RESUMO: O presente estudo trata do uso da linguagem como instrumento de revolução e posicionamento do homem diante das normas. A forma complexa como a sociedade se porta, tornou impossível uma universalização do Direito e a busca por uma perspectiva axiológica geral, afinal, um código fechado jamais contemplará todas as nuances de uma sociedade dinâmica. Diante disso, surge a retórica, revelando uma perspectiva jurídica relativa e multifacetada. Desde então, o Direito tem sido submetido a uma ótica mais flexível, pontualmente indeterminada, na qual os jogos interpretativos assumiram o protagonismo. No entanto, essa faceta hiper flexível criou um Direito imprevisível, com vaguezas perigosas e sedento de padronagens aptas a emoldurar comportamentos humanos e facilitar a aplicação de leis. Dito isso, a solução mais interessante é estabelecer um diálogo entre a ontologia e a retórica, com a finalidade de buscar uma ideia mais justa de conceitos.
PALAVRAS-CHAVES. Retórica. Ontologia jurídica. Criação de normas.
SUMÁRIO 1. Introdução 2. A compreensão do mundo e o construtivismo radical 3. Biologismo moral 4. O ser humano enquanto pleno ou carente na antropologia retórica 5. Limites de uma ontologia jurídica 6. Considerações finais 7. Referências bibliográficas
1. Introdução
A linguagem é um relevante recurso na vida humana, sendo um apetrecho da transmissão de ideias tanto na sua dimensão falada como simbolizada. A comunicação, desde os primórdios, tem o poder de dirimir conflitos e possibilitar a coexistência humana. Dito isso, seu valor está não só em estabelecer um ambiente melhor para convivência, mas de propriamente fomentar o espaço de vivência. O ser humano deve a vida à linguagem.
Na primeira metade do século XX, o estudo da linguagem mostrou-se promissor, tendo sido criado diversos núcleos de estudos para aprofundar a matéria e definir o alcance que ela possuía na sociedade. Também reconhecido como empirismo lógico, o positivismo lógico foi um dos produtos gerados pelos pensadores do Círculo de Viena. Essa corrente de pensamento volta seus estudos para a elaboração de uma linguagem científica ideal orientada por nortes como precisão, lógica e verificacionismo e, principalmente, repulsa às proposições metafísicas.
É claro que o verificacionismo é um método importante de cientificar a linguagem, mas ele não exaure as possibilidades e, por vezes, a realidade observada não é definida em sua totalidade. Assim surge a textura aberta de Stegmuller, demonstrando a impossibilidade de estabelecer um conceito de forma definitiva que abarque todas as facetas que o mundo e o Direito demandam.
Dessa forma, a retórica surge como uma alternativa à realidade deontológica, mostrando um Direito relativo e multifacetado, satisfazendo as inquietudes humanas através da uma orientação de comportamento que é viva, provisória e mutável a depender do contexto a que está inserida.
Apesar de surgir como uma contraposição à rigidez do “dever ser”, a retórica não possui legitimidade suficiente para superar a visão deontológica; isso porque submeter as relações humanas a um jogo interpretativo ausente de direcionamentos padrões de conduta que sustentem o ordenamento, é garantir que as relações sejam regidas por uma verdadeira orgia de conceitos sem parâmetros mínimos de certo e errado e assumir que o Direito nada regule.
Passado os séculos, a solução mais plausível encontrada foi estabelecer um verdadeiro diálogo entre a deontologia e a retórica, a fim de proporcionar um ambiente saudável de relações humanas e a construção de uma ciência jurídica que atue da forma mais justa possível.
2. A compreensão do mundo e o construtivismo radical
“É natural do ser humano o desejo de conhecer.” Essa sentença inicial da Metafísica de Aristóteles pode, em uma primeira leitura, parecer um exagero. Entretanto, Aristóteles estava certo, pois, como é dotado de inteligência, enquanto poder de conhecer o real, o ser humano a emprega em seu favor. A inteligência, com efeito, não é uma função, uma faculdade em particular: é a expressão da pessoa inteira enquanto sujeito do ato de conhecer. Ela não é um instrumento, um aspecto, um órgão do ser humano, mas o próprio ser humano, considerado no pleno exercício daquilo que nele há de mais essencialmente humano, ou seja, a inata vontade de conhecer.
