THALITA ARCANJO
(coautora)
Resumo: Este artigo analisa a característica da dispensabilidade do inquérito policial para fins de inauguração da ação penal e suas consequências no ordenamento jurídico brasileiro. O inquérito policial, procedimento pré-processual, administrativo, sigiloso e inquisitivo, que tem como finalidade a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais, é considerado como um procedimento plenamente dispensável pela doutrina para fins de instauração de ação penal e consequente responsabilização do agente pela prática de infração penal. Em outras palavras, para que um indivíduo seja processado criminalmente e quiçá venha a ser condenado no futuro, o procedimento - responsável por apurar e reunir provas que podem subsidiar a decisão do magistrado-, é dispensável, segundo o próprio código de processo penal, a jurisprudência e a doutrina pacífica. No entanto, vale ressaltar as enormes consequências negativas que esse caráter dispensável do inquérito policial pode trazer para a investigação e para toda a persecução penal. Para ratificar essa ideia, procedeu-se à pesquisa de campo, com profissionais da área, jurisprudência e doutrina recomendada.
Palavras-Chave: Inquérito policial; investigação preliminar; ação penal.
Abstract: This article analyzes the characteristic of the dispensability of the police investigation for the purpose of initiating the criminal action and its consequences in the Brazilian legal system. The police investigation, a pre-procedural, administrative, secretive and inquisitive procedure, which aims at investigating the circumstances, the materiality and the authorship of criminal offenses, is considered to be a completely dispensable procedure by the doctrine for the purposes of prosecution and consequent liability of the agent for the practice of criminal offense. In other words, for an individual to be criminally prosecuted and perhaps be sentenced in the future, the procedure - responsible for investigating and gathering evidence that can support the magistrate's decision-, is unnecessary, according to the criminal procedure code itself, jurisprudence and peaceful doctrine. However, it is worth mentioning the enormous negative consequences that this dispensable character of the police investigation can bring to the investigation and to all criminal prosecutions. To confirm this idea, field research was carried out, with professionals in the field, jurisprudence and recommended doctrine.
Keywords: Police investigation; preliminary investigation; criminal action.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento 2.1 Conceito e características 2.2 Fundamento da existência do Inquérito Policial 2.3 Direitos e princípios que regem o processo penal: segurança jurídica, presunção da veracidade dos atos da administração pública e verdade real. 2.4 Consequências práticas da dispensabilidade do Inquérito Policial 3. Considerações finais. 4. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO:
O inquérito policial tem sua definição legal como sendo “o conjunto de atividades realizadas concatenadamente por órgãos do Estado; a partir de uma notícia-crime ou atividade de ofício; com caráter prévio e de natureza preparatória em relação ao processo penal; que pretende averiguar a autoria e circunstâncias de um fato aparentemente delitivo com o fim de justificar o exercício da ação penal ou o arquivamento do mesmo (não processo)” (AURY LOPES JR. e RICARDO JACOBSEN GLOECKNER, P. 91).
Já conforme a lei 12.830/2013, o inquérito policial tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
Com base em tais definições legais, não é difícil de se concluir o quanto esse procedimento é importante para a persecução penal, tendo como pressuposto aspectos como a segurança jurídica das decisões do Estado, a presunção da veracidade dos atos da administração púbica, a verdade real das decisões judicais, dentre tantos outros princípios que regem o ordenamento jurídico brasileiro.
