Resumo. O artigo analisa a liberdade religiosa em escolas públicas sob dois primas: a proibição de interferência no livre exercício da religião e a impossibilidade de proteção especial ou adoção de uma religião oficial pelo Estado. Para tanto, são desenvolvidos temas como o conceito de liberdade religiosa, a proibição do uso de símbolos religiosos em escolas públicas francesas e o julgamento da ADI 4439, que trata do ensino confessional em escolas públicas brasileiras. Este trabalho procura aproximar os conceitos de neutralidade e liberdade religiosa, identificando as semelhanças entre as violações ocorridas na França e no Brasil. Ademais, tenta-se compreender a aplicação de conceitos como dominação por invasão cultural e independência ética.
Palavras-Chave: Liberdade. Religião. Escolas. Públicas. França.
Sumário: 1. Introdução; 2. O que é liberdade religiosa?; 3. A proibição de símbolos religiosos em escolas públicas francesas; 4. O ensino confessional em escolas públicas brasileiras: ADI; 5. Considerações finais; 6. Referências.
1. Introdução
Ao longo dos séculos, foram estabelecidas intensas relações entre religiosidade e educação. Durante muito tempo, em várias partes do mundo, a educação esteve ligada às confissões religiosas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a fusão entre educação e religiosidade foi retratada na obra “Indignação”, de Philip Roth[1]. Marcus Messner, personagem principal do livro, enfrenta a difícil relação entre a própria liberdade religiosa e as imposições da faculdade em que estuda, o que acaba trazendo problemas às suas ambições educacionais.
Se a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a isenção do serviço militar por objeção de consciência para homens religiosos e ateus que possuíssem convicções morais que os proibissem de servir (United States vs. Seeger) tivesse sido proferida no fim dos anos 50, Marcus, como homem ateu que tinha medo de ser expulso da faculdade e enviado para a guerra, teria sido poupado de grandes períodos de angústia.
O jovem foi obrigado a frequentar as aulas de religião e chegou a questionar o diretor da faculdade quanto à intensa interferência da instituição na escolha de seu modo de vida. Tal ficção pode ser utilizada para ilustrar o desrespeito à liberdade religiosa dentro das instituições de ensino.
Ronald Dworkin, no livro “Religião sem Deus”, discute a concepção de que a religião não implica necessariamente na crença em um Deus, conceito que será muito utilizado no presente artigo para uma análise mais específica das violações da liberdade religiosa dentro de escolas públicas francesas e brasileiras.
A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos proíbe a interferência do governo no livre exercício da religião e veda a proteção ou reconhecimento de religião oficial pelo Estado. Essas duas exigências serão aplicadas durante a análise da liberdade religiosa em escolas públicas francesas, a partir da interferência estatal em aspectos individuais dos alunos, e em escolas públicas brasileiras, especialmente no que se refere ao julgamento da ADI nº 4439 DF sobre ensino confessional.
Portanto, este artigo tratará sobre duas situações em que o Estado se utiliza de argumentos aparentemente sustentados pela liberdade religiosa ou pela laicidade para pressionar os cidadãos a adotarem um determinado modo de vida. O primeiro caso que abordaremos é o banimento de símbolos religiosos ostensivos usados por alunos em escolas públicas francesas para, segundo o governo, manutenção do caráter laico do Estado. Em seguida, trataremos do julgamento da ADI nº 4439 DF pelo STF, que considerou constitucional ensino confessional em escolas públicas, contrariando nitidamente o dever de neutralidade estatal frente às questões religiosas.
Para o desenvolvimento desta análise, utilizaremos a seguinte sequência: 1) O que é liberdade religiosa?; 2) A proibição de símbolos religiosos em escolas públicas francesas; 3) O ensino confessional em escolas públicas brasileiras: ADI 4439.
