SUELLEN ELISSA ZAPAROLI PEDROSO[1]
(coautora)
Resumo: O Estado de Inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal, sofre impacto direto do fenômeno midiático- incluindo os diversos tipos de “furos de reportagem” e como estes procuram saciar as expectativas sociais. Assim, visando entregar à população verdadeira sensação de segurança e justiça, a mídia se utiliza de um discurso utilitário do Direito Penal como forma de contenção de riscos, sem observar o postulado da inocência do indivíduo existente desde sua concepção como ser humano, criando um sistema autofágico entre esses dois princípios solidificadores do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Estado de inocência; Direito Penal Constitucional. Influência midiática. Sociedade de risco.
Abstract: The State of Innocence, provided in for the article 5, LVII of the Federal Constitution, suffers a direct impact from the media phenomenon - including the different types of “news scoops” and how they seek to satisfy social expectations. Thus, aiming to provide the population with a true sense of security and justice, the media uses a utilitarian discourse of Criminal Law as a way of containing risks, without observing the postulate of the innocence of the individual existence since his conception as a human being, creating a autophagic system between these two solidifying principles of the Democratic Rule of Law.
Keywords: State of Innocence. Constitutional Criminal Law. Media Influence. Risk Society.
Sumário: Introdução- 1 De Ulpiano à Constituição de 1988- 2 Questão Terminológica – 2.1 Presunção de culpa e seus defensores- 3 Direito Penal e Sociedade de Risco- 4 Influência Midiática no Direito Penal- 5 Estado de Inocência e Mídia- 6 Conclusão- Referências.
(...) as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação e não é verdade; as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade; as pessoas creem que o cárcere perpétuo seja a única pena perpétua; e não é verdade. A pena, se não sempre, nove vezes em dez não termina nunca. Quem em pecado está é perdido. Cristo perdoa, mas os homens não[2]. (CARNELUTTI, 1995, p.91)
INTRODUÇÃO
A liberdade de expressão e imprensa estão em evidência e possuem papel fundamental no que concerne à veiculação de fatos socialmente relevantes, incluindo o processo criminal. Desta forma, a liberdade de expressão- representada pela mídia- faz parte da formação da opinião pública livre que solidifica o Estado Democrático de Direito e é, assim, prevista como norma fundamental[3], devendo ser respeitada.
Essa relação entre o direito penal e a mídia é íntima, e assim vem sendo há muitas décadas. Os casos penais sempre foram utilizados como mercadoria de consumo e meio para atrair cada vez mais espectadores. Os meios utilizados para tanto são os mais diversos, como revistas, jornais, televisão, rádio e até mesmo Instagram, Facebook e Twitter.
Porém, o que chama atenção e que tentar-se-á abarcar neste artigo é como essa influência midiática sobre a opinião social passou também a afetar o ordenamento jurídico, mais precisamente o princípio do Estado de Inocência, que foi objeto de decisões controversas no Supremo Tribunal Federal e como o Direito Penal tenta se utilizar da mídia para reforçar a contenção social daquelas pessoas que o sistema considera pertencentes à sociedade de risco.
Desta forma e sucintamente explicado como a Sociedade de Risco, o Direito Penal e a Mídia se autossustentam, primeiramente explicaremos como surgiu o Estado de Inocência e seu desenrolar histórico até sua posterior positivação no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988. Num segundo momento, elucidaremos o porquê da utilização da expressão “Estado de Inocência” e não da comumente utilizada “presunção de inocência” e como isso repercute no mundo jurídico e sua questão linguística.
Em seguida, explicaremos como se deu a relação entre o direito penal e o controle social diante da expansão cultural brasileira e como a mídia passou a ser utilizada como ferramenta de propagação de um ideal segregador de modo a influenciar até mesmo o momento do início da execução da pena. Por fim, relacionaremos os grandes expoentes deste estudo, quais sejam: o Estado de Inocência e sua alteração mediante a influência midiática.
1 DE ULPIANO À CONSTITUIÇÃO DE 1988
O Estado de Inocência, comumente denominado “princípio da presunção de inocência” é previsto no artigo 5º, inciso LVIII da Constituição da República de 1988, dispondo que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Este postulado foi um feito histórico dos Direitos Humanos e obrado arduamente por séculos até sua formação e positivação.
Sua primeira aparição histórica ocorreu por volta de 200 anos antes de Cristo quando Ulpiano- jurista romano- afirmou: “Es preferible dejar impune el delito de un cupable que condenar un inocente.” [4] dizendo, ainda, “ Todos se presumen buenos, mientras no se pruebe que son malos”[5]. Dessa afirmação se extrai, a máxima da inocência absoluta até que haja qualquer prova em contrário, posto que a sociedade não deve ser digna e, tampouco ter bases sólidas, se partir do pressuposto de que todos os que convivem entre si são maus por natureza.
Posteriormente, a inocência do indivíduo foi postulada na Magna Carta Libertatum em 1215[6] , sendo também defendida por conhecidos nomes da criminologia, como Beccaria[7] e Francesco Carrara. Apesar disso, seu marco mais notável se deu pelo princípio do Devido Processo Legal (Due Processo f Law) previsto no Bill of Rights (1681).
O Estado de Inocência teve também seu momento de esplendor durante o iluminismo, aparecendo na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) como produto do Racionalismo e Empirismo. Posteriormente encontrou assento expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cujos pilares remontam à Revolução Francesa. Além disso, também está previsto na Convenção de Direitos Humanos, em seu artigo 8º, 2, o qual prevê que “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.” Ressalte-se que o Brasil aderiu a ambos os tratados internacionais mencionados.
E assim, após um caminho longo e árduo, apenas em 1988 o Estado de Inocência passou a ser incorporado no ordenamento brasileiro: “O princípio da presunção de inocência não veio à lume em rimo de bólido de Fórmula 1, foi criado e instituído em nosso ordenamento de forma gradual e com enormes dificuldades, sendo a sua preservação como cânone legal uma tarefa árdua da qual não se pode fugir.”[8]
Entretanto, e apesar de toda sua caminhada histórica, a consolidação e a efetiva aplicação do Estado de Inocência sempre foram questionadas pela sociedade brasileira.
