HÉLVIA TÚLIA SANDES PEDREIRA [1]
(orientadora)
RESUMO: A união estável é conceituada como a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Contudo, não há na legislação atual a fixação de um lapso temporal mínimo para a sua configuração. O presente trabalho tem como problema central verificar, nos julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a influência do tempo de convivência no reconhecimento da união estável. O artigo trouxe como objetivos a realização de um estudo da união estável na legislação, passando por sua conceituação e a apresentação de seus requisitos caracterizadores, até chegar às decisões do STJ. O método utilizado é o dedutivo e a técnica de revisão adotada foi a bibliográfica e documental. A metodologia utilizada para obter as decisões analisadas foi o emprego dos seguintes descritores: “tempo união estável”, “configuração união estável” e “união estável elementos” no sítio de jurisprudência do STJ, entre os anos de 2017 a 2019. Retornaram 64 decisões, das quais foram excluídas 59, em razão da duplicidade ou impertinência, restando, assim, 05 decisões para esta pesquisa. Tais decisões permitem concluir que o tempo influencia na demonstração da estabilidade do relacionamento e possibilita a evidenciação dos demais requisitos caracterizadores da união estável, especialmente a presença do intuito de constituição de família.
Palavras-chave: União estável. Elementos. Reconhecimento. Tempo de convivência.
ABSTRACT: The stable union is understood as a public, continuous and lasting conviviality, with the objective of forming a family. However, in the current legislation, there is no minimum time frame for its configuration. The main problem of this study is to verify, at the Supreme Court (SC) judgments, the influence of the time of living together in the recognition of the stable union. The article brought as objectives the accomplishment of a study of the stable union in the legislation, going through its conceptualization and the presentation of its characterizing requirements until arriving at the decisions of the SC. The methodology adopted is the deductive and the review technique was bibliographic and documentary. The methodology used to obtain the SC decisions adopted the following terms: "stable union time", "stable union configuration" and "stable union elements" on the jurisprudence website of the SC, between 2017 and 2019. Found 64 decisions, of which 59 were excluded, due to duplicity or impertinence, thus remaining 05 decisions to this research. The decisions allows us to conclude that the time influences the demonstration of the stability of the relationship and allows the evidence of other requirements that characterize the stable union, especially the presence of the intention of constituting a family.
Keywords: Stable Union. Elements. Recognition. Conviviality Time.
Sumário: 1. Introdução. 2. Recorte legislativo da união estável e sua evolução no ordenamento jurídico. 3. União estável: Conceito e requisitos caracterizadores: 3.1 União estável como desdobramento do princípio da dignidade humana; 3.2 Conceito de união estável no Código Civil de 2002 e seus requisitos caracterizadores; 3.2.1 O tempo de convivência para o reconhecimento da união estável. 4. Superior Tribunal de Justiça e o tempo de convivência no reconhecimento da união estável: Análise dos julgados no período de 2017 a 2019: 4.1 Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.602.194/MG; 4.2 Recurso Especial nº 1.558.015/PR; 4.3 Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.149.402/RJ; 4.4 Recurso Especial 1.678.437/RJ; 4.5 Recurso Especial nº 1.761.887/MS; 4.6 Relevância conferida pelo STJ ao lapso temporal no reconhecimento da união estável . 5. Considerações finais.
1.INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88, BRASIL, 2020a), em seu art. 226, §3°, reconheceu o instituto da união estável como uma entidade familiar, mas não se incumbiu de regulá-la, tampouco apresentou seu conceito e elementos caracterizadores.
Com o intuito de regular os direitos dos companheiros no âmbito da união estável, sobreveio a Lei nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c), a qual apresentou como principal novidade a fixação do lapso temporal mínimo de 5 (cinco) anos de convivência como requisito para a concessão do direito à alimentos, o que passou a representar na verdade um elemento para caracterização da própria união estável e os direitos dela decorrentes.
Atualmente, a união estável é regulada pelo Código Civil de 2002 (CC/2002), em título próprio que trata unicamente do tema (BRASIL, 2020e). Ocorre que diante da revogação da Lei nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c) e, ainda, de o CC/2002 não ter estabelecido nas normas um lapso temporal mínimo, restou uma verdadeira situação de vácuo legislativo no que diz respeito à relevância, ou não, do tempo de convivência na configuração da união estável, em especial devido a manutenção do requisito durabilidade pelo art. 1723 do CC/2002 (BRASIL, 2020e), anteriormente previsto pelo art. 1º da Lei nº 9.278/96 (BRASIL, 2020d).
Tendo em vista o crescimento potencial do número do referido arranjo familiar no país, faz-se de suma importância o seu estudo e a compreensão dos elementos que o caracterizam. A ausência na norma de critérios objetivos quanto aos elementos caracterizadores essenciais e acidentais da união estável, dentre eles o tempo de convivência, vem gerando dissenso na jurisprudência desde ao lapso temporal a ser considerado até se o tempo pode ser reconhecido, ou não, como elemento caracterizador da união estável, razão pela qual o tema se reveste de relevância jurídica e social.
A fim de pesquisar essa temática, buscou-se realizar um trabalho que responda à seguinte indagação: como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem analisando o tempo de convivência para o reconhecimento da união estável?
Visando buscar uma resposta à pergunta norteadora a pesquisa traçou como objetivos a apresentação de um recorte legislativo da união estável até o advento do CC/2002 (BRASIL, 2020e), o estudo conceitual deste instituto e de seus requisitos caracterizadores à luz do Direito de Família e do Direito Constitucional e, por fim, a verificação da influência do critério temporal nos julgados de reconhecimento de união estável no STJ entre os anos de 2017 a 2019.
A metodologia utilizada consistiu na análise da legislação pertinente ao tema e na consulta na base de jurisprudência do sítio do STJ de decisões judiciais proferidas entre os períodos de 2017 a 2019 que versem sobre o reconhecimento da união estável, adotando os seguintes descritores: “tempo união estável”, “configuração união estável”, “união estável elementos”.
A presente pesquisa adotou o método dedutivo, por meio da análise das decisões judiciais do STJ, bem como da utilização de estudos já realizados quanto ao objeto de investigação, isto é, a união estável e os seus elementos caracterizadores. O estudo tem natureza descritiva e exploratória, pois visa proporcionar mais informações sobre a união estável e seu reconhecimento judicial.
Ainda, a abordagem do problema possui caráter qualitativo, tendo em vista que as informações obtidas são utilizadas para compreender e interpretar a profundidade do assunto, ausente a finalidade de quantificação estatística dos dados.