Entre as possíveis óticas filosóficas que se ocupam de entender o cérebro humano, encontra-se o construtivismo radical, que se encarrega de estudá-lo na análise do conhecimento e de seus corolários. Não se deve, no entanto, tomar esse estudo do cérebro humano como um fator biológico, pois quem deve assim o fazer é o biologismo moral.
Ao partirem do pressuposto de que o mundo real, por ser externo à mente humana, existe e permanece a existir, imprescindindo da tentativa de apreensão e conhecimento a partir dos seres humanos para tal, nos adeptos do construtivismo radical prepondera uma perspectiva de razão objetiva, isto é, da acepção da realidade como racional em si mesma. Destarte, os construtivistas aceitam o objeto do conhecimento, a realidade cognoscível, como racional, sem, contudo desprezar a razão subjetiva – razão como capacidade intelectual e moral dos seres humanos – [1], até porque ambas estão umbilicalmente relacionadas.
Aproximando-se o pensamento construtivista de uma concepção kantiana, pode-se inferir que, nesses dois entendimentos, o conhecimento não tem como ponto de partida a realidade, seja externa ou interna. Para Kant, o processo cognitivo teria início com o estudo da própria faculdade de conhecer, ou seja, com o estudo da razão. Nesse mesmo diapasão, os construtivistas defendiam que o conhecimento, a percepção dos fenômenos dava-se não pela apreensão da realidade em si, mas era edificado a partir do próprio cérebro humano e dos órgãos sensoriais, individualizando tal percepção, que estaria suscetível às variações e particularidades dos sujeitos cognoscentes.
Ainda nessa esteira, pode-se dizer que, no construtivismo, admite-se que os objetos é que devem regular-se pelo conhecimento humano, e não a situação inversa, pois, “de maneira universal e necessária, os objetos se adaptam ao conhecimento, e não o conhecimento aos objetos[2].” Insta mencionar que a visão de um mundo real em si (“que não pode ser apreendido”) dos construtivistas é paralela ao conceito de noumenon de Kant. Já o phainomenon, correspondente à realidade tal como é organizada pela razão, que submete os conteúdos da experiência às estruturas da sensibilidade e do entendimento[3], seria, numa interpretação construtivista, variável de acordo com o observador.
“De qualquer forma, sempre que tentamos transcender a aparência para além de toda experiência sensorial, […] a fim de apreender os segredos últimos do Ser que, segundo nosso conceito de mundo físico, é tão tremendamente poderoso que produz todas as aparências, […] o que encontramos talvez nada tenha a ver com o macrocosmo ou com o microcosmo, que lidamos apenas com configurações da nossa própria mente[4]”
Ao captar os estímulos do meio em que se inserem, os indivíduos podem interpretá-los de maneiras distintas. Em muito isso se deve à grande quantidade de canais percorridos até que uma informação seja armazenada pelo ser humano, além da conexão do que foi captado com outras informações correlatas. Ademais, são muitas as influências que um indivíduo traz, não só do meio, mas de suas experiências prévias, o que dá margem às diferentes perspectivas de um mesmo estímulo.
“Além das partículas, dos campos de força, da geometria, do espaço e do tempo, será o componente fundamental o ato ainda mais étereo do observador participante? - ou seja, o fóton se decide assim por haver “alguma interferência do “pensamento” do observador?[5]”
Assim, pode-se interpretar que a forma de entender a realidade depende dos seres humanos, por o desejarem de um modo definido. Os sujeitos cognoscentes não só captam, como emanam influências no mundo em que vivem, tornando o processo cognitivo ainda mais complexo. Para Archibald Wheeler, a consciência humana é o elo entre o mundo dos elétrons e a realidade cotidiana[6]. Desse modo, as ações humanas constituem efeitos que a consciência produz na realidade física.
Outrossim, ainda há fatores somáticos que interferem no processo de compreensão da realidade expressa, que são levados em consideração pelos construtivistas, a exemplo da variação hormonal observável entre indivíduos, que pode se dar não só entre homens e mulheres, mas entre indivíduos de um mesmo gênero ou em diferentes idades ou fases da vida.
Um empecilho ao pensamento construtivista verifica-se na medida em que a linguagem media a relação entre o indivíduo e o mundo exterior, não raro fugindo à objetividade. Uma definição muitas vezes equivale ao relato vencedor, à tendência da maioria, e não à realidade em si, ao nômeno proprimamente dito, e sim ao fenômeno avaliado sob o juízo axiológico dominante, o que não implica que esse seja o único ou o correto meio de compreendê-lo.
