RESUMO: Este estudo tem por objeto averiguar se há uma crise de legitimidade do poder de punir do Estado, a partir da realidade carcerária brasileira, em que a hipótese visualizada é a confirmação da ilegitimidade. Para problematização da temática, utiliza do método dedutivo, por meio de revisão bibliográfica. Em primeiro momento, faz-se uma incursão ao discurso legitimador do Direito Penal moderno, em que são pontuados os aspectos da pretensa disposição de garantias aos cidadãos e das finalidades preventiva e ressocializadora da pena. Em seguida, a pesquisa caminha no sentido de investigar a preponderância dos caracteres retribucionista e segregador da prisão, ante o fato do sistema punitivo converte-se em estimulador de prática de delitos. Mais adiante, o trabalho apresenta a realidade de violações a direitos fundamentais nas casas prisionais, em afronta ao modelo de Estado de Direito. Ao final, confrontando a realidade das casas prisionais com o discurso que legitima o Direito Penal, a pesquisa conclui pela existência de profunda crise de legitimidade do poder punitivo do Estado.
Palavras-chave: Poder Punitivo do Estado; Pena de Prisão; Violação de Direitos Humanos; Crise de Legitimidade.
Sumário: 1. Introdução. 2. O discurso legitimador do direito penal moderno. 3. A preponderância dos aspectos retribucionista e segregador da pena de prisão. 4. A realidade violadora de direitos nas casas prisionais. 5. A crise de legitimidade do poder de punir do Estado. 6. Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
À longa data, a sociedade brasileira vive momento de inquietude acerca da realidade das casas prisionais. Essa preocupação diz respeito às condições, em geral, desumanas do cárcere, mas também gravita na seara da incapacidade de prevenir condutas criminosas e de ressocializar os encarcerados.
A realidade carcerária brasileira (a exemplo de celas superlotadas e totalmente insalubres) desencadeia extrema violação de direitos dos aprisionados, o que, por lógico, confronta com o modelo de Estado de Direito fundado pela Constituição da República.
Além disso, tem-se observado que a pena de prisão não tem alcançado as promessas trazidas pelo Direito Penal moderno, a saber: prestar segurança aos cidadãos, incluindo a proteção aos direitos individuais frente às arbitrariedades estatais, bem assim prevenir condutas criminosas e reintegrar os infratores à sociedade.
Diante desse cenário, buscar-se-á, por meio do presente estudo, avaliar se está ocorrendo uma crise de legitimidade do poder de punir do Estado.
Para desenvolvimento da pesquisa, inicialmente, abordar-se-á o discurso legitimador do Direito Penal moderno, fundado na ideia de segurança jurídica aos cidadãos e de garantia de direitos, sem esquecer-se das finalidades da pena.
Adentrar-se-á na avaliação das tendências retribucionista e segregadora da prisão, especialmente, pelo fato de que o Estado continua a se utilizar do Direito Penal, criminalizando condutas e majorando penas, quando perceptível que o encarceramento não tem propiciado a prevenção de crimes e a ressocialização dos delinquentes.
Também no decorrer da explanação a realidade das casas prisionais brasileiras será trazida à tona. As mazelas do sistema penal, notadamente, vinculadas às violações de direitos fundamentais, emergirão como violadoras do modelo de Estado de Direito.
Por fim, far-se-á uma apreciação conjuntiva das violações de direitos dos indivíduos aprisionados com as promessas legitimadoras do Direito Penal moderno, quando, então, ficará demonstrado que efetivamente está-se diante de uma crise de legitimidade do poder de punir do Estado.
2 O DISCURSO LEGITIMIDADOR DO DIREITO PENAL MODERNO
No período medieval, a pena não tinha como função reconstruir a moral do Homem, atuava apenas visando a confirmar a fúria do Soberano e da Igreja em face daqueles que se insurgissem em oposição ao modelo ou se aventurassem a pensar de forma diversa. Estava-se em pleno período de Inquisição. A imposição da violência sobre o corpo persistiria até a Reforma dos Iluministas (BOSCHI, 2004).
O quadro de atrocidades e crueldades é vivenciado por longos séculos na Europa, alcançando o final da Idade Moderna. A execução de Damiens, ocorrida em 02 de março de 1757, na França, é representativa do molde de Direito Penal empregado na época:
Damiens fora condenado, a 02 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde deveria ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras;[em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre o patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo em enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento (FOUCAULT, 1987, p. 9).