2. O que é liberdade religiosa?
O conceito de religião não possui definição indiscutível, é difícil perceber elementos absolutamente comuns a todas as religiões. No âmbito da proteção jurídica da liberdade religiosa, há o considerável receio de que a adoção de uma prescrição rígida do conceito de religião acabe traduzindo uma visão religiosa específica, limitando a autocompreensão religiosa dos indivíduos.
Na obra Religião sem Deus, Ronald Dworkin trata da expressão “ateísmo religioso”[2], trazendo a concepção de que a religião não exige necessariamente a crença em um Deus. Ainda, o autor traz reflexões sobre a ideia de que “cada pessoa tem a responsabilidade ética intrínseca e inescapável de viver corretamente”[3], o que configuraria uma questão de fé, ou seja, o indivíduo seria o responsável por decidir sobre as questões éticas que envolvam os seus conceitos de vida adequada.
Quanto às religiões teístas, o autor traz importantes considerações acerca das consequências da interferência estatal no cumprimento dos deveres e responsabilidades impostas por essas religiões. Obviamente, o Estado deve limitar alguns mandamentos religiosos para proteger direitos de terceiros, mas essa proibição não deve se resumir à desaprovação de uma religião, deve haver argumentos. O indivíduo tem o direito de manter sua crença, cumprir com os deveres dela advindos e, com isso, decidir sobre o que seria adequado para a sua existência.
Ao observar que Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos proíbe a violação do livre exercício da religião e a discriminação a favor de uma religião, Dworkin revela que a interpretação constitucional da liberdade religiosa deve observar que os indivíduos têm um direito moral específico de escolha de sua prática religiosa, não sendo justo que a proteção da liberdade religiosa seja limitada às religiões teístas, mas também sendo insensato abraçar todas as convicções em um conceito mais amplo de religião.[4]
O direito moral à liberdade religiosa deve ser interpretado como um direito à independência ética, ou seja, que o Estado não pode interferir em um estilo de vida por supor que outro seja melhor.[5]
A liberdade de expressão, de consciência e de religião e a liberdade acadêmica são oposições à cultura da conformidade, sendo parte do apoio dado pela sociedade à uma cultura da independência. As escolas têm papel de protagonistas no processo de formação da cultura de independência, devem ser o lugar onde as pessoas adquirem certa determinação e capacidades fundamentais para levar uma vida baseada em suas próprias convicções.[6]
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 trata a liberdade de crença como um direito fundamental, previsto no artigo 5º, VI, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos. A liberdade de religiosa não é somente a liberdade de escolha de religião, é também a liberdade de ser ateu e de não ter ou de deixar de ter uma religião. O livre exercício dos cultos religiosos exige a prática de certos ritos, manifestações, hábitos, tradições e cerimônias, configurando um desdobramento da liberdade religiosa e, consequentemente, demandando certa proteção.[7]
A liberdade de professar a própria crença, de informar e se informar sobre religião, de ensinar e aprender religião e o direito à objeção de consciência também configuram direitos subjetivos individuais, dimensão da liberdade religiosa. Outra dimensão da liberdade religiosa é o vetor objetivo, que se apresenta como princípio da não confessionalidade (interpretação do artigo 19 da CF/1988).[8]
O direito constitucional brasileiro buscou harmonizar a mais livre ampla e livre convivência religiosa com princípios como igualdade, liberdade, pluralismo e justiça social, combatendo qualquer tipo de discriminação religiosa entre teístas e ateus.[9]
No texto constitucional, o ensino religioso foi tratado pelo artigo 210, §1º, determinando que ensino religioso fosse disciplina de matrícula facultativa oferecida em horários normais das escolas públicas. A devida interpretação de tal dispositivo constitucional permite tratar o ensino religioso como matéria baseada uma compreensão histórica de um fenômeno que atingiu a humanidade.