Para os construtivistas, a linguagem é um elemento mediador, indispensável ao processo cognitivo, de maneira tão instintiva que muitas vezes nem é reconhecida como tal. Desse modo, os sujeitos do conhecimento enxergam o meio como um dado empírico, um fato observável, e não um produto de sua interpretação particular.
Ao receber os estímulos do ambiente e interpretá-los a sua maneira, fica evidente para os construtivistas que o cérebro é um sistema autopoietico, uma rede fechada que produz a si mesma e, por conseguinte, opera os aludidos estímulos segundo critérios próprios. Nesse sentido, os construtivistas acabam por isolar a mente humana do contexto em que ela se encontra, da sociedade e que vive e das influências que recebe.
Seguindo essa linha de pensamento, os adeptos do construtivismo radical ignoram o caráter alopoietico do cerébro humano e reduzem a sociabilidade inerente ao ser humano que implica que este, por ter introjetado diferentes fatos sociais, não raro aceitam verdades preconcebidas, não produzindo o próprio conhecimento de maneira crítica. Amiúde, o indivíduo imerso em um dado contexto social aceita a crença coletiva do meio sem, no entanto, construir suas próprias ideias em equilíbrio homeostático entre o fechamento operacional e a abertura cognitiva.
3. O biologismo moral
Dentre as concepções biologistas, que procuram explicar os fenômenos humanos a partir de critérios genéticos e reações quimicas orgânicas, encontra-se o biologismo moral. Nesse sentido, o conhecimento humano, a apreensão do mundo real pelo indivíduo ocorreria, também, devido às determinações biológicas.
Essa tendência aos fatores biológicos como justificativa ao comportamento humano é axiologicamente reducionista, privilegiando instintos e respostas imediatas em detrimento de julgamentos éticos na execução de um ato. De certo modo, tal perspectiva de que condutas eticamente corretas – como a solidariedade em uma comunidade – são resultantes do ímpeto de autoconservação inerente à natureza humana aproxima-se de uma visão pessimista de Thomas Hobbes, quando esse descreve o estado de natureza.
Para Hobbes, como todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante, são feitas suposições recíprocas acerca da atitude que o outro pode vir a tomar e, portanto, para se autoconservar, o homem ataca o semelhante, a fim de manter sua integridade [7]. Desse modo, prevaleceriam os instintos, o desejo de preservar a si mesmo, em prejuízo do julgamento axiológico e do livre arbítrio.
O biologismo moral converge com o construtivismo radical ao considerar o papel que desempenham os hormônios nas reações químicas envolvidas nas condutas humanas. Todavia, o bilogismo moral se aprofunda ainda mais nesse âmbito, chegando a defender que os seres humanos são apenas capazes de ações consideradas boas ou justas devido à satisfação que elas lhes trariam ao serem liberados certos hormônios ligados à sensação de prazer. Assim, haveria, na natureza, um sistema autossustentável de manutenção da coesão, através de reações químicas, e independente de reflexões éticas.
Aludida visão biologista peca por reduzir – ou melhor, anular – a importância da moral no comportamento humano. Apesar de alegarem uma tentativa de extinguir um tipo ideal de moral – o que é contraditório, visto que, ao defenderem uma biologia humana unívoca, é de se estranhar que não defendam uma moral também universal –, de abolirem a busca e, por conseguinte, a imposição de uma moral correta, os biologistas morais desconsideram o peso dos conceitos de bem e mal, justiça e injustiça, certo e errado que movem as ações humanas.
O senso e a consciência morais têm como pressuposto fundamental a ideia de liberdade do agente, sendo constitutivos da existência intersubjetiva. Eles não podem ser desprezados, pois exigem que os sujeitos decidam e justifiquem suas ações sem ser obrigados por outros, gerando, desse modo, uma responsabilidade do indivíduo em relação a suas decisões [8]. Em se tratanto de ações realizadas inconscientemente, cabe aqui recordar a centopeia de Kipling, que andava sem qualquer esforço sobre as cem patas, até que um adulador da corte começou a elogiá-la, pois sua memória permitia que ela nunca pisasse a octogésima quinta perna antes da trigésima sétima ou a quinquagésima segunda antes da décima nona. Tornada consciente de si mesma, a centopeia perdeu a capacidade de andar [9].
