VANESSA PEREIRA DE OLIVEIRA
(coautora)
Artigo apresentado à banca examinadora do Centro Universitário UNINOVAFAPI- como requisito parcial para obtenção do título de Bacharelado em Direito. Orientadora: Professora Mestre Viviane Maria Rios Magalhães.
RESUMO: O presente artigo versa sobre o tema depoimento especial e se propõe a analisar o item III da lei 13.431/2017 DA ESCUTA ESPECIALIZADA E DO DEPOIMENTO ESPECIAL como meio de garantia e proteção da criança e do adolescente vítimas de violência sexual. Tendo como característica principal a apuração e objetivo em utilizar-se de meios garantidores de direito ás vítimas da violência e a busca de meios probatórios para que se chegue à punição do agressor. À visto disso, será exposta a metodologia utilizando-se o método dedutivo, que será realizado a partir de revisões bibliográficas para explanação do tema, tratando sobretudo das formas de abuso sexual de crianças e adolescentes, os meios de provas existentes na legislação penal e o procedimento utilizado para endossar os meios investigativos para esclarecimentos dos fatos. Dessa forma, a análise desse artigo se mostra relevante ao meio jurídico, uma vez que busca averiguar a aplicação da lei 13.431/2017 no âmbito do judiciário de forma a contribuir amplamente ao ordenamento jurídico penal, possuindo como premissa relevante a proteção e apoio à criança e adolescente e os meios de provas a serem utilizados para comprovação do crime.
Palavras-chaves: Depoimento. Escuta. Vulnerável. Provas. Lei.
ABSTRACT: This article deals with the subject of special testimony and proposes to analyze item III of the law 13.431 / 2017 SPECIALIZED LISTENING AND SPECIAL TESTIMONY, as means of guaranteeing and protecting children and adolescents who are victims of sexual violence. Having as main characteristic is the determination and objective of using the means guaranteeing the right to victims of violence and the search for evidential means for the punishment of the aggressor. In view of this, the methodology will be exposed using the deductive method, which will be carried out from bibliographic reviews to explain the theme, dealing mainly with the forms of sexual abuse of children and adolescents, the existing evidence in criminal law and the procedures used to endorse the investigative ways to clarify the facts. Thus, the analysis of this article is relevant to the legal environment, since it seeks to investigate the application of law 13.431 / 2017 within the judiciary in order to contribute broadly to the criminal legal system, having as a relevant premise the protection and support for children and adolescents and the means of evidence to be used to prove the crime.
Keywords: Testimony. Listening. Vulnerable. Evidences. Law.
1.INTRODUÇÃO
A Constituição Federal em seu artigo 227 estatui ser dever do Estado assegurar ao infante, com absoluta prioridade, direitos como a vida e a dignidade, além de colocá-lo a salvo de toda forma de violência, estando em consonância com o artigo 19 da Convenção sobre Direitos da Criança (promulgada pelo Decreto 99.710/90), cuja intenção é proteger integralmente a criança e o adolescente contra todas as formas de violência.
Como se sabe, a criança e o adolescente merecem proteção integral pelo simples fato de serem pessoas em estágio peculiar de desenvolvimento físico, psíquico e moral (artigos 2º e 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente e artigo 2º da Lei 13.431/2017). Logo a lei n. 13.431/2017, não é só um meio de garantia à instrução probatória do processo penal, mas também uma lei que busca garantir respeito aos diretos da criança e do adolescente, vítimas de violência.
Sendo assim, a legislação possui uma base única de proteção e amparo ao infante, vítima de um crime que, em muitos casos, não deixam vestígios físicos e sim, marcas psicológicas que devem ser tratadas de forma adequada. Levando então a um julgamento correto e humano por parte do magistrado
O presente artigo tem como objeto de estudo o depoimento especial e a escuta especializada de crianças e adolescentes nos termos da Lei n. 13.431/2017. A partir dessas considerações, elaborou-se o seguinte questionamento: qual o valor do testemunho da criança e do adolescente vítima de violência sexual nas esferas judiciais?
Considerando o objeto de estudo, a pesquisa tem como objetivo geral analisar a lei nº 13.431/2017, em seu título III, o depoimento especial e a escuta especializada no âmbito judiciário. E os objetivos específicos: descrever os crimes de violência contra o infante; verificar os meios probatórios para que seja realizado o convencimento do juiz no processo penal; caracterizar o contexto histórico para a criação da lei nº 13.431/2017; discutir a proposta do depoimento especial e escuta especializada; descrever os procedimentos a serem seguidos para a oitiva do menor; e discutir a relevância no sistema jurídico brasileiro.
O interesse pela temática surgiu a partir da vivência em estágio no Fórum cível e Criminal de Teresina, 6º vara criminal, que exigiam amplamente a utilização do depoimento especial e da escuta especializada de crianças e adolescentes, uma vez que a vara é privativa para o julgamento dos crimes de estupro de vulnerável. Logo, a vivência despertou o conhecimento acerca dos procedimentos utilizados para oitiva do menor vítima de abuso sexual.
Considera-se essa pesquisa relevante para o meio jurídico, pois almeja analisar a metodologia de inquirição formatada pela lei nº 13.431/2017, destacando o respeito ao direito da criança e do adolescente, bem como a todo contexto que estão inseridos os institutos jurídicos e seus profissionais, considerando a criança e adolescente como sujeito de direitos e não mero meio de prova a ser usado na instrução penal.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica sobre a temática discutida, os dados serão extraídos em documentos, nas leis específicas, artigos científicos e livros sobre o tema. Os resultados serão apresentados em três capítulos a saber: crimes contra a dignidade sexual, os meios de provas no processo penal e na constituição federal e o que propõe a lei nº 13.431, de 2017, sobre o depoimento especial e escuta especializada.
