VANESSA DAMACENA MOURA TAVARES[1]
(coautora)
Resumo: O presente estudo visa analisar se é (ou não) possível aplicar o conceito de dignidade aos animais não-humanos, estendendo-lhes um rol mínimo de direitos fundamentais. Para tanto, trata das diversas teorias que envolvem o tema, passando pela discussão sobre seu status jurídico – à luz da antiga dicotomia entre coisas e pessoas. Ainda, expõe as propostas legislativas em andamento no Brasil e examina os destaques da jurisprudência pátria sobre o tratamento dos animais não-humanos. Ademais, o artigo aborda as lacunas deixadas pelo poder público na tutela dos direitos dos animais não-humanos, analisando, também, a atuação do terceiro setor – que acabou assumindo o papel de protagonista nessa relação – revelando, assim, a escassez de políticas públicas voltadas ao tema no Brasil.
Palavras chaves: Dignidade. Animais não-humanos. Maus-Tratos. Políticas Públicas.
SUMÁRIO: 1. Introdução.2. Dignidade dos animais não-humanos e as propostas de alterações legislativas: 2.1. Análise da legislação brasileira – proteção dos animais:
3.Abandono de animais: a importância do terceiro setor e a escassez das políticas públicas. 4. Considerações finais. 5. Referências
Introdução
Este trabalho abordará a temática dos animais não-humanos e o seu tratamento pelo direito brasileiro. Sabe-se que a relação do homem com os animais não-humanos sofreu profundas alterações ao longo do tempo, tornando-se mais íntima, afetuosa, sendo muito comum a adoção ou compra de um animal de estimação; mas, por diversas razões, há tutores que os abandonam, ou comentem crime de maus-tratos. Tal conduta gera impactos na saúde pública, além de revelar a insuficiência de políticas públicas voltadas a esse problema.
A questão é complexa; e sua solução, multifatorial. A hipótese levantada neste estudo é a de que, como o direito brasileiro (leis, doutrina e jurisprudência), por muito tempo, tratou os animais na simples esfera das coisas, ele não ajudou a dirimir tais controvérsias. Embora seja perfeitamente possível perceber que há uma enorme diferença entre abandonar um sofá na rua (para dele se desfazer, pois o objeto perdeu sua serventia) e abandonar um animal doméstico na via pública, essas duas ações, em concreto, não costumam gerar uma sanção estatal.
Diante disso, é urgente que o poder público tenha uma postura mais ativa frente aos casos de abandono de animais domésticos em vias públicas e propriedades particulares, aplicando os dispositivos legais existentes acerca do tema e promovendo políticas públicas. Para tanto, o presente estudo passa pela temática da dignidade, princípio que pode ser aplicado também aos animais não-humanos.
2. Dignidade dos animais não-humanos e as propostas de alterações legislativas:
O tratamento jurídico dos animais não-humanos tem um longo curso histórico e filosófico. Para alguns pensadores, os animais não-humanos são meros objetos, enquanto para outros, são dotados de sensibilidade e, nesse sentido, indaga-se se eles são ou não capazes de sentir o sofrimento, ou ter algum pensamento racional: “O filósofo Jeremy Bentham (1748-1832) também defendeu o direito dos animais e explicou que, em vez de perguntar se um ser vivo é dotado ou não de pensamento racional, deve-se perguntar se ele é capaz de sofrer.” (MÓL; VENANCIO, 2014, p.17).[2]
A questão, então, é intimamente relacionada ao princípio da dignidade. No direito pátrio, o termo dignidade está atrelado à dignidade da pessoa humana (nos termos do art.1º, III, CF/88).
O estudo jurídico da dignidade humana, em que pese ser considerada por muitos um conceito vago, impreciso e polissêmico, é também algo bastante real, tanto que não há dificuldade em verificar situações em que ela é agredida.