O artigo 7-A da LDB traz o respeito à liberdade de crença de alunos que, por preceitos religiosos, não possam exercer atividades em determinados dias, provável influencia da decisão da Corte norte-americana citada na introdução deste trabalho. Já o artigo 33 trata do oferecimento de ensino religioso em escolas públicas, como matérias de matrícula facultativa. Nos últimos anos, a grande polêmica em torno do tema foi o julgamento de inconstitucionalidade do Decreto nº 7.107/2010 que, em seu artigo 11, § 1º, trata do ensino religioso confessional em escolas públicas, tema que será analisado em tópico específico.
3. A proibição de símbolos religiosos em escolas públicas francesas
Na França, a proibição de afixação de símbolos religiosos em monumentos ou espaços públicos, exceto locais de culto, cemitérios, monumentos funerários, museus e exposições, foi determinada, há mais de um século, pelo artigo 28[10] da Lei de 9 dezembro de 1905, que trata da separação entre Igrejas e Estado, tendo como base princípios como liberdade de consciência e, consequentemente, livre exercício de cultos.
Em 2004, a Assembleia Nacional Francesa votou pelo banimento do uso de véus muçulmanos, solidéus judaicos e crucifixos cristãos nas escolas. Símbolos discretos usados pelos alunos ficaram permitidos. Então, a Lei nº 2004-228, de 15 de março de 2004, foi promulgada e proibiu, sob o argumento de aplicação do princípio da laicidade e de valores como igualdade e respeito ao outro, o uso de sinais e vestimentas que manifestem ostensivamente uma afiliação religiosa (artigo 1º[11]).
O Estado justificou tal proibição pelo fato de que a Lei seria aplicação do princípio constitucional da laicidade, presente no artigo primeiro da Constituição Francesa de 1958[12] e um dos fundamentos da escola pública. Esse princípio teria como base a liberdade de consciência e o respeito aos valores comuns que formaram a unidade nacional.
A Circular, de 18 de maio de 2004, que trata da implementação da Lei nº 2004-228, de 15 de março de 2004, pontua, quando trata dos princípios, que escola teria o dever de transmitir os valores da república francesa como dignidade para todos os seres humanos, igualdade entre homens e mulheres e a liberdade de cada indivíduo, inclusive para a escolha de seu modo de vida, de acordo com o que considera ser o melhor. Ainda, destaca que o ambiente escolar deveria reforçar a igualdade entre os estudantes e promover uma fraternidade aberta a todos, além de afirmar que a proibição desses símbolos aliviaria os alunos de pressões geradas por manifestações ostensivas de afiliação religiosa, já que essa lei garantiria o respeito à liberdade de consciência de todos.
Um dos pontos controversos quanto à proteção de diferenças e garantia de não discriminação que justificaram a vedação é a própria redação da circular de implementação da Lei 2.1[13], já que esta traz expressamente o véu islâmico como primeiro exemplo de sinais e roupas proibidos. Ainda, a palavra “ostensivos” gera desigualdades entre os alunos, já que continua permitida a utilização de símbolos religiosos menos “ostensivos”, como pequenas cruzes. É nítido que algumas religiões demandam a utilização de vestes mais ostensivas do que outras, ou seja, referida lei oferece tratamento discriminatório em relação aos alunos que utilizam símbolos religiosos que não podem ser “menos ostensivos”, segundo os padrões estabelecidos pelo Estado francês.
Outro ponto questionável do dispositivo legal é o argumento de que este visa à proteção de direitos alheios e promove a tolerância e a fraternidade. Uma coisa é o Estado francês proibir no início do século XX que símbolos religiosos fossem afixados em espaços públicos, já que o estado é laico, deve manter a sua neutralidade, inclusive visando à proteção da liberdade religiosa, não podendo beneficiar uma única confissão. Outra coisa é impedir que os alunos de escolas públicas se vistam de determinada maneira e portem símbolos religiosos pelo fato de sua escolha de vida divergir do que o Estado impõe como melhor modo de vida. A escola é o espaço da descoberta, do convívio com as diferenças e da formação de cidadãos, os alunos devem ser respeitados para que formem e escolham seus próprios conceitos do que seria viver corretamente.
