SILVIO GABRIEL SERRANO NUNES (COAUTOR), Doutor em Filosofia pela FFLCH-USP. Estágio de Doutorado na Université Paris 1 Panthéon - Sorbonne (Bolsa Capes). Advogado. Professor na Escola Superior do TCMSP.
RESUMO: O presente artigo pretende analisar a crise da democracia brasileira sob a ótica da concepção de democracia introduzida pela promulgação das constituições rígidas, o que modificou seu pressuposto enquanto regime político fundado por uma Constituição que segue o modelo hegemônico do pós-segunda guerra mundial, compreendida, nesse sentido, não apenas como documento político que inaugura e estrutura o Estado e institui um dado ordenamento jurídico, mas também no sentido político e normativo do conteúdo material de suas normas que vinculam a atividade de todos os poderes da República e que estabelece, inclusive, os seus limites, garantindo, nesse sentido, a harmonia, a independência e a abrangência do poder político. Para tanto, será considerado em especial o pensamento de Luigi Ferrajoli, especificamente a obra “Poderes Selvagens”, demonstrando-se a fragilização que o paradigma constitucional brasileiro sofre em uma democracia em crise, sobretudo em relação à sua substância, concluindo-se que o atual estado da democracia nacional é patológico de acordo com o pensamento do jurista italiano. Por fim, busca-se enfatizar a necessidade da construção de uma cultura constitucional, de se estabelecer uma defesa das instituições de garantia e primar pela revitalização de uma política que recupere o sentido de democracia e que impeça o avanço do chamado processo desconstituinte.
Palavras-chave: Processo Desconstituinte. Demagogia. Democracia. Luigi Ferrajoli. Paradigma Constitucional.
ABSTRACT: This article intends to carry out an analysis of the crisis of Brazilian democracy, from the perspective of the concept of democracy introduced by the promulgation of rigid constitutions, which modified the assumption of it as a political regime founded by a Constitution that follows the hegemonic model of the post-second world war, understood, in this sense, not only as a political document that inaugurates and structures the State, instituting a given legal order, but also in the political and normative sense of the material content of its norms that bind the activity of all powers of the Republic and which even establishes its limits, guaranteeing, in this sense, harmony, independence and the boundary of political power. In order to accomplish that, it will be specially considered Luigi Ferrajoli ideas, mainly his work “Poderes Selvagens”, demonstrating the fragility that the Brazilian constitutional paradigm has been suffering in a democracy in crisis, above all, in relation to the substance of democracy, concluding that the current state of national democracy is pathological according to the thinking of the Italian jurist. Ultimately, the study aims to emphasize the need of building a constitutional culture, to establish the protection of the institutions of guarantee and to strive for the revitalization of a policy that can recover the sense of democracy and prevent the advance of the so-called ‘deconstituent process’.
Keywords: ‘Deconstituent Process’. Demagogy. Democracy. Lugi Ferrajoli. Constitutional Paradigm.
SUMÁRIO: Introdução; 1. O paradigma da democracia constitucional – o que é uma Constituição rígida?; 2. A Crise do “alto” e de “baixo” da democracia – o processo desconstituinte; 3. O antídoto: o sistema de separações e de garantias da democracia; Conclusões; Referências bibliográficas.
Introdução
É indiscutível que significativas mudanças ocorreram nos planos político e jurídico internacionais, sobretudo após os eventos da segunda guerra mundial. No chamado período pós-guerra, a humanidade suportou o trauma de uma mesma geração haver testemunhado a barbárie de duas guerras mundiais, incluindo o desenvolvimento de armas de destruição em massa e a utilização de arsenal nuclear, tendo assim sido exposta ao óbvio: não haverá democracia se ela não estiver assentada em um documento político e jurídico forte o suficiente para assegurar o equilíbrio entre os poderes. Esse documento é o que se denomina constituição rígida.
A partir do consenso humanitário mundial que existiu no segundo pós-guerra, observou-se nas democracias europeias e, de certa forma, na maioria dos países ocidentais, a produção de constituições caracterizadas por sua rigidez.
A rigidez constitucional é o aspecto principal das constituições nas democracias contemporâneas. Pode-se dizer que ocorreu uma mudança no paradigma constitucional, pois o próprio conceito de democracia sofreu alteração, se comparado àquele clássico conceito de democracia transportado da filosofia grega – democracia como “governo de todos”, ou ainda, como “governo do povo” –, de modo que suas últimas concepções revelam-se equivocadas ao se atentar para o aspecto normativo, que também marca a rigidez dessas constituições, isto é, no que pertine ao conteúdo material dessas normas.
Nesse sentido, e consoante indicam cada vez mais as atuais práticas jurídica e política, constata-se uma concepção deturpada de democracia, sob uma forma enfraquecida, à exemplo da crise da democracia italiana apontada por Ferrajoli que, no nosso sentir, guarda relevantes semelhanças com a crise experimentada no Brasil, apontando para uma democracia adoecida.
Tal doença consiste na manipulação do consenso da opinião pública, da massa, aliada a fatores como a crise da representação política e dos partidos políticos, bem como a crise nos poderes da república, expressa em pactos selados pela maioria e seu “chefe”, legitimados por um sistema de informação compromissado unicamente com o lucro, fato que impede a formação de um pensamento genuinamente crítico.
O antídoto para uma democracia adoentada apontado por Ferrajoli consiste num complexo sistema de garantias que tem como pressuposto o reconhecimento e a sujeição do “chefe da maioria” e também dos poderes da república, assentado em uma sociedade bem informada. Implica também a sujeição às metanormas que legitimam racionalmente a rigidez constitucional que promove uma real democracia, na sua forma e na substância material de suas normas.
1. O paradigma da democracia constitucional – o que é uma Constituição rígida?
A concepção de democracia, antes do paradigma constitucional, consistia no regime político fundado na etimologia da palavra de acordo com o pensamento da filosofia grega. Ou seja, a democracia seria o regime que mais fielmente representaria o valor de “governo do povo”, ou melhor, “governo para o povo”.
De acordo com Norberto Bobbio, conforme a tradição do liberalismo político, o único modo de se chegar a um conceito de democracia que seja suficientemente consensual, é entendê-la como uma contraposta às formas de governos autocráticos:
Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias e fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente. (BOBBIO, 2009, p. 30)
Essa concepção de democracia, que traduz um conceito abertamente antiautoritário no plano político, resulta em um problema do ponto de vista conceitual quanto ao que realmente seja uma democracia a partir do advento das constituições rígidas do pós-segunda guerra.