2.CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL
Este item abordará aspectos acerca do abuso sexual na infância, fazendo a explanação dos crimes tipificados em nosso código penal, e chegando ao conceito e à revitimização, quando da inquirição da criança e do adolescente vítima dessa violência.
2.1. As formas de abuso sexual na infância
O estatuto da criança e do adolescente (ECA) trata no seu artigo 5° sobre os tipos de violência que podem ser infligidos a elas.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Esse ano o ECA completa 30 anos de existência, buscando tutelar os direitos inerentes à criança e ao adolescente, assegurando de todas as formas para que elas não sofram nenhum tipo de violência, entretanto, sabemos que há ocorrências e situações de violação grave a esses direitos.
Flaviana Mello (2017) informa que o ponto inicial para a ocorrência da violência está em não se considerar o infante enquanto sujeito em desenvolvimento, possuidor de direitos e reconhecido como um cidadão, levando a um processo de coisificação da criança, tratando-o como mero objeto. Nesta relação, há um processo de submissão e poder que o indivíduo mais velho exerce sobre a criança ou adolescente. Deixando como consequências, agravamentos físicos, emocional, psicológico ao desenvolvimento infanto juvenil.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a violência contra crianças e adolescentes abrange os maus-tratos físicos e emocionais que impõem um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis. Essas violências estão divididas em: violência auto infligida em que a criança ou o adolescente se automutila e violência interpessoal aquela praticada por um indivíduo ou grupo de indivíduos, essa última se subdividi em: violência intrafamiliar, pois em sua maioria ocorre no próprio ambiente de casa e é praticada por um membro da família ou até mesmo por pessoas que passam a exercer função parental, ainda que sem laços de consanguinidade e em violência extrafamiliar, aquele em que a violência ocorre fora do lar, por adultos sem laços parentais com a vítima (PEREIRA, 2002).
Lygia Pereira (2002, pág. 34) explica que:
A violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes é um fenômeno disseminado, mantido com a complacência da sociedade, que estabelece com as famílias um acordo tácito, o que dificulta o acesso ao que realmente acontece com relação ao problema. Os dados estatísticos, que se têm hoje registrados, representam uma pequena parte da incidência do fenômeno, devido principalmente a essa banalização da violência, que dificulta a denúncia.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), divulgou em uma coletiva online no dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, 18 de maio, o balanço de violência sexual contra o menor referente ao ano de 2019 (BRASIL, 2020).
O ouvidor Nacional dos Direitos Humanos, Fernando Ferreira, apresentou os dados durante a coletiva online. Segundo ele, dos 159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos (disque 100) ao longo de 2019, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes. Segundo ele a violência sexual figura em 11% das denúncias que se referem a este grupo específico, o que corresponde a 17 mil ocorrências (BRASIL, 2020).
No levantamento da Organização Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), conforme apresentado pelo Ouvidor, dos casos de abuso sexual, 73% ocorre na casa da própria vítima ou do suspeito, e é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias (BRASIL, 2020).
Dessa forma, ao se tratar de casos que envolvam abuso sexual de crianças e adolescentes, deve-se atentar a todo contexto social e familiar no qual a criança está inserida, pois nem sempre os atos aparecem de forma clara nos relatos das vítimas.
Na maioria dos casos, os sinais aparecem de forma indireta que fazem acreditar que algo de ruim está acontecendo com aquela criança, desde o comportamento arredio, a solidão, o choro fácil, mudanças de humor, distúrbio alimentares, aprendizado e sono, a culpabilização, automutilação e tentativa de suicídio, ela se torna mais introvertida e possui um conhecimento impróprio para sua idade, além do mais, há indicadores físicos não muito perceptivos, mas podem acontecer, como por exemplo: lesões ou infecções na genitália, gravidez, dificuldade pra caminhar, são alguns dos indicadores e que muito provavelmente estão relacionados ao abuso sexual (BRASIL, 2010).
Em consequências dos atos, a criança e o adolescente veem a relacionar o abuso sexual de forma interna em seu psicológico, criando um trauma de difícil elucidação em razão das violências acontecerem sem a presença de testemunhas, em sua maioria, sem marcas físicas visíveis.
2.2. Estupro de vulnerável
Uma das inovações em nosso Ordenamento Jurídico foi a lei 12.015/2009 que pôs fim a antiga denominação de Vulnerabilidade, revogando assim o artigo 244 CP e inovando o artigo 217-A do Código Penal que tipifica o crime de estupro de vulnerável (BRASIL, 2009).
Dispõe o Artigo 217- A:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).
Possuindo como estrutura penal do tipo incriminador “ter” que em resumo significa atingir algo sendo verbo nuclear do tipo penal. É necessário destacar que ao alcançar o verbo nuclear do tipo não é necessário atingir a conjunção carnal, pois logo depois é explanado (ter conjunção ou praticar outro lado libidinoso), assim, é claro que o importante a ser demonstrado no artigo são todos os tipos de violência que venham a obter a satisfação de lascívia do acusado sem que esse precise tocar na criança ou adolescente (NUCCI, 2018).
Sob o olhar diante do crime, a vulnerabilidade possui ligação com a ideia de pessoa que não detém aptidão psicológica para entender o sentido lascivo do crime em si e muito menos liberdade para atuar livremente na sua dignidade sexual, consentindo ou não no crime.