É inegável que as lições kantianas influenciam sobremaneira o estudo da dignidade. Delas infere-se que o ser humano é dotado de razão e vontade, e os imperativos buscam guiar essa razão. Nos imperativos hipotéticos, a ação é meio para se alcançar um fim, enquanto nos imperativos categóricos, a ação é boa em si mesma – ressaltando que estes ditam as regras morais, que podem ser por todos adotadas (universais). Portanto, sustentar que o ser humano é um fim em si mesmo significa dizer que as normas decorrentes da vontade legisladora precisam ter como finalidade a espécie humana enquanto tal (MORAES, 2010).
Outrossim, para Kant, no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por algo equivalente; por outro lado, as pessoas têm algo acima de todo o preço, ou seja, uma dignidade e, portanto, não se deve tratar pessoas como coisas, pois isso é uma afronta à sua dignidade.
Entretanto, a concepção kantiana analisava o homem isoladamente considerado e, com o advento do pós-positivismo[3], passou-se a criticar esse solipsismo kantiano, apontando-se para a importância do campo da intersubjetividade, da relação do Eu com o Outro, bem como da comunicação e da linguagem – na transição para uma razão comunicativa. Nesse sentido, sustenta Azevedo (2002, p. 13): “(...) a concepção insular age com redução da plenitudo hominis, retirando do ser humano justamente o que ele tem de realmente específico: seu reconhecimento do próximo, com a capacidade de dialogar (...)”. Portanto, pode-se falar que, a partir do pós-positivismo, há o reconhecimento do outro na relação, como igual em liberdade e dignidade.[4]
Feitas tais considerações, o questionamento aqui suscitado é: podemos aplicar o conceito de dignidade, de uma forma ampla, também aos animais não-humanos? Para responder essa pergunta, assevera Singer (2010, p.164):
(...) falar de dignidade intrínseca ou valor moral não ajuda porque qualquer defesa satisfatória da afirmação de que todos os seres humanos, e apenas eles, têm dignidade intrínseca precisaria de incluir algumas características ou capacidades relevantes apenas possuídas pelos seres humanos que justificassem à existência dessa dignidade ou desse valor singulares. A introdução das ideias de dignidade e valor como substituto de outras razões para a distinção entre humanos e animais não é válida. As expressões elaboradas são o último recurso de quem não tem argumentos.
Segundo Reis (2015), essas ideias de Singer movimentaram o meio acadêmico e, atualmente, há várias teorias que consideram possuírem os animais não-humanos um elevado valor moral, sendo, portanto, portadores de direitos fundamentais e de uma dignidade a eles inerentes.[5]
Assim, faz-se necessário repensar as estruturas jurídicas e, por exemplo, seguir o ocorrido na Alemanha e criar um terceiro gênero para os animais não-humanos, que vai além da dicotomia pessoa versus coisa (Reis, 2015).
Como se sabe, o Estado é responsável pelo meio ambiente, pela fauna e pela flora, de acordo com o art. 225, §1º, VII, da CF/88[6].
Nesse sentido, merece destaque o Projeto de Lei nº 6054/2019 (anterior PL 6.799/2013),[7] de iniciativa do deputado federal Ricardo Izar, que se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados, visando instituir um regime jurídico especial aos animais domésticos e silvestres.
O art. 2º do referido PL dispõe que são objetivos fundamentais desta lei a afirmação dos direitos dos animais não-humanos e sua proteção (I); a construção de uma sociedade mais consciente e solidária (II); reconhecimento de que os animais não-humanos possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de sofrimento (III), (BRASIL, 2019).
O artigo 3º da referida proposta legislativa dispõe que os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa (BRASIL, 2019).
Assim, com a aprovação do projeto de lei, os animais não-humanos não serão mais considerados bens móveis, por expressa previsão legal – pois haverá a alteração do artigo 82, do CC.[8]
Além disso, há o Projeto de Lei nº 6590 de 2019, Senado Federal, que visa instituir o Marco Regulatório dos animais de estimação – animais de estimação como terceiro gênero, entre os bens e os sujeitos de direito (BRASIL, 2019).[9]
Esse projeto de lei separa os animais não- humanos em categorias. Quanto aos animais de estimação, assim dispõe o supracitado PL 6590/2019 (BRASIL, 2019, p.4-5):
Art. 4º Os animais de estimação são seres vivos dotados de senciência, sensibilidade, tendo assegurados para si todos os direitos de proteção contra maus-tratos reservados por lei e plena condição de bem-estar. Devem ser reconhecidos como seres sencientes e considerados um terceiro gênero entre os bens e os sujeitos de direito. Parágrafo único. Aplicam-se aos animais de estimação, no que couber, as regras destinadas aos bens.