2 QUESTÃO TERMINOLÓGICA
A palavra “presunção” tem sua origem no latim præsumptĭo, -onis e significa uma opinião baseada em aparências e indícios. Seu significado léxico é[9] : 1. Opinião ou julgamento baseado em aparências ou em indícios. 2. Conjectura ou suposição que se toma como verdadeira. 3. Consequência que a lei deduz de determinados atos ou fatos e que se estabelece como verdadeira, muitas vezes até mesmo com prova em contrário. Assim, pela própria linguística, extrai-se que a “presunção de inocência” é uma criação do homem que, em meio social, não é considerado inocente desde seu nascimento.
A visão do homem como pecador e culpado é explicada por Santiago Vegezzi, que explana como a tradição judaico-cristã trouxe a crença de que o homem, representado por Adão, é culpado desde sua origem e assim são considerados todos os seus descentes que, apesar de não terem provado do “fruto proibido” também foram impedidos de entrar no “Jardim do Éden”.
El hombre aparece, para la tradición judeo-cristiana, como um pecador em sí mismo, desde que Adán fue desterrado de Edén. Esta idea es perfectamente compatible con una surte de “presunción de culpabilidad” generada por y para la consolidación de la concentración de poder. Un paradigma que bien podría traducirse em los siguientes términos: “si somos culpables, estamos sometidos a quien tiene el poder de sancionar”. (...) Adán fue quien concibió el pecado original. Nació inocente, fue criminalizado por no resistir la tentación de comer uma manzana- ofrecida por uma mujer- y condeno al resto de la humanidade a que seamos culpables.[10]
Não há que se negar a carga negativa da expressão “presunção” que tem como seu sinônimo a palavra “suposição”. Nesse sentido, explica o professor Edilson Mougenot Bonfim: “(...) ‘presunção’ é o nome da operação lógico- dedutiva que liga um fato provado (um indício) a outro probando, ou seja, é o nome jurídico para descrição justamente desse liame entre ambos”. [11]
Ainda, MELO e FARIA citam o jurista espanhol Juan Montero Arcoa sobre a inadequação da referida expressão:
Pese sua denominação pela jurisprudência com “presunção” juris tantum, “verdade interina de inculpabilidade”, trata-se de maneira pouco adequada de afirmar que o acusado é inocente enquanto não se demonstre o contrário. A presunção exige um fato base ou indício, do que se desprende a existência do segundo, o fato presumido como nexo lógico entre eles que é a presunção.[12]
Deste modo, extrai-se que o cidadão apenas é presumido inocente após lhe recair uma suspeita- maneira equivocada de se lidar com o princípio. A inocência deveria ser tratada como um Estado inerente ao ser humano que não precisa de qualquer impulso inicial para ser considerada válida ou existente.
A inocência não se presume, é um estado da pessoa humana, erigida como regra pela atual constituição da república(...) Sinceramente, não sabemos de onde saiu esta estória” de “presunção”! Do inciso acima transcrito é que não foi.[13]
Posto isto, diversas são as confusões terminológicas, incluindo, entre elas: princípio da inocência, princípio da não culpabilidade e presunção de inocência. Porém, não é ela- a falta de precisão terminológica- que tanto espanta os penalistas observadores da Constituição Federal, mas sim a famigerada tentativa de instituir novamente a denominada “presunção de culpabilidade”.
Apenas na seara cível é possível a presunção sem provas – haja vista o instituto da revelia- sendo tal inadmissível no campo do direito e processo penal. Questiona-se como seria possível se presumir culpado um acusado que, fora de prazo, não apresentasse sua resposta à acusação ou alegação final?
Claramente a única resposta cabível é a impossibilidade, primeiramente pela ausência da função do Parquet em acusar e provar aquilo que alega e, por outro lado, pela estranheza que causaria. Tal impossibilidade apenas dá base ao entendimento de que o emprego da expressão “presunção” é equivocado, uma vez que a inocência não se presume, ela é uma certeza até que se prove o contrário- somente por meio de uma sentença penal transitada em julgado.
Assim, a inocência não se presume, de modo que falar em “presunção de inocência” desafia a incompatibilidade com os valores expressos e axiológicos da Constituição da República.
2.1 A presunção de culpa e seus defensores
Apesar daquilo disposto na Constituição Federal e toda a explicação já referida, há aqueles que defendem a denominada “presunção de culpabilidade” afirmando que quem é presumidamente inocente, também é presumidamente culpado- mais um equívoco causado pela nomenclatura.
