Resumo: O presente artigo busca estudar o reconhecimento do instituto da filiação socioafetiva em nosso ordenamento jurídico, bem como avaliar a possibilidade de enquadramento da socioafetividade no direito sucessório. Os sentimentos e a afinidade que dele provêm, tornam-se o viés basilar para a constituição da família. A partir dos novos arquétipos familiares passou a existir a filiação socioafetiva. A partir da doutrina e dos posicionamentos dos tribunais vamos procurar consolidar o nosso entendimento e conhecimento acerca da filiação socioafetiva e o direito de sucessão. A metodologia utilizada durante este artigo foi a Pesquisa Bibliográfica doutrinária e jurisprudencial tratando, portanto, da paternidade socioafetiva e dos direitos sucessórios nesta nova modalidade de paternidade.
Palavras-chave: Socioafetividade, Filiação socioafetiva, Direito sucessório.
Abstract: This article seeks to study the recognition of the institute of socioaffective affiliation in our legal system, as well as to evaluate the possibility of framing socio-affectivity in succession law. The feelings and affinity that come from it become the fundamental bias for the constitution of the family. From the new family archetypes, socioaffective affiliation began to exist. From the doctrine and positions of the courts we will seek to consolidate our understanding and knowledge about socioaffective affiliation and the right of succession.
Keywords: Socio-affection, Socioaffective affiliation, Succession law.
Sumário: Introdução. 1. Evolução das Composições Familiares e a Paternidade Socioafetiva. 1.1. Paternidade Socioafetiva e seus Efeitos. 2. A Legislação Brasileira sobre a Paternidade Socioafetiva. 3. Paternidade Socioafetiva e os Direitos Sucessórios: Entendimento Doutrinário e Jurisprudencial. 4. Conclusão. 5. Referências.
Introdução
O modelo de família patriarcal representado pelo Código de 1916 evidenciava a tentativa de manter a sociedade hierarquizada, com o objetivo de que se mantivessem os privilégios das classes dominantes. Havia assim, um sentimento de submissão em toda uma esfera social. Logo, só ao homem cabia o comando exclusivo da família.
A Constituição Federal ao não reconhecer e proteger a filiação socioafetiva deixa uma enorme lacuna em nosso ordenamento jurídico. E foi essa lacuna deixada pelo legislador, que serviu de incentivo ao presente trabalho.
Assim, nasce uma nova verdade no estabelecimento da filiação: a paternidade socioafetiva a qual reconhece que os verdadeiros pais não são aqueles que geram, mas os que se dedicam diariamente a preencher este espaço na vida de uma criança. Novos conceitos passaram a existir para abordar o tema filiação, passando a ser reconhecido não apenas aquela derivada do parentesco genético, mas também do parentesco psicológico, entre eles citamos: filiação social, filiação socioafetiva e estado de filho afetivo.
Desarraigando o tratamento desigual entre os filhos, independentemente de sua procedência, com abrigo na boa jurisprudência, é imprescindível o reconhecimento dos efeitos sucessórios, advindos com a afirmação da paternidade socioafetiva; autorizando que seja admissível o reconhecimento da dupla paternidade, a biológica e a socioafetiva, até mesmo no que diz respeito aos direitos sucessórios.
1. Evolução das Composições Familiares e a Paternidade Socioafetiva
A Constituição Federal de 1988 com as novas disposições, como o fato de elencar a convivência familiar como direito fundamental, garantir a não discriminação entre os filhos e a responsabilização pelo exercício do poder familiar tanto pelo pai como pela mãe, projetaram no campo jurídico os vínculos de afetividade como o fundamento das relações familiares.
Sendo a filiação socioafetiva um fato presente em nossa sociedade, esta merece e deve ser regulada expressamente, pois a ausência da regulamentação legal não implica em ausência do direito.