Portanto, faz-se necessária ao ser humano consciência tanto moral quanto a de si mesmo, enquanto autor de suas ações. Ademais, caso as justificativas dos comportamentos humano permaneçam no plano biológico e não adentrem a esfera metafísica, será eximida a responsabilidade do ser humano e, então, conceitos como dolo e culpa perderão seu valor.
4. O ser humano enquanto pleno ou carente na antropologia retórica
A percepção e a apreensão da realidade por parte do ser humano envolvem, inevitavelmente, abstrações. Ao observar um evento, de caráter único e irrepetível, o sujeito tem uma experiência não só sensível, mas também intelectual. O ser humano nunca percebe um acontecimento como exatamente igual a outro, assim como a experiência mental também nunca se dá de uma mesma maneira em dois indivíduos. Por isso, é necessário, ao fixar conceitos, que se façam abstrações das características acidentais de um objeto, a fim de alcançar o que ele, de fato, é. Tal tese de Husserl, que busca subtrair aspectos individualizadores de objetos para que se possa chegar à essência deles, é de grande relevância na produção de significados [10].
Contudo, ainda que sejam feitas generalizações acerca dos fenômenos, existem outras generalizações a se fazer, na esfera da linguagem. Destarte, o conhecimento está sujeito a eventuais distorções em seu processo de transmissão. Apesar de suas suscetibilidades à vagueza e à ambiguidade, a linguagem é indispensável tanto ao conhecimento quanto ao próprio ser humano, haja vista que é com palavras que o indivíduo se insere no mundo humano, e aludida inserção é como um segundo nascimento, no qual é confirmado o aparecimento físico do ser. Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator, já que o agente do ato só existe como tal se for, concomitantemente, o autor das palavras [11].
Os fatos – sobretudo os fatos jurídicos – não são dados puros da realidade, não se confundem com os eventos do mundo; fatos são versões linguísticas sobre eventos [12]. A realidade jurídica, assim como a língua, é retórica, e essa retórica não pode pautar-se em determinismos ou na sociobiologia para fundamentar a argumentação jurídica, precisando ir além de visões maniqueístas ou que almalgamem o Direito aos demais sistemas normativos – algo que, para Niklas Luhmann, é indicativo de um baixo grau de complexidade na sociedade [13].
A correspondência de uma ideia a um significante, que se dá no âmbito da linguagem, é uma questão primordial no estudo do conhecimento. Se a realidade é infinita, a linguagem, por conseguinte, também o deveria ser. Apesar de o código, isto é, a língua ser um elemento vivo, adaptando-se às transformações correntes na sociedade, ela não é capaz de abarcar toda a realidade existente, sendo, portanto, falha. O latim, por exemplo, por ser uma língua que parou de sofrer modificações, torna inviável a exteriorização de certos conceitos mais atuais, apesar de, justamente por esse seu caráter de imutabilidade, ser de extrema importância para o conhecimento, haja vista que fixa significados em áreas como a Biologia.
Enquanto meio de expressão da realidade fática, a linguagem representa um fator imprescindível para que seja adquirido o conhecimento. George Orwell já previa, em sua obra “1984”, o enorme prejuízo que constituiria a destruição da linguagem, por assim dizer [14]. Ao descrever a Novafala, língua que vinha sendo utilizada no contexto em que se passa a trama, fica evidente o poder de estreitar o âmbito de pensamento, pois a redução abissal do número de palavras viria a impedir a expressão das ideias contrárias à ideologia opressora. Desse modo, fica claro que a limitação do vocabulário e o enxugamento da língua caracterizariam a progressiva perda do alcance da consciência e, portanto, a limitação do conhecimento humano.
Para Hans Blumenberg, há duas tendências opostas no modo de ver o ser humano: uma entendendo-o como um ser pleno e outra como um ser carente. Em sua plenitude, o homem é reconhecido como apto a conhecer a verdade – o nômeno, a coisa em si –, e não apenas sua representação. No entanto, essa percepção da verdade não se daria por meio do dogmatismo filosófico, corrente que identifica os filósofos que estão convencidos de que a razão pode alcançar a certeza absoluta, como René Descartes, que acreditava na possibilidade de se atingir uma verdade indubitável [15].