Este artigo está organizado em 3 capítulos, sendo realizado, no primeiro deles, um recorte legislativo do tema união estável, com análise da legislação nacional até o advento do CC/2002 (BRASIL, 2020e), a fim de demonstrar a sua evolução dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
No segundo capítulo, estuda-se, de maneira pormenorizada, a união estável com seu conceito sob a perspectiva do direito civil e constitucional, bem como apresenta-se os entendimentos jurídicos acerca dos requisitos caracterizadores da união estável.
No terceiro capítulo, são analisadas as decisões jurisprudenciais do STJ que versem sobre o tema, com o objetivo de verificar a influência do elemento tempo de convivência nos julgamentos de reconhecimento, ou não, da união estável, bem como observar a valoração conferida aos demais elementos caracterizadores deste instituto.
2 RECORTE LEGISLATIVO DA UNIÃO ESTÁVEL E SUA EVOLUÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
Antes de se partir ao estudo da união estável e os seus requisitos caracterizadores, mister se faz a apresentação dos principais diplomas legais referentes a união estável e sua regulamentação, desde a CRFB/88 (BRASIL, 2020a) que a reconheceu como entidade familiar, bem como a edição das Leis nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c) e Lei nº 9.278/96 (BRASIL, 2020d), até o advento do CC/2002 (BRASIL, 2020e).
O grande marco histórico da união estável foi dado pela atual CRFB/88, promulgada em 05 de outubro de 1988, ao proclamar em seu art. 226, §3º: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 2020a).
Antes do reconhecimento do referido instituto, a legislação brasileira admitia tão somente o casamento como entidade familiar, não obstante muitas pessoas constituíssem relacionamentos amorosos optando por não casar. Tratava-se da figura do concubinato, uniões afetivas entre homem e mulher, sem casamento, ou porque não queriam casar, ou por que não poderiam mais se casar devido à existência de algum impedimento.
Contudo, com a promulgação da CRFB/88 (BRASIL, 2020a), o concubinato puro (união afetiva sem casamento entre pessoas desimpedidas) recebeu o status de entidade familiar, digno da mesma proteção jurídica conferida ao casamento, como aponta Zacarias (2010):
Até a vigência da Constituição Federal de 1988, a "família legítima" só poderia existir com o casamento civil, um ato extrajudicial. Mas depois dessa Constituição, além da família formada pelo casamento civil, passaram a ser reconhecidas as famílias monoparentais e as formadas pela união estável entre homem e mulher (ZARIAS, 2010, p. 9).
Assim, foi adotada a terminologia “união estável” para indicar essas relações afetivas existentes e despidas das formalidades exigidas para o casamento, as quais foram inseridas ao Direito de Família, não mais pertencendo ao Direito das Obrigações. Acerca do reconhecimento da união estável como entidade familiar pela CRFB/88 (BRASIL, 2020a), nota-se que a Carta Magna não a conceituou, tampouco a regulamentou, limitando-se tão somente a reconhecê-la como entidade familiar.
Nesse contexto é que foi editada a Lei nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c), a primeira regulamentação expressa sobre as relações entre os companheiros. Tal dispositivo legal previu, em seu art. 1º como principal novidade, a fixação do lapso temporal de 5 (cinco anos) de convivência ou a existência de prole comum como requisitos para concessão do direito a alimentos no âmbito da união estável.
A Lei nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c) foi duramente criticada, embora possua sua relevância como a primeira regulamentação da união estável. Uma das críticas diz respeito à técnica legislativa utilizada quando da previsão do direito a alimentos, uma vez que a norma estabeleceu diretamente os requisitos exigidos para sua concessão (existência de prole e o tempo de convivência por cinco anos), antes mesmo de prever tal direito explicitamente (XAVIER, 2015).
Ademais, outra crítica existente foi acerca da exclusão dos casados, mas separados de fatos, como pessoas que poderiam constituir a união estável, tendo em vista que o art. 1º da Lei nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c) referiu-se somente ao homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo.
O estabelecimento do requisito temporal e existência de prole como requisitos para união estável também foi objeto de críticas, como ressalta Xavier (2015):
[...] a condição de existência de prole não poderia ser requisito da união estável, pois muitos relacionamentos passageiros geram filhos, razão pela qual o elemento acidental previsto só poderia ser interpretado como condicionante da obrigação de alimentar, o que não parece ter sido a intenção do legislador nem a forma mais correta de exegese do dispositivo. (GAMA, 2001, apud XAVIER, 2015, p. 56).
No que diz respeito a tais requisitos, não restou claro, à época, se a existência de prole comum e os cinco anos de tempo de convivência seriam exigidos somente para a concessão de alimentos ou para a própria caracterização da união estável, prevalecendo esse segundo entendimento pela doutrina majoritária, apesar da divergência de interpretações:
Na sequência do Texto Constitucional, foi editada a Lei nº 8.971/94, que veio a disciplinar o direito dos companheiros aos alimentos e à sucessão, impondo como requisitos para a configuração da união estável que os companheiros fossem solteiros, divorciados ou viúvos e que houvesse uma convivência mínima de cinco anos ou a existência de prole. (FARIAS; ROSENVALD, 2017b, p. 462).
Questionou-se, ainda, o fato que a lei não fez qualquer menção aos temas abordados pela Lei nº 6.515/77 (BRASIL, 2020b), a qual regulava os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, bem como seus efeitos, o que gerou incerteza acerca do regime jurídico existente entre os companheiros no âmbito da união estável.
Após menos de dois anos da promulgação da Lei nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c), sobreveio novo diploma legal relativo à união estável, a Lei nº 9.278/96, editada com o intuito de regular o §3º do art. 226 da CRFB/88 (BRASIL, 2020a). A Lei nº 9.278/96 inovou em, finalmente, apresentar o conceito do instituto, como a “convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição da família” (BRASIL, 2020d).
Ao contrário da Lei nº 8.971/94, esta não estabeleceu um lapso temporal para a constituição da união estável e nem o requisito de existência de existência de prole comum. Assim, a configuração da união estável passou a depender da análise do caso concreto, a fim de constatar a convivência duradoura, pública e contínua, estabelecida com o objetivo de constituição de família, conforme previsto pelo art. 1º da Lei nº 9.278/96 (XAVIER, 2015).