O Estado, ao se reservar o monopólio da jurisdição, assegurou a todos a prerrogativa de buscar os seus direitos. Elencou pautas de conduta por meio de leis e, na impossibilidade de prever todas as situações que a riqueza da vida, a inteligência humana e o avanço das ciências podem imaginar, atribuiu aos juízes não só a função de aplicar o direito, mas também o dever de criá-lo sempre que constatar lacunas na legislação. Tal função torna-se verdadeira missão, quando o magistrado se conscientiza de que lhe compete revelar o direito mesmo quando não há previsão legal, pois a ausência de lei não significa a inexistência de direito merecedor de tutela. (grifo nosso) (DIAS, 2004, p.233)
Com o objetivo de regulamentar e dar o devido reconhecimento à filiação socioafetiva, nosso Código Civil deveria incorporar, expressamente, o conceito de “posse de estado de filho”, sem precisar ser enquadrado no contexto da expressão “veementes presunções”, hoje em vigor; como ação de constatação/declaração, sendo meio ou modalidade de reconhecimento, com a função de viabilizar uma forma de reconhecimento de paternidade judicial sem oposição; como causa de pedir, ou seja, como fonte de uma pretensão, configurando-se como uma ação de investigação de paternidade sócio afetiva, requerendo um reconhecimento forçado; e, como causa de pedir ação negatória, com o intuito de desconstituir a filiação pela ausência de afeto e de zelo entre o suposto pai e o pretenso filho. (BOEIRA, 1999, p. 93)
Ao se ajuizar uma ação que contemple a ocorrência da paternidade socioafetiva, deve-se buscar o reconhecimento do vínculo afetivo existente entre o pai e a criança, onde deve haver a comprovação por quaisquer meios constitutivos de prova admitidos pelo Direito da posse de estado de filho.
O filho criado e educado por seu pai social, não pode ter arrancado todo o seu histórico de vida e condição social, isto não tutelaria a dignidade humana. Neste sentido, o acórdão abaixo merece atenção:
APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA SOBRE O VÍNCULO BIOLÓGICO. DEMONSTRADA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, PELO PRÓPRIO DEPOIMENTO DA INVESTIGANTE, POSSÍVEL O JULGAMENTO DO FEITO NO ESTADO EM QUE SE ENCONTRA, SENDO DESNECESSÁRIA A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA OU INQUIRIÇÃO DE OUTRAS TESTEMUNHAS, QUE NÃO PODERÃO CONDUZIR À OUTRA CONCLUSÃO SENÃO DA IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. PRELIMINARES REJEITADAS E RECURSO DESPROVIDO, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70015562689, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 28/02/2007).
No referido acórdão, pode-se observar que o próprio depoimento da parte apelante serviu de meio convincente para que seu pedido fosse julgado procedente, tendo os julgadores feito uso até mesmo das declarações do próprio investigado para abalizarem seus votos.
No que tange à análise das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, extrai-se a certeza de que não se promove a banalização da paternidade socioafetiva. Se os elementos caracterizadores do estado de filiação não forem identificados, os julgadores não demonstram dúvidas em expressar a realidade dos fatos em seus votos. Pode-se acompanhar este fato pela ementa abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE, CUMULADA COM PEDIDO DE EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. O contexto probatório revela que, além da inexistência de paternidade biológica, também não se verificou entre o autor e o requerido a paternidade socioafetiva. Nesse passo, é de rigor a procedência da negatória de paternidade. NEGARAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70029565942, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui PortaNova, Julgado em 16/07/2009).
Quando ocorre de as duas correntes da paternidade não coincidirem, a prevalência da verdade socioafetiva sobre o vínculo biológico é fortemente defendida pelos desembargadores gaúchos. Segue julgado nesse sentido:
ANULAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE FILHO. PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Não ofende a verdade o registro de nascimento que espelhou a paternidade socioafetiva, voluntariamente assumida, mesmo se não corresponder à parentalidade biológica, pois a revelação da origem genética, por si só, não basta para atribuir ou negar a paternidade. A relação jurídica de filiação se construiu também a partir de laços afetivos e de solidariedade entre pessoas geneticamente estranhas que estabelecem vínculos que em tudo se equiparam àqueles existentes entre pais e filhos ligados por laços de sangue. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70018506303, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 13/06/2007)
Importante salientar que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é fundamentalmente socioafetiva. Vale à pena ressalvar que estabelecer a paternidade somente nos laços sanguíneos, sem se importar com todo e qualquer laço do coração, faz com que as relações paterno-filiais se transformem num determinismo biológico, nem sempre refletindo a melhor solução para os casos apresentados. Se o afeto é elemento capaz de superar a ausência de vínculo biológico, não seria justa a desconstituição de tal união.