É perceptível, que essa necessidade do investigado se provar inocente- por já ser parcialmente considerado culpado- remete ao Decreto-Lei 88 de 1937 pertencente ao período do Estado Novo, cenário político brasileiro em que não havia qualquer resguardo dos direitos fundamentais do cidadão: “Artigo 20, 5. Presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário, sempre que tenha sido preso com arma na mão, por ocasião de insurreição armada, ou encontrado com instrumento ou documento do crime;”
Neste mesmo sentido, Celso de Melo no julgamento do HC 73.338 refere-se à necessidade de se comprovar inocente como um retrocesso ao Estado Novo:
Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-Lei nº88, de 20/12/37, artigo 20, número 5). Não se justifica sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se? Para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica? Em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidade, ao esclarecerem situações equivocadas e ao desfazerem dados enviados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet.[14]
Alguns defendem, atualmente, que paira sobre o indivíduo a desconfiança e a culpa presumida a partir do momento em que este é investigado por um inquérito policial, sem dúvidas que é, nas palavras de Valber e Faria “ranço de um regime aberracional e desprovido de qualquer razão de ser”[15]
Neste sentido, faz-se mister a citação de Ferrajoli:
Pesar sobre o imputado uma presunção de periculosidade baseada unicamente na suspeita de conduta delitiva, equivale de fato a uma presunção de culpabilidade; que, além disso, atribuindo à prisão preventiva as mesmas finalidades e o mesmo conteúdo aflitivo da pena, serva para privá-la daquele único argumento representado pelo sofisma segundo o qual ela seria uma medida “processual”, “cautelar” ou até mesmo “não penal”, ao invés de uma legítima pena sem juízo.[16]
Aqueles que defendem o “distrito da culpa” desatentam a questões básicas de Processo Penal e Direito Constitucional, elencadas em cinco tópicos pelos autores supra- referidos:
1) No caso de dúvida aplica-se o princípio in dubio pro reo, cuja matriz indiscutivelmente é buscada no estado jurídico da inocência e acolhida pelo nosso Código de Processo Penal, at. 386, VII; 2) Somente decisão irrecorrível pode declarar a culpabilidade do acusado, depois de provada durante a instrução criminal de processo dialógico, e só depois disso poderá ser tratado como culpado; 3) A prova da culpa do acusado é, exclusivamente, do Ministério Público ou querelante (os titulares da ação pública e privada, respectivamente): 4) O juiz está obrigado a verificar, acuradamente, a estrita necessidade de constrição de liberdade (que a toda evidência é antecipada), sujeitando-se à fundamentação obrigatória de sua decisão, sob pena de nulidade, CRFB/88 art. 93, IX e; 5) A não recepção do art. 393, inciso I e II, notadamente o inciso II, que determina, com efeito da sentença penal recorrível, lançar o nome do réu no rol dos culpados. Destarte, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está orientada no sentido de que a regra constitucional do estado jurídico de inocência impede que se lance o nome do réu no rol dos culpados enquanto não tiver transitado em julgado a decisão condenatória. Frisa-se, não se lança, o nome do réu no “poço dos culpados” em razão de simplesmente não ser, ainda, considerado constitucionalmente culpado.[17]
Deste modo, utilizar-se da presunção da culpa seria um retorno a um modelo de Estado autoritário e de Polícia, desmerecer o direito penal constitucional com garantias individuais, bem como suprimir as conquistas do povo como livre e soberano no Estado de Direito.
3 DIREITO PENAL E SOCIEDADE DE RISCO
Ultrapassada a questão terminológica, há que se estabelecer como o Estado de Inocência se relaciona frente à denominada sociedade de risco e o Direito Penal. Explica-se, então, que no final do Século XX houve crescente exclusão social no Ocidente- padrão seguido pelo Brasil e, nesse contexto, surgiu a realidade do risco. Em meados dos anos oitenta, o agravamento das desigualdades resultou no aumento das taxas de criminalidade e encarceramento- momento histórico em que a população já era mais diversificada culturalmente e menos clivada por lógicas hierárquicas de distinção social.[18]
A possibilidade generalizada de qualquer cidadão poder cometer crimes determinava uma necessidade de se discernir e calcular as probabilidades delinquentes de cada estrato social, fazendo surgir a tendência de se buscar categorias capazes de dar sentido à realidade social cambiante, a partir da identificação e rotulação simples de grupos sociais.
Diante do aumento da percepção do risco e da crescente sensibilidade provocada pela diminuição da sensação de segurança ontológica, a aplicação do direito penal se tornou a saída mais manipulável para controle dessas camadas. Sua aplicação foi acentuada e sua finalidade se tornou administrar o risco, controlar as populações de risco e a demanda por sua pesada estigmatização, sem qualquer tipo de preocupação com a inocência do indivíduo etiquetado.
Apesar desse ramo do direito demonstrar não possuir capacidade sequer de responder à ardente demanda por segurança, passou-se a reivindicar para ele a função de geração do consenso e reforço dos laços comunitários[19] , dispensando qualquer utilidade para resolução de conflitos com a vítima, pois o Estado passou a assumir esse papel e o crime se tornou dívida.
A criminalização provedora, administradora dos riscos, sustenta a crença de que a criminalização das condutas irá resultar em mudanças comportamentais, o que gera a afirmação da necessidade da pena como consequência do delito. Segundo Nilo Batista é a “criminalização que resolve problemas, que influencia a alma dos seres humanos para que eles pratiquem certas ações e se abstenham de outras”.[20]
Dentro desse contexto da sociedade de risco, fez-se necessária a apresentação de uma ideologia que transmitisse a sensação de segurança e garantisse a forma arbitrária e a legitimação do controle punitivo pelo Estado, que nesse momento, estava mais uma vez atrelada ao modelo de distribuição de poder. Assim, uma lógica positivista eficiente para explicar a expansão da criminalidade, aliada à radicalização punitiva como resposta, passam a ser funcionais à disseminação do medo[21]- e é exatamente neste momento que vemos a mídia tomar um novo papel.
4 INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NO DIREITO PENAL
Para cumprir sua razão de ser na sociedade de risco, a mídia propaga a seletividade do discurso penal, estigmatizando indivíduos e classes sociais de maneira desigual e irracional, é capaz de criar uma lógica de reafirmação da necessidade do Direito Penal e de responsabilização isolada dos indivíduos “monstros” como causa para o aumento da criminalidade.
Dessa forma, a ilegitimidade do modo como o Estado exercita seu poder punitivo, desrespeitando as garantias individuais e os princípios constitucionais e selecionando arbitrariamente sua clientela, ficam acobertadas pelo discurso de insegurança e de necessidade de proteção dos cidadãos “de bem” contra os criminosos através ampliação da intervenção do Direito Penal.
Enquanto o Direito e seus aplicadores são considerados estabilizadores da expectativa social, a mídia, em lado totalmente oposto, funciona como um redutor de complexidade que influencia massivamente a sociedade de modo a impulsionar, progressivamente, as condenações com base em um juízo de evidência.