Acerca desse modelo, Foucault (1987) refere que os suplícios ocorriam em praça pública, já que eram direcionados a servir de espetáculo de horror à população. Isso porque o Soberano buscava confirmar seu poder, empregando temor na coletividade, a qual, contraditoriamente, acabava aplaudindo na qualidade de expectadora.
Todavia, o quadro de horrores e medo, aos poucos foi causando repulsa na sociedade, encontrando eco no pensamento de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria. No ano de 1764, Beccaria publica a obra “Dos Delitos e das Penas”.
Na mencionada obra, Beccaria externa seu sentimento de aversão:
Quem não estremece de horror ao ver na história tantos tormentos atrozes e inúteis, inventados e empregados friamente por monstros que se davam o nome de sábios? Quem poderia deixar de tremer até o fundo da alma, ao ver os milhares de infelizes que o desespero força a retomar a vida selvagem, para escapar a males insuportáveis causados e tolerados por essas leis injustas, que sempre acorrentaram e ultrajaram a multidão, para favorecer unicamente um pequeno número de homens privilegiados? (BECCARIA, 2003, p. 48).
Beccaria (2003) refere que sanções impostas pelo Estado não podem servir apenas para atemorizar os indivíduos ante o Poder do Soberano. Devem isto sim ter proporcionalidade com o crime cometido e objetivar a recuperação do infrator da norma, nomeando uma função positiva às penas. Acerca da pena de morte, o autor revela a inutilidade para com a prevenção de delitos, ressaltando que privação de liberdade se mostraria mais eficaz como paga do infrator ao mal suportado pela sociedade.
Sob intervenção da obra de Beccaria, ocorreu verdadeira revolução da ciência punitiva, na medida em que seus ensinamentos foram seguidos por inúmeros juristas, dando origem à Escola Clássica e por que não dizer ao Direito Penal moderno. A pena capital foi abolida em grande parcela do continente europeu, e os castigos corporais e infamantes, de forma paulatina, acabaram cedendo espaço à prisão (GOMES NETO, 2000).
Malgrado a análise das diferentes escolas que se seguiram na teorização do Direito Penal não seja foco do presente trabalho, entende-se relevante apontar a Escola Clássica, tendo em vista que trouxe elementos ligados à necessidade de garantias aos cidadãos diante das arbitrariedades estatais, ponto com estreito vínculo com a temática aqui abordada.
Segundo Andrade (1997), a Escola Clássica trouxe a racionalidade para o direito punitivo, buscando proteger os indivíduos da atuação arbitrária do Estado. Baseou-se na legalidade, ocupando-se em descrever abstratamente as figuras dos crimes (fato-crime), para o fim de evitar as incertezas antes comuns no Direito Penal. Tão somente o legislador poderia estabelecer as figuras típicas e as penas respectivas, trazendo segurança jurídica à população.
Ademais, aos objetivos da presente pesquisa, faz-se salutar ainda focar os olhos sobre as teorias legitimadoras da pena. Desde o momento em que o Estado tomou para si o poder punitivo, nasceram teorias para explicar a necessidade da pena, servindo de justificação para o próprio direito/poder de punir do Estado. São três as teorias desenvolvidas: as teorias absolutistas ou retributivas, as teorias relativas ou utilitaristas e as teorias mistas ou ecléticas (BOSCHI, 2004).
Na lição de Cipriani (2005), as teorias retributivas têm sua gênese ligada ao modelo de Estado absolutista, em que a pena era justificada pela necessária aplicação de castigo por conta do delito cometido; o mal da pena como retribuição pelo mal causado pelo crime. Por outro lado, as teorias utilitaristas dão à sanção penal o encargo de prevenir o cometimento de delitos, servindo de meio de proteção dos bens jurídicos tutelados.
Nascem, portanto, as teorias utilitaristas como superação da mera retribuição. O cerne da proposta é a justificação da pena com base na sua capacidade de prevenir delitos. A prevenção alardeada dar-se-ia no âmbito daquele que foi infligido pela pena (prevenção especial), como também pelos demais integrantes da sociedade (prevenção geral) (BITENCOURT, 1993).
Ainda na ótica de Bitencourt (1993), sob a construção da prevenção geral, os cidadãos, confrontando os males trazidos pelo cumprimento da pena e os benefícios da prática do crime, em um juízo racional, optariam em não praticar o delito.
Outro foco é a prevenção especial, pautada na ideia de evitar o cometimento de novos crimes pelo infrator da norma. O cumprimento da pena é idealizado como meio de ressocialização do delinquente. Dois modelos são construídos: o da Escola Sociológica na Alemanha e o da Escola Positiva na Itália (CIPRIANI, 2005).