Luigi Ferrajoli, aproximando-se das ideias de Bobbio, observou que para o senso comum ficou marcada a concepção de democracia pelo significado da origem etimológica da palavra e que isso representaria apenas um modo formal de compreendê-la:
Segundo o senso comum a democracia vem frequentemente concebida, de acordo com o significado etimológico da palavra, como o poder do povo assumir, diretamente ou por intermédio de representantes, as decisões públicas. Esta noção de democracia pode ser chamada formal ou procedimental, pois identifica a democracia unicamente com fundamento nas formas ou nos procedimentos idôneos a legitimar as decisões como expressão, direta ou indireta, da vontade popular: porque a identifica, em outras palavras, com fundamento no quem (o povo ou os seus representantes) e no como (o sufrágio universal e a regra da maioria) das decisões, independentemente de seus conteúdos, isto é, daquilo que venha a ser decidido. É esta, assim, a tese compartilhada pela maior parte dos teóricos da democracia. (FERRAJOLI, 2014, p.17)
Pretende-se aqui explicar a maior relevância da rigidez constitucional, qual seja, a obrigatoriedade de observar a substância do conteúdo da norma constitucional por parte daqueles que exercem poder em uma democracia constitucional.
Uma constituição pode ser classificada como rígida quando os processos para a alteração do seu texto exigem um rito formal, mais complexo que o processo legislativo ordinário, de iniciativa e votação parlamentar distintas, sendo certo, ainda, que algumas espécies de normas são, por vontade dos constituintes originários, inalteráveis, ao que se denomina de cláusulas pétreas, verdadeiro núcleo imodificável mesmo pelo procedimento de emenda.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello leciona que as constituições rígidas trazem em seu corpo escrito os ideais filosóficos que importam na positivação de princípios de conteúdo valorativo da Lei Maior:
O tempo, este mestre extraordinário, confirmou a veracidade das normas morais e jurídicas. A ciência repudiou os princípios filosóficos, considerando-os, apenas, obra de fértil imaginação literária, sem, no entanto, desprezar uma concepção do Direito Natural, não mais a priori, porém, realista, pois é impossível conceber-se o Direito como um produto do Estado: a este cabe somente a função de declará-lo jamais de produzi-lo. Esta concepção, da qual resulta a diferenciação entre lei ordinária e constitucional, implica na consideração da superioridade desta sobre aquela. Nascem, assim, as constituições rígidas, isto é, constituições escritas em um corpo único, determinando a competência dos vários ramos do governo e, portanto, limitando os poderes de cada um. O fundamento destas constituições rígidas, é, como escreve BORGEAUD, serem leis de aprovação política, leis de garantias. “Conjunto de regras máximas de acordo com as quais exercem os poderes da soberania. A Lei Fundamental de um Estado é, na frase de BOUVIER, a que estabelece os princípios sobre os quais o governo está assentado, e regula a atividade dos poderes soberanos, determinando a que corpos ou pessoas tais poderes devem ser confiados e o modo de seus respectivos exercícios”. (MELLO, 1980, p. 38-39)
No que concerne à supremacia dessa rigidez, José Afonso da Silva afirma:
A rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como primordial consequência, o princípio da supremacia da constituição que, no dizer de Plínio Ferreira, “é reputado como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”. Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas. (SILVA, 2012, p. 47)
O pensamento acima exposto comporta um verdadeiro truísmo jurídico: a supremacia jurídica e política, ou substancial, da constituição e das normas constitucionais.
A respeito do modo de se operar as leis e as decisões políticas em uma democracia que segue o paradigma constitucional rígido, Luigi Ferrajoli assevera em “La democrazia constitucionale”:
Para compreender essa mudança de paradigma da democracia e do estado de direito, convém refletir sobre a mudança em sede institucional e sobre a revisão em sede da Teoria do Direito ocorrida com o paradigma constitucional das condições de validade – substancial e formal – da produção legislativa. De fato, existe um nexo biunívoco entre a mudança estrutural de tais condições no antigo estado legislativo de direito e a mudança estrutural da democracia, decorrentes ambas do paradigma do constitucionalismo rígido. Existe, de um modo geral, um nexo isomórfico frequentemente ignorado entre as condições jurídicas de validade, quaisquer que sejam, democráticas ou não democráticas e as condições políticas de legitimidade do exercício do poder normativo: em suma, entre direito e política e entre teoria do direito e teoria política. É o nexo que faz da teoria política uma interpretação semântica, precisamente filosófico-política, do aparato conceitual elaborado da teoria do direito. A teoria do direito, na realidade, nos diz o que é validade: não quais são ou o que seja justo serem as condições de validade das normas – que é o que nos dizem as disciplinas jurídicas de diversos ordenamentos e as diversas filosofias políticas da justiça – mas em que consistem tais condições. Nos ensina, enquanto teoria pura ou formal, com a definição do conceito de validade: é válida, em um dado ordenamento, qualquer norma produzida em conformidade com as normas de tal ordenamento sobre a sua produção. A teoria política da democracia nos diz, ao invés, quais são ou devem ser, na democracia, as formas precisamente democráticas da produção normativa e em geral das decisões políticas. Mas a mesma coisa faria uma teoria política da autocracia: a identificação das formas autocráticas – por exemplo, o princípio quod principi placuit legis habet vigorem, entendido “princeps” enquanto órgão monocrático dotado de poder absoluto e “vigorem” no sentido de “validitatem” – da produção de normas e, mais genericamente, das supremas decisões políticas. (FERRAJOLI, 2012, p. 79-80, tradução livre) [1].
Em “Poderes Selvagens”, Ferrajoli defende a tese de que os conteúdos das normas constitucionais submetem a atividade dos poderes a limites e vínculos de caráter político por vontade expressa das constituições rígidas, em que não somente a concepção formal da democracia constitucional é relevante, mas também a substância de seu conteúdo.
Nas palavras do autor italiano:
A tese que aqui sustentarei é que esta noção formal de democracia exprime uma conotação certamente necessária – uma conditio sine qua non – em cuja ausência não se pode falar em democracia, mas tampouco uma condição suficiente a identificar todas as condições em presença das quais um sistema político pode ser qualificado como “democrático” e, especificamente, como uma “democracia constitucional”. Por duas razões, correspondentes a igual número de aporias, as quais requerem que as conotações formais da democracia sejam integradas por limites e vínculos substanciais ou de conteúdo, isto é, relativos àquilo que não é lícito decidir ou não decidir, como são aquelas impostos, nas condições hodiernas, pelos direitos fundamentais nestas estabelecidos. (FERRAJOLI, 2014, p.18)
Ferrajoli é categórico quanto à rigidez constitucional que determinou as zonas do decidível e do indecidível, sendo certo que os legisladores constituintes originários estabeleceram de forma expressa aquilo que não é decidível ou posto à deliberação – via poder judiciário, através da própria atividade legislativa ou, ainda, na execução de uma ordem executiva – tendo também delimitado aquilo que não pode não ser decidido.