Ainda assim, tal procedimento – de natureza jurídica predominantemente administrativa e pré-processual, é considerado pela doutrina majoritária e pela jurisprudência pacífica como plenamente dispensável para fins da instauração da ação penal. Na realidade, o próprio Código de Processo Penal declara, de forma implícita, o caráter dispensável de tal procedimento:
“O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”. (art. 12, Código de Processo Penal)
“O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias”. (art. 39, §5º, Códio de Processo Penal)
Vale ressaltar ainda que a Constituição Federal assegura às polícias judiciárias a função de elucidar as infrações penais, com exceção das militares, as quais, por sua vez, valem-se do inquérito policial para atender as atribuições constitucionalmente previstas:
art. 144, § 1º, I: apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
art. 144, § 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
Constata-se portanto a fragilidade da proteção dos princípios já citados, tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro, e das atribuições constitucionalmente asseguradas à polícia judiciária na persecução penal em face desse caráter dispensável do inquérito policial. A fim de mudar essa realidade, é necessário que sejam revistas as tratativas dos órgãos públicos envolvidos na persecução penal para com o inquérito. Além disso, também são necessárias alterações legislativas e doutrinárias, a fim de mitigar características da investigação preliminar que justifiquem a dispensabilidade do inquérito atualmente, e de integrá-lo ao processo, revestindo-o de características do sistema processual acusatório e do Estado Democrático de Direito.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Conceito e características:
Conforme Aury lopes jr. e Ricardo Jacobsen Gloeckner, o Inquérito Policial significa hoje, no ordenamento jurídico brasileiro, um instrumento em crise, pois é revestido de características que remontam a um Estado autoritário, que o Brasil já foi, no qual são mitigadas as garantias processuais cabíveis às partes. Dessa forma, tais características servem para assegurar que a doutrina ainda o classifique como dispensável.
O Brasil adota o chamado Sistema Processual Acusatório, no qual predominam, dentre outras características, a oralidade, a publicidade dos atos processuais, a presença física das partes no processo, e o princípio do devido processo legal, que abarca, por sua vez, a ampla defesa e o contraditório. Vale ressaltar ainda que, no sistema acusatório, o sujeito que acusa (o Ministério Público, em casos de ação penal pública) é diferente daquele que julga, ou seja, o juiz. Por fim, o sistema acusatório garante a produção de provas às partes, vedando, em regra, a produção de provas de ofício pelo Ministério Público e pelo magistrado, ressalvadas situações excepcionais. Por esse conjunto de características, o sistema acusatório é considerado aquele que mais se coaduna ao regime de estado democrático adotado pelo país.
O Inquérito policial, por outro lado, vai ao encontro de uma série de características adotadas pelo sistema acusatório, por isso que é considerado como dispensável à persecução penal e contrário, muitas vezes, ao Estado Democrático de Direito. Fernando Capez discorre sobre essas características do inquérito citando, por exemplo, que no inquérito a regra é o sigilo. Dessa forma, nem o(s) investigado(s) nem a(s) vítima(s) pode(m) saber o que está sendo posto nos autos, em regra. (FERNANDO CAPEZ, P. 119, 2018).
Frisa-se, em regra, porque a Súmula Vinculante 14 garante ao defensor do investigado o acesso aos elementos de prova que, já documentados, digam respeito ao exercício do direito de defesa:
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Tal garantia de acesso não ocorre, no entanto, quando o sigilo do inquérito policial for pautado no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal, que diz:
“XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;”
Nesses casos, portanto, o sigilo do inquérito não poderá ser mitigado.
Ainda com relação ao seu caráter sigiloso, Capez salienta que tal característica não se estende, em nenhuma hipótese, ao Ministério Público, tampouco ao magistrado e à autoridade policial.
Outra característica contrária ao sistema acusatório é que o inquérito é escrito, não possui partes em Stricto Sensu, logo não se faz necessário, em regra, garantir a ampla defesa e o contraditório4. Tal procedimento também se caracteriza por ser discricionário, logo, a autoridade policial não está obrigada a seguir uma sequência lógica de atos, diferentemente dos ritos processuais (sumaríssimo, sumário e ordinário) regidos pelo sistema acusatório. Vale ressaltar também que, como se trata de fase pré-processual, não há, em regra, que se falar em nulidade no Inquérito.
“Não sendo o inquérito policial ato de manifestação do poder jurisdicional, mas mero procedimento informativo destinado à formação da opinio dellicti do titular a ação penal, os vícios por acaso existentes nessa fase não acarretam nulidades processuais, isto é, não atinem a fase seguinte da persecução penal: a da ação penal.” (FERNANDO CAPEZ, p. 123, 2018).