Nesse sentido, preceitua Nucci (2018) “ A Lei 13.718/2018 introduziu o § 5.º no art. 217-A (“As penas previstas no caput e nos §§ 1.º, 3.º e 4.º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”) ratifica o entendimento de que a vulnerabilidade é, sempre, absoluta.
O sujeito ativo do crime de estupro de vulnerável é qualquer pessoa que tenha capacidade de raciocínio de um homem médio, homem ou mulher, admitindo também a participação no crime, já o sujeito passivo é a pessoa vulnerável, o menor de 14 (quatorze) anos.
Cabe ressaltar que o Estupro de Vulnerável é crime hediondo, previsto na lei de crimes hediondos e com os acessórios que decorrem dessa lei, como por exemplo, inafiançável e insuscetível de graça, anistia e indulto, devendo o cumprimento da pena se dar inicialmente em regime fechado (NUCCI, 2018).
2.3. Vitimização primária e secundária da criança e do adolescente
O procedimento de análise do abuso sexual infantil possui duas vertentes: a vitimização primária, aquela que acontece quando a criança tem sua vulnerabilidade corrompida pelo agressor e a vitimização secundária, que ocorre no âmbito da própria justiça ao utilizar toda persecução penal em busca de instruir o processo judicial também conhecida como revitimização.
Com efeito, advoga-se que após a vitimização denominada de primária, isto é, a prática do crime e as respectivas consequências diretas na vítima, esta experimenta uma nova e segunda vitimização aquando do seu contato com as instâncias formais e informais de controle, assunto que se projeta no “decurso do processo penal e nas relações que a vítima mantém com os operadores judiciários” (Cfr. SOUTO DE MOURA, José Adriano, op. cit., p. 14.).
Logo, é possível constatar que o principal aspecto que deve ser observado ao se tratar de crimes dessa natureza são as questões referentes ao preparo técnico utilizadas por todos os Órgãos que compõe a Justiça.
Vilela (2008) explica que, essa revitimização pode acarretar prejuízo para a justiça, pois a vítima, por cansaço, pode omitir fatos ou, por considerar que está chamando a atenção, pode aumentar os acontecimentos.
Dessa maneira, resulta a importância de todo aparato judicial ser adequado de forma que a vítima não venha a reviver esse momento novamente, buscando tornar o diferencial em uma assistência adequada em torno de toda situação vivida. Em outras palavras, o que se busca demonstrar é a maneira como os órgãos devem atuar frente à vítima, quais as abordagens válidas para se garantir um processo justo (POTTER, 2007).
Deve-se utilizar técnicas favoráveis a não revitimização do infante que será duplamente atingida se faltar o apoio necessário. Por um lado, terá que reviver todos os momentos sem a devida cautela por parte do profissional e por outro poderá, de certa forma, prejudicar a instrução probatória. É por esse lado que a Justiça deve se preocupar não só com a persecução penal, mas também com a questão psicológica que aflige a vítima, buscando o equilíbrio de forma a favorecer todo um aparato social.
3. OS MEIOS DE PROVAS NO PROCESSO PENAL E NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Inicialmente, cabe entender o significado de prova, o qual seria um substantivo feminino, e significa aquilo que demonstra que uma afirmação ou um fato são verdadeiros; ato que dá uma demonstração cabal (de afeto, fidelidade etc.).
Do termo prova podemos extrair três sentidos: a) ato de provas: é a que diz respeito à fase probatória, o processo pelo qual deve ser verificada a verdade dos fatos ali alegados por uma das partes do processo; b) meio: já nesse sentido, trata-se dos tipos de provas que podem ser produzidos e utilizados para que se chegue a suposta verdade dos fatos; c) resultado da ação de provar: por fim, nesse sentido, é quando chegamos ao juízo de convencimento que foi produzido anteriormente pela à análise dos instrumentos de prova que foram utilizados nesse processo (NUCCI, 2020).
Quando falamos dos meios utilizados, estamos tratando dos meios de prova que são normatizados pela nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV, no qual traz como direito e garantia fundamental:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;(BRASIL, 1988).
Os meios de provas admitidos no curso do processo estão elencados no Código de Processo penal, no título VII, da prova, capítulo I e seguintes. Sendo eles: do exame de corpo de delito, do interrogatório do acusado, da confissão, do ofendido, das testemunhas, do reconhecimento de pessoas e coisas, da acareação, dos documentos e da busca e da apreensão (BRASIL, 1941).
Como se observa do parágrafo anterior, são diversos os meios de provas a serem utilizados, mas cada crime possui suas especialidades e não demandam que sejam manejadas todas as provas admitidas pelo direito. Nos casos de acusações de abuso sexual infanto-juvenil, os meios de prova mais empregados são perícias e laudos elaborados por profissionais certificados e o depoimento da vítima, uma vez que o abuso ocorre, geralmente, de forma oculta, sem a presença de testemunhas.
3.1. A oitiva da criança no processo penal
A primeira pergunta a ser respondida é: quem é o ofendido na justiça crimina? Para Lenza (2016), ofendido é a pessoa da vítima, corresponde ao sujeito passivo da relação processual, é o titular que teve seu bem jurídico lesado, ou foi exposto a risco de lesão pela prática criminosa.
Logo, nos crimes sexuais contra vulneráveis, as vítimas são crianças e os adolescentes, e, portanto, representam a figura do ofendido, pois de alguma forma tiveram direitos seus violados e devem ser ouvidos.