Ademais, o Projeto de Lei nº 6590/2019, prevê um catálogo mínimo de direitos fundamentais aos animais de estimação, são eles (BRASIL, 2019, p.5-6):
Art. 7º Os animais de estimação são considerados essenciais à boa qualidade de vida do homem em sociedade, sendo a eles assegurados uma vida digna, mediante: I – garantia à água limpa, alimentação completa, balanceada e adequada à espécie; II – zelo e exercício; III – acompanhamento médico-veterinário e provimento de medicamentos sempre que for necessário e quando constatada dor ou doença; IV – condições adequadas para o seu transporte; V - manutenção em local adequado, que proporcione segurança, integridade física, proteção contra sol, chuva, calor e frio Parágrafo Único. As garantias previstas no artigo acima devem ser respeitadas, também, por comerciantes mantenedores dos animais em seu estabelecimento, bem como por entidades sem fins lucrativos destinadas a recolher e encaminhar animais de rua ou abandonados ou em situação indigna para lares adotivos. Após a venda ou transferência de propriedade ou adoção, as garantias acima são de responsabilidade, exclusivamente, dos possuidores e proprietários dos animais previstos.
Igualmente, a jurisprudência brasileira nos revela que os animais são sujeitos de direitos despersonificados, que devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, ficando, assim, vedado o seu tratamento como coisa, tanto que as decisões costumam mencionar a guarda – e não a posse – de animal silvestre.
Não podemos deixar de citar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983/2016, Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, conhecida como ADI da Vaquejada. Em que pese a posterior reação legislativa (efeito backlash), com a introdução do §7º, ao artigo 225, da CF/88, importante analisar a referida decisão do STF, a qual transcrevo interessante fragmento do Voto da Ministra Rosa Weber (BRASIL, 2016, p.7):
O atual estágio evolutivo da humanidade impõe o reconhecimento de que há dignidade para além da pessoa humana, de modo que se faz presente a tarefa de acolhimento e introjeção da dimensão ecológica ao Estado de Direito. A pós-modernidade constitucional incorporou um novo modelo, o do Estado Socioambiental de Direito, como destacam Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer, com pertinente citação, em suas reflexões, de Arne Naess que reproduzo: “O florescimento da vida humana e não humana na Terra tem valor intrínseco. O valor das formas de vida não humanas independe da sua utilidade para os estreitos propósitos humanos.” A Constituição, no seu artigo 225, § 1º, VII, acompanha o nível de esclarecimento alcançado pela humanidade no sentido de superação da limitação antropocêntrica que coloca o homem no centro de tudo e todo o resto como instrumento a seu serviço, em prol do reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade própria que deve ser respeitada. O bem protegido pelo inciso VII do § 1º do artigo 225 da Constituição, enfatizo, possui matriz biocêntrica, dado que a Constituição confere valor intrínseco às formas de vida não humanas e o modo escolhido pela Carta da República para a preservação da fauna e do bem-estar do animal foi a proibição expressa de conduta cruel, atentatória à integridade dos animais.
Ademais, de acordo com Sarlet; Fensterseifer (2019), a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, decidiu, no Resp nº 1.797/SP, de forma unânime, reconhecer a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana, atribuindo dignidade e direitos aos animais não-humanos e à natureza. Para os autores, a referida decisão é uma mudança de paradigma: do antropocêntrico para o biocêntrico, ou seja, que trata a natureza (ou pachamama) como sujeito de direito, seguindo o exemplo de outros países, como o Equador.