Ainda nesse sentido, Capez afirma que, apesar de não ter o condão de gerar vício no processo, eventual irregularidade no inquérito pode gerar a invalidade, ou ainda, ineficácia do ato inquinado, a exemplo de uma diligência, de uma prisão em flagrante, ou ainda das provas colhidas durante a execução do ato. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ratifica a questão por meio de jurisprudência:
“A jurisprudência dos Tribunais Superiores já assentou o entendimento no sentido de que, enquanto peça meramente informativa, eventuais nulidades que estejam a gravar o inquérito policial em nada repercutem no processo do réu, momento no qual, afirme-se, será enovado todo o conjunto da prova”. (STJ, 6ª T, RC 11.600/RS, REL. amilton Carvalido).
Por fim, no inquérito as provas e o indiciamento cabem a uma única autoridade: à policial. Nele, por expressa previsão no código de processo penal, no seu art. 184, a autoridade policial não é obrigada a determinar a produção de provas requeridas por investigado e/ou vítima que não sejam necessárias ao esclarecimento do fato, exceto o exame de corpo de delito. (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, art. 184, 1.941). Tal conjunto de características servem de argumentação para a doutrina e a jurisprudência considerarem o inquérito dispensável à persecução penal.
O conceito de Inquérito Policial remonta um instrumento de natureza jurídica predominantemente Administrativa, visto que é dirigido por órgão estatal não revestido de competência judicial, que é o caso da Polícia Judiciária (Constituição Federal, art. 144, § 1º e §5º).
Tal instrumento tem ainda por objetivo averiguar a autoria e circunstancias de um fato aparentemente delitivo, com o fim de justificar o exercício da ação penal ou o arquivamento do mesmo (aury lopes jr. e ricardo jacobsen gloeckner, 2014), em outras palavras, apurar as circunstancias da materialidade e da autoria das infrações penais (lei 12.830/2013).
4. O novo Inquérito Policial de Expulsão efetivou, em verdade, a processualização da investigação como fase do sistema de persecução penal, posto que o artigo 58 da LM dispõe que “No processo de expulsão serão garantidos o contraditório e a ampla defesa”. (CONJUR, 2017)
2.2 Fundamento da existência do inquérito policial:
Diferentemente da instrução processual penal, que tem como fundamento de existir a instrumentalidade constitucional, a investigação preliminar, descrita no código de processo penal brasileiro e popularmente conhecida como “Inquérito Policial”, tem como pressuposto de sua existência um obstáculo a superar antes da abertura de um procedimento judicial. Em outras palavras, existe para evitar equívocos e excluir uma acusação aventurada e infundada. (aury lopes jr. e ricardo jacobsen gloeckner, p. 99 e 100).
Ainda segundo Aury Lopes Jr. e Ricardo Jacobsen Gloeckner (2014, p. 100), o inquérito tem duas finalidades: assegurar a máxima autenticidade de provas e evitar que o imputado inocente seja submetido ao processo (debate), que, com a sua publicidade, constitui grave descrédito e humilhação para o mesmo, agredindo diretamente direitos fundamentais constitucionalmente tutelados como o direito à intimidade, à presunção da inocência e à honra, por exemplo.
Apesar de ter um papel tão importante para a persecução penal, o inquérito ainda é considerado dispensável para a mesma. O próprio código de processo penal salienta que o Ministério Público pode dispensá-lo quando possuir elementos suficientes para a propositura da ação penal. (CPP, arts. 12, 27, 39 § 5º e 46 §1º). O STJ também atesta isso por meio de jurisprudência:
“É imprópria a alegação de inépcia da exordial acusatória, sob o fundamento de que ao estaria firmada em procedimento investigatório que indicasse a participação do paciente nos atos delituosos, se demonstrado o ele entre as condutas dos denunciados, inclusive em relação ao paciente, havendo descrição dos atos praticados por casa um, o que resultou na acusação pela prática dos delitos de receptação e formação de quadrilha. O órgao ministerial não é vinculado à existência do procedimento investigatório policial – o qual pode ser eventualmente dispensado para a propositura da ação penal” (STJ, 5ª T, RC, 12.308/ES, rel. Min. Ilton Dipp).