A utilização insistente do direito quase absoluto de informar, o qual é contraditoriamente, relativizado pela própria Mídia quando “escolhe” as informações, fortalece o discurso midiático e reafirma a sociedade de risco. Nesse sentido, Beck:
(...) os riscos não são nesse caso apenas riscos, são também oportunidades de mercado. É precisamente com o avanço da sociedade de risco que desenvolvem como decorrência as oposições entre aqueles que são afetados pelos riscos e aqueles que lucram com eles. Da mesma forma, aumenta a importância social e política de conhecimento, e consequentemente do acesso os meios para forjar conhecimento (ciência e pesquisa) e disseminá-lo (meios de comunicação de massa). A sociedade do risco é, nesse sentido, também a sociedade da ciência, mídia e da informação. Nela, escancaram-se assim novas oposições entre aqueles que produzem definições de risco e aqueles que as consomem.”[22]
Essa manipulação de informações demonstra um discurso construtor de realidades. Os professores Zaffaroni (1985:61) e Colombo (1983) observam com muita propriedade que em nossa sociedade mudou-se a comunicação entre as pessoas pela comunicação dos meios, e estes não se limitam a proporcionar uma imagem falsa da realidade, mas produzem a realidade.[23] Dessa forma, os meios de comunicação são elementos de construção da realidade e as suas notícias incidem fundamentalmente na maneira como a pessoa conhece.
O homem precisa de um ambiente específico de sua espécie. Por isso conseguiu humanizar seu ambiente natural, criando um ambiente social, que é uma realidade intersubjetiva. Na sociedade de massa, o conhecimento sobre esse mundo social é feito através dos meios de comunicação, os quais cumprem a função mediadora e conformadora da realidade. Dentro desta mediação, a imagem e a linguagem possuem o papel de nomear as coisas. Para que tais coisas passem a existir na realidade social, precisam de narração a fim de que passem a significar algo para o ser humano. A linguagem e a imagem se transformam, então, em elementos socializantes e coordenantes da vida em sociedade.
A Psicologia sabe que é quase impossível a neutralidade quando sujeitos psicológicos plenamente ativos estão envolvidos na definição de acontecimentos e coisas. As palavras são maleáveis, sempre abertas à interpretação. Os leitores também não são neutros. Dominam a realidade a partir de sua socialização possuindo uma visão bastante estruturada do mundo e das coisas. Emissores e receptores de imagens e de idéias trocam informações. Uns agem sobre os outros. Para os receptores a Mídia é responsável pela ampliação do mundo social e do que nele ocorre, Se a vida na cidade não é apreensível com facilidade, os meios de comunicação de massa são os nossos olhos e ouvidos, permitindo contato com o mundo dos acontecimentos.[24]
A representação do mundo exterior que realizamos é o reflexo da maneira pela qual o sujeito conhece. Se os meios de comunicação é que fazem a mediação desse conhecimento, é essencial sua função para a construção da realidade, já que fornecem aos indivíduos informações acerca do mundo às quais não poderiam ter acesso sozinhos. Mesmo assim, os meios de comunicação de massa outorgam-se o papel de meros transmissores da realidade social. Negam a sua função de verdadeiros construtores desta realidade.
O processo informativo passa a descontextualizar os acontecimentos e recontextualizá-los no modo informativo. Dessa forma, os acontecimentos passam a ter que preencher certos requisitos para chegarem ao público. Normalmente devem representar algo que rompa com o cotidiano, que abale o sistema. A liberdade de imprensa, própria das sociedades democráticas, passa a sujeitar-se à “totalitária lei do espetáculo” em busca do chocante.
Esse discurso garante uma relação de confiança entre o jornalista e o público, que passa a acreditar no que parece ser um espelho da realidade. Nesse contexto, é importante trazer a discussão de Ferrajoli sobre a existência de um direito “à verdadeira informação”. Segundo o autor, este conflitaria com a “liberdade de informação” e haveria apenas o direito de “receber informações”, o qual está expressamente previsto no art. 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e do art. 19 do Pacto de direitos civis e políticos de 1966. Contudo, existiria também um direito negativo à “não desinformação”, liberdade que estaria implícita na própria liberdade de manifestação do pensamento como direito de manifestar o próprio pensamento:
(...) calcado em uma liberdade negativa, isto é, na imunidade às desinformações e às manipulações das notícias. Esta liberdade negativa é um corolário da liberdade de consciência e pensamento, ou seja, da primeira liberdade que se afirmou na história do liberalismo e que implica o direito à não manipulação da própria consciência provocada pela desinformação relativa aos fatos e questões de interesse público. [25]
Na contramão dos fundamentos constitucionais para o direito penal, aparecem cada vez mais demandas de ampliação da proteção penal, de forma a satisfazer a angústia de insegurança coletiva. O crime não é visto como expressão da sociedade e de seus conflitos. O que se assiste é à contextualização da criminalidade como expressão “do mal”, de forma a acobertar a vulnerabilidade de certos grupos de pessoas ao controle punitivo e sua condição humana muitas vezes deteriorada por condições sociais, econômicas e psicológicas.
Essa dissonância entre a função legítima do direito penal (proteção subsidiária de bens jurídicos) e o que se espera dele (solução para criminalidade e segurança pública) é aprofundada pela mídia através de uma exploração sensacionalista de fatos criminosos, que incentiva a denominada cultura do medo, e uma política criminal de lei e ordem dentro de uma sociedade de risco. Esta, por sua vez, traz como contraprojeto normativo a segurança, a qual lhe serve de impulso. A sociedade desigual, segundo Beck, é ocupada pelo sistema axiológico da sociedade “insegura”. Nesse sentido:
Enquanto a utopia da igualdade contém uma abundância de metas conteudístico-positivas de alteração social, a utopia da segurança continua sendo peculiarmente negativa e defensiva, já não se trata de alcançar efetivamente “bom”, mas tão somente evitar o pior. O sonho da sociedade de classes é: todos querem e devem compartilhar o bolo. A meta da sociedade de risco é: todos devem ser poupados do veneno. [...] O modelo da sociedade de risco marca, nesse sentido uma época social na qual a solidariedade por medo emerge e torna-se uma força política.[26]
Essas demandas de criminalização baseadas em discurso dos gestores atípicos da moral e na opinião pública, muitas vezes atendidas pelo legislador e pelo judiciário, resultam em ofensas a princípios fundamentais do Direito Penal, levando a um sistema jurídico casuístico, simbólico e autoritário, sem fundamento constitucional, e, portanto, ilegítimo.