2.1. Análise da legislação brasileira – proteção dos animais:
Passemos a analisar como o ordenamento jurídico pátrio trata dos crimes contra os animais não-humanos. A proteção dos animais está prevista na nossa norma maior, no art. 225, §1º, VII, CF/88, já mencionado alhures, sendo um verdadeiro direito fundamental. Destaca-se que, na ADI da Vaquejada, o Ministro Barroso pontuou que a proteção constitucional dos animais não-humanos contra práticas cruéis constitui uma norma autônoma, com objeto e valor próprios (BRASIL, 2016, p.16):
No tópico seguinte, pretende-se demonstrar que o constituinte fez uma avançada opção ética no que diz respeito aos animais. Ao vedar “práticas que submetam animais a crueldade” (CF, art. 225, § 1º, VII), a Constituição não apenas reconheceu os animais como seres sencientes, mas também reconheceu o interesse que eles têm de não sofrer. A tutela desse interesse não se dá, como uma interpretação restritiva poderia sugerir, tão-somente para a proteção do meio-ambiente, da fauna ou para a preservação das espécies. A proteção dos animais contra práticas cruéis constitui norma autônoma, com objeto e valor próprios.
Na legislação infraconstitucional, a lei nº 9.605/1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
O artigo 32[10] da referida lei prevê a punição aos maus-tratos aos animais; mas, não apena isso, ele também veda o abandono, envenenamento, atropelamento intencional, abuso, ferir, mutilar, dentre outras condutas, tipificando-as como crime, punido com pena de detenção de três meses a um ano, e multa (BRASIL, 1998). Em suma, trata-se de um crime contra a dignidade dos animais não-humanos.
Destaca-se que há o Projeto de Lei (PLS) nº 470 de 2018 que visa aumentar a pena prevista no art. 32, da Lei dos Crimes Ambientais, bem como instituir uma punição financeira para os estabelecimentos comerciais que eventualmente concorram para as práticas. Segundo o PLS nº 470/2018, a pena prevista no art. 32, da Lei dos Crimes Ambientais seria majorada para detenção de um a quatro anos, e multa (BRASIL, 2018). [11]
O Código Penal também pune o abandono de animais, se eles forem deixados em propriedade alheia, sem consentimento, e desde que o fato resulte prejuízo: “Art. 164 - Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.” (BRASIL, 1948).
Ainda, há a Resolução n° 1.236, de 26 de outubro de 2018, do Conselho Federal De Medicina Veterinária – CFMV, que define e caracteriza crueldade, abuso e maus-tratos contra animais vertebrados, normatizando e exemplificando 29 atos que caracterizam crueldade, abuso e maus-tratos contra animais.[12]
Em suma, esta resolução considera maus-tratos o ato direto ou indireto, omissivo ou comissivo, que cause dor e sofrimento desnecessário. Ainda, considera atos de crueldades aqueles que causam dor e sofrimento continuadamente. Já o abuso é definido como qualquer ato que implique o uso do animal, causando prejuízo de ordem física e psicológica ao animal (CFMV, 2018). A referida resolução é um bom parâmetro para os operadores do direito, já que os conceitos de maus-tratos e abandono de animais ainda são muito vagos.
Por derradeiro, é importante frisar que se faz necessário um preparo da polícia civil e ambiental para que consigam receber as abordagens e denúncias da sociedade sobre os maus-tratos, abandono, crueldade etc, causados aos animais não-humanos, visando uma resposta mais efetiva por parte do Estado.
3. Abandono de animais: a importância do terceiro setor e a escassez das políticas públicas
Vimos que os animais não-humanos são seres vivos, que podem sentir dor e sofrimento: “Assim, cada vez mais, reconhece–se que os animais são “sencientes” – ou seja, sentem e têm sensações- e que o homem é o único ser dotado de consciência suficiente para protegê-los, tendo uma responsabilidade de moral em relação a eles.” (MÓL; VENANCIO, 2014, p.10).
Ademais, tanto a doutrina, quanto a jurisprudência, já reconhecem a natureza jurídica sui generis dos animais não-humanos, havendo, ainda, projeto de lei para modificação do art. 82, Código Civil, a fim de que eles sejam definitivamente excluídos do conceito de “coisa”.