O primeiro, idealizado por Von List, reconhece que a pena é concebida com a finalidade de ressocializar, reeducando o infrator, para que possa regressar ao convívio social. Já o segundo, arquitetado por Enrico Ferri, é centrado na visão de delinquência ligada a razões biológicas e culturais, e, em virtude disso, estaria o delinquente predeterminado a praticar crimes, o que exigiria seu tratamento por meio da pena para reeducá-lo e reintegrá-lo à sociedade, porém, em caso de impossibilidade de ressocialização, ficaria o condenado no cárcere sem limite, como espécie de medida de segurança (CIPRIANI, 2005).
As teorias ecléticas ajustam partes das teorias retributivas e utilitarista, no entanto, com alguns limites. Cipriani (2005) expõe que a pena é justificada por sua finalidade preventiva, contudo, limitada pela retribuição de acordo com a culpabilidade do delinquente.
Ao que se vislumbra, então, o Direito Penal moderno aflora como ciência que busca dar garantia aos cidadãos de que não serão tolhidos em seus direitos pela ação arbitrária do Estado, ou seja, é intencionado a proporcionar segurança jurídica e proteção aos direitos fundamentais.
Na mesma marcha, o penalismo moderno busca legitimar a pena privativa de liberdade e, por consequência, o poder de punir do Estado através da noticiada capacidade em estabelecer a prevenção de delitos, geral e especial, pautando-se quanto à última na pretensa aptidão de ressocialização.
3 A PREPONDERÂNCIA DOS ASPECTOS RETRIBUCIONISTA E SEGREGADOR DA PENA DE PRISÃO
A pena de privação de liberdade surgiu como avanço no âmbito do Direito Penal, eis que veio em substituição às atrozes penas corporais, ordinariamente, empregadas na Idade Média até a Reforma Iluminista, isto é, ao tempo dos estados absolutistas. Porém, a prisão dos indivíduos infratores da lei passou a sofrer, ao longo do tempo, fortes críticas, mormente pelo fato de não alcançar objetivos para qual foi concebida: a prevenção de delitos e a reintegração do delinquente à sociedade.
As mazelas das casas prisionais não são exclusivas dos países subdesenvolvidos. Os atos ofensivos à dignidade humana apresentam-se por maus tratos, crueldade, ausência de privacidade, inclusive, abusos sexuais, principalmente daqueles recém chegados ao sistema prisional. Também por carências de atendimento de saúde geral e psiquiatria. Isso tudo revela-se como fator criminógeno, ou seja, essa gama de deficiências tem se mostrado como estimulante e propagadora de comportamentos criminosos, assim, sem capacidade de brecar a delinquência (BITENCOURT, 1993).
Gomes (2007, p. 352), da mesma forma, expressa o enorme fracasso da finalidade ressocializadora da pena de prisão:
Não há dúvida de que a prisão, como instrumento de ressocialização, é um retumbante fracasso (não ressocializa, embrutece aqueles que nela ingressam, etc). [...] A prisão, dentre todas as entidades que formam o arquipélago punitivo, é, ademais, a que melhor reproduz a delinqüência: os altos índices de reincidência e o nascimento das facções organizadas dentro dos presídios facilmente atestam isso.
Dessa sorte, a atuação da intervenção do Direito Penal pela figura da prisão apresenta-se como estigmatizante da pessoa do delinquente, e, ao contrário de reduzir a criminalidade e ressocializar o infrator, consoante sua promessa, consolida verdadeiras carreiras criminosas (ANDRADE, 1997).
O sistema punitivo converte-se em estimulador para a prática de crimes, ao revés de prevenir condutas criminosas. A privação de liberdade, em verdade, tem originado a carreiras voltadas ao crime (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002).
Diante dessa inafastável realidade do ambiente prisional, cabe perguntar-se: a pena de prisão tem se prestado como mera retribuição ao delinquente e como meio de segregá-lo do meio social?
A respeito da investigação, Boschi (2004) explana que a sanção penal não pode ser direcionada simplesmente à finalidade de castigar, já que isso acarretaria o indesejável risco do terrorismo da pena. A pena seria desfocada de propósitos éticos e legítimos, que são característicos da função ressocializadora da pena.
