RUBENS ALVES DA SILVA[1]
(orientador)
RESUMO: Nas últimas duas décadas, as mulheres se organizaram contra a violência quase rotineira que molda suas vidas. Desta movimento nasceram duas leis de muita no combate a violência contra a mulher: a Lei Maria da Penha de 2006 e a Lei do Feminicídio de 2015. Partindo da força da experiência compartilhada, as mulheres reconheceram que as demandas políticas de milhões de pessoas falam mais poderosamente do que os pedidos de algumas vozes isoladas, principalmente para combater o crime de estupro, ainda muito enraizado na sociedade. Desta forma este artigo tem por objetivo geral escopo de discutir – sem a pretensão de esgotar – a questão do estupro, em especial a violência empregada pelo agente (sujeito ativo) contra sua vítima (sujeito passivo) no âmbito da literatura. Neste sentido, este estudo baliza-se por uma ótica diversa encontrada na bibliografia corrente do que trata do tema. Está em nível prático teórico e tem como pressuposto o crime de estupro como violência presumida. Diante do exposto, deve-se compreender que o estupro, embora limitado em número e escopo, ajudam a entender o papel da agressão humanista em ofender, bem como as atitudes sociais e individuais das vítimas. Dada a seriedade do estupro e seu impacto devastador sobre as vítimas, é imperativo reconhecer essas teorias tanto para fins acadêmicos quanto para aplicações práticas.
Palavras-Chave: Crimes contra os costumes. Violência; Estupro.
ABSTRACT: In the past two decades, women have organized themselves against the almost routine violence that shapes their lives. From this movement, two laws were born out of many to combat violence against women: the Maria da Penha Law of 2006 and the Feminicide Law of 2015. Based on the strength of the shared experience, women recognized that the political demands of millions of people speak more powerfully than the requests of some isolated voices, mainly to combat the crime of rape, still very much ingrained in society. However, this article has the general objective of discussing - without pretending to exhaust - the issue of rape, especially the violence used by the agent (active subject) against his victim (passive subject) in the context of literature. In this sense, this study is based on a different perspective found in the current bibliography of what the subject is about. It is at a practical theoretical level and presupposes the crime of rape as presumed violence. Given the above, it should be understood that rape, although limited in number and scope, helps to understand the role of humanist aggression in offending, as well as the social and individual attitudes of the victims. Given the seriousness of rape and its devastating impact on victims, it is imperative to recognize these theories for both academic and practical applications.
Keywords: Crimes against customs. Violence; Rape.
INTRODUÇÃO
O estupro tem sido objeto de considerável controvérsia em termos de sua definição e frequência de ocorrência. Tornar as estimativas precisas ainda mais difíceis é o fato de muitas mulheres não saberem que foram estupradas. Quando Mary Koss (1982) apud Pimentel e Pandjiarjian (2010) desenvolveu a Pesquisa de Experiência Sexual, ela foi capaz de medir até que ponto as mulheres que indicaram que não haviam sido estupradas tinham realmente uma experiência que seria legalmente definida como estupro. Ou seja, eles indicaram que tiveram relações sexuais não consensuais por causa da força ou ameaça de força, mas responderam ‘não’ à pergunta ‘Você já foi estuprada?’
Koss (1982) apud Pimentel e Pandjiarjian (2010) chamou essas mulheres de ‘vítimas de estupro não reconhecidas’. Em uma amostra, Koss (1982) apud Pimentel e Pandjiarjian (2010) constatou que 12,7% dos entrevistados foram estuprados e 43,0% dessas mulheres eram vítimas não reconhecidas.
As razões pelas quais algumas mulheres reconhecem sua vitimização como estupro, enquanto outras não têm sido ilusórias. Uma explicação pode ser que as vítimas reconhecidas e não reconhecidas tiveram diferentes encontros sexuais ou experiências sexuais, ou diferentes atitudes ou personalidades.
Mas, tem também o estupro reconhecido como tal e esses são de dois tipos: o primeiro é aquele estupro denunciado às autoridades legais e o segundo é aquele em que a vitima não denuncia ou retira a denuncia. E esses são tão preocupantes quanto aqueles em que a vítima não reconhece que foi estuprada. As razões amplamente aceitas para o estupro incluem impulso irresistível, doença mental, álcool ou drogas e precipitação das vítimas.
A principal premissa de impulso irresistível é que os homens cometem estupro devido a seus impulsos incontroláveis, para a gratificação sexual imediata e/ou incapacidade de controlar seus impulsos contra a privação sexual. O problema com essa suposição é que ele minimiza a responsabilidade legal dos estupradores e atribui as causas do estupro a algo além de seu controle.
Uma vez que a responsabilidade legal dos criminosos seja removida da motivação para violar, as circunstâncias que levaram ao estupro (por exemplo, visualização de material pornográfico) ou às próprias vítimas podem ser responsabilizadas por criar situações nas quais os homens perdem o controle de si mesmos para a gratificação sexual, manifestação de mentalidade/doença ou experiência infantil anormal de estupradores.
O público pode concluir prematuramente que estupradores, particularmente aqueles que exibem padrões repetitivos de ofensa predatória por violadores, devem ser mentalmente perturbados. Além disso, as pessoas podem simplesmente assumir que estupradores estão agindo com a experiência de abuso sexual na infância. Embora essas suposições possam ser justificadas em alguns casos elas também não podem ser aceitas
O álcool ou drogas podem ser usados por violadores para extinguir suas próprias ações ou podem ser usados em vitimas para colocá-los ainda mais em situações vulneráveis.
Desta forma, este artigo discute a questão do estupro, em especial a violência empregada pelo agente (sujeito ativo) contra sua vítima (sujeito passivo) no âmbito da literatura. Neste sentido, este estudo baliza-se por uma ótica diversa encontrada na bibliografia corrente do que trata do tema, além de especificamente analisar o crime de estupro como crime contra os costumes; verifica a questão da violência contra a mulher e, analisa o estupro como violência presumida.