Ao vetar a utilização de símbolos religiosos que, por serem ostensivos, só afetam determinadas religiões e colocar, em circular de orientação para aplicação da Lei, como principal exemplo o véu islâmico, o Estado reforça preconceitos em torno dessa religião. A presença de uma aluna muçulmana utilizando um véu não pode ser encarada da mesma forma que a afixação de símbolos religiosos em prédios públicos ou orações em salas de aula. Sob o pretexto de que não deve haver discriminação a favor de uma religião, já que o Estado é laico, a França acabou violando qualquer compromisso com a neutralidade, o livre exercício da religião e, consequentemente, a liberdade de consciência.
A falta de convívio com colegas que utilizam símbolos religiosos acaba alimentando a ignorância e gerando outros tipos de violência moral contra os que tiveram sua liberdade religiosa violada pela proibição francesa. O veto impõe “modelo francês de melhor estilo de vida”, o que certamente impõe dificuldades à tolerância religiosa.
É preciso entender que a proibição do uso de símbolos religiosos ostensivos por alunos faz parte da mesma imposição de melhor modo de vida pelo Estado quando este afixa símbolos religiosos em espaços públicos. Na verdade, o aluno não sofre pressões por conviver com pessoas que manifestam sua religião através de vestimentas e sim pelo Estado que impõe um jeito correto de manifestar a religiosidade.
O ocorrido na França se aproxima muito do que tratou Paulo Freire a respeito teoria da ação antidialógica e suas características, principalmente quanto à invasão cultural. A invasão cultural faz parte da conquista e ocorre através da imposição da visão de mundo dos invasores aos invadidos. Esta é uma forma de dominação econômica e cultural do sujeito invadido que conduz à “inautenticidade do ser dos invadidos”[14]. O êxito da invasão cultural tem como elemento básico fazer com que o indivíduo a ser dominado absorva a ideia de que é inferior ao dominador.
Nesse processo, os invadidos absorvem os valores dos invasores. Modificações na maneira de falar, no modo de vestimenta e no andar são consequências dessa dominação, há uma aderência do “eu” oprimido ao “tu” opressor.[15] A proibição aos alunos do uso de roupas que pareçam ostensivamente religiosas é tipo de adaptação à realidade que serve ao dominador, a França estabeleceu, através de lei, certa pressão para o sucesso de sua invasão cultural e a consequente adaptação dos indivíduos aos seus padrões de exercício da religiosidade.
O governo francês, ao impor que um determinado estilo de vida é melhor do que o outro, não está protegendo qualquer aspecto de neutralidade ou laicidade, muito pelo contrário, configura uma violação de liberdade religiosa sob justificação absurda de que isso garantiria a neutralidade do Estado francês em matéria religiosa e evitaria conflitos. É necessário o convívio com as diferenças na escola para que a haja a tolerância, o respeito e a fraternidade, elementos tão buscados pela República francesa.
A religiosidade de alguns não pode ser absorvida pelo Estado como violação iminente ao direito do outro. A proibição do uso de símbolos religiosos ostensivos pelos alunos nas escolas apenas reforça estigmas em torno da população muçulmana, ou seja, o oposto da missão que, segundo o Estado francês, têm as escolas de transmissão de valores como igual dignidade a todos os seres humanos, igualdade entre homens e mulheres e liberdade, incluindo a escolha de próprio modo de vida.
4. O ensino confessional em escolas públicas brasileiras: ADI 4439
Em 1979, a Espanha que, apesar de ser uma monarquia, é laica, celebrou um acordo com a Santa Sé[16] para a inclusão do ensino religioso em currículo escolar, sendo facultativo aos alunos, mas de oferecimento obrigatório pelas escolas. Os professores, embora remunerados pelo Estado, devem ser designados pelas autoridades eclesiásticas, que também determinam o conteúdo dessa disciplina. Tal acordo entre a Igreja e o Estado espanhol provoca protestos intensos até os dias atuais e já foi objeto de questionamento judicial no Tribunal Constitucional (ATC 1155/1987).
