam como forma de sobrevivência o que era proveniente dos seus progenitores.
Nota-se através disso que a família tinha uma autonomia limitada em função da preservação da mesma, sendo ela considerada como instituição que estava acima dos seus membros.
Embora, com frequência, seja empregado o termo sucessão como sinônimo de herança, vê-se que é necessária a distinção. A sucessão refere-se ao ato de suceder, que pode ocorrer por ato ou fato entre vivos ou por causa da morte.
A herança pode apresentar um caráter positivo ou negativo. Isto é, na compensação do seu ativo e passivo, podemos chegar à conclusão que o primeiro supera o segundo, havendo superávit, ou que, ao contrário, é por ele ultrapassado, ocorrendo déficit (VELOSO, 2010).
Os herdeiros necessários são as classes de parentes cuja existência, segundo o Código Civil, limita o poder do brasileiro de dispor gratuitamente de seus bens. Isso porque, segundo consta do artigo 1.846 do Código Civil e bem explica Gonçalves (2013), aos herdeiros necessários a lei assegura o direito à “legítima”, que corresponde à metade dos bens do testador, ou à metade da sua meação, nos casos em que o regime do casamento a institui. A outra, denominada “porção” ou “quota disponível”, pode ser deixada livremente (GONÇALVES, 2018).
Assim, caso o falecido tenha disposto livremente de seus bens além do montante de cinquenta por cento em seu testamento, a doação realizada é dita inoficiosa e será nula no que exceder referido valor. Segundo consta do artigo 1.845, do Diploma Civilista, são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Os demais herdeiros (companheiro, colaterais) são ditos herdeiros facultativos.
Gonçalves (2018, p. 121) explica assim:
Herdeiro necessário, legitimário ou reservatório é o descendente ou ascendente sucessível e o cônjuge (CC, art. 1.845), ou seja, todo parente em linha reta não excluído da sucessão por indignidade ou deserdação, bem como o cônjuge, que só passou a desfrutar dessa qualidade no Código Civil de 2002, constituindo tal fato importante inovação.
Importante ressaltar que a exclusão de um herdeiro necessário da sucessão só pode se dar em casos de indignidade ou deserdação, situações que devem ser, necessariamente, propostas e comprovadas por sentença judicial após a morte do de cujus. Acerca do tema, são as palavras do professor Nader (2013, p. 259):
A sucessão por lei ou legítima segue a ordem da vocação hereditária. O Código Civil contém normas cogentes e dispositivas a respeito. Os referentes aos herdeiros necessários são daquela natureza; as que favorecem a outros herdeiros são dispositivas. Os herdeiros necessários não podem ser afastados da sucessão por ato de vontade do autor da herança, ressalvadas as hipóteses de deserdação ou indignidade, que são penas previstas para certas condutas. O princípio da autonomia da vontade é impotente, fora estas hipóteses, para a substituição dos herdeiros necessários. São estes: descendentes, ascendentes, cônjuge. Havendo herdeiros necessários, a parte disponível da herança por testamento se limita à metade do patrimônio. Os herdeiros não necessários – colaterais até o 4º grau – podem ser preteridos mediante testamento. Ou seja, herdam apenas na falta de herdeiros necessários e quando terceiros não forem contemplados com a totalidade do acervo patrimonial.
Aproveita-se o momento oportuno para, brevemente, levantar a observação de Nader (2013, p. 213), no tocante à deserdação do cônjuge:
Há divergência doutrinária quanto à possibilidade de deserdação do cônjuge, tendo em vista as disposições dos arts. 1.961 e 1.962 do Códex. O primeiro prevê a deserdação dos herdeiros necessários. Como o cônjuge é herdeiro necessário, à primeira vista deduz-se a possibilidade de ser deserdado. Entretanto, o segundo autoriza tão somente a deserdação dos descendentes por seus ascendentes, sendo omisso em relação aos cônjuges. Depreende-se, logo, a ocorrência de um lapsus calami do legislador. À vista de tais disposições e considerando que em matéria restritiva de direito não se aplica analogia, Inácio de Carvalho Neto conclui pela impossibilidade de deserdação do cônjuge sobrevivente.
Isso posto, está clarificado que descendente multiparental tem essa qualidade de “descendente” (seja filho, neto, bisneto...) tanto frente à filiação biológica quanto à afetiva, sendo, então, herdeiro necessário em cada uma delas e tendo legalmente garantido seu quinhão (parte da legítima).