O art. 2º da Lei nº 9.278/96 (BRASIL, 2020d), por sua vez, estabeleceu os direitos e deveres dos conviventes, quais sejam o respeito e consideração mútuos, a assistência moral e material recíproca e a guarda, sustento e educação dos filhos comuns, enquanto o art. 5º do mesmo diploma legal tratou da meação sobre os bens adquiridos onerosamente por um ou ambos os conviventes, aproximando a união estável do regime da comunhão parcial de bens, salvo estipulação em contrário.
Já o art. 7º do referido dispositivo legal instituiu o direito a assistência material no âmbito da união estável e o art. 8º, por seu turno, tratou da possibilidade de conversão da união estável em casamento, estabelecendo que os conviventes podem solicitar a conversão junto ao Oficial de Registro Civil da Circunscrição do seu domicílio (BRASIL, 2020d).
Por fim, o art. 9º da Lei nº 9.278/96 estabeleceu a competência do Juízo de Família para dirimir toda a matéria relativa à união estável, acabando com qualquer controvérsia existente acerca da competência material para apreciação das questões concernentes às uniões estáveis. Assim, qualquer conflito deveria ser tratado, a partir de então, nas Varas de Família (BRASIL, 2020d).
Com o advento do CC/2002, o tema união estável foi incorporado ao Direito de Família, com capítulo específico dentro do Livro IV – Do Direito de Família, no qual é regulada em poucos dispositivos (arts. 1723 a 1727). No que diz respeito ao seu conceito, o art. 1723 do CC/2002 limitou-se a reproduzir o conceito previsto no art. 1º da Lei 9.278/96 (BRASIL, 2020d), definindo-a como “convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2020e).
Segundo os dispositivos mencionados, a existência de impedimentos para o casamento, previstos no art. 1521 do CC/2002, será a priori um obstáculo para o reconhecimento da união estável, salvo a exceção do art. 1.521, VI, quando a pessoa se achar separada de fato ou judicialmente (art. 1.723, §1º). Ademais, as causas suspensivas do art. 1.523 do CC/2002 não impedirão o reconhecimento da união estável (BRASIL, 2020e).
Ainda, o art. 1.724 do CC/2002 dispõe que as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos, ao passo que o art. 1.725, por sua vez, prevê que os companheiros podem celebrar contrato acerca de seu regime patrimonial, sendo que sua ausência implicará a aplicação, no que couber, do regime de comunhão parcial de bens (BRASIL, 2020e).
Por fim, o art. 1.726 do CC/2002 dispõe que a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil, enquanto o art. 1.727 do diploma civil define como concubinato as relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de casar (BRASIL, 2020e).
Para Venosa (2017, p. 58), “essas disposições constantes ao Código Civil de 2002 são um péssimo exemplo legislativo e longe estão de estarem isentas de dúvidas, razão pela qual requerem um intenso trabalho interpretativo e jurisprudencial”.
Concluído o estudo sobre o recorte legislativo da união estável, em que foram apresentados os marcos legais do referido instituto, passa-se, então, ao estudo do conceito da entidade familiar em comento e de seus requisitos caracterizadores.
3 UNIÃO ESTÁVEL: CONCEITO E REQUISITOS CARACTERIZADORES
3.1 União estável como desdobramento do princípio da dignidade humana
Logo no art. 1º, inciso III, da CRFB/88, o princípio da dignidade da pessoa humana é elencado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Tal princípio confere ao ser humano o mínimo de respeito e condições para que ele possa coexistir em sociedade, de modo que se busca assegurar o mínimo de dignidade que ele possa ter para existir (BRASIL, 2020a).
A proteção jurídica atribuída à família e a à união estável pela Carta Magna em seu art. 226, §3º, está em plena harmonia com o referido princípio fundamental de proteção à pessoa humana, o qual representa valor-fonte de todo o ordenamento jurídico, a base de todos os direitos fundamentais. Assim, sob a ótica do direito constitucional, ao prever a proteção à família, compreende-se que o Estado brasileiro visa, na realidade, à proteção dos sujeitos que à compõem (XAVIER, 2015).
Sob essa perspectiva, a disciplina da união estável ou de qualquer outra entidade familiar deve garantir proteção especial aos seus componentes, sem discriminações ou tratamento desigual, uma vez que isso implicaria em negar proteção à própria pessoa humana, em evidente violação ao comando constitucional.
Portanto, nota-se a incompatibilidade entre querer assegurar a um cidadão uma vida digna, mas impedi-lo de constituir família da forma que o deseja, razão pela qual o mandamento constitucional do art. 226, §3º, da CRFB/88 (BRASIL, 2020a), representou verdadeiro avanço ao reconhecer a união estável como entidade familiar, restando claro no ordenamento jurídico brasileiro que o sujeito que opta por conviver com outrem sem formalidades é merecedor da mesma proteção jurídica daquele que opta pela realização do casamento.
3.2 Conceito de união estável no Código Civil de 2002 e seus requisitos caracterizadores
O CC/2002, ao regulamentar o art. 226, §3º, da CRFB/88 (BRASIL, 2020a), estabeleceu o conceito da união estável em seu art. 1.723, segundo o qual “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2020e). Como se vê, trata-se de verdadeira transcrição do mesmo conceito previsto anteriormente pelo art. 1º da Lei nº 9.278/96 (BRASIL, 2020d).
A união estável consiste em uma situação de fato existente entre duas pessoas desimpedidas para casar, que vivem juntas como se casadas fossem, configurando assim uma entidade familiar (FARIAS; ROSENVALD, 2017). No mesmo sentido, Venosa (2017) define a união estável como um fato jurídico, isto é, um fato social que gera efeitos jurídicos.
A respeito da natureza da união estável como um fato social, Azevedo (2003, p. 255) aponta que:
Realmente, como um fato social, a união estável é tão exposta ao público como o casamento, em que os companheiros são conhecidos, no local em que vivem, nos meios sociais, principalmente de sua comunidade, junto aos fornecedores de produtos e serviços, apresentando-se, enfim, como se casados fossem. Diz o povo, em sua linguagem autêntica, que só falta aos companheiros ‘o papel passado’. Essa convivência, como no casamento, existe com continuidade; os companheiros não só se visitam, mas vivem juntos, participam um da vida do outro, sem termo marcado para se separarem. (apud TARTUCE, 2019, p. 490).
A interpretação conceitual da união estável perpassa pela compreensão dos seus próprios elementos caracterizadores. A redação do art. 1.723 do CC/2002 ressalta a existência de pelo menos quatro elementos essenciais desta entidade familiar, são eles: a) publicidade; b) continuidade; c) estabilidade; e d) objetivo de constituição de família (BRASIL, 2020e).