Em 2008, o governo brasileiro celebrou um acordo com a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil promulgado no Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010. Dentre os pontos polêmicos desse decreto, tem-se o § 1º do artigo 11que diz:
“§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.”.
Esse modelo de ensino em escolas públicas brasileiras foi questionado pela Procuradoria Geral da República em Ação Direta de Inconstitucionalidade 4439, que solicitou a interpretação conforme a constituição do § 1º do artigo 11 do Decreto nº 7.107/2010 e do artigo 33, caput e §§ 1º e 2º da Lei nº 9.394/1996. Buscou-se o reconhecimento de que o ensino religioso em escolas públicas só poderia ter natureza não confessional e a proibição da contratação de professores representantes de confissões religiosas.
A votação foi apertada e, por maioria dos votos (6x5), o Supremo Tribunal Federal considerou que o ensino religioso em escolas públicas pode ter natureza confessional, não havendo violação dos mandamentos constitucionais. Um dos principais argumentos a favor da improcedência da ADI 4439 sustentou que a matrícula facultativa e a proibição ao proselitismo eram suficientes para que esse ensino fosse constitucional. Ainda, no julgamento foi levantando o entendimento de que diferentes confissões religiosas seriam oferecidas aos alunos de diversas crenças, o que não caracterizaria o favorecimento de uma confissão específica.
No entanto, o posicionamento da maioria dos ministros do STF que julgaram a ADI 4439 parece equivocado. O ensino religioso fixado pela Constituição Federal deve ser sedimentado na compreensão histórica de um fenômeno que ocorreu na humanidade (configurando interesse público) e na contemplação das diversas cosmovisões acerca da religiosidade, sem fixar qualquer tipo de conceito de um modo de vida “mais correto”.
O ensino confessional previsto no Decreto envolve estritamente determinada confissão, ferindo o dever do Estado laico de manter sua neutralidade diante de questões religiosas. O principal papel do Estado é garantir que os indivíduos possam ter, deixar de ter ou não ter uma religião, que possam ser teístas ou ateus, que exerçam sua liberdade de culto.
Oferecer ensino confessional em escolas públicas, ainda que de matrícula facultativa, é um atentado à Constituição Federal, viola a igualdade entre os alunos que possuem e os que não possuem uma confissão. O ensino confessional em espaços educacionais públicos tem como objetivo a promoção de valores de determinada confissão, subordinando o Estado a crenças, o que é totalmente incompatível com o princípio da laicidade.
Ao permitir o ensino de matérias religiosas em escolas públicas, de acordo com o §1º, artigo 11, do Decreto 7.107/2010, o Brasil fornece subsídios que privilegiam um certo tipo de discurso religioso. Um Estado laico não pode fomentar esse tipo de prática em escolas públicas, garantir a liberdade religiosa também é se abster de privilegiar qualquer tipo de discurso religioso em detrimento de outro.
O Estado tem como função assegurar que os alunos usufruam do direito fundamental à liberdade de crença sem privilegiar qualquer sentimento religioso. O princípio da laicidade significa a impossibilidade de oficialização de uma religião, portanto, determinada religião não pode ser ensinada em escolas públicas como verdade[17], o ensino confessional é incompatível com o Estado laico.
É necessário perceber que liberdade religiosa e laicidade são complementares, para que os alunos possam usufruir da liberdade de crença, o Estado deve garantir que os espaços públicos, principalmente a escola, local de formação complementar da cidadania, sejam neutros, que nenhuma visão sobre como viver a vida seja colocada acima das outras.