O nosso Código de Processo Penal traz um capítulo exclusivo para tratar da oitiva do ofendido. O artigo 201 do código de processo penal deixa claro logo no início que o ofendido será ouvido sempre que possível, logo temos como algo obrigatório, além do mais temos que trazer o princípio da verdade real, que deve ser respeitado pelo magistrado, uma vez que esse deve buscar por todos os meios lícitos a certeza dos fatos e assim proferir sua sentença (NUCCI, 2020).
É importante ressaltar que o ofendido não pode ser comparado à testemunha, se vier a ser indicado na denúncia ou queixa ou, ainda, na resposta escrita, para fins de verificação do número máximo de testemunhas a serem ouvidas, ele não será computado (LENZA 2016). Por tanto, a vítima não presta compromisso de dizer a verdade e tampouco pode ser responsabilizada pelo delito de falso testemunho.
Como já explicado, a vítima é a pessoa que foi diretamente afetada pelo crime, logo, para muitos, é uma pessoa que está coberta de emoções perturbadoras, como o medo de retaliação por parte do acusado, como o sentimento de vingança que pode levar a imputar fatos a uma pessoa inocente.
Quando se trata de uma vítima ainda mais específica que é a criança e o adolescente, essa oitiva se torna um ponto ainda mais incontroverso. Surgem diversas perguntas: os fatos ali relatados por ela são verdadeiros ou mera imaginação? Alguém com forte influência sobre a vítima não seria capaz de fazê-la distorcer os fatos? Quanto tempo aquela criança vai guardar a na memória algo tão horrível? E a principal pergunta: como fazer a inquirição da vítima sem trazer ainda mais traumas e sofrimentos, levando sempre o princípio da primazia do interesse da criança?
É importante ressaltar que nos casos onde se verifica a ausência de provas físicas, os relatos da vítima apresentam-se como o maior meio probatório, ademais, é fundamental que seja oferecida a vítima alguma garantia de que sua denúncia seja esclarecida em juízo (LENZA,2016).
Dessa forma, nos casos em que a criança é submetida a abusos libidinosos sem vestígios físicos diversos da conjunção carnal propriamente dita, a narrativa da vítima, nomeando e identificando o suposto agressor é considerado pela justiça como importante meio de prova.
Nesse sentido, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que foi ratificada pelo Brasil, é responsável pelo estabelecimento de um "catálogo completo dos direitos substanciais, civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, próprios à criança", dispõe em seus art. 12 e 13 que:
Artigo 12
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional.
Artigo 13
1. A criança terá direito à liberdade de expressão. Esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança.
2. O exercício de tal direito poderá estar sujeito a determinadas restrições, que serão unicamente as previstas pela lei e consideradas necessárias:
a) para o respeito dos direitos ou da reputação dos demais, ou
b) para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger a saúde e a moral públicas.
Por fim, mister salientar o depoimento do infante deve ser colhido e valorado com o cuidado necessário para que não se cometa eventuais injustiças tanto com o acusado quanto com a sociedade e com a própria vítima, seja pela punição injusta, pela impunidade ou pela revitimização, não importando se o seu relato é o único meio de prova ou se há outros.
Nesse sentido, é fundamental que se tenha uma boa estrutura, além de sistema e profissional preparados para tal ofício, dada a delicadeza da situação e só assim teremos respostas positivas aos questionamentos já feitos.
3.2. Síndromes e Falsas memórias da criança, influência no valor do seu depoimento.
Diante do que já foi exposto, observa-se que nos abusos sexuais há uma gama de peculiaridades próprias, até mesmo quando se trata da reiteração do abuso. Essa peculiaridade é estudada por psicólogos que as classificam como síndromes que tornam o fato uma ação e reação, por um lado, a ação do abusador em prolongar o abuso e por outro a reação da vítima em manter em silêncio o ato.
Segundo Daltoé (2007), as síndromes são classificadas como: Síndrome do Segredo e Síndrome da Adição. A primeira busca explicar o aspecto psicológico dos traumas, sendo também conhecida pelos profissionais como Síndrome do Silêncio, ela está ligada ao controle que o abusador exerce sobre a vítima, ameaçando ela e todos do seu seio familiar, fazendo a temer pela morte dos parentes mais próximos, caso venha a denunciar as violências sofridas. Tal condição de vulnerabilidade vem ao ocasionar a segunda Síndrome que consiste no comportamento repetitivo do agressor frente à criança. O agressor, na síndrome da adição, ao abusar sexualmente do menor, acredita que o que está cometendo não é algo errado, logo a criança deve obedecê-lo, complementando assim a síndrome do segredo.
Dessa maneira, é perceptível como as síndromes referenciadas acima se interligam de forma clara, de um lado, a vítima busca silenciar o fato por medo e opressão e, por outro, o abusador visa praticar os atos de forma reiterada e sob coação direta à vítima, sendo certo que esses comportamentos acontecem tanto na violência intrafamiliar e extrafamiliar.
As síndromes já citadas podem levar a outro ponto crucial na averiguação do depoimento da vítima que são as falsas memórias. Segundo Sternberg (2000), memória é a capacidade que todo ser humano possui de adquirir informações e evocar conhecimento já adquiridos. O momento que mais nos interessa na instrução penal é o de evocar tudo aquilo que foi adquirido e retido por nós, ou seja, nos interessa o processo de recordação dessa memória que foi armazenada.