Esse viés retribucionista da sanção penal é negado pela Constituição Federal, emergindo dela o temor com a aplicação de penas cruéis, perpétuas e de morte (em tempo de paz). Ocorreu imposição de limites à atuação estatal no exercício do Poder Punitivo, mesmo que fosse gravíssimo o crime cometido pelo agente, eliminando o aspecto retributivo da pena (CANTERJI, 2008).
Entretanto, malgrado esse protecionismo trazido pela Constituição da República de 1988, o caráter retribucionista da pena privativa de liberdade tem se mostrado evidente. Isso porque os encarcerados estão sujeitos à privação de grande rol de direitos, que, teoricamente, continuam a integrar seu patrimônio subjetivo, mas são enterrados pela realidade das casas prisionais.
Os flagelos da privação de liberdade mostram-se como efetiva retribuição pela conduta delitiva. Dá-se ao criminoso o mal do crime com seu próprio mal, elevando a percepção no meio social de justiça feita. O criminoso apaga o delito cometido com seu sofrimento enquanto cumpre a pena no cárcere (BATISTA, 2002).
A pena necessita atender à tutela dos bens jurídicos eleitos pela sociedade como indispensáveis, atendendo ainda ao anseio social de combater a impunidade. Inafastável também sua capacidade de recuperar os condenados para o retorno à convivência social, isto é, a pena é programada a ressocializar (MASSON, 2010).
No entanto, Masson (2010, p. 529) verifica na pena de prisão seu viés principal de retribuição: “Não basta a retribuição pura e simples, pois, nada obstante a finalidade mista acolhida ao sistema penal brasileiro, a crise do sistema prisional transforma a pena em castigo e nada mais”.
Consoante já esposado, o caráter de retribuição da pena não é aceito pelo sistema jurídico. A Constituição da República de 1988 o rechaça. Inobstante isso, as práticas executórias da pena enaltecem esse viés, uma vez que o delinquente é alvo de todo tipo de violência física e moral no ambiente carcerário.
Revela-se ainda importante avaliar outro ponto central da execução da pena, o qual merece olhar crítico da sociedade e, mormente, dos operadores do sistema jurídico. O aprisionamento daquele que comete o ilícito penal estaria ligado à pretensão de livrar-se da “ameaça” do delinquente enquanto perdurar a pena?
Em que pese o Direito Penal moderno esteja alicerçado na premissa de ressocialização dos indivíduos e na preservação dos direitos do delinquente (segurança jurídica), a práxis faz emergir o lado intimidatório e segregacionista da pena de prisão, os quais são ligados à imediatidade e populismo (SUXBERGER, 2006).
A segregação dos que delinquem aparece como modelo de salvação, especialmente, em tempos de crimes de maior repercussão midiática. Os legisladores, empurrados pela notoriedade, acabam criminalizando novas condutas e majorando penas, sem a necessária avaliação se isso é capaz de trazer resultados positivos à sociedade. Assim, a pena de prisão acaba sendo apresentada como a resposta adequada e indispensável, atuando o Direito Penal equivocadamente como prima ratio (SUXBERGER, 2006).
Verifica-se, pois, que a busca de uma solução rápida para o apelo social faz aflorar no Legislador a falsa percepção de que o caminho é o aprisionamento, na medida em que a ameaça do delinquente estaria sob controle. Amolda-se essa visão na ideia de que a segregação do infrator é suficiente para a sensação de segurança.
Sob a mesma ótica, há espaço para a compreensão de que a pena de prisão atualmente vive período de recrudescimento em reflexo à atuação populista do Legislador. Objetivando alcançar ou manter o apoio público, os representantes do povo, despojados muitas vezes de juízo crítico, utilizam-se da penalização para segregar ainda mais.
O caráter segregacionista da prisão tem foco na proteção da sociedade quanto ao cometimento de novos delitos em relação ao indivíduo recolhido ao cárcere. Contudo, reconhecendo como verdade que a prisão é provisória e, ademais, não ressocializa, o mal sofrido pelo encarcerado será à sociedade devolvido quando da soltura. A proteção, logo, tem prazo temporal limitado (CANTERJI, 2008).
As cifras negras também revelam a ilusão de segurança no tocante à segregação:
[...] tendo em vista que apenas uma ínfima parte dos autores de condutas típicas é penalizada, existe, na sociedade, uma falsa idéia de que com o apenamento de pessoas estereotipadas haverá mais segurança. Tal idéia é falsa a partir do momento que a maior parte das pessoas que cometem infrações penais não são sequer investigadas (CANTERJI, 2008, p. 87).