Ainda, de acordo com a nossa Carta Magna, o meio ambiente é um verdadeiro direito fundamental, bem como a tutela da fauna, e reconhecer sua justiciabilidade significa também a proibição da insuficiência em sua tutela. Deste modo, ocorrerá também sua violação quando o Estado deixar de atuar, ou o fizer de maneira deficiente.[13]
Portanto, faz-se imperioso achar uma solução para os maus-tratos e abandono de animais, pois trata-se de um problema coletivo e de cunho sanitário. Quanto aos animais de rua, esses encontram-se em estado de vulnerabilidade, tornando-se um reservatório ambulante de doenças.
Para que haja um controle da situação dos animais errantes nas ruas de todo país, há inúmeras pessoas da sociedade civil dispostas a colaborar, exercendo trabalho voluntário. Assim, existem atores que trabalham em prol da causa e assumem responsabilidade praticamente integral com os animais. Um deles, de grande peso e importância, é o terceiro setor[14], em que os envolvidos se mobilizam por meio de ONGs, realizando trabalhos de captura, castração, cuidados médicos veterinários e adoção responsável desses animais.
Para Carvalho Filho (2019), as entidades do terceiro setor apresentam certo hibridismo, pois têm natureza privada, mas desempenham função pública. Segundo o autor, o terceiro setor é resultado de iniciativas da sociedade civil (que criam associações, ONGs, e outros entes sem fins lucrativos), sendo possível a parceria destas com o poder público, por meio de convênios administrativos, contratos de gestão (no caso das Organizações Sociais – OS)[15], termos de parceria (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP) etc[16]. Diante disso, verifica-se que o terceiro setor entra nessa batalha para assegurar aos animais errantes um tratamento digno para curar suas enfermidades e, posteriormente, encaminhá-los para um lar. Essa atuação do terceiro setor converge com a necessidade de dar dignidade aos animais não-humanos, garantindo-lhes um rol mínimo de direitos fundamentais.
Todavia, pode o Estado, ao se valer da colaboração do terceiro setor, se omitir frente a esse patente problema? Tal problematização é necessária. Segundo Almeida, Lima (2019, p. 249-250):
Assim, observamos que a participação dos cidadãos, de forma ativa na vida pública, consiste em uma via importante na garantia da efetivação de direitos, desde que a eles não seja transferida a responsabilidade estatal pela garantia dos direitos e da proteção social possibilitada por políticas públicas que visem o reparo das injustiças e das desigualdades existentes entre os diferentes grupos de nossa sociedade.
Nesse sentido, a atuação do terceiro setor é importante, assim como ações de caridade, solidariedade; porém o Estado tem o dever de também atuar, por meio de políticas públicas. O Estado não pode transferir integralmente suas responsabilidades ao terceiro setor.
É válido lembrar que, nesta seara (proteção dos animais não-humanos) o Estado brasileiro não tem amparado os envolvidos de maneira forte o suficiente(DIAS; MATOS, 2017). As políticas públicas possuem atores sociais, que desempenham papéis importantes na concepção, elaboração, estudo, execução, extinção e fiscalização, representando diversos indivíduos, grupos, instituições, movimentos, partidos. Contudo, tais atores operam suas atividades muitas vezes às cegas e regados a frustação, ante a ausência de atuação estatal.
4. Considerações finais:
Nossa Carta Magna proíbe expressamente o tratamento cruel contra animais não-humanos, nos termos do art. 225, §1º, VII, CF/88 e , nesse sentido, entende-se que os animais não-humanos têm um catálogo mínimo de direitos fundamentais, que lhe propiciem uma existência digna.
Nesse sentido, pudemos observar que os animais não-humanos são seres vivos dotados de sensibilidade, havendo propostas legislativas para a criação de um terceiro gênero para eles, afastando a dicotomia pessoa/coisa.
Ademais, os Tribunais Superiores brasileiros (STF, STJ) já reconheceram direitos de titularidade dos animais não-humanos e da natureza. Ainda, as propostas legislativas supracitadas visam sedimentar esse entendimento, também por meio da sua positivação, com a alteração do Código Civil, bem como com a implementação de um marco regulatório dos animais de estimação. Diante disso, aplicar o conceito de dignidade aos animais não-humanos, em uma dimensão ecológica, indubitavelmente, vem para colaborar para o aprimoramento do tratamento jurídico da questão aqui analisada.