Ferrajoli ensina que o direito de liberdade é o que irá se contrastar com a esfera do indecidível, sendo esse contraste suficiente para se arguir acerca da invalidade da decisão.
Por seu turno, a esfera do decidível, ou seja, daquilo que não pode não ser decidido, contrasta com os direitos sociais, sobre os quais a constituição rígida impõe substancialmente o dever de decidir e assim satisfazer no plano prático social o que se clama realização.
Sobre o tema, Ferrajoli manifesta:
De fato, por força da mutação de paradigma gerada pelo constitucionalismo rígido na estrutura das democracias, inclusive o poder legislativo e o poder de governar são juridicamente limitados e vinculados com relação não somente às formas, mas também à substância do seu exercício. Estes limites e vínculos são impostos a tais poderes pelos direitos constitucionalmente estabelecidos, os quais identificam aquela que podemos chamar de esfera do indecidível: a esfera daquilo que não é decidível, ou que não pode ser objeto de deliberação, desenhadas pelos direitos de liberdade, os quais têm o poder de tornar inválidas as decisões com eles contrastantes, e a esfera daquilo que não pode não ser decidido, ou que deve ser objeto de deliberação, desenhada pelos direitos sociais, os quais impõem como devidas as decisões destinadas a satisfazê-los. (FERRAJOLI, 2014, p.18-19)
Ferrajoli faz uma importante digressão, fundamental para o propósito maior de sua teoria, a nosso ver, ao defender que a própria noção de democracia se alterou com a mudança do paradigma constitucional rígido.
O autor lembra que foi através de mecanismos consagrados da democracia formal que nazismo e fascismo, principais regimes totalitários do século XX, ascenderam ao poder. É fácil lembrar das atrocidades desses regimes, sem que se recorde com a mesma frequência que o sufrágio consignou o regime hitlerista e que, através da manipulação da opinião pública com o fornecimento de desinformação, o consenso político majoritário fez submergir a democracia italiana.
O alerta é evidente nas palavras do jurista:
[...] na ausência de quaisquer das limitações substanciais relativas aos conteúdos das decisões legítimas, uma democracia não pode – ou, ao menos, pode não – sobreviver sendo sempre possível, em princípio, que com métodos democráticos se suprimam, por intermédio da maioria, os próprios métodos democráticos: não somente os direitos de liberdade e os direitos sociais, mas também os próprios direitos políticos, o pluralismo político, a separação de poderes, a representatividade, em suma, o inteiro sistema de regras em que consiste a democracia política. Não é uma “hipótese de escola”: fascismo e nazismo, no século passado, se apropriaram do poder por intermédio de formas legais e depois o consignaram “democraticamente” e tragicamente a um líder que suprimiu a democracia. (FERRAJOLI, 2014, p. 20)
A obra de Ferrajoli mostra-se imprescindível para a compreensão da evolução da teoria jurídica, uma vez que o autor não avança apenas do ponto de vista jurídico, mas apresenta uma teoria de direito que vincula as normas jurídicas a preceitos que devem ser, em uma autêntica democracia, observados e seguidos pela teoria jurídica.
Constitui também um relevante avanço no plano político, por tentar buscar um modo de ressignificar a própria democracia após o paradigma rígido, visto que após esta mudança não somente o direito se modificou, como também o exercício da democracia e sua condição de existência. Só há que falar em democracia constitucional na hipótese de existir efetivamente uma estrita observância do paradigma constitucional, sem o qual não há, em rigor, democracia.
Ferrajoli explica que no antigo estado legal de direito, isto é, antes da alteração do paradigma, as constituições, ao menos nas democracias europeias, ainda que trouxessem em seu conteúdo direitos fundamentais, eram flexíveis, de tal modo que gozavam apenas de limites políticos e igualmente formais, padecendo de força jurídica capaz de vincular a lei e os poderes.
Ensina o jurista:
Foi propriamente por causa dessas trágicas experiências que se produziu na Europa, logo após a Segunda Guerra Mundial, uma mudança de paradigma, tanto de direito quanto da democracia, por intermédio da constitucionalização daquele e desta. Essa mudança consistiu na sujeição da inteira produção do direito, incluída a legislação, a normas constitucionais rigidamente sobrepostas a todos os poderes normativos e, portanto, completando o modelo paleopositivista do Estado de direito. No velho Estado legal de direito, o poder legislativo das maiorias parlamentares era um poder virtualmente absoluto, não tendo sido sequer concebida a possibilidade de uma lei que limitasse a lei. Existiam, é verdade, constituições e direitos fundamentais estipulados em cartas constitucionais. Todavia, ao menos no continente europeu, essas cartas eram constituições flexíveis: leis solenes, mas sempre leis, que o legislador ordinário podia muito bem modificar validamente com leis sucessivas. Os princípios e os direitos nelas estabelecidos operavam, de fato, como limites e vínculos apenas políticos, destituídos de uma força jurídica capaz de vincular a legislação. (FERRAJOLI, 2014, p. 20)
O resultado, segundo o jurista, consiste na progressiva transformação do sistema representativo em meros atos plebiscitários fundada na explícita pretensão de onipotência da maioria governante e, por consequência, uma alteração drástica que neutraliza um complexo de regras, de separações e contrapesos, de garantias e funções, bem como instituições de garantia que traduzem a substância da democracia constitucional.
A ideia que sustenta essas transformações do sistema, na construção de um regime desconstituinte, é que o consenso popular constitui a única fonte de legitimação do poder político e, sendo assim, serviria também para deslegitimar críticas e controles, bem como chancelar todo tipo de abuso.
De modo que resulta positivado o ser do direito e o seu dever ser, afastando-se as abstrações próprias desses conceitos do positivismo jurídico:
Por conseguinte, resulta positivado não apenas o ser do direito, ou seja, a sua “existência” mas também o seu dever ser, isto é, as suas condições de “validade”; não mais somente o quem e o como das decisões, mas também o que não deve ser decidido, ou seja, a lesão aos direitos de liberdade, ou, ao contrário, o que deve ser decidido, isto é, a satisfação dos direitos sociais. (FERRAJOLI, 2014, p. 22)
Conforme se expôs, as constituições rígidas trazem limites de cunho substancial, além dos limites meramente formais, das decisões políticas e de todo o sistema representativo da democracia e de seus poderes.