Como ser pleno, o homem lançaria mão da linguagem e da retórica como subterfúgios, a fim de tanger a verdade. A língua, enquanto código, fixa pontos de referência e, desse modo, cumpre uma função de realidade artificial, uma convenção que possibilita – assim como um mito – uma intuição compreensiva da realidade, que afugenta a insegurança e a angústia diante do desconhecido [16]. Destarte, a língua tem uma função que transpassa o âmbito restrito à comunicação, para assumir uma dimensão de posicionamento do homem no mundo, empoderado pela possibilidade de conhecer a verdade que a linguagem lhe atribuiu.
Ao ser abordado como ser carente, o homem aparenta viver voltado para o futuro em detrimento do presente. Nessa conjectura, a linguagem lhe serve não só como ferramenta para construir a fantasia em que vive o homem, o mundo construído por ele mesmo, mas também como forma de adaptá-lo a esse mundo próprio.
Essas duas perspectivas de entendimento do homem compartilham uma característica: ambas têm a linguagem como pedra angular. Essa importância da linguagem deve-se ao seu poder de criação e de dominação em relação ao ambiente em que o ser humano se insere, tornando o homem não um mero produto do meio, mais um escultor, um autor da realidade. Assim, cabe interpretar que o ambiente do ser humano não é a natureza – até porque essa já se encontrava concluída antes da interferência humana –, mas a linguagem, pois nela há terreno fecundo para o exercício do caráter comunicativo inerente à espécie humana.
Convém assinalar que a dicotomia plenitude e carência humana consiste num meio de agrupar os filósofos em ontológicos e retóricos. Todavia, essas duas concepções representam tipos ideais, devido a seu caráter aproximativo, podendo um filósofo que nega qualquer tipo de verdade se encaixar na mesma classificação de outro que aceite que a verdade varia em conformidade com os diferentes conceitos em que está situada [17]. Assim, depreende-se que essa dicotomia é uma simplificação, pois as classificações são problemáticas.
Ainda nessa esteira dicotômica, pode-se relacionar a holística – isto é, as tendências universalizantes, que se propõem definitivas – à plenitude do ser humano, e associar a heurística – ou seja, as tendências relativistas, que não pretendem uma verdade definitiva – à carência do homem.
O holismo em muito se assemelha ao ecossistema, haja vista que leva em consideração relações mútuas entre as partes e o todo. Exemplificando, pode-se citar que, numa análise holística de uma frase, deve-se contemplar que ela faz parte de um universo que a engloba: no caso, a língua. Assim, de certa forma, tudo está relacionado a tudo, nada está absolutamente isolado de nada [18].
Como ser pleno, o homem é capaz de atribuir significados aos fenômenos e de os nomear conforme um princípio ontológico universalizante. A ontologia clássica essencialista tem em Sócrates o seu pioneiro, na medida em que ele combateu o relativismo da retórica sofística e o conhecimento ordinário das pessoas, o qual ele nomeava doxa, propondo, em lugar desse senso comum, um conhecimento racional, refletido, de modo que os conceitos pudessem representar a realidade dos seres [19].
“Em outras palavras, Sócrates inaugura a ontologia essencialista do ser, ao pretender ancorar o conceito de verdade na busca pela essência de cada ser. Desta forma, o verdadeiro conhecimento deve abandonar a doxa, o relativismo típico da sofística e se ancorar na construção de conhecimentos/conceitos universais e absolutos [20]”
Insta mencionar como é demasiada a dificuldade de se fixar conceitos universais na construção do conhecimento, haja vista as transformações que o homem testemunha ao longo do tempo. Outro notável problema intrínseco à fixação de conceitos é a porosidade da linguagem, que faz com que as palavras percam seu sentido originalmente proposto. Assim, a construção de conceitos e conhecimentos universais e absolutos representa uma ideia deveras ambiciosa e que, na prática, não atende às expectativas, inclusive porque, enquanto são necessárias várias hipóteses para provar uma teoria – no caso, um conhecimento universal –, apenas é necessário um evento contrário para quebrá-la.
Por outro lado, a heurística não pretende fixar verdades definitivas, sendo, portanto, menos audaciosa. Nesse sentido, a ideia de Albert Einstein de que “toda doutrina ou teoria tem um prazo de validade” pode ser considerada heurística, visto que admite o caráter perecível dos conceitos e a necessidade de atualização do conhecimento para que ele continue adequado.