O grande prejuízo advindo da adoção dessa concepção concretiza-se no abandono no núcleo principiológico do Direito Penal a tão duras penas conquistado, em prol de um punitivismo retrógrado. Mais do que isso, a luta contra um Direito Penal de Emergência é a luta pela retomada da legitimidade do Direito Penal, o que só será conseguido com o respeito aos valores fundamentais decorrentes do texto constitucional. Deve-se continuar a defender a intervenção limitada e clara do Direito Penal, nos casos e na proporção de sua necessidade, se se pretender impedir que a sua utilização desmedida o prive de significação e eficácia, justamente nos âmbitos em que sua atuação se revela mais imprescindível (...) [27]
Zaffaroni leciona que a “palavra dos meios de comunicação de massa” constrói outra criminologia midiática, que a despeito de estar carregada de preconceitos falsidades e inexatidões “constrói a realidade geralmente omitindo-se desses esforços e é ela que o grande público tem acesso, ou talvez seja mais preciso dizer que é ela que se introduz na média das pessoas. Por outro lado, é a criminologia que o discurso único dos meios de comunicação impõe aos políticos.” [28]
5 ESTADO DE INOCÊNCIA E MÍDIA
Após essa explicação, vê-se que de um lado há um inquérito sendo instaurado para apurar delito de um suspeito e, em outra realidade, há um processo penal paralelo instituído pelos repórteres e seus “furos de reportagem” com a indevida condenação social de um indivíduo que sequer fora denunciado como suposto autor do fato.
Neste processo não há garantias constitucionais ou parâmetros éticos a serem seguidos, não existe contraditório e ampla defesa, ele é totalmente emocional e superficial, apegado a indícios de autoria e de cometimento de delito, conforme Dotti:
Esses esquadrões de justiçamento sumário transformam a notícia em libelo. Âncoras e outros especialistas da informação usam a palavra como lâmina de guilhotina a ceifar a honra e a dignidade das pessoas contra as quais existe a análise incipiente de um fato ilícito. Os juízes paralelos são os apóstolos da suspeita temerária e militantes da presunção da culpa. [29]
Questiona-se como é possível falar em estado de inocência que perdura até a sentença penal condenatória transitar em julgado, se já existe a condenação social que, muitas vezes, é mais poderosa que qualquer juiz ou tribunal. Nas palavras de Ferreira:
A presunção de inocência sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é difundida como da pessoa responsável pela infração penal, e em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos têm que suportar durante o período de exposição do caso pela mídia transfigura procedimentos seculares de apuração e punição, passando subliminarmente a ideia do caráter obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se soma a percepção do processo penal como meio demorado de se fazer justiça em comparação com a célere e perfeita investigação da mídia.[30]
Vive-se a época da velocidade, tudo aquilo que é rápido tem maior valor social. As pessoas deixaram de ponderar e refletir acerca dos fatos cotidianos e, portanto, aceitam, sem maiores dificuldades, aquilo que já é vendido de forma pronta pela mídia.
Toda essa falta de ponderação aliada à necessidade pulsante de se encontrar culpados o mais rapidamente possível- e aqui se faz menção a culpados que não desafiem as posições sociais- confluem na condenação da reconhecida “clientela do direito penal” - já referenciada como a camada social que oferece risco:
(...) a “clientela” do direito penal é constituída pelos pobres, miseráveis, desempregados, estigmatizados por questões raciais, relegados em segundo plano pelo Estado, que deles somente se lembra no momento crucial de exercitar a sua força como forma de contenção das massas, em benefício de uma outra classe, considerada superior, que necessita desse “muro divisório” para que tenha paz e tranquilidade, a fim de que possa produzir e fazer prosperar a nação.[31]
Na construção desta “ilusão penal”, a mídia, utilizando- se de mecanismos próprios, passou a criar um dualismo seletivo, que separa os cidadãos bons dos maus, de forma que um raciocínio simplista e determinista explica o problema da violência para seus expectadores.
A impunidade, a monstruosidade do criminoso, a relação entre a ideia de cidadania com a de vingança e indignação, passaram a garantir uma postura passiva da população que, cada vez mais, recebe as informações de forma acrítica, acreditando ser o rigor punitivo a panaceia capaz de resolver todo o problema de criminalidade e segurança no país.
O espetáculo midiático exaustivo expondo seletivamente a investigação e judicialização dos casos envolvendo crimes relacionados à corrupção e à criminalidade de massa (incluindo, principalmente, crimes relacionados a entorpecentes e crimes patrimoniais) parece ser serviente à propagação do medo, baseada na falsa ideia de impunidade.
Assim, Gomes afirma:
O olhar diferenciado se justifica pela penetração social que os meios de comunicação alcançaram na sociedade de massa, organizada segundo valores de consumo muito próprios, mas também e principalmente pela capacidade desses meios de comunicação de estabelecer uma agenda pública, construindo a realidade das pessoas. Desse modo, a mídia define o objeto do conhecimento público, de acordo com critérios seus e relevância medida por interesses também seus. No livro, o autor Marcus Alan parte de conceitos como mass media, indústria cultural, sociedade de massa e sociedade do espetáculo para mostrar como os meios de comunicação podem assumir o papel do sistema penal e se transformar em supraparlamento, suprapolícia e suprajuiz, criando, culpando e condenando “criminosos”.[32]
Essa multidão de espectadores passou a clamar por um Direito Penal provedor dos problemas sociais que, sob ofuscamento construído pela manipulação midiática, ignora o Estado de Inocência dos cidadãos que, além de excluídos, passam a ser alienados quanto aos reais problemas sociais.
A mídia e sociedade, em conjunto, passam a criminalizar o próprio indivíduo- normalmente parte de uma minoria- e deixam de se preocupar com a conduta delituosa em si. O ato não é crime, mas sim a existência deste indivíduo.