O estudo se se justifica pela extrema necessidade de verificar a questão do estupro contra violência presumida como sintoma de uma dinâmica social não estruturada, na qual todos os indivíduos encontram-se envolvidos. Nos âmbitos acadêmico, social, científico e pessoal, o artigo se justifica no fato do conhecimento está em pleno estado de desenvolvimento e aprimoramento na sociedade moderna, e isso implica a possibilidade de se encontrar, na prática, atitudes desvinculadas dos últimos achados científicos. O tema é relevante, recorrente e inovador, causando o necessário interesse pela pesquisa acadêmica, o que justifica este trabalho.
Sua metodologia teve o enfoque qualitativo torna possível lidar com dados que (infelizmente) são inadequados para análises estatísticas, mas hoje em dia muitos pesquisadores consideram um método legítimo para obter informações e entender como os seres humanos funcionam.
Os resultados apontam para o fato de a vitimização por estupro é a atribuição/ aceitação de mitos de estupro como forma de explicação para um crime inaceitável e hoje considerado hediondo no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
2 O CRIME CONTRA OS COSTUMES
Os costumes esta sempre em constante evolução e o direito procura acompanhar essa evolução. No último século, o direito procurou acompanhar a evolução natural da sociedade, principalmente com relação aos costumes, o que demonstra que legislações do final do século XIX e início do século XX, e que hoje se modificaram bastante, principalmente em relação ao Direito Penal, sobretudo os crimes sexuais (CAPEZ, 2005).
Assim, o Código Civil de 1916 tratava homens e mulheres de forma bem diferenciada, consubstanciado nos costumes da época, cuja mulheres nem cidadãs eram, já que nem ao voto tinham direito. Os homens eram lhes dado o direito de chefia da casa (art. 233), inclusive cabia ao homem à autorização para que a mulher pudesse exercer uma atividade laboral fora de sua casa, e também ao direito de fixar a residência do casal. Tudo isso por que a mulher era considerada relativamente incapaz (art. 6º, II) (SILVA, 2015).
Ainda, caso a mulher perdesse sua virgindade antes de contrair matrimônio sem o conhecimento do marido, este tinha o direito de pedir a anulação do casamento no prazo de 10 dias a contar do casamento para anular o mesmo, mas se o homem não fosse virgem antes do casamentos à mulher não era dado o mesmo direito (art. 178, § 1º c/c art. 219, IV). Essa prerrogativa legal permaneceu na legislação brasileira até a Lei nº 4.121/1962, que modificou as condições da mulher casada (WOLKMER, 2007).
Mas foi no Direito Penal que ocorreram uma imensa modificação. No Código Criminal de 1890, a capoeira era crime (art. 402, com pena de 2 a 6 meses de prisão) e a vadiagem também era crime como prisão de até 30 dias, além de ser obrigada a assinar um termo de ocupação lícita em 15 dias, sob pena de voltar à cadeia entre 1 e 3 anos (SILVA, 2009).
Com relação aos crimes sexuais, era crime tirar a virgindade de um mulher com penas de 1 a 4 anos de prisão, desde que a mesma fosse menor de idade, utilizando como meio a sedução, engano ou fraude (art. 267). No caso de estupro (art. 268) a pena era maior (6 meses a 2 anos, contra os 1 a 6 anos originais), e ainda se poderia utilizar da regra do art. 276, já mencionado, desde que a mulher fosse ‘honesta’ (SILVA, 2015).
Em 1940, o presidente Getúlio Vargas outorgou uma nova legislação penal (Código Penal de 1940; Decreto-Lei 2.848), alterando a legislação anterior, principalmente em relação ao crime contra os costumes daquela época. Dessa forma, os crimes de procedência sexual passaram a ser considerados crimes contra os costumes, diferentemente do código anterior que considerava os crimes sexuais como crimes contra a honra e segurança das famílias; mas, longe ainda da conotação atual de crime contra a liberdade sexual da vítima de hoje. Mas a punição pouco mudou, com variação da pena entre 1 e 3 anos de prisão, caso se utilizasse de fraude para conseguir ter relação sexual com uma mulher. Mas manteve a questão da condição de honestidade da mulher sem considerar a proteção penal as mulheres da vida (art. 215) (WOLKMER, 2007).
No caso das virgens a proteção penal se expandiu com o CP de 1940; o art. 2017 considerava crime de sedução, com pena de 2 a 4 anos caso o homem seduzisse uma mulher com idade entre 14 e 18 anos, utilizando-se de sua confiança ou inexperiência. Outros crimes também eram considerados como o crime de rapto (art. 219 e ss.), que consistia em raptar mulher honesta, utilizando-se de fraude, violência ou grave ameaça e for com fim libidinoso e dava pena também de 2 a 4 anos (SILVA, 2009).
No geral os crimes contra os costumes tiveram um aumento de pena de cerca de ¼ das penas anteriores se o causador fosse casado, já que a sociedade não aceitava de forma alguma que o agente casado atacasse os costumes de um solteiro. Mas caso o agente cassasse com sua vítima não era mais obrigado mais a cumprir a penas (CAPEZ, 2005).
Outro artigo que baila ao absurdo era o art. 229 que se referia a manter um lugar para fins sexuais, como os motéis que dava pena de 2 a 5 anos. Isso só se modificou com o advento da Lei nº 12.015/2009 (WOLKMER, 2007).
A violência contra mulheres no Brasil se manifesta de várias formas e geralmente é realizada em conjunto com uma combinação de outras violações dos direitos humanos e das mulheres, que fazem parte do processo de abuso físico e psicológico que a maioria das mulheres neste país possui (SILVA, 2009).