A tendência heurísta está atrelada à carência do ser humano, aceitando a linguagem como realidade com a qual o homem pode lidar, mediando a relação dele com o meio em que vive. Como sua relação com o ambiente é mediata, a vinculação do homem com o conhecimento é, igualmente, intermediada pela linguagem. Desse modo, o ambiente é produto da linguagem e, por conseguinte, da consciência humana, já que essa também é autora da linguagem.
No entanto, a visão do mundo natural como produto da linguagem peca por desconsiderar o poder do trabalho na modificação da natureza. Para Marx, por exemplo, o trabalho, ao se exercer sobre determinados objetos, provoca neles uma espécie de “ressurreição”, de modo que tudo que é criado pelo homem contém em si um trabalho passado [21]. Portanto, o homem executa transformações no meio em que vive não só pela linguagem, mas também pelo trabalho. Ainda assim, a linguagem prepondera por condicionar o ser humano enquanto tal, como preconizava Hannah Arendt.
5. Limites de uma ontologia jurídica
Sabendo-se que o problema central da gnoseologia constitui-se em observar se a linguagem humana descreve as coisas como são ou se sua relação com elas reduz-se a uma convenção arbitrária [22], ao admitir a possibilidade de uma ontologia jurídica, é eleita a perspectiva do homem como ser pleno e, por conseguinte, é aceito o poder da linguagem de descrever a realidade fática tal como ela é.
Logo, os filósofos ontológicos procuram minar os efeitos dissociativos da linguagem, uma vez que acreditam na viabilidade de se chegar a um conhecimento verdadeiro e independente da linguagem. Mencionada ótica essencialista pode ser vista como uma quimera, visto que “a consciência total depende de se ter uma teoria abstrata que deve ser formulada de modo linguístico [23]”. Para Karl Popper, não há nada tão importante como a linguagem, pois é através dela que nos tornamos humanos e que a consciência humana – a consciência do eu – é uma consciência de linguagem [24].
Nesse toar, a ontologia é problemática na medida em que acredita na possibilidade de alcançar o conhecimento sem o intermédio da linguagem, algo inviável aos seres humanos. Caso houvesse tal conhecimento puro, qualquer conjetura acerca dele não seria falseável de nenhum modo e, por não ser falseável ou testável, ele seria metafísico [25]. Daí depreende-se que a ocorrência epistemólogica, isto é, o conhecimento do homem acerca do universo, só ocorre por meio da linguagem, sendo impossível chegar à verdade – qualquer que seja – senão através da comunicação.
Em contrapartida à visão ontológica, a retórica julga essa verdade nítida como uma ilusão e posiciona a linguagem como condicionadora da realidade. Destarte, a tendência dos retóricos é conceber o Direito como um fenômeno linguístico. Considerando-se que as normas jurídicas contêm previsões genéricas de fatos, as quais são enunciadas no domínio da linguagem e, sendo a norma um elemento constitutivo do Direito, como que a célula do organismo jurídico [26], fica evidente a simbiose entre a linguagem e o Direito.
A fim de regular a vida em sociedade, é instituído o Direito para preservar a ordem. Ao fixar juízos de dever ser, o Direito não só estabelece padrões de conduta a serem seguidos – pois a Moral também se encarrega disso –, mas vai além, assegurando seu cumprimento, na medida em que é dotado de coercibilidade. Levando em consideração seu caráter retórico, o Direito é relativo, multifacetado, satisfazendo as inquietudes humanas e orientando o comportamento a partir de uma moral vencedora, que é então positivada. No entanto, essa moral é provisória, variando conforme as necessidades da sociedade em que está contextualizada.
Convém apontar o paradoxo entre a plenitude e a carência humana no que se refere à retórica jurídica. Ao passo que fica evidente o caráter pleno do homem ao eleger os parâmetros de conduta socialmente aceitáveis; ele também se mostra carente ao dispor de uma moral provisória, que, heuristicamente, não se propõem definitiva, mas aparece como relativa.
Portanto, é dedutível que, diante da complexidade inerente à natureza humana, não cabe restringir o homem em uma classificação tipificada, como no caso da dicotomia entre ser pleno e carente. O que pode ser observado é que, em determinadas situações e em pontos de vistas específicos, alguma dessas duas características atribuíveis ao ser humano se sobressairá.
Ainda que se almeje assumir uma postura jurídica fundamentalmente retórica, é impossível dissociá-la por completo da ontologia. Da mesma forma, a ontologia que elege aspectos éticos como corretor, estabelecendo uma moral definitiva, torna-se nociva ao Direito, pois assume uma posição ideológica.