Podemos definir o pai como o genitor, o marido ou companheiro da mãe, ou aquele que cria os filhos e assegura-lhes o sustento, ou aquele que dá seu sobrenome ou mesmo seu nome? A resposta só pode ser uma: nada mais autêntico do que reconhecer como pai quem age como pai, quem dá afeto, quem assegura a proteção e garante a sobrevivência. (PEREIRA, 1999, p. 144)
1.1 Paternidade Socioafetiva e seus Efeitos
A paternidade socioafetiva apresenta-se no dia-a-dia e gera muitos efeitos. Caso contrário, questões envolvendo a filiação socioafetiva nem ao menos chegariam ao judiciário e a noção de posse de estado de filho não seria cada vez mais utilizada para resolver inúmeros conflitos no direito de família. Assim, nem sempre a filiação socioafetiva apresenta-se desde o nascimento, esta prospera com o tempo.
A doutrina e a jurisprudência vêm, dando destaque à paternidade socioafetiva, a qual não tem origem biológica, mas é construída em razão do mero afeto. A paternidade socioafetiva sob a noção da posse de estado de filho não passa a existir com o nascimento, mas num ato de vontade, que se solidifica com a afetividade, colocando em segundo plano a verdade jurídica e a certeza científica no estabelecimento da filiação.
Levando-se em conta que a posse de estado de filho, base da filiação socioafetiva não se encontra expressamente reconhecida pelo ordenamento jurídico, cabe à doutrina e à jurisprudência assegurar que o filho socioafetivo seja reconhecido e protegido, sobretudo após o falecimento daquele que o criou.
O Ilustre Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis coaduna com tal entendimento:
AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. REGISTRO. A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a "posse do estado de filho", que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o "estado de filho afetivo", que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual, determinando o registro da filiação do autor, com veredicto declaratório nesta investigação de paternidade socioafetiva, e todos os seus consectários. APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70008795775, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 23/06/2004).
A jurisprudência, principalmente aquela oriunda do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, já vem reconhecendo efeitos à paternidade socioafetiva. Nesse sentido, seguem as ementas:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. VERDADE REGISTRAL QUE DEVE PREVALECER SOBRE A VERDADE BIOLÓGICA. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SOCIOAFETIVO. O reconhecimento da paternidade é ato irrevogável, a teor do art. 1º da Lei nº 8.560/92 e art. 1.609 do Código Civil. A retificação do registro civil de nascimento, com supressão do nome do genitor, somente é possível quando há nos autos prova cabal de ocorrência de vício de consentimento no ato registral ou, em situação excepcional, demonstração de cabal ausência de qualquer relação socioafetiva entre pai e filho. Ainda que exista a filiação biológica, descoberta anos após o registro da criança, e estando demonstrada nos autos a filiação socioafetiva que se estabeleceu entre o autor com a ré, até sua adolescência, o princípio da paternidade socioafetiva impera sobre a verdade biológica. Sentença de procedência reformada. Sucumbência invertida. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70029637717, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 16/12/2009)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE/ANULATÓRIA DE REGISTRO CIVIL. O assento de paternidade, quando o pai registral se encontrava ciente de não ser o pai biológico daquele que registrava como sendo seu filho, o que caracteriza a perfilhação é ato irrevogável e irretratável, sendo permitida sua discussão, tão-somente, quando há comprovação do vício de consentimento, vez que não há falar em negar paternidade que sabia não existir. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO. (Apelação Cível Nº 70033026535, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 11/03/2010)
A alteração dos padrões familiares acabou por refletir nas conexões de parentalidade, passando a haver dessa forma, novas considerações e conceitos para retratar a realidade contemporânea: filiação social, filiação socioafetiva, posse do estado de filho.