4.1 Fundamentos que sustentam a manutenção da legítima: necessidade de refutá-los
Frente a isso expõe-se os novos modelos familiares que estão voltados exclusivamente para o desenvolvimento da personalidade dos membros que a compõe, que busca uma leitura inovadora de alguns institutos que no decorrer dos anos tornaram-se inviáveis.
Tendo como base essa premissa, fica claro que a determinação da legítima como sendo uma norma ou regra que deixa o testador/proprietário limitado de expressar sua vontade sobre a disposição de seus bens. Assim, essa norma que determina parte de sua herança deve ser repensada, reanalisada para fins de uma nova configuração.
Buscando derrubar os paradigmas que até os dias de hoje sustentam a legítima, fomentaria no herdeiro necessário à procura de novos horizontes sem ter que esperar por uma possível herança. Nesse contexto, traz-se o que diz o doutrinador Tartuce (2014. p. 35):
A liberdade de testar desenvolve a iniciativa individual, porque quando o sujeito sabe que não pode contar com a herança, procura desempenhar atividades para lhe dar o devido sustento. De outra forma, haveria um efeito no inconsciente coletivo pela necessidade do trabalho e da labuta diária.
Denota-se que inexiste sentido nesta configuração atual do direito das sucessões acerca da proteção da legítima, pois, diante do seu principal objetivo que é alcançar a proteção e a solidariedade familiar, falha em sua missão, ao tempo que suprime de forma excessiva a autonomia da vontade do testador permitindo ao mesmo dispor apenas sobre metade do seu patrimônio da forma que melhor lhe convier, caso ainda existam herdeiros.
No final das contas, o testamento é a maneira mais sucinta de tornar efetiva a vontade do de cujus. Mas como ele é limitado pela legítima, mesmo quando inexiste necessidade de preservação solidária da família como trata a Constituição, passa a ser um instrumento de enriquecimento para os herdeiros necessários, os quais aguardam ansiosos para a aquisição destes bens para aumentar seu patrimônio particular, mesmo que não tenham concorrido com o de cujus para a sua formação.
Para conciliar-se a necessidade da família, caso precisem de sustento, pode-se adotar os modelos sucessórios internacionais que deferem ao testador a liberdade na hora da disposição de seus bens futuros, que só estarão limitados por uma possível necessidade dos parentes próximos e que podem ser contemplados com prestação de alimentos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com as análises realizadas durante o estudo tornou-se possível compreender que há diversos pontos de vista dentro da temática abordada, que foi a necessidade de preservação da legítima para os herdeiros necessários. É importante que se entenda o histórico da legítima, pois a mesma se iniciou no Direito Romano, onde era ampla a liberdade de testar. Porém, com o passar do tempo, as mudanças foram acontecendo e as sociedades foram se modificando e com isso surgiram as novas composições de famílias e como consequência disso, a necessária uma nova adaptação da funcionalidade e manutenção da propriedade.
Perante esse contexto histórico, a autonomia de testar passou a ter um caráter restrito na maioria dos países, ou seja, o proprietário de determinados bens tem a sua vontade regulamentada pelo Estado. Assim, o proprietário passará a seguir a norma de deixar parte de seus bens para herdeiros necessários.
Ante as atualizações legislativas feitas nos países que possuem sistemas de proteção da legítima, entende-se que estas restrições estão sendo alteradas de forma gradativa e a liberdade de testar é aumentada através, por exemplo, do aumento da parte livre para disposição, da ampliação da possibilidade de pagamento parcelado, de uma especial preocupação por manter a continuidade da empresa familiar e da permissão da negociação da herança através de pacto sucessório.
Nesse contexto, este artigo defende a necessidade de repensar o Direito Sucessório brasileiro, posto que, o mesmo põe limites à liberdade do proprietário de testar seus bens. Partindo-se deste entendimento, propõe-se que a legítima brasileira, deixe de existir, conferindo ao testador, com fulcro na autonomia privada, da possibilidade de dispor livremente de todo o seu patrimônio.
REFERÊNCIAS
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Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Uninovafapi
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, John Marquez Fontinele. Liberdade na autonomia da vontade privada sobre o direito de disposição da herança e exclusão da obrigatoriedade dos herdeiros necessários Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jul 2020, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54886/liberdade-na-autonomia-da-vontade-privada-sobre-o-direito-de-disposio-da-herana-e-excluso-da-obrigatoriedade-dos-herdeiros-necessrios. Acesso em: 23 dez 2024.
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