Os crimes relacionados à dignidade são um tipo de violência que atinge principalmente as mulheres. Esses crimes abrangem uma série de manifestações de violência, desde confinamento ilegal, agressão, queimaduras, estupro até, é claro, a forma mais clássica e extrema, assassinato a sangue frio sob o pretexto de honra - assassinatos de honra (CAPEZ, 2005).
Os crimes cometidos supostamente por honra são tão definidos porque ocorrem em um ambiente social onde o ideal de masculinidade é sustentado por uma noção de honra - de um homem, família ou comunidade - e é fundamentalmente conectado ao policiamento do comportamento feminino e sexualidade. Entende-se que a honra dos membros masculinos da família reside nos corpos das mulheres da família e, para proteger essa honra, os homens visam regular e direcionar a sexualidade e a liberdade das mulheres para exercer qualquer controle sobre suas próprias escolhas/vidas (SILVA, 2015).
Qualquer ação ou transgressão percebida, portanto, por parte das mulheres, para romper com esse ambiente familiar ou desafiar a autoridade dos membros masculinos de sua família, exige uma resposta que não apenas castigue o transgressor, mas, na verdade, também ajude a restaurar a honra perdida e reafirmar a masculinidade dos membros da família do sexo masculino na sociedade ou na comunidade (SILVA, 2009).
Infelizmente, as únicas respostas consideradas adequadas o suficiente para alcançar esse objetivo multiuso são aquelas que reafirmam o domínio físico e social dos membros masculinos sobre os femininos e se manifestam em atos de violência contra as mulheres; confinamento ilegal, casamentos forçados, corte do nariz, queima de ácido, queima de fogão, estupro e assassinato a sangue frio. Para combater isso o Brasil vem evoluindo em sua legislação penal como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio (SILVA, 2015).
3 VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
As atitudes têm sido uma preocupação central em relação à violência contra as mulheres. As atitudes desempenham um papel na perpetração dessa violência, nas respostas das vítimas à vitimização e nas respostas da comunidade à violência contra as mulheres (ARDAILLON e DEBERT, 2017).
Por um bom motivo, as atitudes têm sido um alvo fundamental das campanhas de educação comunitária destinadas a prevenir a violência contra as mulheres. No entanto, houve relativamente pouco exame coordenado dos fatores que moldam as atitudes em relação à violência contra as mulheres (BLAY, 2013).
Nas últimas três décadas, observou-se o desenvolvimento constante de ferramentas acadêmicas com as quais se avalia atitudes de violência contra as mulheres. O esboço dos mitos de estupro de Burt (1980) apud Ardaillon e Debert (2017) foi um dos primeiros a operacionalizar relatos feministas de suportes socioculturais para estupro.
Duas décadas depois, pelo menos 11 medidas de crenças e atitudes em relação à agressão sexual haviam se desenvolvido no Brasil, abordando dimensões da violência sexual como a aceitação de mitos de estupro ou crenças sexuais adversas, hostis ou hipermasculinidades, culpar a vítima ou empatia da vítima e intenções sexualmente agressivas (CAMARGO et. al, 2011).
Outros instrumentos se concentram nas atitudes e percepções de outras formas específicas de violência contra as mulheres, desde agressão à esposa, assédio sexual e estupro. As atitudes são significativas para a violência contra as mulheres em três domínios principais: (1) a perpetração da violência contra as mulheres; (2) respostas comunitárias e institucionais à violência contra as mulheres; e (3) a resposta das mulheres a essa vitimização (MURNEN et. al., 2012).
As atitudes têm uma relação fundamental e causal com a perpetração da violência contra as mulheres. Há evidências consistentes de uma associação entre crenças e valores que apoiam a violência e a perpetração de comportamentos violentos, tanto no nível individual quanto na comunidade. Por exemplo, homens com atitudes de gênero mais tradicionais, rígidas e misóginas têm maior probabilidade de praticar casamento e violência (VANDRÉ, 2017).
Meninos e jovens que apoiam crenças mais favoráveis ao estupro também têm maior probabilidade de serem sexualmente coercitivos. Em uma recente meta-análise agregando dados em todos os estudos que relacionam um aspecto da ideologia masculina à incidência de agressão sexual, Murnen et al. (2012) descobriram que todas, exceto uma medida da ideologia masculina, estavam significativamente associadas à agressão sexual.
Em outras palavras, existe uma relação consistente entre a adesão dos homens a atitudes sexistas, patriarcais e/ou sexualmente hostis e seu uso da violência contra as mulheres. Em segundo lugar, as respostas das mulheres à sua própria sujeição à violência são moldadas por suas próprias atitudes e as de outros ao seu redor. Na medida em que as mulheres individualmente concordam com os entendimentos de violência doméstica ou agressão sexual que apoiam a violência, é mais provável que eles se culpem pelo assalto, menos propensos a denunciá-lo à polícia ou a outras autoridades e mais propensos a sofrer em longo prazo, efeitos psicológicos e emocionais negativos (BLAY, 2013).
Vários estudos documentam que as auto atribuições de culpa das vítimas de estupro estão associadas a maior trauma e angústia. Os retratos da mídia e as normas sociais ensinam as mulheres a se auto silenciarem, a colocar as necessidades de seus parceiros acima das suas, e as mulheres são menos propensas a relatar violência e abuso por seus parceiros se expressarem atitudes tradicionais de papel de gênero. Além disso, representações estereotipadas e restritas da violência inibem as mulheres de reconhecer e nomear sua experiência como violência (CAMARGO et. al., 2011).
Uma das principais razões pelas quais as mulheres não relatam incidentes que atendem à definição legal de agressão sexual é que muitas não se encaixam em estereótipos comuns de estupro real - elas não eram de um estranho, não eram do lado de fora e com uma arma, e não envolveu ferimentos (MURNEN et. al., 2012).