Porém percebe-se que a própria jurisprudência dos tribunais superiores se contradiz, uma vez que, apesar de não permitir a condenação de réu exclusivamente em elementos colhidos no inquérito policial, permite a sua absolvição, conforme decisão abaixo:
“Não se justifica decisão condenatória apoiada exclusivamente em inquérito policial pois se viola o princípio constitucional do contraditório” (STJ, 59/786)
Ora, se é vedada a condenação com base exclusivamente nas provas colhidas em investigação preliminar porque nela não é plenamente garantido o devido processo legal, e ao mesmo tempo permite-se a absolvição, por que então não fazer do inquérito policial um procedimento que se coaduna com o Estado Democrático, em vez de simplesmente considerá-lo dispensável? Por que não garantir às partes envolvidas o pleno contraditório e ampla defesa e reconhecer o inquérito como essencial para a persecução penal, visto que se trata procedimento instigatório de competência exclusiva da polícia judiciária, que tem como ofício constitucionalmente previsto a elucidação de infrações penais?
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou claramente, em sede de repercussão geral, enquanto tratava do Direito de Greve das carreiras policiais, sobre o caráter insubstituível das polícias e, consequentemente, de suas atribuições:
Esclareceu que a Constituição tratou das carreiras policiais de forma diferenciada ao deixá-las de fora do capítulo específico dos servidores públicos. Segundo o ministro, as carreiras policiais são carreiras de Estado sem paralelo na atividade privada, visto que constituem o braço armado do Estado para a segurança pública, assim como as Forças Armadas são o braço armado para a segurança nacional. (Supremo Tribunal Federal, informativo nº 860).
Diante de tal entendimento, apenas se ratifica a inegável essencialidade e indispensabilidade das atividades realizadas pela polícia judiciária, dentre elas, a condução do Inquérito Policial.
2.3 Direitos e princípios que regem o processo penal e o ordenamento jurídico: Segurança Jurídica, presunção de veracidade dos atos administrativos, verdade real:
A doutrina majoritária entende que o processo penal é iniciado quando do recebimento de denúncia pelo juiz, embora o código de processo penal dê a entender que ele se inicia com o mero oferecimento da exordial acusatória.
Em tese, a partir daí, alguns princípios – uns explícitos constitucionalmente ou no próprio código de processo penal- e outros implícitos -, devem reger o procedimento.
O Ministério Público é o titular da ação penal pública e é órgão essencial à função jurisdicional, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. À polícia judiciária, por sua vez, incumbe a apuração de infrações penais, exceto as militares. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 127 e art. 144, §4º).
Apesar de o STF e o STJ já terem reconhecido a competência de o Ministério Público investigar de forma autônoma (RE 593727/205), a presidência do inquérito policial é privativa da autoridade policial (art. 2º,§1º, lei 12.830/13) e a competência para a investigação de infrações penais também é privativa da polícia judiciária, instituição qualificada para exercer tal função.
6. A Polícia Judiciária não possui o monopólio da investigação criminal, possuindo o Ministério Público
legitimidade para determinar diligências investigatórias. Inteligência da Lei Complementar n.º 75/93 e do art. 4.º,
parágrafo único, do Código de Processo Penal. Precedentes. (STJ - RESP 998.249/RS)
Frisa-se que a atividade de investigação criminal não é exclusiva da Polícia Judiciária, mas o Inquérito sim. Ressalta-se ainda que o instrumento utilizado pelo Ministério Público para fins de investigação é instrumento próprio, denominado Inquérito Ministerial, o que torna ainda mais evidente o caráter exclusivo e insubstituível do instrumento investigatório conduzido pela polícia judiciária e sua inegável importância e singularidade.
Um dos princípios mais importantes que regem o ordenamento jurídico brasileiro é o princípio da veracidade dos atos da administração pública. Segundo esse princípio, presume-se que os atos praticados pela administração pública são verdadeiros. (2010, Apud, Marya Sylvia Zanella Di Pietro)
Percebe-se no entanto que, a partir do momento que o ordenamento dispensa um procedimento que tem o objetivo de elucidar um fato a fim de subsidiar a decisão mais justa a ser proferida pelo judiciário, o Estado tem grande probabilidade de mitigar esse princípio na prática e não conseguir atingir o seu fim de decidir da forma mais justa possível e de ter as suas decisões desconstruídas posteriormente, podendo causar um sentimento de insegurança e incredulidade da sociedade nos atos praticados pelo Estado.