2. A Crise do “alto” e de “baixo” da democracia – o processo desconstituinte
Luigi Ferrajoli aborda a crise da democracia italiana subdividindo-a em duas categorias: (i) a crise “do alto” da política e (ii) a crise “de baixo” da política, para tratar de seus principais sintomas no âmbito do que ele denomina de processo desconstituinte, gerado pelo enfraquecimento do paradigma constitucional da democracia do pós-guerra.
A crise do alto se verifica por quatro fatores aparentemente opostos que, todavia, convergem no que diz respeito à substância das normas constitucionais. Manifestam-se por quatro categorias de negação da separação de esferas ou níveis de poder: (i) Estado e povo; (ii) esfera pública e esfera privada; (iii) forças políticas e instituições políticas; (iv) poderes midiáticos e liberdade de cultura e informação.
De acordo com o texto original:
A crise “do alto” é gerada por quatro fatores, aparentemente opostos, mas na realidade convergentes, ao minar pela raiz a relação de representação. Todos se manifestam na negação de quatro outras idênticas separações entre esferas ou níveis de poder – entre Estado e povo, entre esfera pública e esfera privada, entre forças políticas e instituições políticas, entre poderes midiáticos e liberdade de cultura e de informação – que caracterizam a modernidade jurídica. Todas se resolvem, consequentemente, em idênticas regressões pré-modernas e, o que é mais grave, no desenvolvimento de idênticos poderes desregulados e selvagens. (FERRAJOLI, 2014, p.31)
O primeiro dos quatro fatores acima mencionados é identificado pelo autor como a verticalização do poder político na pessoa do “chefe da maioria” por meio do populismo. Através de atitudes políticas populistas, constitui-se a base que sustenta a negação da separação entre Estado e povo, ao mostrar-se tal chefe completamente comprometido com a ideia da soberania popular, única e principal fonte da legitimidade do poder político, torna-se possível a perigosa ideia de “democracia governante”.
O resultado é o enfraquecimento da própria política e, consequentemente, a derrocada de todo o sistema representativo que, em tempos “saudáveis”, é a principal fonte de legitimidade e legalidade do Estado Democrático de Direito, sobretudo após o constitucionalismo.
A crise do alto da política também é a crise do sistema de representação, com a transformação progressiva dos partidos políticos de “órgãos da sociedade” em “órgãos do Estado” e verdadeiros comitês eleitorais de “líderes” políticos.
Ferrajoli defende que a obtenção do poder político e sua centralização na pessoa do chefe da maioria ocorrem em cenários onde há pouca ou nenhuma informação. Além disso, a contemporaneidade tem revelado que a relação entre informação e cidadão transformou-se em relação de consumo, sendo que aquela não é mais prestada ao público e sim “vendida” como mercadoria, o que será detalhado adiante, na análise da relação entre poder e mídia.
A centralização política nas mãos do chefe da maioria constitui a primeira e talvez a mais problemática característica do processo desconstituinte, posto que é através dessa concentração do poder político que se manifesta o governo “do homem”, do “chefe” do “líder”. Não é necessário muito esforço para relembrar que esse quadro flerta diretamente com o autoritarismo e com os regimes de exceção do século passado, o que não passou à margem da perspicácia de Ferrajoli:
Portanto, esta ideia da onipotência do chefe como a voz e expressão orgânica da vontade popular é ao mesmo tempo anticonstitucional e antirepresentativa. É antes de tudo uma ideia anticonstitucional, pois ignora ou no mínimo desvaloriza os limites e os vínculos impostos pelas constituições aos poderes da maioria, reproduzindo, em termos parademocráticos, uma antiga e perigosa tentação, que está na origem de todas as demagogias populistas e autoritárias: a opção pelo governo dos homens, ou, pior, de um homem – o chefe da maioria –, em oposição ao governo das leis e consequente intolerância com a legalidade e com os controles jurisdicionais, concebidos como ilegítimos obstáculos à ação de governo. (FERRAJOLI, 2014, p.33)
O autor esclarece que o processo desconstituinte, e sobretudo a ideia da vontade popular “encarnada” na pessoa do chefe da maioria, além de seu aspecto totalitário, constitui uma verdadeira negação da representatividade política, diante da impossibilidade de se representar todos os indivíduos, como se o povo fosse um conjunto homogêneo, sem diferenças. É calcado justamente na ideia de respeito às diferenças que se assenta a representatividade política em sociedades plurais como é o caso da sociedade brasileira:
Mas essa ideia é também radicalmente antirrepresentativa, pois nenhuma maioria parlamentar, muito menos o chefe da maioria, pode representar a vontade do povo, tampouco a da maioria dos eleitores. Como nos ensinou Hans Kelsen[2], “uma tal vontade coletiva não existe”, não sendo o povo “um coletivo unitário homogêneo, e a sua assunção ideológica serve somente para “mascarar o conflito de interesses, efetivo e radical, que se exprime na realidade dos partidos políticos e na realidade, ainda mais importante, do conflito de classes que está por trás de tudo isso”. (FERRAJOLI, 2014, p. 33)
Para o jurista italiano, o processo desconstituinte configura-se no enfraquecimento da democracia constitucional, pelos golpes operados no constitucionalismo, nas suas normas, em sua substância, resultando em uma forma degenerada de democracia, como apontado por Aristóteles, em demagogia. A identificação do chefe da maioria com a vontade popular, que caracteriza o processo, configura o rompimento com a democracia como sistema político e, no limite, a fórmula totalitária que na Itália se convencionou chamar de Fascismo.
Estamos, portanto, diante de uma mudança de sistema: não simplesmente, como às vezes se sustenta, de uma alteração de fato do sistema parlamentar em sistema presidencial, mas de algo muito mais grave e mais profundo. O populismo, quando a identificação entre chefe e povo não é somente uma tese propagandística, mas vem proposta como uma conotação institucional e como fonte de legitimação dos poderes públicos, equivale a um novo e específico modelo de sistema político. Corresponde àquela forma degenerada de democracia à qual Aristóteles chamou “demagogia”. (FERRAJOLI, 2014, p. 34)
A presença do chefe “carismático” no populismo é objeto da crítica altamente relevante que faz Ferrajoli. A identificação do chefe da maioria com a vontade popular para os fins de lhe conferir legitimidade democrática consubstancia uma relação orgânica vital para o sucesso de seus desideratos e impede a representatividade de fato, simplesmente anula qualquer tipo de representatividade dos dissonantes, o que, por óbvio, viola os mais comezinhos princípios de uma rotina democrática em um Estado submetido ao paradigma constitucional.