Os psicólogos há, muito tempo, estudam sobre falsas memórias, já no início do século XX, os erros de memória foram estudados por Freud (1910) apud Stein (2010), ao revisar sua teoria da repressão. Segundo essa teoria, as memórias de eventos traumáticos da infância seriam esquecidas (isto é, reprimidas), podendo emergir em algum momento da vida adulta, através de sonhos ou sintomas psicopatológicos. No entanto, Freud abandona a ideia de que as memórias para eventos traumáticos seriam necessariamente verdadeiras.
Stein (2010) divide as falsas memórias em: falsas memórias espontâneas e falsas memórias sugeridas. Sendo a primeira de origem interna, ou seja, são informações inverídicas que surgem naturalmente em nossa memória. Já a segunda tem origem externa, são informações que derivam de algo induzido por um terceiro e prejudica a recuperação correta daquela memória.
O problema das falsas memórias é ainda mais explorado quando falamos das crianças em comparação com depoimentos de adultos. Crianças e adolescentes estão no seu momento de desenvolvimento, logo são tidos como pessoas que estão mais suscetíveis a influências que levem a distorcer e criar falsas memórias.
Logo, todo o conjunto probatório que seja afetado pelas síndromes e falsa memória é colocado em dúvida. Sendo então essencial, portanto, o trabalho de profissionais especializados que consigam interagir com a criança ou o adolescente de forma que, da maneira mais tranquila possível, possa ser feito uma única avaliação de seu comportamento em conjunto com seu depoimento, visando estabelecer se há contradições, detalhes vagos ou extremamente minuciosos que façam inferir que tais memórias tenham sido sugestionadas, ou inseridas para garantir uma acusação.
3.3. A cautelar para a produção de prova antecipada
Outro ponto que devemos nos preocupar é qual o momento ideal para produção da prova, se tratando do depoimento da vítima infanto-juvenil, qual deve ser o melhor momento para se fazer isso.
No capítulo anterior, foi tratado da importância de não revitimizar a criança, a qual já sofre enormes transtornos e fazê-la revivê-los inúmeras vezes nunca será uma alternativa para o nosso sistema jurídico, a criança é um ser dotado de direitos e isso inclui o da dignidade humana, o que estaria na contra mão da utilização em demasiado da criança com mero objeto para extração de provas.
Temos ainda mais preocupação com o tempo, quando pensamos que esse trabalho pode ser afetado por falsas memórias já explicadas no tópico anterior. Por tanto, é imprescindível que seja permitido no nosso processo penal a produção antecipada dessa prova.
A possibilidade de o juiz ordenar a produção antecipada de provas foi introduzida no nosso ordenamento com a lei 11.690/2008, mesmo antes do início da ação penal o magistrado considerando que a prova a ser produzida tem um caráter urgente e relevante, observa a necessidade, adequação e a proporcionalidade da medida conforme artigo 156, inciso I do Código de Processo Penal (NUCCI, 2020).
Já em se tratando do depoimento de crianças, a lei 13.431/2017, prevê em seu artigo 11 §1º, a produção de prova antecipada sempre que envolver criança menor de sete anos de idade e nos casos dos crimes de violência sexual não existe idade mínima da criança ou do adolescente (BRASIL, 2017).
Art. 11. O depoimento especial reger-se-á por protocolos e, sempre que possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.
§ 1º O depoimento especial seguirá o rito cautelar de antecipação de prova:
I - Quando a criança ou o adolescente tiver menos de 7 (sete) anos;
II - Em caso de violência sexual.
§ 2º Não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal.
O parágrafo segundo traz um ponto ainda mais importante, enfatizando que não deve ser admitido a tomada de novo depoimento, isso serve pra proteger a criança, uma vez que, aquelas lembranças são extremamente dolorosas. É de extrema importância que a escuta do menor seja realizada com os procedimentos adequados e de forma célere, para que possa abreviar o tempo entre o ato abusivo e o início da instrução penal, evitando não só os casos de falsas memórias, como também a vitimização secundária.
Por fim, cabe destacar que é de suma importância que essa produção de prova antecipada independente do crime ao qual esteja sob julgamento, implica a observância do contraditório, ainda que seja em fase inquisitiva.
4.A LEI Nº 13.431, DE 2017 E AS INOVAÇÕES A OITIVA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
No quarto item será apresentado um breve contexto do tema até a vigência da Lei nº 13.341/2017, abordando sucintamente o pioneiro projeto “depoimento sem dano”, mostrando o papel fundamental do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) como percursor da técnica, logo após será explicada a proposta do depoimento especial e da escuta especializada trazidos pela lei, bem como é o procedimento realizado para que seja feita a coleta do depoimento de forma correta e, por fim, qual a relevância no nosso sistema jurídico.
4.1. Contexto histórico e depoimento sem dano
Entrou em vigor em abril de 2018 a lei 13.431, sancionada em 4 de abril de 2017 que visa um novo sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, vítima ou testemunha de violência. Premente é a necessidade em normatizar e em organizar um sistema de garantia de direitos com a criação de mecanismos que proíbam e coíbam a violência. Isto, sobretudo, em um país como o nosso em que a violência é banalizada, fazendo de todos testemunhas/vítimas, nos níveis da organização familiar, social e institucional (CAMARÂ, 2017).
A preservação dos direitos da criança e do adolescente não é fato novo, pois já regrado em diversos países e acordos internacionais, como veremos através do histórico normativo a seguir apresentado.
O Depoimento Especial foi institucionalizado no Brasil no início da década de 2000, e em sua origem era denominado de Depoimento sem dano. Pode-se dizer que a experiência brasileira é curta, principalmente se compararmos com outros países como o Canadá, Inglaterra e os Estados Unidos, que implantaram a técnica na década de 1980.