O princípio do estereótipo criminal ocorre quando um protagonista do episódio de violência integra alguma minoria, objeto de preconceito ou marginalização social (homossexuais, egressos da prisão, drogadictos, dentre outros). Sendo tal condição sempre mencionada e frequentemente enfatizada, ainda que não se possa relacioná-la, de qualquer modo, ao episódio em questão. As matérias que abordam exclusiva ou acessoriamente, o pânico social relacionado à violência, recrutam os depoimentos amedrontado de sorte a direcionar o medo para grupos sociais criminalmente estereotipados.[33]
Contudo, é preciso relembrar que a legitimidade do direito penal se encontra no respeito às garantias do indivíduo e nos fundamentos jurídicos da pena, conforme explica Roxin, nas palavras de Oswaldo Henrique Duek:
Para Roxin, o ponto de partida para a medida da pena é a culpabilidade do transgressor. O Estado não pode ampliar sua função preventiva no âmbito penal além dos limites da reprovabilidade da conduta do infrator sob pena de ofender a dignidade humana. De fato, o indivíduo não pode servir de meio para a prevenção geral, dirigida a terceiros, respondendo além de sua culpabilidade. A culpa, dessa ótica, deixa de constituir fundamento da pena, nas teorias retributivas, para ser a medida da pena. Não é outro o pensamento de Jorge de Figueiredo Dias , para quem “a verdadeira função da culpabilidade no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpabilidade não é fundamento da pena, mas constituiu seu limite inultrapassável[34].
Contrariando a função do juiz como garantidor da Constituição Federal, equidistante e imparcial entre as partes, o clamor social como função da reprimenda penal, já é utilizado de forma explícita em decisões dos Tribunais, o que pode ser verificado em simples pesquisa jurisprudencial. Isso evidencia, por sua vez, a banalização da proteção de bens jurídicos, na qual o direito Penal deveria se fundar, e mais uma vez, mostra a apelo ao sentimento de coletivo de moralidade e punitivismo, usando conceitos vagos e subjetivos com o objetivo de dar sensação de segurança social.
Em 2017, a então Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmen Lúcia, declarou durante o discurso de encerramentos dos trabalhos do primeiro semestre que “o clamor por justiça que hoje se ouve em tantos cantos do país não será ignorado em qualquer decisão desta corte. Não seremos ausentes aos que de nós esperam atuação rigorosa para manter esperança de justiça. Não seremos avaros em nossa ação para garantir efetividade da justiça.”
A função de imparcialidade da magistratura já parece ter absorvido e legitimado a incorporação do clamor social como legitimante do poder de decisão.[35]
Para visualizar essa relativização dos mecanismos processuais que deveriam ser protetivos aos indivíduos atingindo o estado de inocência, é possível revisitar dados das inúmeras prisões provisórias na operação Lava Jato amplamente divulgadas na imprensa.
Em levantamento do site Consultor Jurídico, baseado em informações da Justiça Federal, foram consideradas todas as preventivas decretadas na Lava Jato desde seu início até o dia 31 de janeiro de 2017 (tanto as provisórias quanto as temporárias convertidas em provisória, que foram 20 ou 23% do total das preventivas e as temporárias não convertidas que totalizaram 77).
Nesse panorama, as preventivas da “Lava Jato” duraram em média 281 dias, cerca de 9 meses. Portanto, 86 pessoas ficaram quase um ano presas sem condenação definitiva. Entre essas prisões, as dos réus condenados apenas em primeira instância até o momento da análise (Carlos Habib Chater e René Luiz Pereira) duraram mais de mil dias. [36]
A execução provisória da pena de acordo com o Estado de Inocência previsto em nosso ordenamento, têm sido objeto de diferentes interpretações pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Em mudança de posicionamento do STF em 2016, reafirmada em decisão denegatória de Habeas Corpus impetrado pelo ex-presidente Lula, passou-se a admitir a execução da pena após decisão de segunda instância. Apesar da CF/88 proclamar no título de direitos e garantias fundamentais que “ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença pena condenatória.”, houve uma reinterpretação cuja instrumentalidade pode ser questionada.
Em um dos votos favoráveis, o Ministro Barroso defendeu “a legitimidade da execução provisória após decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos por ele tutelados.” (grifo nosso) Também citou exemplos em que o entendimento anterior não seria “garantista”, mas “grosseiramente injusto” e teria produzido consequências extremamente negativas. Entre elas teria incentivado à interposição sucessiva de recursos e agravado o “descrédito da sociedade em relação ao sistema de justiça” (grifo nosso), o que, a seu ver contribuiria para aumento da criminalidade.[37]
Fica evidente na justificativa, que a relativização de direito fundamental como o do Estado de Inocência pode ter ocorrido com a finalidade de retomar a crença, a confiança da sociedade no Judiciário e demonstrar a efetividade tão demandada- sendo todos esses pleitos presentes e sistematicamente difundidos pelos meios de comunicação de massa.
Contudo, os dados da realidade brasileira contestam essa ideia de impunidade para a antecipação da execução provisória. Dados da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP) apontam que, desde a decisão do STF em 2016, somente o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-SP) expediu 13.887 mandados de prisão com base na nova jurisprudência. O defensor público coordenador do núcleo especializado de situação carcerária da DPE-SP, critica a decisão do STF em reportagem referindo-se à possibilidade razoável de alterações de penas e, até mesmo, absolvição de condenados nas instâncias superiores. Segundo ele, em 2017, 44% das decisões recorridas pela Defensoria de São Paulo ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) foram modificadas positivamente, com redução de pena ou absolvição dos acusados.[38]
Na seara desses questionamentos sobre execução da pena, em pesquisa disponível no site CONJUR realizada em 2015 por Marcelo G. Nunes e Julio A. Z. Trecenti, cujo objetivo seria estimar a taxa de reforma de decisões nas câmaras de direito criminal em São Paulo, as conclusões revelaram uma significativa insegurança jurídica. Os resultados das apelações, quando comparados entre câmaras, apresentam variações muito elevadas, com taxas de recursos negados indo de 16% até 81%. Segundo os autores essa verificação indicou que tal variação não seria devida a diferenças de tipos processuais segundo o assunto.[39]
Os números da realidade criminal brasileira portanto, no mínimo trazem dúvida sobre os argumentos mais difundidos pela Mídia e efetivamente utilizados como fundamento em decisões judiciais, para tentar legitimar a execução antecipada da pena, e, consequentemente, relativizar o estado de inocência. A impunidade e o descrédito da sociedade quanto à justiça não são legitimadores de restrições às garantias constitucionais.