A existência de um chefe carismático é incompatível com a democracia, ou pelo menos assinala um enfraquecimento da sua dimensão política e representativa, além da sua dimensão constitucional. O “chefe carismático” implica sempre a sua relação orgânica com o povo, isto é, com quantos o identificam como “chefe”: é exatamente a mesma coisa, no sentido de que não existe chefe sem relação orgânica – de identificação, e não ao contrário de representação – com quantos o exaltam e reconhecem como tal. (FERRAJOLI, 2014, p. 35)
O segundo fator da “crise do alto” apontado por Ferrajoli consiste nos processos de progressiva confusão e concentração de poderes, na confusão entre esfera pública e esfera privada, entre poderes políticos e poderes econômicos. O cerne do problema reside nos conflitos de interesses gerados pela estreita aliança entre poderes políticos públicos e poderes econômicos privados e, o que é mais grave a nosso ver, na notável submissão daqueles a estes.
Neste ponto, vale ressaltar a noção de esfera pública em termos de democracia representativa sob o ponto de vista sociológico, conforme Jessé Souza:
O que é afinal uma esfera pública? Por que ela é tão importante para uma democracia sólida? Que tipo de aprendizado coletivo ela enseja? [...] Uma esfera pública de conteúdo não estatal nasce, no entanto, apenas a partir da mudança da função da imprensa desde uma atividade meramente informativa e manipulativa do que interessava ao Estado tornar público, em favor da concepção de um veículo, de um “fórum” apartado do Estado. É esse fórum de pessoas com capacidade para julgar que permite a formação de uma opinião pública crítica que introduz, pela primeira vez, a questão da legitimidade discursiva da política. O que é público, de interesse geral e para o bem de todos, precisa, a partir de agora, provar-se argumentativamente enquanto tal. De início, os burocratas do incipiente aparelho estatal, profissionais liberais, pastores, professores e comerciantes formam a base social dessa nova esfera. A esfera pública burguesa que se constitui aqui deve ser entendida, antes de tudo, como a reunião de pessoas privadas num ambiente público. (SOUZA, 2017, p. 76, 79)
Embora o recorte realizado por Jessé Souza refira-se à esfera pública e a relação com a imprensa, crítica fortemente presente em Ferrajoli, os conceitos estabelecidos de esfera pública, essencialmente, no sentido de pessoas privadas manifestando-se discursivamente em ambientes públicos e sobre o que é público basta para os fins colimados neste artigo.
O cerne dos conflitos de interesses apontados por Ferrajoli consiste na ocorrência de atos de corrupção, tráficos de influência da política com o mundo financeiro, lobbies e outras mazelas que denotam um quadro endêmico em todos os ordenamentos democráticos nos quais se torna cada vez mais estreita a relação entre dinheiro, informação e política.
O segundo fator da crise “do alto” da representação política consiste nos processos de progressiva confusão e concentração de poderes [...]. O cerne desta confusão de poderes é constituído pelos conflitos de interesses gerados pela estreita aliança entre poderes políticos públicos e poderes econômicos privados e pela substancial subordinação dos primeiros aos segundos. Sob esse aspecto os conflitos de interesses, nas formas da corrupção, dos tráficos de influência da política com o mundo das finanças, com os lobbies corporativos e, sobretudo, com a grande mídia, constituem hoje fenômenos endêmicos em todos os ordenamentos democráticos, nos quais se torna cada vez mais estreita a relação entre dinheiro, informação e política: dinheiro para fazer política e informação, informação para fazer dinheiro e política [...]. (FERRAJOLI, 2014, p. 36)
Os primeiros fatores de crise do sistema representativo têm como base principal a concentração dos poderes políticos na pessoa do chefe carismático da maioria e no conflito de interesses que, ao cabo, resulta na impossibilidade de informação ao povo, em face da sua vulnerabilidade política e social, posto que a informação se tornou produto dessas iníquas relações de conflitos de interesses pessoais ocasionados pela confusão entre esfera pública e esfera privada.
Merecem destaque, ainda, nessa altura das reflexões, a concentração do poder político do chefe da maioria e sua relação orgânica vital com a manipulação do consenso popular que, pelas práticas oportunistas do populismo, acarreta a legitimação de um poder concentrado que se revela selvagem, destrutivo, e a desqualificação da representação e mesmo de uma autêntica oposição no campo das disputadas políticas democráticas.
O terceiro fator da crise “do alto” da representação política e da democracia é a crescente integração dos partidos políticos ao Estado e, consequentemente, o seu progressivo desaparecimento como força capaz de realizar a mediação representativa das instituições com a sociedade.
Ferrajoli esclarece que a distinção entre representantes e representados, entre instituições públicas eletivas e forças políticas que, neste ponto, corresponde à força dos partidos políticos, ou, melhor dizendo, a confusão entre esfera pública e esfera privada, acaba por expor os partidos a uma realidade praticamente dominada pela corrupção, tornando-se os mesmos verdadeiras oligarquias, fechadas ao povo, entes do Estado e não mais da sociedade:
Eles (os partidos) se tornaram instituições paraestatais que, de fato, gerenciam informalmente a distribuição e o exercício das funções públicas: não são mais órgãos da sociedade, mas substancialmente órgãos do Estado organizados segundo a velha lei férrea das oligarquias. (FERRAJOLI, 2014, p. 41)
Especialmente ao se refletir sobre a realidade da política brasileira, impossível não citar trecho da obra em estudo em que se denota tanto a transmutação gradual dos partidos políticos em órgãos do Estado, de modo a se distanciarem da mediação necessária que a democracia pressupõe entre as instituições e a sociedade, como a confusão entre esfera pública e esfera privada, entre interesses da sociedade e pessoais, fomentados pela percepção que os cargos eletivos conferem aos políticos ascensão social e econômica, gerando na sociedade o amargo sentimento de aversão em função de sua identificação no imaginário das massas como uma classe de privilegiados e abusivos parasitas.