5. Considerações finais
O estabelecimento de conceito jurídico em torno da religião não é tarefa fácil, já que não se trata de algo pacífico na doutrina. Nesse sentido, também é difícil perceber na prática que liberdade religiosa dentro das escolas e a laicidade são elementos complementares. A liberdade religiosa requer um ambiente de neutralidade para o seu exercício, o Estado não pode reconhecer uma religião oficial ou interferir em seu livre exercício.
Os casos tratados nesta análise demonstram duas formas de violação da liberdade religiosa. No caso Francês, a violação foi baseada em interpretação extrema do princípio da laicidade e na confusão, talvez proposital, entre o significado de orações ou símbolos religiosos afixados em espaços públicos e a utilização de símbolos religiosos por alunos dentro de escolas públicas.
Sob a argumentação de que a proibição do uso de símbolos religiosos ostensivos utilizados por alunos em escolas públicas busca instaurar nos cidadãos uma consciência de identidade secular comum a todos, viola o direito à independência ética[18], que decorre da própria liberdade religiosa, já que pressupõe que um tipo de identificação, modo de vida, é mais admirável do que outro, é o que Paulo Freire chamou de invasão cultural[19], parte da conquista dos indivíduos que ocorre através da imposição da visão de mundo dos invasores aos invadidos.
Ao buscar uma laicidade através da eliminação de determinados símbolos religiosos, a França acabou adotando um conceito de melhor modo de vida, suprimindo o seu próprio dever de neutralidade. O direito à liberdade religiosa exige que o Estado não imponha regras que impeçam o exercício da fé. Atualmente, a questão foi agravada com a aprovação pelo Senado francês, em 29.10.2019, de projeto de lei que proíbe que pais ou acompanhantes utilizem símbolos religiosos durante passeios escolares ou visitas às escolas (ainda falta a aprovação da Assembleia Nacional para o reconhecimento oficial de tal proibição).
No caso brasileiro, o reconhecimento da constitucionalidade do ensino confessional em escolas públicas, de acordo com o §1º, artigo 11, do Decreto 7.107/2010, fornece subsídios que privilegiam um certo tipo de discurso religioso, algo totalmente incompatível com o dever de neutralidade de um Estado laico. A liberdade religiosa dos alunos também foi violada, já que, mesmo que a disciplina seja de matrícula facultativa, é impossível oferecer diferentes confissões religiosas aos alunos de diferentes crenças, não podemos esquecer que religião, segundo Dworkin, não precisa necessariamente da crença em um Deus, ferindo a igualdade entre os alunos. As escolas públicas devem respeitar a pluralidade de crença de seus alunos.
Portanto, a partir da análise deste trabalho acerca do tratamento da liberdade religiosa em escolas públicas, pode-se perceber que laicidade e liberdade religiosa não se contrapõem, são complementares. O livre exercício da religião necessita de um ambiente neutro, assim como o Estado não deve impor às pessoas escolhas sobre o sentido da vida ou adotar um modelo do que seria viver adequadamente.
6. Referências
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DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
_______; Religião sem Deus. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 65.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
LEITE, Fábio Carvalho. Estado e religião: a liberdade religiosa no Brasil. Curitiba: Juruá, 2014.
MARTINS, Leonardo. “Liberdade religiosa e liberdade de consciência no sistema da Constituição Federal”. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 2, no 5, p. 27-48, jan./mar. 2008.
MEIRELLES, Mauro (org.). Ensino de sociologia: diversidade, minorias, intolerância e discriminação social. Porto Alegre: Evangraf/LAVIECS, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia.1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Saraiva, 2010.
TAVARES, André Ramos. “O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização”. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 3, no 10, p. 17-47, abr./jun. 2009.
_______;“Religião e neutralidade do Estado”. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 2, nº 05, p. 13-25, jan./mar. 2008.
[1] ROTH, Philip. Indignação. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[2] DWORKIN, Ronald. Religião sem Deus. São Paulo: Martins Fontes, 2019. p. 3.
[3] Ibid., p. 96-97.