A filiação socioafetiva corresponde à realidade que existe, e juridicizar a verdade aparente garante a estabilidade social. A posse do estado de filho revela a constância social da relação entre pais e filhos, caracterizando uma paternidade que existe, não pelo simples fato biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de elementos que somente estão presentes, frutos de uma convivência afetiva. (BOEIRA, 1999, p.54)
De acordo com os Embargos Infringentes N. 599277365, a paternidade socioafetiva foi tratada igualmente à adoção, pois se apresenta como “o ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe a outra como filho, independentemente de existir entre elas qualquer relação de parentesco consanguíneo”.
O parentesco civil decorrente da adoção hoje em quase nada difere daquele proveniente da consangüinidade, proibindo à Constituição qualquer discriminação concernente à natureza da filiação, e nessa igualdade deve ser incluída a paternidade afetiva. Ainda que comprovada a não-paternidade biológica, isto por si só, não seria suficiente para afastar seu dever para com o menor. Permitir que o pai, a qualquer tempo, pudesse desfazer o reconhecimento da paternidade de um filho seria aprovar um gesto reprovável, imoral.
Caso o objetivo seja fugir do dever alimentos, importante ressaltar que os alimentos podem decorrer da paternidade socioafetiva, pois no art. 1694 do Código Civil de 2002 consta que podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos. O Código quando fala em parente, se refere ao parente consangüíneo ou ao parente civil (socioafetivo). (VELOSO, 1997, p. 73)
A paternidade socioafetiva, completamente demonstrada, se sobrepõe à paternidade biológica, com o fim de impedir a anulação do registro de nascimento, ou seja, impedir a desconstituição da filiação que consta no registro de nascimento, com todas as suas consequências, inclusive patrimoniais. Abaixo segue a ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CARACTERIZADAS. ALIMENTOS A SEREM PAGOS PELO PAI BIOLÓGICO. IMPOSSIBILIDADE. Caracterizadas a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva, o que impede a anulação do registro de nascimento do autor, descabe a fixação de pensão alimentícia a ser paga pelo pai biológico, uma vez que, ao prevalecer a paternidade socioafetiva, ela apaga a paternidade biológica, não podendo co-existir duas paternidades para a mesma pessoa. Agravo retido provido, à unanimidade. Apelação provida, por maioria. Recurso adesivo desprovido, à unanimidade. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70017530965, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 28/06/2007)
Nesse contexto cabe o entendimento de Maria Berenice Dias na ementa abaixo:
NEGATÓRIA DE MATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO. IMPOSSIBILIDADE. Sendo a filiação um estado social, comprovada a posse do estado de filho, não se justifica a anulação de registro de nascimento por ali não constar o nome da mãe biológica e sim o da mãe afetiva. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REDUÇÃO. Nas causas de valor inestimável, os honorários devem ser arbitrados mediante apreciação eqüitativa. Inteligência do art. 20, § 4º, do CPC. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA FORMULADA EM GRAU DE RECURSO. Nada obsta concessão do beneplácito da assistência judiciária gratuita pleiteada em grau de recurso quando a requerente comprova hipossuficiência econômica. Apelo parcialmente provido. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70010660041, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 23/03/2005)
Como salienta Maria Berenice Dias no julgado acima, comprovada a posse de estado de filho, comprova-se a filiação. Ademais, se um pai não pode “desistir” de um filho biológico, também não o pode fazer em relação a um filho socioafetivo.
2. A Legislação Brasileira sobre a Paternidade Socioafetiva
O Código Civil de 1916 estampava em seu texto inúmeras desigualdades. Nele, distinguia-se, injustificadamente, a filiação “legítima” da “ilegítima”, sendo que, somente em casos realmente excepcionais se permitia o reconhecimento da paternidade extramatrimonial.