As mulheres podem não perceber os atos como vitimização criminal, embora sejam mais propensas a fazê-lo se privarem as vítimas da liberdade, ameacem suas vidas ou integridade física ou produzam danos psicológicos. As vítimas também não denunciam violência por causa de sua percepção das atitudes dos outros: seu medo de serem culpados por familiares e amigos, estigmatizados e o sistema de justiça criminal não fornecerá reparação (VANDRÉ, 2017).
No entanto, não há evidências de que atitudes tenham um papel causal nos riscos de vitimização das mulheres em o primeiro lugar, e enfatizar isso seria culpar a vítima por sua vitimização. Em suma, não há evidências de que as atitudes das mulheres em relação ao estupro influenciem sua probabilidade de serem estupradas (ARDAILLON e DEBERT, 2017).
As atitudes desempenham um papel nas respostas à violência contra as mulheres adotadas por indivíduos que não sejam o autor ou o autor, vítima, sejam membros da família e amigos, profissionais ou espectadores. Pessoas com atitudes mais favoráveis e tolerantes à violência respondem com menos empatia e apoio às vítimas, são mais propensas a atribuir culpa à vítima e menos propensas a denunciar o incidente à polícia e mais propensas a recomendar sanções indulgentes ou inexistentes para o ofensor (CAMARGO et. al., 2011).
As atitudes sociais também moldam as respostas formais de profissionais e instituições às vítimas e autores de violência contra as mulheres, incluindo policiais, juízes, padres, assistentes sociais, médicos e assim por diante. Estudos transnacionais descobriram que as atitudes em relação ao estupro e outras formas de violência contra as mulheres inibem respostas efetivas e apropriadas às vítimas do sexo feminino (MURNEN et. al., 2012).
Em um estudo entre policiais de Belo Horizonte realizado por Vandré (2014), aqueles que atribuíram maior culpa à vítima de violência familiar também indicaram que teriam menor probabilidade de acusar o agressor. Essas respostas formais e informais têm efeitos sobre as próprias vítimas. As respostas de outras pessoas à procura de ajuda por mulheres que sofreram abuso de um parceiro masculino influenciam a probabilidade de denunciarem a violência doméstica futura à polícia, bem como a subsequente busca de ajuda, separação e eventual recuperação do abuso.
3 ESTUPRO COMO VIOLÊNCIA PRESUMIDA
Em 1989, o Worldwatch Institute declarou que o crime mais comum em todo o mundo era a violência contra as mulheres. Nos Estados Unidos, o Federal Bureau of Investigation (FBI) estima que uma mulher é estuprada a cada 6 minutos e até uma em cada quatro mulheres pode se tornar vítima de estupro durante a vida. No Brasil, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública no Brasil (2018) esse crime ocorre a cada 11 minutos. Dada à ampla prevalência de agressão sexual no mundo, não surpreende que pesquisas consideráveis têm se dedicado a examinar as características desse crime, incluindo seus antecedentes, fatores de risco e as características discriminatórias de estuprador e vítima (MOTTER. 2018).
Os mitos do estupro foram definidos pela primeira vez por Burt (1980) apud Ardaillon e Debert (2017) como crenças preconceituosas, estereotipadas ou falsas sobre estupro, vítimas de estupro e estupradores. Embora descritiva, essa definição não é suficientemente articulada para servir como uma definição formal. Por exemplo, de que maneira as crenças são prejudiciais e para quem? Se eles são estereotipados no sentido psicológico clássico, o que os caracteriza como mitológicos, um termo que geralmente implica certa função cultural?
Outras definições também foram propostas na literatura e, embora compartilhem as mesmas conotações, há uma variação significativa entre elas (por exemplo Hegeman e Meikle (1980) e Briere et. al. (1985) apud Ardaillon e Debert 2017). Essa variação tem implicações importantes para as bases teóricas e o desenvolvimento de instrumentos de medição nesse campo.
Uma revisão dessa literatura revela que os pesquisadores geralmente falharam em desenvolver uma definição completa, teoricamente fundamentada, dos mitos do estupro e, além disso, falharam em usar qualquer definição de forma consistente. Essa situação gerou uma série de problemas, sendo o mais importante o uso de medidas amplamente variadas de aceitação do mito do estupro. Uma questão fundamental aqui tem a ver com o significado do termo mito. O exame desse termo sob a perspectiva de várias disciplinas intelectuais (isto é, psicologia, antropologia, filosofia e sociologia) revela marcadas semelhanças em sua natureza e função (DELMANTO, 2016).
Em particular, três características dos mitos são comumente propostas. São crenças falsas ou apócrifas que são amplamente defendidas; eles explicam algum fenômeno cultural importante; e servem para justificar os arranjos culturais existentes. Quando essa análise é combinada com as suposições da teoria cultural do estupro, uma definição clara dos mitos do estupro pode ser proposta. Os mitos do estupro são atitudes e crenças geralmente falsas, mas mantidas ampla e persistentemente, e que servem para negar e justificar a agressão sexual masculina contra as mulheres (GOMES, 2011).
Talvez o estupro seja melhor conceituado como estereótipo. Como em outros estereótipos, qualquer incidente específico de agressão sexual pode ou não estar em conformidade com o estupro; no entanto, incidentes isolados que são de acordo com o mito tendem a ser amplamente divulgados (GUSMÃO, 2010).
A grande maioria dos estupros que contradizem o mito, no entanto, é negligenciada. Além disso, muitos mitos semelhantes podem ser impossíveis de verificar, como a afirmação: Muitas mulheres têm um desejo inconsciente de serem estupradas (BURT, 1980; LARSEN e LONG, 1988 apud ARDAILLON e DEBERT 2017).
O valor verdadeiro de qualquer uma dessas afirmações em uma situação específica não é tão significativo quanto o fato de que elas tendem a ser aplicadas universalmente, como ecoam nos vereditos do júri, nas decisões de políticas públicas e nas reações pessoais aos sobreviventes de violência sexual. Atitudes e ações tomadas em relação a indivíduos com base em qualquer estereótipo sobre um grupo geralmente são injustificadas e sua importância reside na tradução direta ou indireta em atitudes e ações socialmente indesejáveis (FALEIROS, 2013).