CONCLUSÃO
Dentro desse contexto fica clara a necessidade do debate acadêmico sobre as ideologias difundidas pela mídia em detrimento de garantias constitucionais e do seu próprio papel contributivo para a manutenção da democracia.
Este debate também serve para clarear essa relação ofuscada existente entre os meios de comunicação e o Direito Penal, e a falta de legitimidade produzida pela interação de ambos, diante da perda de contornos esclarecidos para suas ações, e as consequências ofensivas aos princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
O clamor social, a insegurança, e a impunidade são eixos a serem investigados para correlacionar as publicações e produtos midiáticos com a realidade jurídica e aplicação do Direito Penal, questionando a efetiva influência do entretenimento na dinâmica do direito penal, e em que medida essa relação pode influenciar as garantias constitucionais, o controle de legalidade e o Estado de Inocência do cidadão.
Neste cenário se torna imprescindível a presença de um juiz minimamente posicionado, inalcançável pela mídia e pela expectativa social. Este julgador deve ser alerta e ciente” para as veiculações que reduzem a complexidade e lhe entregam um juízo pronto, quase que como uma sentença padronizada.
Zaffaroni ao discutir uma criminologia midiática, diz que essa propõe um modelo de estado, porque ela “responde a uma clara intencionalidade política”. E na prática, a criminalização de condutas não resolve os conflitos sociais, e os penalistas segundo o autor aceitam que a lei penal se torne um elemento midiático: “é uma mensagem à sociedade, algo meramente simbólico que toma parte do espetáculo do Estado.”[40]
É fato que o dever da mídia é informar, haja vista o princípio da publicidade e o disposto no artigo 220, parágrafo 1º da Constituição Federal, ademais, por óbvio que essa função é essencial e não pode ser censurada ou restringida por qualquer órgão. Porém, indaga-se é preciso para tanto desrespeitar o Estado de Inocência?
É preciso entender a parcialidade do discurso midiático, mas também ponderar que esta encontra limites em um princípio igual ao que emana- o Estado de Inocência- e demais garantias constitucionais.
Diversas são as soluções apontadas para barrar a influência da mídia no processo penal e consequente julgamento magistral, entre elas, a proibição da imprensa em conseguir informações de forma ilícita e demais atos que também são proibidos ao Estado.
Por outro lado, Geraldo Prado aponta a possibilidade daquele que se sentiu lesado pela imprensa alçar mão de uma ação indenizatória para “reverter” aquilo que sofreu, porém, não há qualquer tipo de reversão quando se trata da memória social e da dor pessoal infligida ao indivíduo e seus familiares. O único tipo de solução é o tempo, se esperando que este apague a falsa memória da sociedade e a dor do condenado, mas, sobre ele, ninguém tem controle.
Há ainda proposta extremamente interessante- apontada por Michelle Kalil Ferreira em seu artigo- qual seja, o desaforamento temporal e suspensão do curso do procedimento até que se apaziguem os ânimos e cesse a exploração do caso pela mídia. Apesar de parecer extremamente benéfica, ainda há alguns questionamentos sobre essa medida que não possibilitam a sua aplicação totalmente confiável.
Primeiramente, não há garantias de que após esse desaforamento temporal, a mídia não volte a explorar o caso e influenciar os juízos e cidadão. Em segundo plano, há o prejuízo trazido para a colheita de provas, principalmente àquelas a serem realizadas durante a instrução criminal, representadas pelas vítimas e testemunhas que, muitas vezes, têm dificuldade de relatar o fato mesmo quando este aconteceu há pouquíssimo tempo. E, por último, resta a dúvida de que uma pena aplicada com um distanciamento temporal muito grande do ato delituoso em si não é uma medida de justiça e, tampouco, alcança os denominados fins preventivos da pena.
De fato, não há solução fácil para a questão da interferência do discurso midiático no Direito Penal, diminuindo suas garantias. Zaffaroni defende a constatação de que não há neutralidade política na criminologia. Seria necessária a análise do sentido e das táticas da criminologia midiática, partindo do saber de que ela estaria a serviço de um Estado policial e de uma sociedade excludente e que a criminalização é exercício de poder.
Assim como não podemos nos encastelar na criminologia acadêmica ignorando a que lida cotidianamente com a média da população e os políticos. Através da construção social (midiática) da realidade, tampouco podemos nos alegrar como espectadores distantes e cair na impotência, postulando que a construção midiática cria tudo , que a realidade desapareceu , que os meios de comunicação de massa destroçaram a realidade a tal ponto que nada ,mais existe e que tudo é completamente virtual.
A solução parece nesse contexto fugir de discussões simplistas e desvelando que o saber jurídico projeta o exercício de um poder do Estado que é o judicial, sendo toda sentença um ato de governo, cabendo a citação de Thierry Levy:
Para o convencimento de que a história do direito de punir não tem nenhuma autonomia real e nenhum sentido fora da história política e social, é suficiente ter em mente que há um domínio no qual inexiste evolução, qual seja, o a independência da instituição judiciária relativamente ao poder político. A justiça nunca foi independente e nem o será jamais. É preciso acrescentar: não deve sê-lo e, sobretudo, não deve pensar que é. [41]
Resta, assim, a expectativa mínima de que a mídia veicule as informações de forma clara e sempre alertando a sociedade de que aquele cidadão processado pelo Estado ainda não é considerado culpado e, portanto, é inocente. Da mesma maneira, que os julgadores trabalhem como os estabilizadores de expectativa social que são e não se deixem conduzir pelo clamor público.
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[1] Mestranda em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior da Advocacia OAB/SP, parceria com o IBCCRIM(2008), com habilitação para o Magistério Superior. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2006.). Advogada na cidade de São Paulo.
[2] CARNELUTTI, Francesco; MILLAN, Carlos Eduardo Trevelin. As misérias do processo penal. 1995
[3] Esta norma fundamental se encontra no artigo 220 da Constituição Federal de 1988, segundo dispõe:” Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”
[4] HERNÁNDEZ PLIEGO, Julio Antonio. No existe la presunción de inocencia. Revista do instituto Federal da Defensoria Pública, n.4, p.86. 2007.