O mesmo ocorre com o princípio da verdade real. Segundo Luiz Flávio Gomes:
“Diferentemente do que pode acontecer em outros ramos do Direito, nos quais o Estado se satisfaz com os fatos trazidos nos autos pelas partes, no processo penal (que regula o andamento processual do Direito penal, orientado pelo princípio da intervenção mínima, cuidando dos bens jurídicos mais importantes), o Estado não pode se satisfazer com a realidade formal dos fatos, mas deve buscar que o ius puniendi seja concretizado com a maior eficácia possível”. (JusBrasil, Luiz Flávio Gomes).
Ora, com base nesse conceito do que é o princípio da Verdade Real e nos objetivos do procedimento do Inquérito Policial, não é difícil de se concluir a importância deste. Vale ressaltar ainda que, segundo os próprios profissionais do Estado envolvidos na persecução penal, na prática, o Inquérito já subsidia praticamente todas as infrações penais, não subsistindo os motivos para que seja considerado dispensável. Nas palavras do Delegado de Polícia Civil Pedro Fidelis,
“Praticamente todas as ações penais decorrem de um inquérito policial, ou Termo Circunstanciado de Ocorrência, ou outro procedimento especial dirigido pela polícia judiciária. A chamada dispensabilidade do inquérito é meramente teórica, pois, no dia a dia, o Ministério Público não investiga, isso talvez só ocorra nos casos de repercussão nacional, para poder promover o Órgão perante a sociedade”.
Ainda nesse contexto, outro princípio que permeia o ordenamento jurídico brasileiro é o da segurança jurídica, este, por sua vez, constitucionalmente previsto:
“Art. 5º, XXXVI, CF - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”
Nesse sentido, conclui-se o quanto é importante que os atos e decisões tomadas pelo Estado sejam corretas. Esse princípio tem status de direito fundamental e visa a afastar a insegurança e o caos nas relações sociais e jurídicas, ora agasalhando institutos como o da prescrição, decadência e coisa julgada, ora desenvolvendo conceitos como o da segurança jurídica e inserindo na legislação ordinária o imperativo de seu atendimento. (CONJUR, 2005, “Segurança Jurídica”).
Por fim, outro elemento do ordenamento jurídico que evidencia a importância do caráter indispensável do inquérito policial é o procedimento do Tribunal do Júri. O Tribunal do Júri, instituição constituída para julgar os crimes dolosos contra a vida, existe no ordenamento jurídico desde 1.822, ano da proclamação da república. Segundo a própria Constituição Federal, “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados a plenitude de defesa; o sigilo das votações; a soberania dos veredictos; a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”.
Apesar da inegável importância de suas funções, as decisões do Júri atualmente são tomadas por um corpo de sete jurados, que votam a fim de subsidiar a sentença judicial. Tais jurados não precisam justificar os votos, funcionando como uma exceção à regra da necessidade de motivação dos atos judiciais, presente no sistema acusatório (art. 93, IX, Constituição Federal). Para fazer parte desse corpo de jurados, o cidadão precisa ter mais de 18 anos, não ter antecedentes criminais, ser eleitor e concordar em prestar esse serviço gratuitamente (de forma voluntária). São considerados impedimentos para ser jurado o cidadão surdo e mudo, cego, doente mental, que residir em comarca diversa daquela em que vai ser realizado o julgamento e não estar em gozo de seus direitos políticos. São sorteados, a cada processo, 25 cidadãos que devem comparecer ao julgamento. Destes, apenas sete são sorteados para compor o conselho de sentença, que definirá a responsabilidade do acusado pelo crime. Ao final do julgamento, o colegiado popular deve responder aos chamados quesitos, que são as perguntas feitas pelo presidente do júri sobre o fato criminoso em si, e as demais circunstâncias que o envolvem. (Portal Justificando, 2016).