Inicialmente, a norma exige que o relacionamento seja revestido de publicidade, também conhecida como notoriedade. O casal deve estar exposto no meio social, como se casado fossem. A união afetiva necessita ser conhecida pelas pessoas, não podendo ser uma união mantida em segredo, de maneira desconhecida na sociedade.
Para Gagliano e Pamplona Filho (2017), “a ideia de o casal ser reconhecido socialmente como uma família, em uma convivência pública, é fundamental para a eventual demonstração judicial da existência de união estável.” Ademais, para esses autores, a publicidade permite diferenciar a união estável de um mero caso, mantido em segredo.
Outro importante elemento caracterizador da união estável diz respeito a continuidade do relacionamento, que pressupõe a convivência sem interrupções, com intenção de permanência e definitividade, e não eventualidade, de modo que ausente a continuidade, o relacionamento não é admitido como união estável.
Ainda, o art. 1.723 do CC/2002 prevê a necessidade de um elemento subjetivo cuja existência é essencial para a caracterização da união estável (BRASIL, 2020e). Trata-se do ânimo ou objetivo de constituir família entre os conviventes, isto é, o firme propósito de formação de família, com realização já no tempo presente, como leciona Gonçalves (2018):
O requisito em apreço exige a efetiva constituição de família, não bastando para a configuração da união estável o simples animus, o objetivo de constituí-la, já que, se assim não fosse, o mero namoro ou noivado, em que há somente o objetivo de formação familiar, seria equiparado à união estável. (GONÇALVES, 2018, p. 293).
O intuito de constituir família consiste no requisito subjetivo que permite a diferenciação entre a união estável e outras figuras, como, por exemplo, o namoro prolongado, afinal os namorados, por mais que estejam há muito tempo juntos, não convivem como se casados fossem. Também distancia a união estável da semelhança com o noivado, pois neste as partes desejam se casarem e constituir família no futuro, enquanto na união estável os companheiros já vivem como casados (FARIAS; ROSENVALD, 2017).
Observa-se que outro requisito essencial caracterizador da união estável seria a dualidade de sexos, tendo em vista que o art. 1.723 do CC/2002 dispõe que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre homem e mulher” (BRASIL, 2020e). Anteriormente, a união de duas pessoas do mesmo sexo – uniões homoafetivas – não geravam qualquer direito, independentemente do tempo de convivência.
Essa situação perdurou até o ano de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, regida pelas mesmas regras que se aplicam à união estável dos casais heterossexuais (GONÇALVES, 2018).
Nesse sentido, Maués (2015) ressalta que:
Como é sabido, o STF fez um amplo uso do direito à igualdade na sua decisão, o que se pode exemplificar com o voto do Ministro Ayres Britto (Relator). [...] O Ministro inicia seu voto abordando as uniões homoafetivas como aquelas que se caracterizam por sua durabilidade, conhecimento do público, continuidade e propósito de constituição de uma família, recordando ainda que, de acordo com a Constituição de 1988, o critério do sexo não pode ser utilizado como “fator de desigualação jurídica”, salvo “expressa disposição constitucional em contrário”. Isso implica reconhecer que está vedado o “tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos” e que o “bem de todos”, previsto pela Constituição, também se alcança por meio da “eliminação do preconceito de sexo”. (MAUÉS, 2015, p. 17).
Assim, prevalece hoje o entendimento jurisprudencial estabelecido pela Corte, pelo qual a união estável não necessita ser oriunda de união heterossexual, razão pela qual a imprescindibilidade da dualidade de sexos para o referido instituto é atualmente superada pela doutrina e jurisprudência.
3.2.1 O tempo de convivência para o reconhecimento da união estável
Após realização do estudo conceitual da união estável e da apresentação dos seus elementos caracterizadores, ressalta-se a existência do requisito caracterizador da união estável ainda faltante: a durabilidade ou estabilidade da relação amorosa.
O requisito caracterizador estabilidade ou durabilidade foi instituído no art. 1.723 do CC/2002 ao prever que o relacionamento a ser reconhecido como união estável deva ser duradouro (BRASIL, 2020e), adentrando assim no aspecto temporal da convivência do casal, foco central da presente pesquisa.
Salienta-se que com o advento do CC/2002, o lapso temporal mínimo de 5 (cinco) anos de convivência para o reconhecimento da união estável, previsto pela Lei nº 8.971/94 (BRASIL, 2020c) foi abolido, uma vez que o CC/2002 não assentou nada nesse sentido (BRASIL, 2020e). A esse respeito, Madaleno (2018, p. 1.448) leciona que “andou bem o legislador ao afastar um prazo mínimo para reconhecer a existência de uma união estável, porque importa ao relacionamento a sua qualidade e não o tempo da relação”.
Farias e Rosenvald (2017), por sua vez, ao tratar do estabelecimento de um prazo mínimo de convivência para a configuração da união estável, enfatizam que:
Por óbvio, convém rechaçar, de logo, que a durabilidade esteja conectada à exigência de algum lapso temporal mínimo. Não se exige, como visto alhures, prazo mínimo de convivência, dependendo a caracterização da união estável das circunstâncias concretas de cada caso. [...] Confere-se, então, ao intérprete, casuisticamente, a tarefa de verificar se a união perdura por tempo suficiente para a estabilidade familiar. (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 480).
Nesse sentido, muito embora a regulamentação atual deste instituto não estabeleça um prazo mínimo de duração para a sua configuração, ressalta-se que pelo atual diploma civil a durabilidade do relacionamento permanece como um requisito indispensável para a caracterização da união estável, razão pela qual surge a dúvida quanto à valoração que deve ser conferida ao requisito temporal.
Conquanto o 1.723 do CC/2002 estabeleça expressamente a durabilidade do relacionamento como um requisito caracterizador essencial (BRASIL, 2020e), a constatação de quanto tempo é suficiente para considerar este requisito preenchido é realizada casuisticamente pelo magistrado, tendo em vista a ausência de fixação de parâmetros objetivos na norma civil. O juiz deve, portanto, verificar, caso a caso, se a união perdura por tempo bastante ou não para o reconhecimento da união estável.
Outro entendimento existente acerca do tempo de convivência é que este é na verdade um elemento acidental, bem como a existência de prole e a coabitação do casal. Elementos acidentais consistem em circunstâncias fáticas que, embora não sejam essenciais para caracterização da união estável, podem vir a corroborar a alegação de sua existência, de modo a contribuir para o seu consequente reconhecimento judicial (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017).