Desta forma, o gênero ainda é o mais poderoso preditor de estupro - papéis predominantemente de um crime contra mulheres praticado por homens De acordo com a Pesquisa Nacional de Violência Contra as Mulheres, realizada pelo Fórum Nacional de Segurança Pública no Brasil (2018), a taxa de prevalência de estupro ao longo da vida é de 15,00% entre as mulheres e de 2,10% entre os homens. Além disso, de acordo com a pesquisa do Fórum, os dados do Ministério da Justiça do Brasil (2018), 99,00% de todas as pessoas presas por estupro são homens. Embora os homens às vezes sejam vítimas de violações, eles são quase sempre os autores de estupro. A pesquisa do Fórum Nacional de Segurança Pública no Brasil (2018) concluiu que no Brasil existe uma cultura de estupro, na qual o ato de estupro é funcionalmente normativo, significando que é essencialmente um comportamento tolerado (MOTTER. 2018).
Vandré (2017) classificou o estupro no Brasil como regulamentado, não proibido. Em uma cultura de estupro, os apoios socioculturais para o estupro são estruturalmente integrados em todos os níveis da sociedade. Isso inclui a institucionalização dos valores patriarcais; práticas de socialização que ensinam noções não sobrepostas de masculinidade e feminilidade com os homens vistos como duros, competitivos e agressivos e a mulher como terna, nutritiva e fraca; sistemas social, familiar, político, jurídico, mídia, educacional, religioso e econômico que favorecem os homens; e justiça criminal e sistemas legais que não protegem as mulheres.
Definiu-se segurança como liberdade de dano e ameaça de dano. Os níveis de violência contra as mulheres no Brasil e em todo o mundo indicam que poucas mulheres estão de fato livres de danos. O abuso físico, psicológico e sexual de mulheres tem sido documentado desde os primeiros tempos e em todas as partes do mundo estimam que em todo o mundo pelo menos uma em cada três mulheres tenha sido submetida a alguma forma de violência masculina (DELMANTO, 2016).
O Ministério da Saúde (2018) cita a violência entre pessoas íntimas como a principal causa de lesões para mulheres entre 15 e 44 anos de idade. Além disso, os pesquisadores documentaram altas taxas de abuso psicológico, violência, abuso físico e sexual de meninas, tráfico, perseguição, assédio sexual, pornografia violenta, violência relacionada a dotes, mutilações genitais, estupro de mulheres contestadoras. Atualmente, muitos desses ataques são agora reconhecidos como perpetrados por um homem íntimo da vítima.
Quase todas as sociedades do mundo têm instituições sociais que legitimam, obscurecem e negam a existência de abuso de gênero; Recentemente, a natureza normativa do estupro por data foi confirmada pela reação contra as feministas, reforma da lei do estupro, uma reação promovida por quem afirma que as feministas manufaturaram a pandemia de estupro por sua interpretação abrangente do que constitui o estupro, para uma visão geral deste assunto. Questões de definição na pesquisa sobre estupro tem sido uma área de disputa há algum tempo, enquanto estudiosas feministas lutam com a contradição das experiências conhecidas de sobreviventes de vítimas de violência e os limites legais da acusação. Por exemplo, alguns estudos relatam que grupos de mulheres que consideram estupro quando seus maridos exigem sexo quando a esposa não quer, mesmo que ela não diga nada que indique abertamente sua falta de vontade (MOTTER. 2018).
Apesar das definições legais relativamente restritas de estupro, ele continua prevalecendo no Brasil e no mundo. O estupro e outras formas de violência contra as mulheres foram declarados por muitos como os direitos de direitos humanos mais difundidos e menos reconhecidos no mundo de hoje. Vandré (2017) estima que a prevalência ao longo da vida de estupro e tentativa de estupro entre mulheres em idade universitária em países industrializados varia entre 21,00% e 27,00%.
Em nações não industriais, as estimativas de prevalência de estupro não são coletadas sistemicamente, mas acredita-se que o estupro ocorra em 43,00% a 90,00% das sociedades não industriais. Fatores que contribuem para esse intervalo de incidência em sociedades não industriais podem ser informativos de condições com maior ou menor probabilidade de promover estupro (VANDRÉ, 2017).
Os estudos de prevalência de estupro no Brasil foram realizados continuamente nas duas últimas décadas, porque os campos de saúde pública e justiça criminal se baseiam na vigilância e no monitoramento das taxas. Há uma surpreendente consistência nas taxas de prevalência nesse período de tempo (FALEIROS, 2013).
Em 1982, Koss e Oro apud Facuri et. al. (2013) encontrou uma taxa de prevalência de 13,00% entre uma amostra de estudantes universitários. Este estudo definiu o estupro como penetração oral, anal ou vaginal contra consentimento através da ameaça de força ou lesão corporal ou após incapacitar intencionalmente a vítima com álcool. Koss e Oro (1982) apud Facuri et. al. (2013) foram os primeiros a usar o termo ‘estupro oculto’ para aumentar a conscientização que poucas mulheres relataram à polícia ou disseram a alguém sobre o incidente.
O estudo também identificou o estupro como primariamente um crime conhecido. Uma extensão de seus estudos anteriores 1987 de seu estudo (KOSS e ORO, 1982, apud Facuri et. al., 2013), usando uma amostra nacional, demonstrou uma taxa de prevalência de 15,00% para chamadas remarcadas desde os 14 anos de idade. Facuri et. al. (2013) encontrou no Brasil uma prevalência de 13,00%. Quase uma década depois, Facuri et. al. (2013) encontrou uma prevalência de 20,00% para estupros concluídos em uma amostra nacional de estudantes universitários que recordam toda a sua vida e 15,00% desde os 15 anos.