O pioneiro no Brasil a utilizar a técnica foi o Desembargador do tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Antônio Daltoé Cezar, no Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, no ano de 2003, foi implantado o então denominado Depoimento sem Dano. O Desembargador e percursor do projeto do DSD discorre que, diante de sua vida na área jurídica, deparou-se com várias situações que o levaram a pesquisar sobre técnicas e procedimentos que eram aplicados em outros países para que pudessem servir como referenciais para o Poder Judiciário brasileiro (DALTOÉ, 2007).
Segundo Daltoé (2007), ao conduzir a audiência judicial realizada na forma tradicional e ouvir o relato impactante de uma criança abusada sexualmente por um adolescente, decidiu que algo deveria ser feito para mudar esse método, uma vez que não havia uma legislação que versasse sobre procedimentos específicos para nortear a condução do depoimento. Surgiu, então, a ideia de utilizar câmeras de segurança, que começaram a ser instaladas nas salas de audiências, onde se realizava a tomada do depoimento.
O magistrado estava buscando de alguma forma não trazer uma experiência ainda mais dolorosa àquela criança. Foi então que elaborou uma forma de evitar a repetição de perguntas desnecessárias e que só trariam uma revitimização daquele menor, e além disso, transformando o ambiente de inquirição da criança e do adolescente vítima de violência de forma que fosse acolhedor, fazendo a utilização de uma sala alternativa para as audiências com equipamentos de filmagem para as gravações (DALTOÉ, 2007).
Em cinco anos do projeto (2003-2008), foram realizadas na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, mais de mil e duzentas inquirições por meio do Depoimento sem dano, Sendo que outras centenas foram realizadas nas outras treze comarcas do Rio Grande do Sul que trabalhavam com o projeto.
Um grande passo para a normatização do depoimento sem dano ocorreu em 2010, quando o CNJ editou a recomendação de número 33 que indicou a adoção do depoimento especial por todos os tribunais do país. A recomendação sugere a criação e adoção de serviços específicos para a oitiva de crianças e adolescentes que foram testemunhas ou vítimas de violência.
O documento é embasado nos princípios da Constituição Federal, da Convenção Internacional e do Estatuto das Crianças e adolescentes e tem como objetivo equilibrar a dificuldade do recolhimento do depoimento das vítimas infanto-juvenis com a necessidade da produção probatória. Tal Recomendação reconhece e aconselha a adoção do depoimento especial pelo ordenamento jurídico brasileiro.
O CNJ desempenhou papel fundamental para a regulamentação do depoimento especial, elaborando importantes recomendações aos Tribunais de Justiça, quais sejam:
I – A implantação de sistema de depoimento vídeo gravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática;
a) os sistemas de vídeo gravação deverão preferencialmente ser assegurados com a instalação de equipamentos eletrônicos, tela de imagem, painel remoto de controle, mesa de gravação em CD e DVD para registro de áudio e imagem, cabeamento, controle manual para zoom, ar-condicionado para manutenção dos equipamentos eletrônicos e apoio técnico qualificado para uso dos equipamentos tecnológicos instalados nas salas de audiência e de depoimento especial;
b) o ambiente deverá ser adequado ao depoimento da criança e do adolescente assegurando-lhes segurança, privacidade, conforto e condições de acolhimento.
II – Os participantes de escuta judicial deverão ser especificamente capacitados para o emprego da técnica do depoimento especial, usando os princípios básicos da entrevista cognitiva.
III – o acolhimento deve contemplar o esclarecimento à criança ou adolescente a respeito do motivo e efeito de sua participação no depoimento especial, com ênfase à sua condição de sujeito em desenvolvimento e do consequente direito de proteção, preferencialmente com o emprego de cartilha previamente preparada para esta finalidade.
IV – Os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar aptos a promover o apoio, orientação e encaminhamento de assistência à saúde física e emocional da vítima ou testemunha e seus familiares, quando necessários, durante e após o procedimento judicial.
V – Devem ser tomadas medidas de controle de tramitação processual que promovam a garantia do princípio da atualidade, garantindo a diminuição do tempo entre o conhecimento do fato investigado e a audiência de depoimento especial.
Um pouco antes da resolução do CNJ tivemos o projeto de lei complementar de n° 35, do ano de 2007 que ensejou a lei de número 13.431 de 2017, foi uma proposta da Deputada Maria do Rosário. O Projeto de Lei foi articulado pela Childhood Brasil junto com a Frente Parlamentar Mista de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente, UNICEF Brasil e Associação Brasileira de Psicologia Jurídica e foi apresentado pela deputada Maria do Rosário e contou com a relatoria na Câmara dos Deputados da deputada Laura Carneiro e no Senado das senadoras Marta Suplicy e Lídice da Mata.
Por fim, no ano de 2017 foi promulgada a Lei 13.431, tal dispositivo legal, causou algumas mudanças no ECA, estabelecendo um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, bem como que efetivando os procedimentos da escuta especializada e do depoimento especial.
4.2. A proposta de depoimento especial e a Escuta especializada
A Lei 13.431/2017 veio com o intuito de ajudar na proteção à criança e ao adolescente vítima ou testemunha de violência auxiliando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Essa norma visa assegurar a proteção aos direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente, no que tange a presença de direitos específicos à condição de vítima e testemunha. O legislador buscou preservar a criança e o adolescente em situação de violência, determinando que em tais casos, eles serão ouvidos por meio da escuta especializada e do depoimento especial (BUENO, 2017).