O motivo dessa restrição encontra-se nas palavras do Professor Luiz Edson Fachin (1992, p.45):
“…A idéia central que norteia o sistema é a da preservação da família calcada no matrimônio, pelo que se procura explicar a admissão do reconhecimento de filho ilegítimo excepcionalmente, apenas quando há manifestamente uma base para se estabelecer a verdade.”
Os filhos nascidos de pais não unidos pelos laços do matrimônio eram denominados “ilegítimos”. Distinguiam-se assim, os filhos naturais, que eram aqueles cujos pais não tinham impedimento matrimonial quando da sua concepção e, os filhos espúrios, quando seus genitores possuíam impedimentos absolutos para casar entre si. Dentre estes últimos, poderiam ser incestuosos, quando filhos de parentes ou outros em grau proibido para o matrimônio e, os chamados filhos adulterinos, estes nascidos de homem ou mulher casados com pessoa diversa da do cônjuge.(VELOSO, 1997, p.12)
Nesse sentido, somente os filhos naturais poderiam ser reconhecidos, sendo que os espúrios encontravam-se à margem do Código, não sendo possível seu reconhecimento. Do mesmo modo, ocorria com a família “ilegítima”, isto é, aquela constituída fora do casamento, deixando o direito de reconhecê-la, como se esta não existisse. (VELOSO, 1997, p. 14)
Gradualmente, transformações foram ocorrendo em nossa legislação, visando superar idéias contidas no Código Civil de 1916, que retratava valores do século XIX e que, se contrapunha à realidade e às mudanças pelas quais passava a sociedade do século XX.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, aplicando-se os princípios da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, a entidade família ganhou maior importância no ordenamento jurídico, claramente observa-se neste dispositivo o valor da afetividade presente nas relações familiares. Nesse contexto, as pessoas podem escolher outras formas de constituição de família, para além daquelas formadas tradicionalmente (monoparentais), equiparando os direitos e deveres dos cônjuges nas relações matrimoniais, conforme assegura o Artigo 226, Parágrafo 5º, da Constituição Federal.
Devido à constitucionalização, no Direito de Família contemporâneo, vive-se um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (afeto). Isto demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais um modelo deste elo, a exclusão de que a paternidade seja, antes de tudo, biológica. No entanto, o elo que une pais e filhos é, acima de tudo, Socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico, assim sendo, a Constituição Federal de 1988 representou importante marco na trajetória do Direito Civil pátrio, provocando um verdadeiro abalo estrutural do sistema jurídico, trazendo profundas mudanças em especial ao Direito de Família. (ALMEIDA, 2002, p. 24)
A Constituição lançou dois princípios estruturais da chamada “nova filiação”, sendo o primeiro, da plena igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º), e o segundo, de suma importância no caso comentado, que consiste na adoção pela Constituição Federal da doutrina de proteção integral da criança e do adolescente (art. 227 da CF), os quais passam a ter reconhecidos e garantidos direitos próprios a sua condição de pessoas em desenvolvimento.
Reflexo imediato da proteção adotada é a admissão da paternidade socioafetiva, pois o afeto é o único em muitos casos capaz de permitir a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana. Pode-se dizer que as constantes evoluções pelas quais o conceito de família passou, acabaram por introduzir inovações no direito, através da Constituição Federal de 1988, cujas linhas fundamentais projetaram-se no Código Civil de 2002.
Destacam-se no Código Civil de 2002, algumas referências a respeito da paternidade socioafetiva, entre elas, o art. 1593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”, sendo que a principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade. O ponto essencial a ser destacado é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho.
O art. 1596 do Código Civil reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. Dentro do núcleo familiar, a isonomia entre os cônjuges é garantida pela Constituição, quando ordena em ser artigo 226, §5º, que ”Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”
O art. 227 da Constituição Federal revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo. Em matéria envolvendo os direitos fundamentais da criança e do adolescente, o artigo 227, caput, da Constituição Federal, acolheu expressamente a doutrina da proteção integral. O artigo 227, § 6º, da CF/88, ao estatuir a igualdade absoluta entre os filhos, não permite mais qualquer privilégio ou benefício a qualquer um dos filhos.