Contudo, esse entendimento doutrinário quanto a natureza acidental do elemento tempo de convivência gera incerteza, tendo em vista que nesse sentido o tempo de convivência seria compreendido como um elemento caracterizador complementar, e não indispensável a sua caracterização, sendo que, por outro lado, o próprio art. 1723 do CC/2002 (BRASIL, 2020e) prevê expressamente dentre seus requisitos essenciais que para a configuração da união estável a convivência deve ser duradoura, razão pela qual depreende-se que a durabilidade seria um elemento caracterizador essencial, e não acidental.
Além disso, pela análise do art. 1.723 do CC/2002, é possível verificar que se trata de um enunciado normativo com diversos conceitos - convivência pública, contínua e duradoura, com objetivo de constituir família - (BRASIL, 2020e), verdadeiras cláusulas gerais, as quais necessitam ter o seu conteúdo preenchido por meio da observação e valoração do caso concreto pelo aplicador. Nesse sentido, Tartuce (2019) aponta a existência de uma cláusula geral para a caracterização da união estável, tendo em vista a subjetividade de seus elementos essenciais.
A cláusula-geral é caracterizada pela previsão normativa de uma situação fática vaga e um efeito jurídico indeterminado, sendo ainda maior que no conceito jurídico indeterminado, pois além ser vaga a hipótese de incidência da norma, é indeterminado o seu efeito jurídico. (NEVES, 2018).
A norma civil, ao estabelecer os elementos “convivência pública, contínua e duradoura, com objetivo de constituição de família”, sem a fixação de critérios objetivos, a exemplo um lapso temporal mínimo, tende a possibilitar o seu alcance e aplicação ao máximo de situações possíveis, além de garantir o dinamismo da norma. Entretanto, segundo o autor Martins-Costa (2016, p. 134, apud TRÉS, 2018, p. 468), a vagueza e a imprecisão do significado de uma norma de cláusula geral geram incerteza se determinados casos se enquadram ou não no enunciado normativo.
Em razão da informalidade da união estável pela prescindibilidade de ato constitutivo, e ainda, de fatores como a vagueza da regulamentação referente ao tema e a essencialidade de um elemento caracterizador subjetivo para o reconhecimento da união estável (objetivo de constituição de família), infere-se pela dificuldade da constatação da união estável.
Destarte, segundo Tartuce (2019), a jurisprudência tem variado muito na apreciação do reconhecimento da união estável:
Não há qualquer requisito formal obrigatório para que a união estável reste configurada, tal como a necessidade de elaboração de uma escritura pública entre as partes ou documento diverso, ou de uma decisão judicial de reconhecimento, sendo que justamente por isso, a jurisprudência tem variado muito no enquadramento da união estável. (TARTUCE, 2019, p. 491).
Diante do exposto, malgrado a doutrina majoritária compreenda o tempo de convivência como um elemento meramente acidental, há de se ponderar o lapso temporal como um elemento caracterizador essencial para o reconhecimento da união estável, tendo em vista que o art. 1723 do diploma civil estabelece a durabilidade como um de seus elementos essenciais, e falar de durabilidade significa falar, inegavelmente, do tempo de convivência do casal, mas a questão é: quanto tempo? Como o STJ tem analisado o tempo de convivência nas ações de reconhecimento da união estável?
Observa-se ainda que, diante da previsão normativa abstrata da união estável, o estabelecimento de um lapso temporal mínimo poderia trazer significativa contribuição no que diz respeito à segurança jurídica e a um mínimo de previsibilidade das decisões judiciais concernentes ao reconhecimento da união estável.
4 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E O TEMPO DE CONVIVÊNCIA NO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL: ANÁLISE DOS JULGADOS NO PERÍODO DE 2017 A 2019
Uma vez realizado o estudo da união estável e seus requisitos caracterizadores, notadamente da durabilidade do relacionamento, serão abordados no presente capítulo, em atenção aos objetivos traçados para essa investigação, os fundamentos adotados pelo STJ em decisões relativas ao reconhecimento ou não da união estável, a fim de compreender como o STJ tem analisado o tempo de convivência, bem como observar a valoração conferida aos demais elementos caracterizadores deste instituto.
Foram empregados os descritores: “tempo união estável”, “configuração união estável” e “união estável elementos”, no sítio de pesquisa de jurisprudência do STJ para busca de decisões proferidas entre os anos de 2017 a 2019 que versem sobre o reconhecimento ou não da união estável e seus requisitos.
O emprego dos referidos descritores resultou no quantitativo de 64 decisões, das quais foram excluídas 59, em razão de duplicidade ou impertinência. Assim, foram retornadas 05 decisões que guardam relação com o objeto da presente pesquisa, as quais subsidiaram a elaboração de seus resultados, expostas a seguir.
4.1 Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.602.194/MG
O Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.602.194/MG (BRASIL, 2020h) trata originariamente de ação declaratória de reconhecimento do restabelecimento da sociedade conjugal com pedido alternativo de reconhecimento de união estável, ajuizada pela recorrente em face dos herdeiros do falecido, com quem a autora foi casada por mais de 34 anos, alegando que, após a separação judicial do casal, em outubro de 2003, houve a caracterização da união estável no período antecedente ao falecimento do ex-cônjuge.
O pedido foi julgado improcedente e embora a apelante tenha pugnado pelo reconhecimento da união estável que teria se caracterizado no curto interregno de 5 (cinco) meses entre a separação do casal, em outubro de 2003, e o falecimento do ex-cônjuge, ocorrido em março de 2004, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais negou provimento ao recurso.
Os fundamentos que embasaram o desprovimento do recurso pelo Tribunal foram, em síntese, que o contexto probatório indica que o casal, possuidor de vasto patrimônio e sem filhos comuns, manteve contato e laços de amizade após a separação consensual, contudo não restou caracterizada a existência de união estável. Ademais, para o Tribunal de origem, o lapso temporal de 5 (cinco) meses não se mostrou suficiente para a caracterização da união estável alegada.
Para o Ministro Raul Araújo (Relator), cujo voto prolatado foi acompanhado pelos demais julgadores, as provas produzidas pela agravante não demonstram a situação de reconciliação do casal ou de continuidade da vida em comum após a separação definitiva:
As provas produzidas demonstraram que o casal separou-se definitivamente, não se revelando no período de doença do ex-esposo reconciliação ou continuidade da vida em comum, e sim laços de amizade, confiança e solidariedade entre eles, a indicar que a agravante teria prestado mero auxílio durante o tratamento da enfermidade. (BRASIL, 2020h).