Dessa forma, verifica-se que a fundamentação da decisão do Júri é extremamente frágil, visto que os requisitos necessários para fazer parte dele não preveem nenhum tipo de saber jurídico. Acredita-se, no entanto que, reconhecer o caráter indispensável do inquérito incorporando ao mesmo algumas características do sistema acusatório e do estado democrático de direito, tais como a ampla defesa e o contraditório e a participação obrigatória da defesa das partes, tornaria as decisões e atos praticados por esse tribunal muito mais confiáveis, próximos à verdade real e revestidos de segurança jurídica.
2.4 Consequências práticas da dispensabilidade do Inquérito Policial (pesquisa de campo):
Pedro Fidelis, Delegado de Polícia Civil de Pernambuco, considera o Inquérito Policial indispensável à persecução, visto que a polícia judiciária é a encarregada e qualificada para a elucidação das infrações penais. Nesse sentido, ele afirma:
“A esse caráter dispensável do inquérito também pesa o fato de que, durante muito tempo, entre os principais autores de direito processual penal, havia apenas membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, a quem não interessa dar poderes aos órgãos de polícia judiciária (ao delegado), por questões corporativistas, e, assim, tais autores fomentaram o mito de que o promotor pode “rasgar o inquérito” e denunciar de acordo com a sua convicção. No entanto, como falei, na prática 99,99% das denúncias ofertadas pelos Ministérios Públicos se baseiam unicamente nos elementos investigativos do inquérito policial. Na prática, ele sempre foi indispensável.”
A autoridade Policial salienta ainda que, para a melhoria da investigação preliminar hoje no ordenamento jurídico, é essencial que aja mais autonomia para as polícias judiciárias a fim de tornar o processo mais célere, visto que são os órgãos que possuem o primeiro e mais íntimo contato com o caso concreto.
A Delegada de Polícia Civil Isabela Veras também ratifica a importância do procedimento pré-processual:
“A experiência demonstra que a possibilidade de condenação criminal em ação penal fomentada pelo inquérito policial é bem maior. O Inquérito Policial é, de fato, o procedimento mais completo, no qual consegue-se reunir elementos de informação mais robustos. A importância do Inquérito é, de fato, muito grande. Vemos que a fase de instrução criminal consiste basicamente em ouvir acusados e testemunhas, todas as outras provas como quebra bancária e fiscal, interceptação telefônica, quebra de dados são, em regra, produzidas nos autos do inquérito policial”.
Quando questionada a respeito de melhorias do procedimento de investigação preliminar, a autoridade policial salienta: “autonomia administrativa e financeira das polícias judiciárias é o principal ponto. As Polícias Judiciárias (Polícia Civil e Polícia Federal), as quais incumbem a função de investigar infrações penais, carecem de recursos materiais e humanos, além de sofrerem forte ingerência por parte do Poder Executivo. Com a autonomia administrativa e financeira, os chefes de polícia poderiam deliberar onde o dinheiro seria aplicado, além do que iriam se blindar em relação a ingerências políticas, como ocorre com o Poder Judiciário e o Ministério Público”.
Em contrapartida, Amanda Barbalho, Advogada Criminal e Professora de Direito Penal e Processo Penal, reconhece que o inquérito hoje é a base para o início da persecução penal, porém o problema para muitas denúncias infundadas ou processos criminais baseados em provas frágeis, está na competência probatória residual do magistrado:
“o problema não está na dispensabilidade ou não do inquérito policial. De fato, o inquérito serve como filtro pra impedir processos infundados. Mas também há casos de flagrante, em que a justa causa está evidente e não há necessidade real de se estender em uma busca probatória que não seja a judicial. O real problema probatório no Brasil está na falta de rigidez dos magistrados no momento de analisar a justa causa para receber a denúncia, bem como na importância que é dada aos elementos colhidos na esfera policial e na iniciativa residual probatória do juiz. Se resolvidos esses problemas, a dispensabilidade seria apenas uma ferramenta para maior celeridade, sem prejuízos às garantias fundamentais”.
