Não é uma questão de se, mas de quando. O assunto já é pauta polêmica nos corredores do Congresso Nacional e tem os dias contados para ocupar as sessões do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).
A Constituição Federal de 1988, originariamente, assim dispunha:
Art. 41. São estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os servidores nomeados em virtude de concurso público.
§ 1º - O servidor público estável só perderá o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa.
§ 2º - Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade.
§ 3º - Extinto o cargo ou declarada sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade remunerada, até seu adequado aproveitamento em outro cargo.
Lado outro, após quase 10 (dez) anos da Carta Cidadã, o legislador reformador promoveu a denominada Reforma Administrativa capitaneada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998. Então, o texto acima passou a prever o seguinte:
Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 2º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 3º Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 4º Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
A celeuma ora em discussão se encontra no inciso III acima retratado. Este autorizou a perda da estabilidade do servidor público mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa, seguindo-se a estrita exigência da norma constitucional em seu processo de produção legislativa[1].
Até hoje, porém, não houve a edição da referida lei complementar. No entanto, ao que tudo indica, a movimentação por uma nova reforma administrativa alardeada por diversos setores da sociedade deve emplacar a edição da norma complementar ora apontada. Talvez ainda em 2020, certamente, de 2021 não passará.
O grande problema que se avizinha é bastante claro: a quem competiria a iniciativa legislativa para a propositura de tal projeto de lei complementar?
Não há consenso.
Segundo noticiou, em 2018, a Associação Nacional dos Procuradores e Advogados Públicos Federais (ANPPREV), existem dezenas de projetos de lei complementar, tanto de iniciativa do Poder Executivo, quanto de iniciativa do Poder Legislativo, tratando acerca do tema da perda da estabilidade de que trata o artigo 41, §1º, inciso III, da Carta Política, introduzido pela Emenda Constitucional nº 19/1998[2].
Nesse cenário, já há respeitáveis manifestações jurídicas condenando a possibilidade de projetos de lei complementar de iniciativa do Poder Legislativo para a regulamentação dessa matéria. Isto porque o artigo 61, §1º, inciso II, alínea “c”, da Constituição, prevê a iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo na elaboração de leis que disponham sobre servidores públicos da União, regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria:
Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
[...]
II - disponham sobre:
[...]
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
Nesse toar, a competência legislativa para dispor sobre a estabilidade dos servidores públicos da União é do Presidente da República, e dos Estados e dos Municípios, por simetria, é do Chefe do respectivo ente. Noutras palavras, o Chefe do Poder Executivo não disporá sobre lei que regulará a situação dos servidores públicos de entes diversos, sendo de cada Chefe a iniciativa para a regulação por meio de lei complementar própria.
No âmbito do Supremo essa é a orientação dominante, sempre a favorecer o federalismo e a autonomia dos entes federativos:
Processo legislativo: normas de lei de iniciativa parlamentar que cuidam de jornada de trabalho, distribuição de carga horária, lotação dos profissionais da educação e uso dos espaços físicos e recursos humanos e materiais do Estado e de seus Municípios na organização do sistema de ensino: reserva de iniciativa ao Poder Executivo dos projetos de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores públicos, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (art. 61, II, § 1º, c). ADI 1.895, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 2-8-2007, P, DJ de 6-9-2007.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 10.076 DE 02 DE ABRIL DE 1996 DO ESTADO DE SANTA CATARINA, PELA QUAL FORAM CANCELADAS PUNIÇÕES APLICADAS A SERVIDORES CIVIS E MILITARES NO PERÍODO DE 1º DE JANEIRO DE 1991 ATÉ A DATA DE SUA EDIÇÃO. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 2º E 5º, XXXVI, 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO. Plausibilidade do fundamento da inconstitucionalidade formal, dado tratar-se de lei que dispõe sobre servidores públicos, que não teve a iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual, como exigido pela norma do art. 61, § 1º, II, c, da Constituição, corolário do princípio da separação dos Poderes, de observância imperiosa pelos estados membros, na forma prevista no art. 11 do ADCT/88. Conveniência da pronta suspensão de sua eficácia. Cautelar deferida. ADI 1.440-MC, Rel. Min. Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, DJ 1º.6.2001.
Projeto. Iniciativa. Servidor público. Direitos e obrigações. A iniciativa é do Poder Executivo, conforme dispõe a alínea c do inciso II do § 1º do art. 61 da CF. (ADI 2.887, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 4-2-2004, Plenário, DJ de 6- 8-2004.) No mesmo sentido: ADI 3.166, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 27-5-2010, Plenário, DJE de 10-9-2010; ADI 1.201, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 14-11- 2002, Plenário, DJ de 19-12-2002.
É da iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição Página21 de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio da simetria. ADI 2.192, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 4-6-2008, DJE de 20-6-2008
Lei estadual que dispõe sobre a situação funcional de servidores públicos: iniciativa do chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, a e c, CR/1988). Princípio da simetria. (ADI 2.029, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 4-6- 2007, P, DJ de 24-8-2007. ADI 3.791, rel. min. Ayres Britto, j. 16-6-2010, P, DJE de 27-8-2010.