Sendo assim, é válido ressaltar a ontologia subjacente à retórica não pretende uma imposição de conceitos definitivos, mas serve para possibilitar a ligação entre conceitos e as afirmações de juízos, a partir da descrição dos objetos. Até mesmo na dogmática jurídica, é necessário fazer pressupostos, utilizando-se de uma certa ontologia ao admitir, por exemplo, a inegabilidade dos pontos de partida. Entretanto, o que não pode ocorrer é a determinação de juízos axiológicos como corretos por parte dessa ontologia jurídica, pois esses não podem assumir uma natureza dogmática, devido a seu caráter relativo, moldado pela retórica – ou pelos interesses do autor do discurso.
6. Considerações finais
Mediante o exposto, percebe-se que a busca por uma perspectiva axiológica geral por meio do intento de universalizar o Direito frustra-se ao se deparar com a complexidade do mundo moderno e a disparidade social e ideológica fruto da racionalização. A expectativa deontológica se sustenta a partir do cumprimento de regras por meio da aceitação da ordem jurídica positivada e não a partir da aceitabilidade dos seus fundamentos.
O problema dessa visão é que ela colocava o homem como produto do meio, como um acessório e a comunicação como um meio de interação entre o homem e a realidade. Mas essa visão é equivocada. O homem não é mero produto do meio, mas o verdadeiro criador deste, tendo a linguagem transcendido o papel de comunicação e assumido a dimensão de posicionamento do homem no mundo.
Essas duas visões da linguagem e do Direito foram costumeiramente estudadas como opostas, sendo que nenhuma delas era suficiente para suprir as necessidades das relações humanas. Se de um lado havia padrões de condutas rígidos e coercibilidade para fazê-los acontecer, do outro havia a retórica e sua provisoriedade e vaguezas perigosas.
Diante disso, interessante estabelecer um diálogo entre essas duas vertentes para possibilitar a existência de juízos axiológicos determinantes moldados pela retórica, atingindo, assim, uma ideia mais justa dos conceitos.
NOTAS:
[1] CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2008, p. 61.
[2] CHAUI, Marilena. Op cit., p. 76.
[3] Idem, ibidem, p. 78.
[4] ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 299.
[5] SEMENOV, Marcia Maria Rodrigues. O fetichismo da indução. Filosofia: ciência e vida, n. 96, p. 17-18, julho, 2014.
[6] SEMENOV, Marcia Maria Rodrigues. Op cit., p. 18.
[7] WEFFORT, Francisco C.. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2000, p. 55.
[8] CHAUI, Marilena. Op cit., p. 306-307.
[9] BAUMAN, Zygmunt. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 25.
[10] ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. São Paulo: Saraiva, 2012, 216-220.
[11] ARENDT, Hannah. Op cit., p. 188-191.
[12] ADEODATO, João Maurício. Op cit., 208.
[13] LUHMANN, Niklas. Teoria della societá. Milão: Franco Angeli, 1995, p. 353.
[14] ORWELL, George. 1984. Trad. de Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 68-70.
[15] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. Sõa Paulo: Moderna, 2009, p. 112.
[16] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op cit., p. 27.
[17] ADEODATO, João Maurício. Op cit, p. 340-341.
[18] COUTO, Hildo Honório do. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007, p. 29-30.
[19] FREITAS, Hudson Couto Ferreira de. Teorias do direito: do jusnaturalismo ao pós-positivismo. Belo Horizonte: Placido, 2014, p. 14.
[20] Idem, ibidem, p. 14.
[21] COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 2005, p. 117.
[22] ADEODATO, João Maurício. Op cit., p. 341.
[23] POPPER, Karl R.; ECCLES, J. O cérebro e o pensamento. Campinas/Brasília: Papirus/UnB, 1992, p. 28-29.
[24] POPPER, Karl R. O racionalismo crítico na política. Brasília: UnB, 1994, p. 71.
[25] POPPER, Karl R.; ECCLES, J. Op cit., p. 32.
[26] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 86.
Advogada formada pela Universidade Federal de Pernambuco
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANNA ALICE RIBEIRO BRANDãO, . Diálogos entre a ontologia e a retórica na construção da ciência jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 ago 2020, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55058/dilogos-entre-a-ontologia-e-a-retrica-na-construo-da-cincia-jurdica. Acesso em: 23 dez 2024.
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