De modo inovador o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça (CEJ/CJF) realizou, entre os dias 3 e 7 de agosto de 2020, a I Jornada de Direito Administrativo. Em função da pandemia decorrente do COVID19, os debates ocorreram de modo virtual pelos 410 participantes do evento, entre doutrinadores, professores, advogados, magistrados, membros da advocacia pública, da defensoria pública, do ministério público, além de integrantes de outras carreiras jurídicas.[1]
Na referida jornada foram recepcionadas 743 propostas para análise e, logo após, 222 delas restram pré-selecionadas para um maior aprofundamento junto às comissões de trabalho do evento. Ao final dos debates e votações, 40 enunciados acabaram aprovados, orientações essas de alto impacto prático no cenário do direito administrativo.
É cediço, nessa linha de ideias, que muitos aplicadores do direito motivam seus atos decisórios em enunciados de jornadas. Exemplificativamente, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) adota esse procedimento ao justificar diversos de seus acórdãos:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA QUESTÃO DE ORDEM. REVISÃO DE TESE REPETITIVA. SOBRESTAMENTO. EXTENSÃO. DESAPROPRIAÇÃO. REFORMA AGRÁRIA. JUROS COMPENSATÓRIOS. FALTA DE INSURGÊNCIA QUANTO AO CAPÍTULO CORRESPONDENTE DA SENTENÇA. LEI N. 13.465/2017. EXCLUSÃO DA SUSPENSÃO. ALTERAÇÃO DO MOMENTO DE SUSPENSÃO. RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. ALTERAÇÃO DO ESCOPO DE SOBRESTAMENTO. RESTRIÇÃO AO CAPÍTULO DAS TESES AFETADAS. POSSIBILIDADE DE DECISÃO PARCIAL DE MÉRITO E CORRESPONDENTE SEGUIMENTO DO PROCESSO. ENUNCIADO 126 DA II JORNADA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL/CJF. EMBARGOS ACOLHIDOS, EM PARTE. 1. Na hipótese de inexistir insurgência quanto ao capítulo da sentença relativa aos juros compensatórios, ou de não ser aplicável o reexame necessário, não há que se falar em sobrestamento do feito. 2. A Lei n. 13.465/2017 afastou a incidência do art. 15-A do Decreto-Lei n. 3.365/1941 no tocante às desapropriações para reforma agrária, sendo inaplicáveis as teses repetitivas sujeitas à revisão dos processos em que a imissão na posse tenha ocorrido a partir de sua vigência. Por conseguinte, tais casos não devem ser abrangidos pela suspensão. 3. Quanto ao pleito para que a suspensão ocorra somente após a interposição do recurso especial, os aclaratórios não prosperam, seja porque é inexistente qualquer vício de fundamentação nesse ponto, seja porque tal providência destoa da lógica atribuída ao regime de precedentes judiciais estabelecido no CPC/2015. Da mesma forma, não há que se falar em risco de sobrestamento do feito por ocasião do indeferimento da imissão provisória na posse do imóvel, porquanto, em tal etapa, não há debate sobre o índice de juros compensatórios aplicável. 4. Nos termos do Enunciado 126 da II Jornada de Direito Processual Civil/CJF, "o juiz pode resolver parcialmente o mérito, em relação à matéria não afetada para julgamento, nos processos suspensos em razão de recursos repetitivos, repercussão geral, incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência". Assim, deverá o juiz deixar de proferir decisão sobre as teses afetadas, sobrestando o processo quanto aos capítulos relacionados, sem prejuízo de decisão e seguimento do feito no que diga respeito às demais questões. A homologação de acordo entre as partes excluindo a questão das matérias controvertidas também afastará o sobrestamento. 5. Embargos de declaração acolhidos em parte, para esclarecer que não estão compreendidos na ordem de sobrestamento: i) os feitos expropriatórios em que não haja recurso quanto aos juros compensatórios ou não estejam sujeitos a reexame necessário e, em nome da segurança jurídica, os feitos já transitados em julgado até a data da publicação do acórdão paradigma; ii) as desapropriações para reforma agrária cuja imissão na posse tenha ocorrido após a vigência da Lei n. 13.465/2017; e iii) as questões controvertidas alheias ao debate dos juros compensatórios, nos termos do Enunciado n. 126 da II Jornada de Direito Processual Civil/CJF. (STJ, EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 1.328.993 – CE, Primeira Seção, Relator Ministro Og Fernandes, DJe 27/06/2019)
A par disso, cumpre registrar a relevância da jornada administrativista, pois esta representa um avanço significativo no caminho do aperfeiçoamento da aplicação do direito administrativo, este manifestado por várias reflexões profundas extraídas do mencionado evento.