Não parece haver dúvidas de que, na ausência de efetivo cumprimento dos fins propostos da pena de prisão, quais sejam, a prevenção de delitos e a ressocialização do infrator, os caracteres que se sobressaem são mesmo a retribuição e a segregação.
A retribuição coloca-se como intento, ainda que velado, em devolver ao preso o mesmo (ou ainda pior) mal que ele causou à sociedade pela prática da conduta delitiva. A segregação apresenta-se como tentativa de manter o infrator longe da sociedade, recluso pelo tempo da pena, visando a atingir patamar de segurança, embora falso.
Ambos aspectos não são divulgados nem aceitos pelo discurso legitimador do Direito Penal. São mantidos nos “porões das masmorras”. Entretanto, o dia a dia da práxis punitiva os revelam, tornando-os latentes.
4 A REALIDADE VIOLADORA DE DIREITOS NAS CASAS PRISIONAIS
Uma vez avaliadas as características da pena de prisão mais marcantes – a retribuição e a segregação do infrator do meio social -, a investigação caminha no sentido de verificação da realidade das casas prisionais e o quanto isso reflete na violação de direitos fundamentais do encarcerado.
Os indivíduos recolhidos à prisão em razão de condenação penal perdem temporariamente apenas o direito de liberdade. Estão, desse modo, impedidos de locomoção. O status de condenado não retira os demais direitos outorgados pelo contrato social, pois mantêm a condição de cidadãos (CARVALHO, 2003).
Muito embora os direitos fundamentais esculpidos na Constituição da República, os presos são alvo de violações tamanhas que acabam manchando a legitimidade do sistema punitivo.
De extrema relevância para identificação da realidade do sistema é a atividade de Mutirões Carcerários desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ desde o ano de 2008. São levantamentos a respeito da estrutura física, saneamento básico, lotação das casas prisionais, atendimento às demandas de saúde e educação, bem assim quanto ao tratamento empregado aos presos.
Extrai-se dos relatórios disponíveis no site do CNJ na internet que a realidade das casas prisionais é nada animadora. Presídios superlotados, celas fétidas e insalubres são algumas das particularidades encontradas.
A título de exemplo, pode-se relacionar a visita feita em casas prisionais do Estado do Espírito Santo, entre os dias 20 de outubro a 26 de novembro de 2010. No presídio de Novo Horizonte, cidade de Serra, o CNJ concluiu pela ocorrência de superlotação, sujeira e esgoto correndo a céu aberto, como também violações a direitos humanos (BRASIL, 2010).
O modelo prisional brasileiro também foi alvo de análise por Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Nos trabalhos da CPI do Sistema Carcerário desenvolvidos no final da década passada, os integrantes relataram as condições degradantes do Presídio Central de Porto Alegre:
[...] Apelidada de “masmorra”, a parte superior do presídio é o pior lugar visto pela CPI. Em buracos de 1 metro por 1,5 metro, dormindo em camas de cimento, os presos convivem em sujeira, mofo e mal cheiro insuportável. Paredes quebradas e celas sem portas, privadas imundas (a água só é liberada uma vez por dia), sacos e roupas pendurados por todo lado... uma visão dantesca, grotesca, surreal, absurda e desumana. Um descaso! Fios expostos em todas as paredes, grades enferrujadas, esgoto escorrendo pelas paredes, despejado no pátio. Sujeira e podridão fazem parte do cenário. A visão é tenebrosa. Nessa “masmorra do século 21” habitam 300 presos, mas nem um deles estava lá na hora: foram retirados e levados para o pátio antes da entrada dos membros da Comissão e os Deputados não puderam falar com os “moradores” de um dos piores e mais insalubres presídios diligenciados pela CPI (BRASIL, 2009, p. 170).
A situação desumana do Presídio Central de Porto Alegre também é confirmada por Mutirão Carcerário específico na unidade, realizado pelo CNJ no ano de 2014. Além da superlotação, a total precariedade do sistema de escoamento de esgoto extrapola os limites de humanidade:
Nas várias visitas que este juiz fez, verificou-se que os pátios de banho de sol e visita, onde centenas de detentos inclusive recebem seus familiares em dia de visita, são depósitos de esgoto a céu aberto. Fezes dos sanitários usados pelas outras centenas de presos escorrem dos andares superiores pelas paredes, vindo a cair no pátio de visitas. [...] Nas celas de boa parte das galerias precisaram ser adaptadas garrafas de plástico para fazer passar o esgoto das celas superiores, por entre pias e camas. Boa parte do prédio está em ruínas. [...] De toda a situação precária do PCPA, a que mais chamou a atenção, com forte impacto e de difícil aceitação, é a precária condição sanitária do local. Não é admissível que no atual padrão de civilidade o Estado aceite a manutenção de seres humanos em condições desumanas, vivendo entre fezes e esgoto (BRASIL, 2014, pp. 34/35).