Assim, o avanço na proteção dos direitos dos animais é evidente e vitorioso; entretanto ainda temos muito o que evoluir, especialmente quanto às políticas públicas em prol dos animais não-humanos.
Apesar dos avanços, o abandono, os maus-tratos e os abusos ainda são realidade para muitos animais não-humanos. Nessa seara, é frequente a atuação do terceiro setor, que envolve pessoas da sociedade civil, que se colocam na linha de frente, empenhando-se para proteger os animais situação de abandono, perigo, dor e sofrimento. Todavia, o Estado brasileiro se mostra, por vezes, ineficiente na elaboração de políticas públicas de proteção dos animais não-humanos. Essa proteção ineficiente é rechaçada pelo presente estudo, pelas razões acima expostas.
É possível garantir e ampliar os direitos fundamentais dos animais não-humanos, exigindo-se, para isso, um trabalho conjunto entre poder público, seus órgãos fiscalizadores, e a sociedade civil.
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[1]Acadêmica do Curso de Gestão Pública do Instituto Federal do Mato Grosso. E-mail: [email protected]
[2]Imprescindível citar a contribuição de Peter Singer (2010, p.20), em sua obra “Libertação animal” para esta discussão. Segundo ele: “Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter em conta esse sofrimento. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante – na medida em que é possível estabelecer uma comparação aproximada - de um outro ser qualquer. Se um ser não é capaz de sentir sofrimento, ou de experimentar alegria, não há nada a ter em conta. Assim, o limite da senciência (utilizando este termo como uma forma conveniente, se não estritamente correta, de designar a capacidade de sofrer e/ou, experimentar alegria) é a única fronteira defensável de preocupação relativamente aos interesses dos outros. O estabelecimento deste limite através do recurso a qualquer outra característica, como a inteligência ou a racionalidade, constituiria uma marcação arbitrária.”
[3] O pós-positivismo (ou não positivismo) advém com o fito de reintroduzir as ideias de justiça ao Direito, sem desprezar o direito positivo (BARROSO, 2003). Destarte, de acordo com Alexy (2009), contra a famosa afirmação de Kelsen de que qualquer conteúdo pode ser direito, pode-se aplicar a fórmula de Radbruch, que considera não ser Direito a injustiça extrema. Portanto, verifica-se, no não positivismo, uma vinculação entre direito e moral, sem se exigir, no entanto, uma completa convergência entre ambos.
[4] No entanto, interessante é a crítica feita por Machado; Negri (2011), no sentido de que, mesmo tendo avançado em relação a Kant, a figura do outro que aparece, por exemplo, em Habermas, ainda é analisada sob a ótica do sujeito (eu). Assim, de acordo com os autores desconstrutivistas, o sujeito não seria apto para explicar o outro, salientando que este merece estatuto próprio.
[5]Ainda Segundo Reis (2015), Martha Nussbaum (em sua obra Para além de compaixão e humanidade – justiça para animais não-humanos) relativiza o conceito de dignidade, a fim de abarcar também os animais não-humanos.
[6]Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (…)§1º (...), VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (BRASIL, 1988).
[7]Sua tramitação, no dia 16/06/2020 é: aguardando manifestação do Senado Federal, aguardando parecer da CMADS.
[8] Segundo a redação atual do art. 82, CC: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social” (BRASIL, 2002).
[9]De acordo com a justificação do Projeto de Lei nº 6590/2019, a importância desse marco regulatório se verifica, pois o número de animais de estimação nos lares brasileiros já supera o número de crianças: “Para se ter ideia, a quantidade de cães e gatos (segunda maior população do mundo) é superior a população de crianças no país. Ainda, não é demais destacar o fato de que os animais de estimação guardam, na sociedade atual, vínculo tal com o ser humano que os tornam inseridos como membros integrantes das unidades familiares. Prova disso é a pesquisa do IBGE, realizada em 2013, constatando que mais de 44.3% dos domicílios brasileiros têm pelo menos um animal de estimação. Desta forma, sugerimos no presente texto a definição regulatória de animais de estimação, sendo aqueles criados para o convívio com os seres humanos por razões afetivas.” (BRASIL, 2019).