O art. 61, § 1º, II, c, da CF prevê a iniciativa privativa do chefe do Executivo na elaboração de leis que disponham sobre servidores públicos, regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria. Por outro lado, é pacífico o entendimento de que as regras básicas do processo legislativo da União são de observância obrigatória pelos Estados, "por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes". Precedente: ADI 774, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 26-2-1999. A posse, matéria de que tratou o diploma impugnado, complementa e completa, juntamente com a entrada no exercício, o provimento de cargo público iniciado com a nomeação do candidato aprovado em concurso. É, portanto, matéria claramente prevista no art. 61, § 1º, II, c, da Carta Magna, cuja reserva legislativa foi inegavelmente desrespeitada. ADI 2.420, rel. min. Ellen Gracie, j. 24-2-2005, P, DJ de 25-4- 2005= RE 583.231 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-2-2011, 1ª T, DJE de 2-3-2011
Em que pese isto, a título de exemplo, em 2017, o Senado Federal deliberou e aprovou na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) o parecer do relator Senador Lasier Martins no Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 116/2017, cuja proposição inaugural fora da Senadora Maria do Carmo Alves. A matéria visa a regulamentar, exatamente, o artigo 41, §1º, inciso III, da Carta Política, introduzido pela Emenda Constitucional nº 19/1998[3].
Segundo consta do referido parecer:
De início, observamos que, a teor do art. 41, § 1º, III, da Constituição Federal, o legislador nacional tem o dever de editar lei complementar reguladora do procedimento de avaliação periódica de desempenho dos servidores públicos, avaliação essa que pode resultar na perda do cargo do servidor estável ineficiente. Essa mesma lei, por força do art. 247 da Carta Política, deve estabelecer critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado. Os dois preceitos constitucionais citados foram introduzidos pela Emenda Constitucional de Reforma Administrativa, há quase 20 anos.
Não resta dúvida de que a lei complementar a que se referem os citados dispositivos constitucionais é nacional. Embora os Estados e Municípios possam editar leis complementares, sempre que a Constituição de 1988 se referiu a leis complementares de outros entes que não a União, fê-lo deixando claro que a eles se dirigia. Nesse sentido, citamos os § 3º do art. 25 e os §§ 4º e 5º do art. 128 da Carta. Diversamente, quando não há indicação do ente que deve editar a lei complementar, deve-se entender que o mandamento é dirigido ao Poder Legislativo da União, mesmo porque se trata de regulamentar dispositivo da Constituição Federal. E, no caso específico, tendo o constituinte havido por bem tratar a estabilidade do servidor público de modo uniforme para todas as esferas da Federação, não faria sentido deixar ao talante de cada ente político a regulamentação da matéria, o que, no limite, poderia conduzir a regimes bastante diferenciados de aferição do desempenho funcional, com reflexos sobre a extensão da estabilidade assegurada pela Carta Magna. Se o Congresso Nacional é competente para editar a lei referida no art. 41, § 1º, III, não é menos verdade que a iniciativa dessa mesma lei seja franqueada a qualquer parlamentar, pois a reserva de iniciativa conferida ao Presidente da República pelo art. 61, § 1º, II, c, só alcança o regime jurídico específico dos servidores públicos federais, não assim a disciplina do processo de perda do cargo por insuficiência de desempenho aplicável aos servidores públicos de todos os entes federados. Com efeito, não faria o menor sentido conferir ao Presidente da República, que é Chefe do Poder Executivo federal, a iniciativa privativa para uma lei que irá regular a situação dos servidores públicos de todos entes federados. Discordamos, portanto, da opinião manifestada em audiência pública pela representante da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Fenajufe), no sentido da inconstitucionalidade do projeto, por vício de iniciativa. Temos que o projeto é formalmente constitucional, ressalvada a previsão de seu art. 25, a seguir examinada[4].
Volvendo os olhos para a situação narrada no parecer acima e considerando que o PLS nº 116/2017 já foi aprovado, também, na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) em 2019, aguardando, hoje, deliberação do Plenário do Senado Federal, é clarividente que o caso ocupará a pauta do STF em embates acalorados.
Como visto, o PLS nº 116/2017 é de manifesta constitucionalidade duvidosa e encontra resistência em diversos setores da sociedade civil organizada em razão do apontado vício formal de iniciativa na proposição legislativa. Este, indubitavelmente, será um tema vindouro na agenda do Poder Judiciário diante da crescente judicialização da vida pública e política, tanto com relação à estabilidade quanto em função dos limites da alteração do regime jurídico dos servidores públicos.
Maximizando a celeuma do cenário, o caos apocalítico da COVID19, em 2020, trouxe ainda mais contornos de preocupação quando se trata de perda de cargo público, haja vista a dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, este cada vez mais limitado e impactado pela pandemia.
É dizer que não tardará: a guerra constitucional acerca da estabilidade do servidor público se avizinha no Supremo.
[1] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
[2] Disponível em: < https://www.anpprev.org.br/anp/noticia/camara-dos-deputados-pl-busca-demissao-de-servidor-publico-estavel>. Acesso em: 27 jul. 2020.
[3] Senado Federal. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128876>. Acesso em: 27 jul. 2020.
[4] Senado Federal. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7218388&ts=1593914095699&disposition=inline>. Acesso em: 27 jul. 2020.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Estabilidade do servidor público: uma guerra constitucional que se avizinha no Supremo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2020, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54960/estabilidade-do-servidor-pblico-uma-guerra-constitucional-que-se-avizinha-no-supremo. Acesso em: 23 dez 2024.
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