Parece haver variação cultural na prevalência de estupro, embora as pesquisas sobre violência contra mulheres negras sub apresentadas em estudos de prevalência. A maioria dos estudos de prevalência em todo o país emprega uma metodologia telefônica que dificilmente alcançará as mulheres com maior vulnerabilidade. O esquema de amostragem representativa resulta em poucas mulheres com cor para apoiar comparações individuais de grupos étnicos (DELMANTO, 2016).
As fontes de dados existentes para estimativas de prevalência de etnia por estupro são inconsistentes e não está claro se isso é devido a diferenças metodológicas nos estudos, à falta de divulgação devido à desconfiança policiais ou pesquisadores, diferença na definição de estupro, barreiras linguísticas, influências de diferenças no nível de aculturação ou diferenças culturais reais (FALEIROS, 2013).
Sorenson e Siegel (1992) apud Pimentel e Pandjiarjian (2010) descobriram que a prevalência de estupro ao longo da vida para mulheres pobres duas vezes e meia maior do que para as latinas (20,00% vs. 8,00%) nos Estados Unidos, No Brasil a relação é de 25,00% para mulheres pobres para 5,00% de mulheres de classe média e rica. No entanto, Pimentel e Pandjiarjian (2010) relataram uma taxa de prevalência de 14,50% para as mulheres negras. No mesmo estudo, os autores descobriram que 28,00% das mulheres já haviam experimentado estupradores.
A Pesquisa Nacional sobre Violência Contra as Mulheres do Ministério da Justiça (2018) encontrou uma taxa de prevalência de 18,00% para mulheres brancas e 29% para mulheres negras. No entanto, as mulheres negras revelaram incidentes de estupro em um nível inferior ao das mulheres brancas, e a maioria dos estudos utiliza amostras que não incluem uma amostra aleatória de mulheres negras (MOTTER. 2018).
A comunidade científica deve continuar pressionando as agências nacionais responsáveis por coletar as estatísticas do crime para exagerar os grupos minoritários, de modo que as projeções confiáveis de seus riscos de estupro possam ser verificadas. Também são necessárias pesquisas adicionais sobre métodos mais bem-sucedidos na promoção da divulgação de estupro. Algumas décadas atrás, a maioria dos professores de direito criminal dedicou pouca atenção ao estupro de adultos. Os professores - quase todos homens - provavelmente pensam que os problemas nos casos de estupro eram principalmente factuais e probatórios. Esse consenso, é claro, evaporou. O novo consenso é que a própria definição de estupro reflete atitudes patriarcais que negam justiça às vítimas de coerção sexual
Segundo o art. 224, do CP, presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência (BRASIL. 2012).
A norma acima é aplicável aos crimes dos Artigos 213, 214 e 219 do Código Penal (estupro, atentado violento ao pudor e rapto violento ou mediante fraude, respectivamente) (BRASIL, 2010).
O Art. 224 está situado no Capítulo IV ("Disposições Gerais") do Título VI ("Dos crimes contra os costumes") da Parte Especial do Código Penal e refere-se, portanto, a todos os crimes previstos nos capítulos anteriores do mesmo título. Ocorre que, dentre todos esses delitos, apenas nos três acima mencionados é necessária à violência, somente neles sendo útil, portanto, a aplicação da presunção
(BRASIL. 2012).
Em regra, para configurarem-se, o atentado violento ao pudor e o estupro exigem que a conjunção carnal, neste, ou os atos libidinosos dela diversos, naquele, ocorram mediante violência ou grave ameaça – para que esteja caracterizado que a vítima foi constrangida à prática do ato ou à submissão a ele, ou seja, que não consentiu a situação. Se não há nenhum desses dois elementos, não há estupro ou atentado violento ao pudor. Trata-se, portanto, de requisitos alternativos essenciais aos tipos penais dos referidos delitos, como se vê nos artigos abaixo transcritos, que tipificam os dois crimes (GOMES, 2011).
Com relação ao estupro diz o art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos. Porém, nos casos previstos no Art. 224, a e c, ainda que os atos libidinosos tenham sido praticados sem o uso de violência real ou grave ameaça, o crime subsiste, pois a violência presumida supre a falta desses dois elementos, cumprindo a exigência dos dois tipos (BRASIL. 2012).
Entendeu o legislador que as pessoas compreendidas na alínea a (ou seja, as menores de 14 anos) não possuem condições de compreender e avaliar as conseqüências dos atos sexuais e, assim, eventual consentimento não será considerado de nenhuma valia (BRASIL, 2010).
A norma do Art. 224, apesar de dispensar, nas hipóteses específicas em que ela incide, a existência de violência real ou grave ameaça, tornando-as desnecessárias para a configuração dos crimes, não retira do estupro e do atentado violento ao pudor o elemento "constrangimento", não descaracterizando os delitos. Isso ocorre porque a presunção de violência fundamenta-se em vícios ou inexistência de consentimento da vítima, configurando o seu constrangimento (GUSMÃO, 2010).
O fundamento do Art. 224, nas hipóteses das alíneas a e b, é a falta de consentimento válido do ofendido, pois que ele, em qualquer das duas situações, é incapaz de consentir a prática de atos libidinosos. Na situação específica da alínea a, essa incapacidade decorre da falta de conhecimento do menor de 14 anos sobre o assunto, além de que, nas palavras de Noronha (1994, p. 223) apud Gusmão (2010, p. 133): "Faltam-lhe madureza fisiológica e capacidade psicoética para ter alcance, para estimar com precisão o ato violador dos bons costumes". No caso da alínea c, não há consentimento de nenhuma espécie (válido ou inválido), mas a vítima é incapaz de resistir de fato à agressão, o que justifica a presunção de violência.