[10]Segundo a Lei de Crimes ambientais (BRASIL, 1998): “Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.”
[11] Menciona-se o caso brutal, que aconteceu nas dependências do supermercado Carrefour em Osasco/SP, no dia 28 de novembro do ano de 2019, ocasião em que o animal foi espancado e envenenado por um segurança do local. Assim, o projeto de lei é pautado para que haja maior rigidez na pena, haja vista que, atualmente, o abandono e maus tratos são vistos como crimes de menor potencial ofensivo, com pena de detenção de três meses a um ano. Esse projeto de lei mencionado propõe determinar a pena de reclusão, de quatro anos, aumentando, assim, o maior rigor legal e realizando o objetivo de punir e coibir a prática de tais delitos.
[12]A referida norma coloca à disposição dos profissionais da área um material que fornece subsídio para a formulação de laudo técnico mais robusto sobre o tema. Com melhor embasamento, também haverá parâmetro nas ações judiciais sobre o tema, e o magistrado poderá identificar com mais clareza se aquele caso é ou não considerado maus tratos.
[13] O argumento da reserva do possível é bastante invocado pela doutrina e jurisprudência, sendo um dos maiores óbices à efetivação dos direitos fundamentais. Diante disso, faz-se imprescindível delimitar o núcleo essencial desses direitos, que deve ser protegido de ingerências indevidas, promovidas pelo Estado ou por particulares. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem entendendo que o ente da federação que alegar a reserva do possível deverá, efetivamente, comprovar a indisponibilidade orçamentária, de acordo com a regra processual vigente (SOUZA, 2015).
[14] A expressão terceiro setor começou a ser usada nos anos 70 nos EUA para identificar um setor da sociedade no qual atuam organizações sem fins lucrativos, voltadas para a produção ou a distribuição de bens e serviços públicos (SMITH, 1991 apud ALVES, 2002, p.1). Esse setor também é conhecido como organizações não governamentais, que necessitam, assim como os outros setores, de recursos financeiros para manter a ação continuada, já que estas não têm finalidade financeira e se sustentam através de organização social.
[15]Para Carvalho Filho (2019, p.375): “Uma vez qualificadas como organizações sociais, o que resultará de critério discricionário do Ministério competente para supervisionar ou regular a área de atividade correspondente ao objeto social (art.2º, II, Lei das OS), as entidades são declaradas como de interesse social e utilidade pública, para todos os efeitos legais, e podem perceber recursos orçamentários e usar bens públicos necessários à consecução de seus objetivos, neste último caso através de permissão de uso (art. 11 e 12). Admissível será, ainda, a cessão especial de servidor seu para atuar nas organizações sociais com a incumbência do pagamento de seus vencimentos”.
[16]Ainda segundo Carvalho Filho (2019, p.380), quanto à gestão por colaboração – OSCIP, prevista na Lei nº 9.790/199: “ As organizações da sociedade civil de interesse público, na busca de seus objetivos, podem cooperar com o Poder Público de três maneiras: 1. Por meio da execução direta de projetos, programas e planos de ação; 2. Pela entrega de recursos humanos, físicos ou financeiros; 3. Pela prestação de atividade de apoio a outras entidades sem fins lucrativos. Havendo condições de cooperação com a Administração Pública, a lei prevê a celebração de um termo de parceria (...)”.
Mestra em Direito e Inovação junto à Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora efetiva de Direito junto ao Instituto Federal do Mato Grosso (IFMT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Natascha Alexandrino de Souza. Animais não-humanos e dignidade: uma análise do ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2020, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54965/animais-no-humanos-e-dignidade-uma-anlise-do-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Medge Naeli Ribeiro Schonholzer
Por: VAGNER LUCIANO COELHO DE LIMA ANDRADE
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