A crise do papel de mediação dos partidos entre estado e sociedade resulta, desse modo, comprometida por um fator ulterior: o conflito de interesses, gerado pelas autocandidaturas e pelas cooptações, na própria formação da representação política. Os elevados subsídios de que gozam os “eleitos” – tanto no parlamento nacional como em todas as instituições eletivas –, os seus privilégios, a sua consequente mudança de status econômico e social, juntamente à sua nomeação “do alto”, geram em todos eles um interesse pessoal à conservação do cargo eletivo, e uma submissão a quem os nomeou e poderá renomeá-los ou não os renomear, o que deforma radicalmente a sua função pública de representação política. Acrescente-se que o fenômeno, nesses últimos anos, agravou-se, alcançando dimensões patológicas, em razão da crescente expansão da classe política, de seus custos e de seus privilégios, simultânea à crise de penetração social dos partidos. Disso resultou uma crescente aversão antipolítica da parte dos eleitores relativamente a toda classe política, tida indistintamente como uma classe abusiva e parasitária. (FERRAJOLI, 2014, p. 41)
O quarto e último fator da crise “do alto” da democracia e da representatividade, consoante Ferrajoli, compreende duas patologias relativas ao direito e à liberdade de informação, negociada como mercadoria, o que se relaciona com a confusão entre esfera pública e esfera privada, em que os interesses particulares se sobrepõem aos coletivos, os “interesses do povo”.
Ferrajoli não nega que há liberdade de informação, não se trata propriamente de uma crítica quanto aos métodos ou escolhas da “grande mídia”, mas, sob a perspectiva do poder econômico, de se tratar a informação como mercadoria:
[...] o pensamento, a opinião e a informação bem mais que direitos fundamentais, transformam-se em mercadorias, cuja produção é decidida e gerenciada pela propriedade: são, de fato, direitos e bens patrimoniais confiados às dinâmicas do mercado e da política. (FERRAJOLI, 2014, p. 42)
De acordo com Ferrajoli, as duas patologias se explicam na medida em que o controle político e o controle midiático da informação se submetem aos interesses particulares e ao mercado financeiro. Ao invés de um autêntico direito à informação, ao povo, quando não lhe é vendida a “desinformação”, a informação posta ao seu alcance é comprometida com esses interesses.
No Brasil, é importante relembrar que o processo político eleitoral para a disputa da presidência da república em 2018 foi inegavelmente impactado pelos grandes meios de comunicação, especialmente os meios de comunicação televisiva aberta e pública. Acrescenta-se o fenômeno das chamadas “fake news”, notícias falsas, vulgarmente confeccionadas com o fito de manipular a informação por meio de conteúdos sensacionalistas e manchetes de impacto.
Não há segredo ou novidade no apontado, há, com efeito, uma relação perniciosa entre mercado, política e grandes veículos de comunicação que seguem um viés de monopólio da informação visando fins particulares.
Assim, dado político só concede entrevista a um ou outro canal, por exemplo, porque determinado veículo tem um compromisso eleitoral com esse indivíduo. Quando se presta informação por meio de concessão pública, regime dominante no país em termos de posse e propriedade da informação, tal fato acarreta, indevidamente, impactos negativos sobre as rotinas democráticas.
Por seu turno, a crise “de baixo” da democracia e da representação se manifesta por quatro outros fatores apontados por Luigi Ferrajoli, observados do ponto de vista da sociedade.
O primeiro fator abarca a homologação dos condescendentes e o aviltamento dos dissidentes, o que resulta na máxima concentração vertical do poder político do chefe da maioria e no progressivo distanciamento entre sociedade e política.
Observa Ferrajoli que os críticos, os opositores e todos aqueles que se insurgem contra a vontade ou ousam contra o grande poder do chefe da maioria – que pela manipulação do consenso e pelas práticas populistas tem na “boa vontade geral” a sua principal fonte de legitimidade – são considerados inimigos.
À homologação organicista e identitária que está na base do populismo e do culto do chefe corresponde, em nível social, a lógica da exclusão sob a bandeira da oposição amigo/inimigo. Quem não se identifica com a vontade popular expressa pelo chefe é um potencial inimigo: um comunista, um pessimista, um anti-italiano, um antidemocrático e antipatriótico, em todo caso privado de legitimação, pois não eleito pela maioria. (FERRAJOLI, 2014, p.46)
‘Amigo’ e ‘inimigo’ são conceitos de direito internacional público cunhados por Carl Schmitt, um dos maiores pensadores da teoria geral do Estado, do direito e do direito constitucional alemão.
Para prosseguir nas reflexões pautadas em Ferrajoli, convém esclarecer o conceito schmittiano de ‘inimigo’.
Schmitt entende a relação amigo-inimigo, sobretudo o conceito de inimigo, da seguinte forma:
[...] não se pode negar que os povos se agrupam conforme a antítese de amigo e inimigo e que esta oposição ainda hoje existe como real possibilidade na realidade e para cada povo politicamente existente.
[...]
Assim, inimigo não é o concorrente ou o adversário em geral. Tampouco é inimigo o adversário privado a quem se odeia por sentimento de antipatia. Inimigo é apenas um conjunto de pessoas em combate ao menos, eventualmente, i.e., segundo a possibilidade real e que se defronta com um conjunto idêntico. Inimigo é somente o inimigo público, pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas, especialmente, a todo um povo, se torna, por isso, público. Inimigo é o hostis, não o inimicus em sentido amplo; polemios, não echtros. (SCHMITT, 2008, p. 30)
A lógica social em consonância com a lógica de amigo/inimigo, sob a ótica da legitimidade popular do chefe, tem o condão de combater os opositores e todo aquele que se insurgir na contramão da vontade soberana do chefe, sendo o ódio e o medo as principais armas da demagogia populista sempre às ordens da vontade soberana e legítima do chefe da maioria.
O segundo fator da crise “de baixo” descrito por Ferrajoli abrange a despolitização de massa e a dissolução da opinião pública.
Em verdade, esses dois aspectos, abordados já na crise “do alto” são novamente objeto da crítica de Ferrajoli, neste momento, tendo por base agora a visão da sociedade.
A descrença política, a manipulação pela venda de informação falsa e pela oferta desleal da desinformação, bem como a manipulação midiática dos meios de comunicação, essencialmente do meio televisivo, conduzem a uma sociedade completamente alienada, presa fácil para o populismo, e caracterizada pelo abstencionismo e pela antipolítica, que enfraquecem o sentimento cívico e desqualificam a relevância política da chamada opinião pública.
Merece grande destaque o terceiro fator da crise “de baixo” da democracia e da representatividade apontado por Ferrajoli: a crise da participação política.
Como visto anteriormente, expostos a um grau intenso de corrupção e em função das escolhas equivocadas de seus líderes, bem como pela derrocada moral de parte substancial de seus integrantes, os partidos políticos, que deveriam servir à sociedade realizando a mediação e objetivando o aprimoramento de seus quadros, atuam como órgãos do Estado, subservientes a todo esse aparato da confusão entre as esferas pública e privada que está na essência da crise da democracia.