Sem sombra de dúvidas, diversas questões polêmicas e de alta repercussão jurídica e social foram – e serão – objeto de reflexões nas jornadas de direito administrativo, notadamente em momento sensível por que passa a sociedade brasileira tão abalada pela pandemia resultante do COVID19. Vale dizer, cada vez mais os cidadãos se mostram conectados ao direito administrativo e essa é uma realidade inquestionável.
Já era hora deste ramo do direito, que lida essencialmente com questões relacionadas à Administração Pública, ser contemplado com estudos de alta profundidade pelo CEJ/CJF. Essa concepção, aliás, já começou a ser percebida com a aprovação dos 40 primeiros enunciados, dentre os quais se destaca neste artigo o de nº 12 que trata da denominada decisão administrativa robótica.
Como se sabe, a Administração Pública é movida por princípios próprios, dentre eles os seguintes:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
A legalidade, pois, constitui essência da atuação administrativa. Lado outro, a Lei Federal nº 9.784/1999 estipula que o atuar de acordo com a lei exige a devida motivação dos atos administrativos:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
[...]
VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;
[...]
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;
IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;
V - decidam recursos administrativos;
VI - decorram de reexame de ofício;
VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;
VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.
§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.
§ 2o Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados.
§ 3o A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.
Dessa maneira, não restam dúvidas quanto ao dever de motivar os atos administrativos. A doutrina, aliás, comunga do mesmo pensamento:
A motivação deve ser prévia ou contemporânea à expedição do ato. Em algumas hipóteses de atos vinculados, isto é, naqueles em que há aplicação quase automática da lei, por não existir campo para interferência de juízos subjetivos do administrador, a simples menção do fato e da regra de Direito aplicada pode ser suficiente, por estar implícita a motivação. Naqueles outros, todavia, em que existe discricionariedade administrativa ou em que a prática do ato vinculado depende de aturada apreciação e sopesamento dos fatos e das regras jurídicas em causa, é imprescindível motivação detalhada.[2]
Sob a mesma ótica:
O princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões. Ele está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutiam se a sua obrigatoriedade alcançava só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos.[3]
Forte nessa concepção segundo a qual todos os atos administrativos devem ser motivados – sejam vinculados, sejam discricionários – é que se apresenta a discussão trazida no Enunciado nº 12 do CEJ/CJF resultante da I Jornada de Direito Administrativo:
A decisão administrativa robótica deve ser suficientemente motivada, sendo a sua opacidade motivo de invalidação
Da leitura do referido enunciado é possível identificar que a denominada decisão administrativa robótica imprescinde da mesma exigência de motivação. E em não ocorrendo tal fundamentação, a invalidação é medida que se impõe como meio de controle dos atos administrativos, seja na esfera jurisdicional, seja na esfera administrativa.
É relevante destacar que a decisão administrativa robótica como sendo aquela resultante das novas ferramentas à disposição da Administração Pública – essencialmente decorrentes do uso de inteligência artificial e algoritmos – precisa se ajustar ao dever de motivação dos atos administrativos.
Se de um lado a celeridade, a razoável duração processo e a economicidade são vetores que não podem ser rejeitados pela gestão pública moderna – pautada no modelo gerencial – de outro lado também não é aceitável a banalização dos atos administrativos ao ponto de se gerar uma indesejável carência de exposição dos elementos fáticos e jurídicos no processo de tomada de decisões.
Frente ao exposto, andou bem o CEF/CJF ao editar o referido enunciado, haja vista que um receio constante que se tem observado com o uso frequente e cada vez maior de tecnologias nos atos decisórios é justamente se a motivação não será posta em plano inferior. Isto, decididamente, já restou afastado.
A tecnologia precisará se ajustar ao modelo jurídico traçado pelo legislador constitucional e infraconstitucional, garantindo, assim, que as ferramentas digitais sejam utilizadas com parcimônia e responsabilidade, prezando, pois, pelos direitos básicos dos administrados e pelos deveres inescusáveis da Administração Pública.
É preciso ponderar motivação e robotização para fins de encontrar um caminho comum, jamais excludente.
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/10082020-I-Jornada-de-Direito-Administrativo-divulga-os-40-enunciados-aprovados.aspx>. Acesso em: 11 ago. 2020.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 108.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 77.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Comentários ao Enunciado nº 12 da I Jornada de Direito Administrativo: o caso da decisão administrativa robótica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 ago 2020, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55057/comentrios-ao-enunciado-n-12-da-i-jornada-de-direito-administrativo-o-caso-da-deciso-administrativa-robtica. Acesso em: 23 dez 2024.
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