[5] HERNÁNDEZ PLIEGO, Julio Antonio. No existe la presunción de inocencia. Revista do instituto Federal da Defensoria Pública, n.4, p.86. 2007.
[6] Na Magna Carta Libertatum houve a condensação das ideias romanas e se tratava apenas da positivação dos direitos da aristocracia em face do suserano, prevendo em seu artigo 39 que: “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer outro modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão um julgamento regular pelos seus pares, ou de harmonia com a lei do país”
[7] Beccaria (1764) também se manifestou acerca da inocência em sua icônica obra “Dos delitos e das penas”: “(...) no se debe atormentar a um inocente, porque tal es, según las leyes, um hombre cuyos delitos no están probados”
[8] LIMA, Wanderson Marcello Moreira de. Apelação em liberdade: o princípio da presunção de inocência e as prisões provisórias. Revista Síntese de direito penal e processual penal. Porto Alegre, v.3, n.14, p.39-47., jun./jul.2002
[9] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/presun%C3%A7%C3%A3o/ Acesso em: 08.04.2020
[10] VEGEZZI, Santiago. El prematuro abandono cultural del principio de inocência a través de la conjunción entre religión, pecado y delito: un paradigma vigente. Nueva Doctrina Penal, Buenos Aires, B, p. 761-762. 2005.
[11] MELO, Valber; FARIA, Fernando Cesar. O tratamento constitucional da inocência: presunção ou estado, princípio ou regra? Revista Bonijuris, Curitiba, v.22, n.5655, p.20-26. 2010.
[12] MELO, Valber; FARIA, Fernando Cesar. O tratamento constitucional da inocência: presunção ou estado, princípio ou regra? Revista Bonijuris, Curitiba, v.22, n.5655, p.26. 2010.
[13] MELO, Valber; FARIA, Fernando Cesar. O tratamento constitucional da inocência: presunção ou estado, princípio ou regra? Revista Bonijuris, Curitiba, v.22, n.5655, p.27. 2010.
[14] HC 73.338, rel. Ministro Celso de Mello, DJ 19/12/96.
[15] MELO, Valber; FARIA, Fernando Cesar. O tratamento constitucional da inocência: presunção ou estado, princípio ou regra? Revista Bonijuris, Curitiba, v.22, n.5655, p.27. 2010.
[16] FERRAJOLI, L. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
[17] FERRAJOLI, L. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003
[18] NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do Telejornalismo de Referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: IBCCRIM, 2007, p. 63.
[19] NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do Telejornalismo de Referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: IBCCRIM, 2007, p. 66.
[20] BATISTA, Nilo apud NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do Telejornalismo de Referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: IBCCRIM, 2007, p.71.
[21] PASTANA, Débora Regina. Cultura do Medo, Reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003. p. 95.
[22] BECK, Ulrick. Sociedade de Risco. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 56.
[23] CERVINI, Raúl. Os processos de Descriminalização. 2 ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.102
[24] MELLO, Silvia Leser de. A cidade, a violência e a Mídia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 6, n. 21, janeiro-março – 1998, Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, pg 193.
[25] FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens . A crise da democracia italiana. Coleção Saberes Críticos: Saraiva, p.56, 2014.
[26] BECK, Ulrick. Sociedade de Risco. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 59-60.
[27] BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. “Caso Isabella”: violência mídia e direito penal de emergência. Boletim IBCCRIM, São Paulo, nº 186, 2008. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3652-Caso-Isabella-violencia-midia-e-direito-penal-de-emergencia.
[28] ZAFFARONI, Eugênio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar – São Paulo : Saraiva, 2012. – Coleção Saberes Críticos.
[29] DOTTI. René Ariel. O mito da presunção de inocência. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 11,n.136, p.9., mar. 2004.
[30] FERREIRA, Michele Kalil. O princípio da presunção de inocência e a exploração midiática. De jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.9, p.171., jul/ dez. 2007.
[31] GRECO. Rogério. Direito Penal do equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
[32] GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015. 160 p., 21 cm. ISBN 978-85-7106-549-9.
[33] FERREIRA, Michele Kalil. O princípio da presunção de inocência e a exploração midiática. De jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.9, p.171., jul/ dez. 2007. p. 175.
[34] MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da Pena. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Pg 179
[35] Carmen Lucia afirma que clamor por justiça não será ignorado pelo STF. Migalhas Quentes, 01 julho de 2017. Disponível em <http://m.migalhas.com.br/quentes/261326/carmen-lucia-afirma-que-clamor-por-justica-nao-sera-ignorado-pelo-stf> Acessado em 09 abril de 2018
[36] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-07/criticadas-preventivas-lava-jato-duram-media-93-meses
[37] STF admite execução da pena após condenação em segunda instância. Supremo Tribunal Federal 2016. Disponível em <https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/392095806/stf-admite-execucao-da-pena-apos-condenacao-em-segunda-instancia> Acessado em 10 abril 2018.
[38] Segundo dados da Defensoria, novo entendimento do STF pode agravar ainda mais encarceramento em massa. Brasil de Fato. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2018/08/09/restringir-a-presuncao-de-inocencia-agrava-o-encarceramento-em-massa/ Acessado em 05 Fevereiro 2020.
[39] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/estudo-camaras-criminais-tj-sp.pdf>
[40] ZAFFARONI, Eugênio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar – São Paulo : Saraiva, 2012. – Coleção Saberes Críticos.
[41] THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? O crime e o criminoso: Entes Políticos. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007
Mestranda em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direitos Fundamentais pelo Instituto Ius Gentium Conimbrigae, parceria com o IBCCRIM (2018). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2018). Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016). Advogada na cidade de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LARISSA PIZZOTTI FAIçAL, . A influência midiática no estado de inocência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 set 2020, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55166/a-influncia-miditica-no-estado-de-inocncia. Acesso em: 26 dez 2024.
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