Trata-se do primado dos interesses particulares:
Nas origens desta passividade política se encontra um terceiro fator de crise “de baixo” da democracia política: a falência da participação dos cidadãos na vida pública – de suas formas, de suas sedes e de suas ocasiões – determinada pelo correspondente fator da crise “do alto”, isto é, pela crescente distância dos partidos em relação à sociedade, bem como pela perda por parte daqueles de representatividade e de penetração social. (FERRAJOLI, 2014, p. 54)
Na sequência, Ferrajoli faz uma polêmica e verdadeira constatação acerca do que corrói a democracia e os partidos políticos:
A média de faixa etária dos que se inscrevem nos partidos cresce a cada ano. São poucos os jovens que participam da vida dos partidos em razão de um ideal e não com a esperança de ali encontrarem um emprego. (FERRAJOLI, 2014, p. 54).
3. O antídoto: o sistema de separações e de garantias da democracia
Ferrajoli inicia o quarto e último capítulo de sua obra salientando que os fatores de crise “do alto” e “de baixo” da democracia e da representatividade estão relacionados.
Ab initio, resta claro que o processo desconstituinte pode ser combatido nos planos da cultura e da política pelo trabalho e pelo desafio de inserir novamente na sociedade e no chamado “senso comum” os ideais do constitucionalismo rígido, sobretudo em termos do conteúdo jurídico material das normas constitucionais assim como de sua força cogente, isto é, pela capacidade de vincular as decisões dos poderes da democracia nesse sentido.
Entretanto, diante da análise que faz o jurista e das similaridades entre a crise considerada em seu trabalho e a atualidade, é possível observar também nas democracias latinas, especialmente na brasileira, uma crítica a ser destacada em relação ao sistema eleitoral, à própria eleição e ao futuro da democracia: o bipolarismo político que, em última análise, nega a própria pluralidade política característica da democracia contemporânea.
A experiência deveria ter ensinado que a onda populista e antirrepresentativa do sistema político italiano é o fruto envenenado e o coroamento institucional – na forma e na substância, no método e nos conteúdos – da opção pelo bipolarismo e pela embriaguez majoritária. O sistema bipolar de fato nega artificialmente o pluralismo político, mortifica os dissensos, ofusca as diferenças dos interesses representados, simplifica, em suma, a complexidade social, constrangendo os eleitores a escolher uma das duas partes em conflito, transformando as eleições em uma partida que se pode vencer ainda que só por um voto de diferença. (FERRAJOLI, 2014, p. 62)
Ferrajoli entende que, para combater o processo desconstituinte, deve haver quatro principais separações, especialmente entre: (i) esfera pública e privada; (ii) Estado e sociedade; (iii) funções e instituições de governo e funções e instituições de garantia; (iv) poderes políticos e econômicos e liberdade de informação.
A primeira separação essencial que Ferrajoli apresenta e que, a nosso ver, está no vértice da crise da democracia deve ocorrer entre as esferas públicas e os grandes interesses privados, ou seja, entre os poderes políticos e os poderes econômicos.
Nesse sentido, o autor considera como antídoto um rígido sistema de incompatibilidades que seja capaz de impedir a confusão entre interesses públicos e privados, principalmente no que tange à submissão do interesse público ao interesse pessoal, que parece ser a regra da política da demagogia.
A segunda separação essencial objetiva a incompatibilidade entre cargos de partido e cargos públicos efetivos, para que os primeiros não sejam ocupados pelas pessoas destinadas aos últimos, trata-se de recuperar a noção dos partidos políticos enquanto mediadores da sociedade e retirá-los da perniciosa relação de órgãos do Estado.
Em terceiro lugar, Ferrajoli tece sua crítica sobre o sistema de separação de poderes, apontando que essa lógica, desde Montesquieu, não é compatível com o que se observa na prática. Não há, de fato, uma separação entre os poderes, visto que, por exemplo, executivo e legislativo têm a mesma legitimação: o voto. Portanto, é um equívoco sustentar que há uma separação entre esses poderes, que é inadequada do ponto de vista descritivo e ainda se traduz em um equívoco axiológico, haja vista a enorme quantidade de funções destinadas à esfera pública que não se enquadram na velha tripartição do século XVIII.
Por fim, o combate ao processo desconstituinte e a luta pela revitalização da democracia representativa passam, necessariamente, por uma profunda reforma dos partidos políticos tanto quanto ao método de atuação quanto a reestruturações estatutárias. Surpreendentemente, Ferrajoli faz uma defesa interessante do financiamento público dos partidos, pois assim os partidos estariam obrigados a obedecer a critérios de lei e da democracia e não a critérios pessoais e conchavos com a maioria e seu chefe.
A experiência nos mostrou que a autorregulação estatutária não é suficiente para impedir a degeneração dos partidos em oligarquias intolerantes em relação ao dissenso e indispostas à mudança de dirigentes a não ser por cooptações no vértice dos próprios partidos; que as normas estatutárias de garantia são em regra inadequadas ou inefetivas; que somente a heteronomia de uma lei estatal é capaz de impor efetivas garantias contra a personalização e concentração dos poderes decisórios nas mãos de um chefe ou de um grupo restrito de dirigentes. Uma lei desse tipo deveria prever, além da incompatibilidade entre cargos de partido e funções públicas, o respeito a todos os vínculos estatutários essenciais em tema de democracia interna dos partidos, quanto menos como condição pública. Restariam garantidas, além da autonomia dos partidos e da sua democracia interna, a sua capacidade de atração e organização da sociedade: os partidos ficariam livres, quando renunciassem ao financiamento público, para se organizarem como seitas ou se dedicarem ao culto do chefe; ao contrário, os partidos que pretendessem receber financiamento público estariam obrigados a satisfazer os princípios de democracia estabelecidos em lei. (FERRAJOLI, 2014, p. 70)
Conclusões
À semelhança do processo denunciado por Ferrajoli revela-se a crise de enfraquecimento do paradigma constitucional brasileiro.
A Constituição da República brasileira de 1988 que, nos termos da classificação das democracias do pós-segunda guerra, caracteriza-se como uma constituição rígida, sendo-a de fato pois o conteúdo de suas normas, além de organizar o Estado brasileiro, assumiu o compromisso material de realizar direitos, indicando as esferas do decidível e do indecidível, estabelecendo também critérios complexos para a alteração de seu texto, que conta ainda com cláusulas pétreas, impassíveis de modificação nem mesmo por esse sistema procedimental qualificado.
Especialmente em contextos que demandam uma espécie de “revisão constitucional”, a despeito daquela já prevista no artigo 3º do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, tenta-se operar, indevidamente, alteração do texto constitucional no que pertine também à chamada rigidez constitucional, afrontando-se a impossibilidade, mesmo por emenda, de se modificar as cláusulas pétreas, núcleo material inalterável da Constituição a menos que através do chamamento de um novo processo constituinte (o que, a princípio, não seria o caso).