Assim, na mesma linha de entendimento da Corte Local, os julgadores do acórdão do Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.602.194/MG (BRASIL, 2020h) concluíram que após a separação judicial, nesse exíguo tempo de 5 (cinco) meses, não ficou efetivamente demonstrada a manutenção de laços afetivos entre o falecido e sua ex-esposa aptos a configurar a existência de união estável, fundamento pelo qual negaram provimento ao recurso.
4.2 Recurso Especial nº 1.558.015/PR
No Recurso Especial nº 1.558.015/PR (BRASIL, 2020g), a recorrente alega que a sentença homologatória do acordo de reconhecimento e dissolução do relacionamento entre as partes padece de vício processual, requerendo a sua anulação. Aduz, em síntese, que antes da audiência de ratificação havia revogado os poderes ao patrono primitivo, habilitando após um novo procurador, o qual se manifestou suscitando discordância com os termos do acordo e, mesmo diante destes fatos, o Juízo singular proferiu a sentença homologatória.
Em verdade, ocorre que a varoa se arrependeu do acordo realizado, no qual ambas as partes negaram sistematicamente a existência de união estável perante o juízo de família, ocasião em que reconheceram a existência do relacionamento amoroso, mas afirmaram não haver no relacionamento a intenção de constituir família.
Os julgadores do Recurso Especial nº 1.558.015/PR defendem que uma vez concluída a transação judicial, é impossível o arrependimento unilateral das partes, mesmo que ainda não tenha sido homologado o acordo em Juízo. Eventual pedido de anulação só pode ser postulado em outro processo, portanto, para buscar rescisão da transação por vício de consentimento (BRASIL, 2020g).
No que diz respeito a configuração da união estável, o acórdão do Recurso Especial nº 1.558.015/PR fundamenta que:
[...] a união estável, por se tratar de estado de fato, demanda, para sua confirmação e verificação, a reiteração do comportamento do casal que revele, a um só tempo e de parte a parte, a comunhão integral e irrestrita de vidas e esforços, de modo público e por um lapso temporal significativo. (BRASIL, 2020g).
Os fundamentos jurídicos perfilhados no julgamento do Recurso Especial nº 1.558.015/PR aduzem, ainda, que não é qualquer relação amorosa que caracteriza a união estável, uma vez que pode ser que o relacionamento se revista de publicidade, durabilidade, formalidade e até mesmo coabitação, e ainda assim não haja a presença do elemento subjetivo fundamental para a caracterização da união estável: o intuito presente de constituir família (BRASIL, 2020g).
Ademais, em seu voto de julgamento (BRASIL, 2020g), o Ministro Luís Felipe Salomão (Relator) ressalta que o STJ já reconheceu inclusive a configuração do namoro qualificado, que tem como principal traço distintivo da união estável a ausência do objetivo presente de constituição de família.
4.3 Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.149.402/RJ
O Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.149.402/RJ (BRASIL, 2020f), foi manejado pela parte autora contra decisão que conheceu do agravo para não conhecer do recurso especial, sob os fundamentos de deficiência na argumentação e incidindo-se a necessidade de reexame de provas para rever as conclusões assentadas no acórdão recorrido, o que é vedado pela Súmula 7/STJ (BRASIL, 2020k).
Contudo, pela análise dos trechos do julgado do Tribunal transcritos pelo Ministro Og Fernandes (Relator) em seu voto, nota-se que no caso em tela o relacionamento do autor com a ex-servidora era mantido há cerca de um 1 (um) ano, porém o próprio recorrente alega que os planos de constituição de família, inclusive com filhos, não foram realizados devido ao falecimento prematuro da ex-servidora.
Segundo o Tribunal, a formalização da união estável através de instrumento público, perante tabelião, inegavelmente confere maior segurança aos conviventes. No entanto, o contrato particular de união estável acostado aos autos, conjugado com a inexistência de outras provas contundentes da união estável, e ainda não registrado no Cartório competente e celebrado sem a assinatura de testemunha, não possui o condão de produzir efeitos contra terceiros (BRASIL, 2020f).
O Tribunal de origem argumenta ainda que a união estável não é configurada pela existência de um negócio jurídico, de modo que sua essência não pode ser delineada simplesmente por um contrato, bem como que a união estável consiste em “uma situação de fato que se consolida com o decorrer do tempo (donde surgiu o requisito "relação duradoura", ou "razoável duração") e não depende de nenhum ato formal para se concretizar”.
Nessa perspectiva, a existência de um “contrato de namoro” não terá validade nenhuma para afastar a existência de união estável em caso de separação, se esta de fato restar demonstrada. De igual forma, se não houver união estável e sim namoro qualificado que poderá um dia evoluir para uma união estável, o “contrato de união estável” celebrado anteriormente à consolidação desta relação não terá efeitos jurídicos.
Pelo contexto fático-probatório restou demonstrado que se trata de namoro qualificado, pois muito embora tenha sido sério, contínuo, público e duradouro, no tocante ao requisito subjetivo, faltava ao relacionamento à concretização do intuito de constituição de família, havendo apenas um planejamento de formação de núcleo familiar.
Dessa feita, no acórdão recorrido o Tribunal decidiu que a relação do autor com a falecida servidora não configura união estável, e sim namoro qualificado, discorrendo que na união estável o relacionamento possui aparência de casamento durante toda a convivência, pois nela o objetivo de constituir família já está concretizado, ao passo que, no namoro qualificado, há o objetivo de constituição de família voltada para o futuro.
Os julgadores do Agravo em Recurso Especial nº 1.149.402/RJ (BRASIL, 2020f) aduzem que diante da ausência de evidências de comunhão de vida e esforços, consubstanciada na assistência moral e material recíproca irrestrita, o Tribunal concluiu pela não configuração da união estável, bem como que a inversão do julgado do Tribunal de origem exigiria, inequivocamente, a reanálise do conjunto fático-probatório, o que é inviável em sede de Recurso Especial, nos termos da Súmula 7/STJ (BRASIL, 2020k).
4.4 Recurso Especial 1.678.437/RJ
A controvérsia do Recurso Especial nº 1.678.437/RJ (BRASIL, 2020i) gira em torno do marco inicial para o reconhecimento da união estável. A sentença julgou os pedidos procedentes em parte, somente para reconhecer a união estável a partir de junho de 2004, data em que nasceu o filho primogênito do casal. Contudo, a acórdão, por unanimidade, definiu a data de início da união estável em agosto de 2002 (data gravada nas alianças trocadas pelo casal).