Os costumes e comportamentos de uma sociedade, como mostram o estudo da história e o senso comum, modificam-se com o decorrer dos anos. Desde o momento da produção do Código Penal, as normas tratadas acima permaneceram inalteradas, apesar de, no mesmo período, as mudanças ocorridas no campo da sexualidade e na maneira como ela é vista e tratada pela sociedade brasileira terem sido intensas (DELMANTO, 2016).
Essas transformações sociais têm conseqüências importantes na caracterização dos crimes contra os costumes, como afirma Jesus (1996 b, p. 85), referindo-se a esses delitos: Ao se analisar os crimes previstos neste Título "Dos crimes contra os costumes" devem-se levar em consideração que se trata de crimes contra os costumes. Estes, refletindo práticas constantes em determinada sociedade, em épocas certas, são variáveis e influi na própria caracterização dos delitos (FALEIROS, 2013).
Os meios de comunicação vêm influenciando comportamentos e informando a população de todas as idades que, hoje, adquire muito mais precocemente conhecimentos sobre sexo e suas conseqüências. Dessa maneira, também puderam ser constatadas, nesse período, mudanças na idade em que as pessoas começam a despertar para a sexualidade e a ter uma vida sexual ativa (MOTTER. 2018).
A esse respeito, já observava Noronha (1994, p. 226) apud Gusmão (2010, p. 134): "a evolução dos costumes tem-se processado com bastante rapidez, de modo que a moça de hoje não é mais a ignorante, crédula e inocente de trinta anos atrás". Essa posição é também a de Jesus (1996 b, p. 85), que afirma: "As gerações mais novas conhecem cedo o mundo do sexo e o encaram com naturalidade".
Dentre as três hipóteses em que a lei determina que se presuma a violência, a idade da vítima é, se não a única, a que mais sente a influência das mudanças sociais acima referidas. Tais considerações, somadas à consciência de que a presunção de violência deve ser vista e utilizada com ressalvas, devido ao seu caráter, considerado relativo pela maioria da doutrina atual, demonstram a importância que deve ser concedida à questão da atualidade da norma do Art. 224, a, do Código Penal, sobretudo no que se refere à adequação, para os nossos dias, da idade de 14 anos como limite para se presumir a violência nos crimes sexuais (DELMANTO, 2016).
Mas será que essas mudanças sociais têm o condão de descaracterizar uma presunção legal e transformar completamente o rumo dos julgamentos a ponto de se "esquecer" o que está no texto da lei? E mais, será que podem contribuir para a impunidade de quem comete um crime sexual contra uma criança ou um adolescente? (GOMES, 2011).
O problema (aliás, muito relevante na doutrina e jurisprudência) consiste em se determinar se essa presunção é absoluta ou relativa, admitindo ou não prova em contrário. Contrária ao posicionamento doutrinário mais recente acima exposto, a orientação tradicional e, aliás, a que deu forma ao Código Penal, diz ser absoluta a presunção, considerando, portanto, que todos os menores de 14 anos não têm condições de entender o caráter do ato sexual nem estão preparados para suas conseqüências. Logo, para essa corrente, mesmo que a vítima afirme categoricamente que manteve a relação sexual de forma espontânea, terá havido crime (GUSMÃO, 2010).
Considerando-se que o Código Penal brasileiro foi editado em 1940, o fato de os meios de comunicação proporcionar – juntamente com outros fatores – mais informação a respeito de sexo e suas conseqüências a crianças e adolescentes e a suscetibilidade a essas mudanças que caracteriza os crimes contra os costumes, mostra-se importante o questionamento dessa presunção de violência, sobretudo nos moldes como se apresenta atualmente, baseada no critério objetivo idade (BRASIL. 2012).
É o que ocorre na prática: pode-se observar que o Poder Judiciário não é rígido ao julgar casos apontados como estupro ou atentado violento ao pudor cometidos apenas mediante violência presumida em razão da idade (ou seja, sem violência real, grave ameaça ou qualquer outra causa de presunção de violência – alíneas b e c do Art. 224), absolvendo, muitas vezes, os réus, mesmo que provadas a materialidade e a autoria. Observa-se, ainda, que a proporção de absolvições é muito maior quando se trata de vítima do sexo feminino e com idade pouco inferior ao limite de 14 anos. Quanto a esse detalhe, deve ser ressaltado que, em sua maioria, as absolvições são decorrentes de erro de tipo: ou seja, quando o suposto agressor comprova que desconhecia realmente que a vítima era menor de 14 anos e as circunstâncias fáticas (como compleição física e comportamento da vítima) justificam a indução do agente ao erro. Nesse caso de erro de tipo, perde a importância à discussão quanto à relatividade da presunção, o que demonstra que essa tendência não significa que o Judiciário baiano adere a esse posicionamento de que a presunção é relativa, apenas atende ao que determina a Parte Geral do Código Penal quanto ao erro de tipo (GOMES, 2011).
Em termos estritamente legais, admitir que crianças e adolescentes menores de 14 anos tenham capacidade, discernimento, entendimento ou sequer a possibilidade de conhecimento das conseqüências de uma relação sexual, tendo por base apenas mudanças ocorridas em nossa sociedade – que não se sabe se são ou não suficientes para tanto –, é contrariar todo o ordenamento jurídico nacional, inclusive preceitos constitucionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente que seriam apenas "letra morta", "rascunho numa folha de papel", "caminhos retos para a impunidade e para o descrédito na legalidade".
Além disso, em nosso ordenamento jurídico não se admite que o costume (prática social reiterada de ações num mesmo sentido) revogue a lei, sendo o mesmo utilizado apenas quando a lei for omissa (como dita a Lei de Introdução ao Código Civil, Art. 4º) – e esta hipótese não é o que ocorre no caso em estudo, em que a lei é bem precisa e expressa. Muito menos temos em nosso País qualquer tipo de jurisprudência vinculante (ou seja, decisões de tribunais não têm o poder de atrair, vinculando-as para o mesmo sentido, o resultado de outras que serão julgadas posteriormente) (MOTTER. 2018).