[4] Ibid., p. 96-104.
[5] Ibid., p. 113.
[6] DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
[7] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. Malheiros: São Paulo, 2010. p. 96.
[8] Ibid., p. 268.
[9] WEINGARTNER NETO, Jayme. Comentário ao artigo 5º, incisos VI a VIII. In: CANOTILHO. J.J. Gomes; et al. (Org.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 267.
[10] Article 28
Il est interdit, à l'avenir, d'élever ou d'apposer aucun signe ou emblème religieux sur les monuments publics ou en quelque emplacement public que ce soit, à l'exception des édifices servant au culte, des terrains de sépulture dans les cimetières, des monuments funéraires, ainsi que des musées ou expositions. Acesso em 04.12.2019. Disponivel em: < https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexteArticle.do?idArticle=LEGIARTI000006340360&cidTexte=LEGITEXT000006070169&dateTexte=19051211 >.
[11] Article 1
Il est inséré, dans le code de l'éducation, après l'article L. 141-5, un article L. 141-5-1 ainsi rédigé :
« Art. L. 141-5-1. - Dans les écoles, les collèges et les lycées publics, le port de signes ou tenues par lesquels les élèves manifestent ostensiblement une appartenance religieuse est interdit.
Le règlement intérieur rappelle que la mise en oeuvre d'une procédure disciplinaire est précédée d'un dialogue avec l'élève. Acesso em: 04.12.2019. Disponível em: < https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000417977&categorieLien=id >.
[12] ARTICLE PREMIER.
La France est une République indivisible, laïque, démocratique et sociale. Elle assure l'égalité devant la loi de tous les citoyens sans distinction d'origine, de race ou de religion. Elle respecte toutes les croyances. Son organisation est décentralisée.
La loi favorise l'égal accès des femmes et des hommes aux mandats électoraux et fonctions électives, ainsi qu'aux responsabilités professionnelles et sociales. Disponível em: < https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do;jsessionid=D64B2EB0C8A840D6A032FABB90F9E434.tplgfr31s_1?cidTexte=JORFTEXT000000571356&dateTexte=20080725 >. Acesso em 04.12.2019.
[13] 2.1. La loi interdit les signes et les tênues qui manifestent ostensiblement une appartenance religieuse
Les signes et tenues qui sont interdits sont ceux dont le port conduit à se faire immédiatement reconnaître par son appartenance religieuse tels que le voile islamique, quel que soit le nom qu'on lui donne, la kippa ou une croix de dimension manifestement excessive. La loi est rédigée de manière à pouvoir s'appliquer à toutes les religions et de manière à répondre à l'apparition de nouveaux signes, voire à d'éventuelles tentatives de contournement de la loi.
La loi ne remet pas en cause le droit des élèves de porter des signes religieux discrets.
Elle n'interdit pas les accessoires et les tenues qui sont portés communément par des élèves en dehors de toute signification religieuse. En revanche, la loi interdit à un élève de se prévaloir du caractère religieux qu'il y attacherait, par exemple, pour refuser de se conformer aux règles applicables à la tenue des élèves dans l'établissement. Disponível em < https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000252465&dateTexte=&categorieLien=id >. Acesso em: 04.12.2019.
[14] FREIRE, Paulo. p. 206.
[15] Ibid., p. 207.
[16] Disponível em: < http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/archivio/documents/rc_seg-st_19790103_santa-sede-spagna_sp.html#SOBRE_ENSEÑANZA_Y_ASUNTOS_CULTURALES >. Acesso em 04.12.2019.
[17] DWORKIN, op. cit., p. 107.
[18] Ibid., p. 118.
[19] FREIRE, op. cit., p. 206.
Advogada e mestranda em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MASCARENHAS, MARIANA GOMES. O tratamento da liberdade religiosa em escolas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 ago 2020, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55147/o-tratamento-da-liberdade-religiosa-em-escolas-pblicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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