No acórdão do Recurso Especial nº 1.678.437/RJ (BRASIL, 2020i) os julgadores defendem que de início deve ser afastada a configuração da união estável a partir da data gravada na aliança do casal, 25/08/2002, tendo em vista que em audiência a recorrida informou que nesta data gravada na aliança ela estava em separação de casamento anterior e não poderia se expor, complementando que passou a morar com o recorrente no ano seguinte, em 2003. Tais informações obstam o reconhecimento da união estável pois evidencia-se a ausência de requisitos essenciais da união estável, como a publicidade e objetivo de constituição de família, estabelecidos no art. 1.723 do CC/2002 (BRASIL, 2020e).
A Ministra Nancy Andrighi (Relatora) aduz em seu voto, em sede do Recurso Especial nº 1.678.437/RJ, que o reconhecimento da união estável também não pode ser a partir da data de nascimento do filho primogênito do casal, 18/06/2004, uma vez que não parece crível que a união estável tenha se materializado simultaneamente a este acontecimento, uma vez que o nascimento de uma criança exige a realização de diversos preparativos anteriores, tais como exames médicos periódicos e aquisição do enxoval (BRASIL, 2020i).
Também se argumenta, no bojo do voto da Ministra Relatora, que o recorrente afirmou em audiência que após sofrer acidente em fevereiro de 2003, a recorrida passou a praticamente residir com ele. Malgrado a coabitação entre os companheiros não seja elemento indispensável à caracterização da entidade familiar em comento, inegavelmente a coabitação representa um indicativo da existência da união estável, a qual pode ser conjugada com os demais elementos a serem examinados no caso concreto.
Nesse sentido, para os julgadores do Recurso Especial nº 1.678.437/RJ (BRASIL, 2020i), a análise dos elementos probatórios, somada a existência de coabitação entre as partes a partir de fevereiro de 2003, mantida ao tempo da descoberta da gravidez em 24/10/2003 (ocasião em que a recorrida comunicou a residência do recorrente como seu próprio endereço), permitem o estabelecimento da data de 24/10/2003 como o marco temporal em que a união estável restou devidamente configurada, com a presença de seus elementos caracterizadores, nos moldes do art. 1723 do CC/2002 (BRASIL, 2020e).
4.5 Recurso Especial nº 1.761.887/MS
A controvérsia do Recurso Especial nº 1.761.887/MS estava em definir se o relacionamento existente entre os companheiros em um curto lapso de tempo – dois meses de namoro e duas semanas de coabitação –, seria suficiente para a configuração de união estável. No caso em apreço, a autora alegava ter mantido relacionamento amoroso com o falecido como se fossem casados, postulando assim o reconhecimento e a dissolução da união estável (BRASIL, 2020j).
O magistrado de piso havia julgado procedente o pedido, e interposta apelação, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul negou provimento ao recurso e corroborou com o entendimento da sentença, reconhecendo a existência da união estável. Os argumentos utilizados foram que a união estável nasce de um simples fato jurídico: a convivência duradoura com objetivo de constituição de família, independentemente do tempo de convivência.
Contudo, o acórdão do Recurso Especial nº 1.761.887/MS contrapõe o entendimento do Tribunal de origem, no que diz respeito a necessidade de observância do requisito durabilidade:
Em relação à exigência de estabilidade para configuração da união estável, apesar de não haver previsão de um prazo mínimo, exige a norma que a convivência seja duradoura, em período suficiente a demonstrar a intenção de constituir família, permitindo que se dividam alegrias e tristezas, que se compartilhem dificuldades e projetos de vida, sendo necessário um tempo razoável de relacionamento. (BRASIL, 2020j).
Os julgadores do Recurso Especial nº 1.761.887/MS (BRASIL, 2020j) aduziram que o tempo muito exíguo de duração do relacionamento (apenas dois meses de namoro, sendo duas semanas em coabitação) não permite a configuração da estabilidade necessária para o reconhecimento da união estável, uma vez que o art. 1723 do CC/2002 (BRASIL, 2020e) exige, para configuração dessa entidade familiar, que o relação seja duradoura, prolongada no tempo em período suficiente a demonstrar a intenção de constituição de família.
O Ministro Luís Felipe Salomão (Relator), cujo voto foi acompanhado pelos demais julgadores, argumenta ainda no bojo do Recurso Especial nº 1.761.887/MS que é impossível identificar o requisito estabilidade numa relação que tenha durado apenas duas semanas, e ainda, que a mera intenção de constituição de família do casal não é suficiente para a caracterização da estável, pois o referido intuito não chegou a ser efetivamente concretizado no curto lapso temporal em que permaneceram juntos (BRASIL, 2020j).
Assim, para o Ministro Luís Felipe Salomão (Relator), o que houve foi um namoro e não união estável:
[...] um namoro de dois meses com coabitação de duas semanas, que, a meu juízo, não se mostra duradouro o suficiente para evidenciar a estabilidade de um relacionamento como a união estável, com comunhão de vida, comprometimento mútuo, planejamento familiar, em nítida convicção de se estar criando uma entidade familiar segura e permanente. (BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RESP Nº 1.761.887).
Nesse sentido, a Corte Superior concluiu pelo não reconhecimento da união estável no caso em questão, por entender que o relacionamento não era duradouro o suficiente para evidenciar a estabilidade da relação (BRASIL, 2020j).
4.6 Relevância conferida pelo STJ ao lapso temporal no reconhecimento da união estável
A discussão suscitada no presente trabalho quanto ao elemento tempo de convivência para o reconhecimento da união estável originou-se na ausência da fixação de um tempo mínimo de relacionamento para a caracterização da união estável, ao passo que a durabilidade continua a ser, desde a Lei nº 9.278/96 (BRASIL, 2020d), um requisito essencial para o constituição da entidade familiar.
Por meio das decisões expostas no presente trabalho, é perceptível que o STJ tem considerado o tempo de convivência das relações amorosas como um elemento a ser abalizado, analisado e valorado para se aferir a existência ou não da estabilidade nos relacionamentos, em conjunto com a apreciação dos demais requisitos caracterizadores desta entidade familiar.
Infere-se que muito embora a Corte Superior demonstre em suas decisões que o reconhecimento da união estável independe do tempo de convivência do casal, extrai-se dos julgados do Recurso Especial nº 1.761.887/ MS e do AgInt no Recurso Especial nº 1.602.194/MG a existência de certa ponderação quanto ao requisito temporal, tendo em vista que os Ministros apontam em seus julgamentos a insuficiência do período de 2 (dois) e 5 (cinco) meses de relacionamento, respectivamente, para a caracterização da união estável.