“Para a melhoria do processo de investigação preliminar hoje no Brasil, é necessária a informatização das delegacias, aumentos das equipes, investimento em qualificação especializada nas delegacias que assim o são (como as de violência doméstica), aprimoramento e inserção da investigação defensiva nos autos (ampla defesa e contraditório) e afastar o juiz que atua no inquérito do processo”, finaliza.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Os fundamentos de existência da investigação preliminar ou inquérito policial já citados estão em plena consonância com os direitos fundamentais assegurados pela constituição federal de 1988 (norma maior que rege o ordenamento jurídico brasileiro). Desse modo, não parece sensato revesti-lo de caráter dispensável baseado em resquícios de um estado outrora autoritátio, tendo em vista - inclusive e principalmente -, as consequências práticas dessa decisão para investigados e vítimas.
Medidas a fim de revestir a investigação preliminar de características que a tornem reflexo de um estado Democrático de Direito são muito mais interessantes. Como exemplo disso, pode-se citar a determinação de asseguramento do devido processo legal – garantindo plenamente a ampla defesa e o contraditório -, a fim de oportunizar os investigados e vítimas de terem acesso a todos os meios necessários a fim de esclarecer a sua inocência, bem como de contradizer aquilo que lhe é imputado, visando a evitar uma ação penal infundada e desnecessária.
Tornar a participação do defensor das partes obrigatória na investigação preliminar também ajuda a revestir esse procedimento de legitimidade, o que pode auxiliar, ainda mais, a decisão judicial superveniente na busca da verdade real e investir os atos processuais de segurança jurídica.
Nesse mesmo sentido, vale a pena incorporar ao ordenamento jurídico brasileiro características do sistema processual Italiano e Alemão, que preveem a obrigação de o Estado, durante a investigação preliminar, diligenciar sobre fatos e circunstâncias que possam ser favoráveis ao acusado, descaracterizando, dessa forma, a investigação preliminar como um simples instrumento que serve de munição aos órgãos acusadores (aury lopes jr. e ricardo jacobsen gloeckner, 2014, p. 98).
Por fim, mas não menos importante, este trabalho defende o reconhecimento da polícia judiciária como função essencial à justiça, juntamente com aquelas já previstas na Constituição Federal (do art. 127 ao 133, Constituição Federal). O referido órgão é responsável pela apuração das infrações penais, com exceção das militares, por expressa previsão constitucional e infralegal também. Tal apuração é a responsável por subsidiar praticamente todos os atos judiciais supervenientes, que culminam no exercício da jurisdição, ou seja, na função de dizer o direito. Logo, é inegável a importância e a necessidade de integração desse órgão à persecução penal, tornando-o essencial à função jurisdicional do Estado.
4. Referências:
CONSTITUIÇAO FEDERAL DE 1.988
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 24 Jan. 2020.
“Curso de Processo Penal”, CAPEZ Fernando (2018).
“Investigação Preliminar no Processo Penal” LOPES JR., Aury e GLOECKNER JACOBSEN, Ricardo (2014).
CONJUR
“O novo Inquérito de Expulsão deve dialogar com o Inquérito comum”
https://www.conjur.com.br/2017-dez-05/academia-policia-inquerito-expulsao-dialogar-inquerito-comum Acesso em: 09. Fev. 2020.
CONJUR
“Segurança Jurídica”
https://www.conjur.com.br/2005-mar-29/administracao_publica_principio_seguranca_juridica Acesso em: 06. Abr. 2020.
“Direito Administrativo”, DI PIETRO Maria Sylvia (2010).
JUSBRASIL
Luiz Flávio Gomes
https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121915673/principio-da-verdade-real Acesso em: 06. Abr. 2020.
JUSTIFICANDO
“Tribunal do Júri”
http://www.justificando.com/2016/02/15/entenda-como-funciona-o-tribunal-do-juri/ Acesso em: 06. Abr. 2020
LEI 12.830/13
“Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12830.htm Acesso em 06. Jan. 2020.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
“Informativo 860”
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo860.htm Acesso em 29 Mai. 2020.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Súmula Vinculante 14.
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1230 Acesso em 09. Fev. 2020.
Graduanda de Direito. Faculdade Estácio de Sá.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOVA, INDIRA ESSENIA BEZERRA VILA. A dispensabilidade do inquérito policial e suas implicações na persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 ago 2020, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55073/a-dispensabilidade-do-inqurito-policial-e-suas-implicaes-na-persecuo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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