Com olhos nas ilegalidades corriqueiras na execução da pena privativa de liberdade, Herkenhoff (1998) concluiu que são comuns as violações aos direitos humanos dos aprisionados e aos princípios constitucionais. A respeito, arrola exemplos:
[...] a) a superlotação de celas das Casas de Detenção, Cadeias e demais estabelecimentos penais; os presos enjaulados em cômodos, colchões ou esteiras espalhadas no chão, um vaso turco coletivo, sujeira e mau cheiro, num absoluto desrespeito à dignidade humana; b) a ociosidade dos presos; c) a mistura, no mesmo presídio e na mesma cela, de condenados e pessoas presas preventivamente, bem como de primários e reincidentes; d) as violências sexuais e a homossexualidade forçada a que são submetidos os presos, como decorrência das condições sumamente desumanas do encarceramento; [...] i) dentro de todo esse quadro os esmagamento de princípios constitucionais e legais, como o da igualdade perante a lei, respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário, individualização da pena, direito do preso ao trabalho remunerado [...] (HERKENHOFF, 1998, p. 39-40).
Assim, a realidade prisional brasileira observada é violadora de direitos dos encarcerados. Há visível afronta ao direito à vida, à intimidade, à honra, à saúde, à integridade física e moral, enfim, a uma gama de direitos, situação que desumaniza o ambiente carcerário.
O exame da execução penal faz emergir um modelo cruel: o apenado, com a prolação da sentença condenatória, é inserido em um ambiente desprovido de garantias, e, por conta disso, a condenação criminal exsurge como se fosse uma declaração de não-cidadania, carimbando o apenado com um selo de apátrida (CARVALHO, 2003).
A desumanidade das casas prisionais, de modo geral, é um fato irrefragável, contudo, nem por isso tem sido preocupação duradoura da sociedade. A inquietude social quanto ao drama da realidade prisional apenas é latente quando ocorrem motins:
Os motins carcerários são os fatos que mais dramaticamente evidenciam as deficiências da pena privativa de liberdade. É o acontecimento que causa maior impacto e que permite à sociedade tomar consciência, infelizmente, por pouco tempo, das condições desumanas em que a vida carcerária de desenvolve. O motim, uma erupção de violência e agressividade, que comove os cidadãos, serve para lembrar à comunidade que o encarceramento do delinquente serve apenas para postergar o problema. O motim rompe o muro de silêncio que a sociedade levanta ao redor do cárcere. Infelizmente, pouco depois de desaparecido o conflito carcerário, a sociedade volta a construir um muro de silêncio e indiferença [...] (BITENCOURT, 1993, p. 205).
Diante da realidade prisional, há um estado de negação da dignidade humana dos encarcerados. A afronta a direitos mais básicos do indivíduo colocam em xeque todo o sistema punitivo, a considerar que atuação legítima do Estado não pode estar manchada por tamanha inconstitucionalidade.
Nesse sentido, a verificação passará a ponderar se o não cumprimento das promessas do Direito Penal, especialmente, a prevenção de delitos e a reabilitação do preso, somada à incontroversa violação de direitos no ambiente prisional, são indicativos de uma profunda crise de legitimidade do poder de punir do Estado.
5 A CRISE DE LEGITIMIDADE DO PODER DE PUNIR DO ESTADO
O Estado Democrático de Direito, instituído no Brasil pela Constituição da República de 1988, caracteriza-se como pretenso garantidor dos direitos fundamentais. Tais direitos basilares, almejados e agregados ao longo dos tempos, mostram-se positivados no texto constitucional, e, assim, servem de base para toda a produção normativa (COPETTI, 2000).
Partindo dessa constatação, todo o ordenamento jurídico brasileiro demanda estar apoiado nos direitos fundamentais, inclusive, para não fugir do conteúdo de tratados internacionais ratificados pelo Brasil no âmbito dos direitos humanos. Então, as normas infraconstitucionais e, por conseguinte, a execução do texto legislativo na práxis, sob pena de inconstitucionalidade, necessariamente não podem se desvincular dos direitos fundamentais do indivíduo.