Por outro lado, pela análise dos julgados depreende-se que a tendência do STJ tem sido no sentido de que a durabilidade prevista pelo art. 1.723 do CC/2002 (BRASIL, 2020e) como um elemento caracterizador da união estável não diz respeito apenas ao tempo de convivência em si, em seu sentido numérico, e sim no surgimento da estabilidade que inegavelmente decorre das relações amorosas com o passar do tempo, demonstrando a comunhão de vidas e de esforços dos conviventes.
Ademais, as decisões demonstram que a durabilidade exigida pelo art. 1723 do CC/2002 (BRASIL, 2020e) está relacionada também a necessidade do decurso de um lapso temporal minimamente suficiente para que nele reste evidenciado a existência dos demais elementos caracterizadores da união estável, tais como a publicidade, a continuidade e especialmente o objetivo de constituição de família.
Inclusive, no tocante aos demais requisitos caracterizadores da união estável, nota-se que o STJ tem conferido destaque ao requisito subjetivo concernente ao intuito de constituir família, o qual tem se sobressaído nos fundamentos das decisões em comparação com os demais elementos caracterizadores, representando assim o elemento caracterizador preponderante para o reconhecimento da união estável, e sendo ele inclusive o traço diferenciador da união estável com outras modalidades de relacionamento, como o namoro qualificado.
Nessa perspectiva, percebe-se que o lapso temporal, por si só, não representa um elemento caracterizador para a o reconhecimento da união estável, mas a durabilidade e a estabilidade que dele decorrem representam, e ainda, que o elemento caracterizador prevalecente tem sido o intuito de constituir família voltado para o presente, isto é, a existência de uma família constituída, cuja constatação, por mais que o tempo de convivência seja curto, pode vir a fundamentar o reconhecimento da união estável, em virtude da ausência de fixação de um lapso temporal mínimo para tanto.
O presente artigo abordou desde o recorte legislativo do tema união estável, ao conceito deste instituto e aos entendimentos jurídicos acerca de seus requisitos caracterizadores, até adentrar nas decisões do STJ referentes ao reconhecimento da união estável, julgadas entre os períodos de 2017 a 2019, a fim de compreender a influência do elemento tempo de convivência nos julgamentos de reconhecimento, ou não, da união estável, bem como observar a valoração conferida aos demais elementos caracterizadores deste instituto.
Inicialmente notou-se a evolução legislativa quanto à regulação da união estável, com o reconhecimento do instituto como entidade familiar quando da promulgação da CRFB/88 (BRASIL, 2020a) e, ao fim, com a incorporação do tema união estável ao Livro IV – Do Direito de Família no CC/2002 (BRASIL, 2020e). Em contraponto, constatou-se que o instituto ainda é regulado em pouquíssimos dispositivos pelo atual diploma civil e que a sua conceituação permanece a mesma daquela estabelecida no art. 1º da Lei 9.278/96 (BRASIL, 2020d), de modo que não existiram inovações legislativas quanto a sua caracterização.
Em relação ao tempo de convivência para o reconhecimento da união estável, atualmente não há um lapso temporal mínimo para a configuração da união estável, mas o art. 1.723 do CC/2002 prevê que a união estável é configurada na existência, dentre outros elementos, de um relacionamento duradouro (BRASIL, 2020e).
Nesse sentido, após análise das decisões do STJ observou-se que malgrado a união estável possa ser configurada independentemente do tempo do relacionamento, nota-se a tendência do STJ em não reconhecer a união estável nos casos de curta duração de tempo dos relacionamentos, como 2 (dois) e 5 (cinco) meses, justificando que tempos exíguos como esses são não são suficientes para a configuração da união estável.
Ao longo da análise jurisprudencial da Corte Superior, notou-se que a durabilidade exigida pela norma civil não diz respeito a um determinado lapso temporal da convivência considerado adequado, mas sim a uma ponderação cautelosa do conjunto probatório para aferir se restou evidenciado que havia no relacionamento a estabilidade e a comunhão de vidas esperada de um relacionamento com potencialidade para o reconhecimento da união estável.
Os julgados deixam claro o entendimento do STJ de conferir valoração ao tempo de convivência ao reconhecer que o relacionamento deve existir por um tempo minimamente suficiente para que nele possa haver a demonstração dos outros elementos caracterizadores da união estável previstos pelo art. 1723 do CC/2002, tais como a publicidade, a continuidade e o intuito de constituição de família (BRASIL, 2020e).
Conclui-se, assim, que embora o STJ valore o tempo para o reconhecimento da união estável, ele é compreendido com um significado mais abrangente relacionado a estabilidade do relacionamento, bem como a possibilidade de evidenciação de outros requisitos em decorrência do tempo, os quais devem ser analisados e valorados em conjunto, especialmente a constatação do objetivo de constituição de família, concebido como o elemento caracterizador preponderante para o reconhecimento da união estável.
Em relação às dificuldades encontradas para a realização desta pesquisa, destaca-se a ausência de estudos que possuam o mesmo recorte, atinente aos elementos que caracterizam a união estável. Ademais, salienta-se a dificuldade para encontrar decisões que adentrassem na análise do configuração ou não da união estável, sobretudo que abordassem os seus requisitos e o tempo de convivência, tendo em vista que de modo geral as decisões do STJ esbarram na existência da Súmula 7/STJ, cujo teor veda o reexame de provas em sede de Recurso Especial (BRASIL, 2020k).
Pode-se eleger, portanto, como proposta de trabalhos futuros a realização da pesquisa com o mesmo recorte, todavia junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins ou a uma Vara de Família da Comarca de Palmas - Tocantins, a fim de verificar como o tempo de convivência tem sido valorado nos julgamentos destas instâncias, uma vez que nelas os julgadores estão autorizados a analisar/reanalisar o conjunto fático-probatório.
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[1] Especialista em Direito Constitucional, Direito e Processo do Trabalho. Professora de Direito da Universidade Federal do Tocantins - UFT. Juíza de Direito. E-mail: [email protected].
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Tocantins - UFT;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA-MELO, Victoria Alexia. O tempo de convivência e a influência no reconhecimento da união estável: análise a partir da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 ago 2020, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55006/o-tempo-de-convivncia-e-a-influncia-no-reconhecimento-da-unio-estvel-anlise-a-partir-da-jurisprudncia-do-superior-tribunal-de-justia. Acesso em: 23 dez 2024.
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