Portanto, a questão continua indefinida, inclusive nos Tribunais, e essa é uma das vantagens do nosso sistema: não sendo a jurisprudência vinculante, é estimulado o debate crítico, contribuindo para o aperfeiçoamento das decisões e a melhor aplicação da lei a cada caso concreto. Isso se demonstra em julgamentos recentes do STF, que, de maneira oposta ao citado acima, de 1996, considera a presunção de violência absoluta, conforme a transcrição parcial de um deles a seguir:
Hipótese que, de resto, harmoniza-se com a orientação desta Corte no sentido de que o consentimento da menor de quatorze anos para a prática de relações sexuais e sua experiência anterior não afasta a presunção de violência para a caracterização do estupro ou do atentado violento ao pudor. (HC nº 80. 613-9 SP)
Algo que pode pôr fim à discussão da doutrina e jurisprudência, brevemente apontada acima, é a redação dos Arts. 166 e 167 do Anteprojeto de lei sobre Reforma do Código Penal, ao definir crimes que se pretende que substituam o estupro e o atentado violento ao pudor, como se percebe na transcrição abaixo:
1) Violação sexual de menor ou incapaz:
- Art. 166 – Praticar conjunção carnal com menor de quatorze anos, ou pessoa alienada, portadora de deficiência mental ou impossibilitada por qualquer outra causa de oferecer resistência:
- Pena – reclusão de oito a doze anos.
2) Abuso sexual de menor ou incapaz
- Art. 167 – Praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal com menor de quatorze anos, ou pessoa alienada, portadora de deficiência mental ou impossibilitada por qualquer outra causa de oferecer resistência:
- Pena – reclusão de quatro a doze anos.
O ato sexual com pessoa menor de 14 anos, sem violência física ou grave ameaça, que atualmente só é considerado crime devido a uma presunção, passará a constituir dois tipos penais específicos (a depender do ato libidinoso praticado). Da forma como estão redigidos no Código Penal vigente, os Arts. 213, 214 e 224 do Código Penal admitem uma interpretação flexível, sobretudo no que se refere à presunção, podendo ser considerada relativa, como já o foi pelo Judiciário e doutrina, tentando os julgadores verificar, em cada caso concreto, a ocorrência da principal circunstância que fundamenta a presunção de violência em razão da idade da vítima: a incapacidade para consentir (MOTTER. 2018).
Entretanto, deve ser destacado que, mesmo com a redação acima, a reforma do Código Penal não excluirá a possibilidade de erro de tipo, pois, não sabendo a idade da vítima e tendo razões para crer que ela é maior de 14 anos, estará, da mesma maneira que atualmente, ocorrendo o erro quanto a elementar essencial do tipo: a idade. Portanto, considerando-se que a grande maioria das absolvições constatadas mesmo quando provadas autoria e materialidade decorre de erro de tipo, a mudança não alterará consideravelmente esse panorama (DELMANTO, 2016).
CONCLUSÃO
A ausência do uso de violência física e de armas na perpetração de crimes sexuais, reflete certas características que as tornam vítimas ideais. O ofensor pode aproveitar-se da sua curiosidade natural sobre o sexo, vitimizando principalmente aquelas que não recebem informações sobre sexualidade no meio familiar.
Além da impotência física diante das proporções de um adulto, a criança vive num meio de poder detido por pessoas adultas, no qual aprende a obedecê-las e delas depender para sobreviver.
Desta forma, a criança é facilmente conduzida por adultos nos quais repousa sua concepção de autoridade. Por outro lado, a necessidade de afeto e atenção pode ser explorada por ofensores sedutores que detêm um grande período de tempo junto às crianças em seus lares, ou por aqueles que deliberadamente passam a fazer parte de suas atividades e recreações, nas lacunas deixadas por pais e familiares ausentes.
Vítimas adolescentes e adultas, por possuírem maior porte físico, são propensas a apresentar reações de resistência. Nesse sentido, o uso de armas, ao provocar nas mesmas o medo extremo de serem mortas, faz com que os ofensores obtenham seus intentos sem a existência de reações.
As evidências de lesões não-genitais em adolescentes maiores de 14 anos e adultas são elementos importantes na verificação do constrangimento e do uso da violência. Contudo, a associação entre estas lesões e a ocorrência do crime é questionável, vez que a ausência de tais injúrias não contradiz as alegações de ofensas a serem tipificadas como crimes sexuais. Mesmo submetida a ato sexual coercitivo, a vítima pode não apresentar evidências físicas, não sendo o fato indicativo de ato sexual consensual. Ainda assim, o achado de lesões não-genitais se constitui num elemento de peso para as decisões judiciárias. Nas situações de violência, a interação entre ofensor e ofendido produz danos em graus variáveis que afetam a integridade física e psíquica das vítimas, bem como os horizontes sociais e culturais. Assim, o fenômeno não é apenas uma transgressão de regras e leis, mas também uma relação de poder exercida de forma interpessoal e social. Dessa forma:
- As presunções de violência das alíneas "b" e "c" do artigo 224 do Código Penal são de natureza relativa;
- Igualmente, a despeito do descabido critério etário utilizado pelo legislador,, a presunção de violência da alínea "a" também é de natureza relativa;
- O estupro simples (artigo 213, caput) é crime hediondo, assim quando combinado com o artigo 223; Igualmente, considera-se hediondo o estupro cometido com violência ficta ou presumida;
- O artigo 9º da Lei 8.072/90 aplica-se aos crimes perpetrados com violência ficta, ainda que na sua forma simples.
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[1] Mestre em Direito do Trabalho Faculdade de Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas em 2013 e professor do curso de Direito do CEULM/ULBRA, Manaus-AM, [email protected]
graduanda em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM – Manaus, AM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDROSO, Isadora Ribeiro. O estupro como violência presumida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55131/o-estupro-como-violncia-presumida. Acesso em: 23 dez 2024.
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