Dessa forma, é inaceitável que o poder punitivo estatal se distancie da manutenção dos direitos dos cidadãos recolhidos à prisão. Ao Ente Público incumbe a proteção de todos os cidadãos e os aprisionados certamente não foram banidos do contexto social, a ponto de lhes serem negados os direitos próprios de qualquer sujeito (BITENCOURT, 2003).
O sistema punitivo precisa observar e proteger os direitos dos cidadãos por ele alcançados. Nesse caminhar, a atividade criminal do Estado somente é legítima se os direitos fundamentais estiverem sendo acautelados durante a execução da pena, e esta estiver alicerçada na reintegração do indivíduo à sociedade. Esse é pensamento de Suxberger (2006, p. 131):
A execução da pena somente se justifica se prosseguir a meta de servir exclusivamente a fins racionais e possibilitar a vida comum e sem perigos. Em outras palavras, a execução da pena deve ter como conteúdo reintegração do delinqüente à comunidade, mirar como escopo justamente uma execução ressocializadora, em que coincidam prévia e amplamente os direitos e deveres da coletividade e do particular.
O Direito Penal mostra-se inábil para promover a promessa das teorias legitimadoras, sabidamente a prevenção e a ressocialização; na mesma medida, afasta-se do compromisso de preservar os direitos dos infratores, em virtude da violência do sistema. Isso tudo autoriza concluir que o discurso jurídico-penal é inegavelmente falso, embora a falsidade não seja produto da má-fé, nem mesmo de conveniência daqueles que possuem a cátedra. Existe isto sim uma incapacidade de se substituir por outro discurso, haja vista a necessidade de defesa dos direitos das vítimas dos delitos (ZAFFARONI, 2001).
Nessa toada, a pena de prisão não seria em essência ilegítima, entretanto, estaria em crise por conta da ausência de atenção da sociedade e principalmente dos governantes:
[...] fala-se de crise da prisão, mas não como algo derivado estritamente de sua essência, mas como resultado de uma deficiente atenção que a sociedade e, principalmente, os governantes têm dispensado ao problema penitenciário, que nos leva a exigir uma série de reformas, mais ou menos radicais, que permitam converter a pena privativa de liberdade em um meio efetivamente reabilitador (BITENCOURT,1993, p. 145)
A deslegitimação do discurso penal transcende os contornos teóricos, uma vez que alcança a consciência ética humanística. O grau de lesões, os castigos físicos, o ambiente cruel e desumano a que os delinquentes estão submetidos enquanto sob tutela do Estado expõem uma violência institucionalizada de impossível ocultação (COPETTI, 2000).
Na mesma linha, Ferrajoli (2006) externa que a atividade punitiva do Estado, ainda que esteja emoldurada por uma legalidade formal, não merece vigência, a considerar que os pilares do ordenamento jurídico são por ela desrespeitados. Isto é, os direitos fundamentais do homem são atacados pela ação punitiva, de modo que o sistema se apresenta conspurcado pela ilegitimidade.
Ao que se vê, então, o poder punitivo do Estado sofre de uma crise de legitimidade. A validade do Direito Penal é alicerçada na preservação dos direitos do infrator frente à sede de vingança (do Estado e da sociedade), sem se afastar das finalidades da pena (prevenção e reintegração). Porém, a percepção que advém da realidade das casas prisionais é de que a ação punitiva atua em sentido contrário àquele teorizado.
Nesse mesmo sentido, aponta-se que as teorias legitimadoras de prevenção geral e especial e também os princípios garantistas do moderno Estado de Direto são empiricamente falsificadas. E isso, por si só, é suficiente para comprovar que o sistema punitivo não obtém a eficácia anunciada pelo discurso que tenta o legitimar (ANDRADE, 1997).
Logicamente, não se cogita que esses sejam os únicos problemas que colocam em embaraço a legitimação do poder de punir do Estado. Há outras questões trazidas pela doutrina, mas que, por certo, não retiram a severa influência do ponto cerne da presente averiguação (a realidade carcerária) na deslegitimação.
A respeito, Zaffaroni (2001) aduz que a ilegitimidade não é circunstância do momento. Tem-se visto um problema estrutural dos sistemas punitivos como um todo, que teria como causas a seletividade, a violência intrínseca do sistema, a verticalização social, com desligamento das relações comunitárias (horizontais).
Mas fato é que o extenso rol de promessas descumpridas pela política criminal, desigualdades, injustiças, violações de direitos no ambiente prisional e ineficácia das funções da pena são suficientes a confirmar o fracassado projeto penal (ANDRADE, 1997).