Evidencia-se que, independentemente das disputas hodiernas de uma democracia representativa, a Constituição tem sua vontade política, operou escolhas que importam em assumir o compromisso com seu conteúdo material, sem o qual deflagra-se o denominado processo desconstituinte que, em uma democracia doente e fragilizada e, nesse contexto, demagógica, consiste no vilipêndio dos direitos ali consagrados de maneira contínua e, até certo ponto, silenciosa.
Nesse âmbito, a maioria e seu chefe objetivam desqualificar toda e qualquer oposição, sob o manto da legitimidade conferida pela soberania popular que, uma vez organicamente confundida com o chefe, tem o condão de arruinar a democracia utilizando-se dos próprios mecanismos democráticos, destruindo igualmente a própria Constituição pelo esvaziamento do sentido de suas normas.
O consenso que confere ao chefe essa máxima legitimidade é “conquistado” por meio de negociatas e conchavos que, à margem da população alienada e desinformada, têm por objetivo a consecução de interesses pessoais travestidos de ideologia política.
Em terras brasileiras, é relativamente fácil observar o processo de esvaziamento de sentido dos direitos, sobretudo, dos direitos e das garantias fundamentais.
Todo e qualquer ato político que, em tese, afirma a defesa dos interesses da população sob a insígnia de “menos direitos” e “mais riqueza” constitui uma mentira e deve ser combatido com a verdade. A verdade da Constituição que, com força cogente, normativa, ou seja, com a capacidade de impor decisões e vínculos, delimitou as zonas do que não se pode decidir e daquilo que se deve decidir.
Não menos importante é denunciar a relação perigosa entre poder político e poder econômico, mormente, quando o chefe político tem negócios e confere privilégios a esse ou àquele meio de comunicação. Quando isso ocorre a informação passa a produto comercial de propaganda, no limite, conforme apontado por Ferrajoli, a informação é tida como mercadoria, submissa ao poderio econômico.
Por fim, merece destaque o alerta às imposições do bipolarismo.
Com efeito, o último pleito eleitoral à presidência da república impôs à sociedade brasileira uma escolha que obedece à lógica bipolar apontada por Ferrajoli, eivada a disputa eleitoral, como se viu, por muitas notícias falsas e desinformação, aproveitando-se de uma massa pouco instruída e com acesso a todo tipo de “informação” disponibilizada pela internet.
Diante do exposto, conclui-se que a democracia brasileira está em crise devido ao enfraquecimento do paradigma constitucional rígido, perpetrado pela concentração do poder político nas mãos do chefe carismático da maioria que, por meio de suas decisões políticas, acaba por tornar letra morta os direitos e princípios esculpidos na Constituição. Caracteriza-se, assim, o processo desconstituinte operado pelo esvaziamento de sentido das normas da Lei Maior, o que ao fim e ao cabo torna a própria democracia enfraquecida e doente.
Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens: A Crise da Democracia Italiana. Tradução: Alexandre Araujo de Souza. São Paulo: Saraiva, 2014.
______. La democrazia constitucionale. Revus [Online], 18 | 2012 (Online since 04 February 2015. Disponível em: <http://journals.openedition.org/revus/2291>. Acesso em: 09 set. 2020.
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. A Teoria das Constituições Rígidas. São Paulo: José Bushatsky, 1980.
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Coordenação e supervisão: Luiz Moreira; tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
[1] Na versão original em italiano: “Per comprendere questo mutamento di paradigma della democrazia e dello stato di diritto, conviene rilettere sul cambiamento in sede istituzionale e sulla revisione in sede di teoria del diritto, avvenuto con il paradigma costituzionale, delle condizioni di validità – sostanziali, ol tre che formali – della produzione legislativa.27 Esiste infatti un nesso biunivoco tra il mutamento strutturale di tali condizioni nel vecchio stato legislativo di diritto e il mutamento strutturale della democrazia generati entrambi dal paradigma del costituzionalismo rigido. Esiste, più in generale, un nesso isomorico, troppo spesso ignorato, tra le condizioni giuridiche di validità quali che siano, democratiche o non democratiche – e le condizioni politiche di legittimità dell’esercizio del potere normativo: in breve, tra diritto e politica e tra teoria del diritto e teoria politica. E’ il nesso che fa della teoria politica un’interpretazione semantica, appunto ilosoicopolitica, dell’apparato concettuale elaborato dalla teoria del diritto. La teoria del diritto, infatti, ci dice che cosa è la validità: non quali sono o quali è giusto che siano le condizioni della validità delle norme – che è quanto che ci dicono le discipline giuridiche dei diversi ordinamenti e le diverse ilosoie politiche della giustizia – ma in che cosa tali condizioni consistono. Ce lo dice, in quanto teoria pura o formale, con la deinizione del concetto di validità: è valida, in un dato ordinamento, qualunque norma prodotta in conformità alle norme di tale ordinamento sulla sua produzione. La teoria politica della democrazia ci dice invece quali sono o devono essere, in democrazia, le forme appunto democratiche della produzione normativa e in generale delle decisioni politiche. Ma la stessa cosa farebbe una teoria politica dell’autocrazia: l’identiicazione delle forme autocratiche – per esempio, il principio quod principi placuit legis habet vigorem, inteso ‘princeps’ quale organo monocratico dotato di potere assoluto e ‘vigorem’ nel senso di ‘validitatem’ – della produzione delle norme e più in generale delle supreme decisioni politiche.”
[2] H. Kelsen, Essenza e valore della democracia, cit., cap. VIII, p. 120. “Inteiramente no espírito deste princípio, prossegue Kelsen, “estão as palavras que Platão, na sua República (III, 9), diz a Sócrates em resposta à pergunta sobre como deveria ser tratado, no Estado ideal, um homem dotado de qualidade superiores, um verdadeiro gênio: “Nós o honraríamos como um ser digno de adoração, maravilhoso e amável; mas depois de lhe fazer notar que não existe homem de tal espécie no nosso Estado, e que tal não deve existir, ungiremos a sua cabeça e, coroando-a, o escoltaremos até a fronteira”.
graduado e mestrando em Filosofia do Direito na PUC-SP, bolsista pelo CNPq. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATOS, JOSÉ CARLOS SEVERO DE OLIVEIRA. A fragilização do paradigma constitucional brasileiro na atual crise da democracia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2020, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55257/a-fragilizao-do-paradigma-constitucional-brasileiro-na-atual-crise-da-democracia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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