O título III, da lei 13.431/2017 é responsável por informar o que é a escuta especializada e depoimento especial. O artigo 7º conceitua escuta especializada como “o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão de rede de proteção, limitado o relato estritamente necessário para o cumprimento de sua finalidade” (BRASIL,2017).
Em outras palavras, seriam os primeiros relatos da vítima, é a entrevista que os órgãos relacionados à rede de proteção realizam com a criança ou adolescente com o objetivo de constatar indícios de violência e com isso aplicar uma medida de proteção. Por exemplo, a oitiva que o Conselho Tutelar, o CRAS, CREAS, se constatarem que houve alguma violação e a criança está ali submetida a uma situação de violação, é feita essa escuta especializada e com base nisso, já tem elementos para aplicar ou solicitar ao Ministério Público as medidas cabíveis.
Já o depoimento especial encontra-se conceituado pelo artigo 8° como “Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária” (BRASIL,2017). Por tanto, podemos dizer que o depoimento especial diferente da escuta especializada é uma oitiva mais estruturada e que deve ser realizada perante o delegado de polícia ou pela autoridade judicial (juiz) como destaca a Lei.
Por mais que tenham momentos diferentes, tanto a escuta especializada por quanto o depoimento especial possuem um único objetivo no qual consiste em garantir o direito de escuta da criança e do adolescente, de forma a evitar ou diminuir o sofrimento dessas vítimas vulneráveis, ao relembrarem da violência vivida e ao mesmo tempo contribuir para a produção de provas, sendo então necessário a utilização de técnicas específicas realizadas por profissionais capacitados.
4.3. Os procedimentos especiais.
O depoimento especial seguirá um rito próprio em que diz respeito à oitiva de criança e adolescente vítima de abuso sexual, tal forma visa proteger a vítima de eventuais riscos que venham a ocorrer no curso do processo. Essa tomada de depoimento será realizada uma única vez, salvo exceção, e em forma de produção antecipada de prova, conforme exposto no item II deste artigo e explicitado na lei N° 13.431/2017, vejamos (BRASIL, 2017):
Art. 11. O depoimento especial reger-se-á por protocolos e, sempre que possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.
Diante disso, o procedimento a ser analisado inicia-se com a tomada do depoimento da vítima, esta será inquirida por um profissional especializado, normalmente um profissional de psicologia ou assistente social, em que esclarecerá à criança de seus direitos e sua participação na oitiva, sendo vedado a leitura de cópia da denúncia ou de qualquer peça processual. A dinâmica visa oferecer a criança uma maior proteção e confiabilidade no profissional e em todo aparato judicial.
Em seguida, a criança fica em um ambiente especial em uma sala simples e acolhedora em que fica apenas a psicóloga ou a assistente social que faz o acolhimento inicial e, como iniciação da tomada, explica à vítima que ela está sendo filmada e assistida pelas pessoas na sala de audiência, certificando-a por qual motivo ela se encontra no local.
Ao iniciar a escuta, o técnico de acordo com Daltoé (2007, p. 72-73) deve: (a) transmitir a ideia à criança de que a responsabilidade pelo fato é do adulto e que ela não deve se sentir culpada pelo ocorrido; (b) estar atento acerca de qualquer desconforto demonstrado pela criança no momento da inquirição, não rejeitando as emoções e o choro do infante ao narrar os fatos; (c) pesquisar acerca do perfil do acusado e o funcionamento da família que a vítima está inserida; (d) observar o intervalo de tempo decorrido entre o provável evento abusivo e o momento do depoimento, considerando questões de memória; (e) conhecer políticas públicas de atendimento à criança, bem como os possíveis encaminhamentos a serem prestados.
Os atos preceituados acima, demonstram que o profissional deve saber lidar com a criança e adolescente de forma a não revitimizar o menor, buscando apoio em seu profissionalismo em busca do adequado grau de prestação probatória.
Além do mais, o inciso III do artigo 12. Lei 13.431/2017 estabelece que a oitiva deve ser transmitida em sistema audiovisual em tempo real para a sala de audiência, preservando o sigilo da vítima. Tal medida busca veemente preservar a intimidade e privacidade da vítima, pois se trata de ato que põe em vista a dignidade sexual (BRASIL, 2017).
Cabe analisar ainda algumas considerações acerca da audiência: a assistente ou psicóloga que primeiro ouve o relato em sede de depoimento especial e depois repassa à criança ao adolescente as perguntas dos intermediários jurídicos (juiz, promotor, defensor/advogado) que ficam em outro ambiente, na sala de audiência, com acesso à imagem e som da sala especial, através da TV, em tempo real.
Todo o depoimento é gravado, pois visa que a vítima tenha contato com o acusado. A interação se dá através do ponto eletrônico (escuta) portanto, as perguntas não são feitas de forma direta à criança/adolescente, com propósito de protegê-la de questionamentos inadequados, constrangedores ou sugestionáveis que impliquem na criação ou ampliação de novos danos (POTTER, 2016).
Por fim, após a escutado depoimento especial, é realizado o acolhimento final, o qual tem a finalidade da averiguação do profissional junto à vítima e seus familiares sobre os sentimentos experimentados durante o depoimento, com a finalidade de diminuir os danos causados, podendo, ainda, o técnico realizar intervenções para que, caso necessário, seja realizado um acompanhamento psicológico ao infante e sua família (POTTER, 2016).
Dessa forma, ao analisar a colheita do depoimento especial de criança e adolescente vítima de abuso sexual diante do prisma da lei 13.431/2017, fica evidente como a lei buscou facilitar toda uma instrução probatória em busca de uma justa fase judicial e a proteção integral à vítima do ato.