Mesmo demonstrado o fracasso do sistema punitivo, ainda há movimentações no sentido de aplicá-lo com maior firmeza:
O horizonte do final do século aparece assim marcado por reivindicações político-criminais contraditórias para o sistema penal. A reivindicação de sua redução e abandono convive com a de sua expansão; e se aquela primeira se faz acompanhar de um fortalecimento das garantias inexistentes, esta preconiza o próprio abandono de seu reconhecimento formal. Enquanto está demonstrada a debilidade dos potenciais garantidores do Direito Penal, continua se apostando neles (ANDRADE, 1997, p. 296).
Observa-se, dessa feita, que o Direito Penal moderno não é deslegitimado na sua substância, já que teoricamente objetiva proporcionar segurança aos cidadãos (inclusive, aos infratores), proteger bens jurídicos, bem como prevenir delitos e ressocializar infratores. Concebe a pena de prisão como meio de alcançar esse fins.
Não seria demais dizer que a pena de prisão acaba sendo um mal necessário. Diante de situações extremadas que exigem intervenção mais forte do Estado, a prisão apresenta-se como forma mais eficaz (último remédio) para dar sensação de segurança à sociedade, mormente frente a casos violentos que indiquem inviabilidade inicial de livre convivência social do agressor.
Contudo, a crise que afeta a legitimidade do poder punitivo do Estado está mais ligada à situação carcerária. É claro que há outros problemas. Já foram inclusive aqui referidos. Porém, as condições desumanas do cárcere, acrescidas da incapacidade em prevenir o cometimento de novos delitos, tampouco em reintegrar o delinquente à sociedade, são provas de que as promessas legitimadoras do Direito Penal moderno destoam da realidade.
A prisão tem sobremaneira violado direitos fundamentais, como bem se percebe ao focar os olhos sobre o sistema carcerário brasileiro. Também, e por parcela de culpa da mencionada violação, não apresenta capacidade de alcance das finalidades reveladas pela política criminal moderna: prevenir e ressocializar.
Logo, se a teoria legitimadora do Direito Penal está moldada em compromissos empiricamente longe de serem alcançados, por evidente que se revela uma profunda crise no poder de punir do Estado.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A legitimidade do poder punitivo do Estado pressupõe que o seu emprego coercitivo comtemple a preservação dos direitos fundamentais do infrator. Num Estado de Direito não há espaço para conceber a ideia de que o delinquente possa ser alvo de toda gama de violações de direitos, seja de ordem física ou moral.
Da mesma forma, não se pode reconhecer legítima a imposição do Direito Penal quando a pena não alcança as suas finalidades justificantes, ou seja, a promessa de prevenir o cometimento de delitos e de ressocializar o infrator, reintegrando-o ao meio social.
Dentro dessa conjuntura, buscou-se demonstrar, a partir da realidade carcerária brasileira, que o exercício do poder punitivo do Estado vive uma grande crise de legitimidade, logrando-se êxito em confirmá-la.
Ao exame, evidenciou-se que os encarcerados têm negados seus direitos fundamentais no ambiente carcerário, especialmente, por conta da superlotação e do nefasto grau de insalubridade em que a pena é cumprida.
Confirmada também a incapacidade de prevenir condutas e ressocializar os delinquentes. Ao contrário do prometido, há indicativos suficientes para afirmar que a pena de prisão tem servido de formação de carreiras voltadas ao crime.
Percebeu-se ainda que sobressai o caráter retribucionista e segregador da pena de prisão, muito embora teoricamente vencidos desde os tempos dos governos absolutistas. A pena vem sendo aplicada como um mal, vazio e sem propósitos utilitários, visa a apenas retribuir o infrator pelo crime cometido e retirá-lo do ambiente social enquanto em execução.
Dessa feita, confirmou-se que o discurso legitimador do Direito Penal moderno é falseado pela realidade carcerária brasileira, situação que revela profunda crise no poder punitivo do Estado.
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Servidor da Justiça Federal Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. Mestrando em Direito - Faculdade Meridional (IMED). Especialista em Processo Civil pela Universidade Internacional de Curitiba (UNINTER). Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FAVERI, Marco André Simm de. A violação de direitos fundamentais no exercício do poder punitivo do Estado como marca reveladora da crise Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jul 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54904/a-violao-de-direitos-fundamentais-no-exerccio-do-poder-punitivo-do-estado-como-marca-reveladora-da-crise. Acesso em: 23 dez 2024.
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