4.4- Relevância no sistema jurídico brasileiro
Em face ao exposto acima, é notório a importância do Depoimento Especial na colheita da oitiva da criança e adolescente vítima de abuso sexual, pois se trata de proteção e acolhimento infanto-juvenil em busca de um procedimento judicial válido a garantir a não impunidade do abusador.
Trata-se de uma possibilidade real de atenuar o sofrimento dos milhões de crianças e adolescentes que, depois de serem agredidos, violados em suas residências, muitas vezes por pais, padrastos, tios etc., ainda submetem-se a constrangedores procedimentos processuais que, inadvertidamente, terminam por reproduzir violações de direitos, algumas vezes, mais graves do que os ilícitos penais, visto que que atingem mais de uma vez a saúde psicológica da vítima (FURNISS, 1993).
Dessa forma, o que se busca auferir é um procedimento justo à vítima, utilizando-se de determinadas ações conforme visto no subtópico 4.3 que auxiliam os profissionais de justiça a não revitimizar a criança e o adolescente, lhes fazendo reviver o momento do abuso e seus traumas decorrentes.
Além disso, é relevante afirmar que o crime de estupro de vulnerável, na maioria das vezes, a única prova que se considera possível de ser obtida é a prova testemunhal, logo revela-se válido que se utilize do depoimento especial em busca de valorar o testemunho da criança e adolescente, conforme visto na Apelação da Comarca do TJ/RJ:
“Certo é que, na apuração desse tipo de crime hediondo, em regra, cometido às escondidas, na clandestinidade, o depoimento da ofendida tem grande validade e é de grande relevância e, na maioria dos casos, é a única prova existente. São crimes que exigem o isolamento, o afastamento do agressor, de sorte que negar crédito à ofendida quando aponta quem a atacou é desarmar totalmente o braço repressor da sociedade (Apelação nº 200705005438, p. 6, TJRJ)”
Tendo em vista o tópico acima referenciado é necessário captar que independente de ser feita a inquirição da criança e adolescente pelo método tradicional ou depoimento especial, este principalmente, o objetivo principal é obter uma prova testemunhal para endossar outros meios investigativos, procurando esclarecer assim evidências científicas que comprovem a ocorrência do suposto crime de abuso sexual, utilizando-se sempre de uma abordagem com protocolos existentes na lei 13.431/2017 conjuntamente com profissionais qualificados para não incorrerem a indução de falsas memórias na vítima.
Ante o exposto, em relação aos meios de prova e com base na lei 13.431/2017, se torna necessário esclarecer que o que se busca na tomada do depoimento especial, não é descobrir se o que foi declarado pela vítima é verdade ou mentira, mas o principal aspecto é acolher esse grupo com cuidados emocionais e o entrevistador (assistente social ou psicólogo) ser um facilitador para as mesmas se sentirem a vontade para expressar o que aconteceu e de que forma se gerou o processo criminal. Logo, busca-se somar a qualidade da entrevista em busca de uma comprovação de um suposto delito e de um violador de esperança e inocência das vítimas.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista as explanações acima, é necessário captar que, ao longo dos anos, mesmo após a instituição de mecanismos os quais visam à proteção à criança e adolescente, como exemplo o ECA , se tornou relevante propor a criação de uma lei que buscasse veemente a proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual quando essas tivessem que depor em juízo. Sendo assim, foi instituída a lei 13.431/2017 que trata do depoimento especial e da escuta especializada, especialmente em seu título III, onde normatiza os procedimentos utilizados na tomada de depoimento infanto-juvenil.
Observa-se que em todo desenvolvimento se elaborou a seguinte questão: qual o valor do depoimento da criança e do adolescente vítima de violência sexual nas esferas judiciais? Logo quando demonstrado ser a palavra da vítima único meio de prova, a lei 13.341/2017 vem trazer métodos de garantir que o depoimento seja colhido de forma correta, sem contaminar o processo. Além disso, todo o procedimento utilizado para obter um depoimento seguro também tem um caráter protetivo em busca de não revitimizar o infante, ou seja, não causar mais danos a vítima. A lei 13.431/2017 utiliza-se de meios ágeis, como a prova antecipada, para que a oitiva da vítima seja apenas uma e o mais rápido que possível, ao contrário de outros crimes da legislação penal que se utilizam de várias tomadas de depoimento.
O objetivo da presente pesquisa se tornou válido para que os órgãos da justiça criminal reconheçam a importância da tomada dos depoimento especial na oitiva da criança e adolescente de forma a contribuir aos Juízes, auxiliares da justiça, promotores, defensores e advogados a verdade real do fatos, protegendo principalmente a vítima, punindo culpados e absolvendo inocentes.
De fato, atualmente, mesmo depois de três anos da promulgação da lei, não há como se provar que as comarcas da justiça criminal dos Estados e Municípios estejam utilizando da tomada do depoimento especial. Ao longo de todo trabalho de pesquisa, não encontrou-se dados quanto ao número de depoimentos colhidos utilizando-se dos procedimentos especiais. É importante, mais uma, vez salientar que a lei veio pra minimizar e atenuar as consequências psicológicas para a vítima de um errôneo aparato judicial e portanto, novos estudos devem ser realizados para demonstrar a eficácia da lei 13.431/2017 e, além disso, buscar viabilizar a utilização por todo o sistema judicial dos métodos de depoimento especial e escuta especializada.
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Por: Nathalia Sousa França
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