As novas técnicas de reprodução humana assistidas ocasionaram a modificação das bases que estabeleciam a filiação, tanto no que se refere à paternidade como à maternidade, é o caso da inseminação artificial heteróloga, com o uso de sêmen e/ou óvulo de terceiro (a), e gestação substituta (comumente chamada de “barriga de aluguel”), a solução a ser dada ao caso concreto deve levar em consideração o melhor interesse da criança. (TOMASZEWSKI, 2006, p. 19)
O Código Civil em seu art. 1597, V, admite a filiação mediante a inseminação artificial heteróloga, ou seja, com a utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo.
O art. 1605 do Código Civil é o consagrador da posse do estado de filiação. Na experiência brasileira, incluem-se entre a posse de estado de filiação o filho de criação e a adoção de fato, também chamada de “adoção à brasileira”, que é feita sem a observância do processo judicial, mediante declaração falsa ao registro público. De acordo com este artigo, na ausência de registro de nascimento a filiação pode ser provada por qualquer meio se existirem fortes presunções resultantes de fatos já certos. Tais presunções são averiguadas uma a uma (individualizadas) e podem servir de exemplo para caracterizar a posse de estado de filho.
Rolf Madaleno destaca a importância da paternidade socioafetiva quando diz:
“A Carta Política de 1988 garante a todos os filhos o direito à paternidade, mas este é o sutil detalhe, pois quem se limita ao exame processual e incondicional da verdade biológica sobre a verdade jurídica. Entretanto, adota um comportamento jurídico perigoso, uma vez que dá prevalência à pesquisa da verdade biológica, olvidando-se de ressaltar o papel fundamental da verdade socioafetiva, por certo, a mais importante de todas as formas jurídicas de paternidade, pois, seguem como filhos legítimos os que descendem do amor e dos vínculos puros de espontânea afeição e, para esses caracteres a Constituição e a gênese do futuro Código Civil nada apontam, deixando profunda lacuna no roto discurso da igualdade, na medida em que não protegem a filiação por afeto, realmente não exercem a completa igualização.” (MADALENO, 1995, p. 41).
Também no art. 1614 do Código Civil existem duas normas, ambas demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior, se não consentir, a paternidade, ainda que biológica não seja admitida; a segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos após adquirir a maioridade. Se o filho não quer o pai biológico, que não promoveu o registro após seu nascimento, pode rejeitá-lo no exercício de sua liberdade e autonomia. Assim sendo, permanecerá o registro do nascimento constando apenas o nome da mãe. Cabe salientar que o artigo não se aplica contra o pai registral, se o filho foi concebido na constância do casamento ou da união estável, pois a declaração ao registro público do nascimento não se enquadra no conceito estrito de reconhecimento da paternidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 27 preceitua que: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça”. Podemos dizer que o ECA admite a igualdade entre os filhos, tanto os provenientes do casamento quanto os advindos fora deste. Significa falar deste modo, que as restrições que antes havia para se ajuizar ação de investigação de paternidade, atualmente não existem mais.
Com efeito, a entidade familiar se torna um grupo social fundado, essencialmente em laços de afetividade, os quais se exteriorizam “em concreto, no necessário e imprescindível respeito às peculiaridades de cada um de seus membros, preservando a imprescindível dignidade de todos. Isto é, a família é o refúgio das garantias fundamentais reconhecidas a cada um dos cidadãos. [...] Há, portanto, a valorização do ser e, por decorrência, o reconhecimento de que a família não é um fim, mas sim o meio pelo qual se torna possível o alcance da felicidade de seus membros, unidos, essencialmente, pelo vínculo afetivo. (GOMES, CORDEIRO, 2013, p. 178)
Verifica-se assim, a tendência atual do Direito de Família que é a de buscar e zelar pela alegria, amor e respeito no ambiente familiar. Assim, a legislação pertinente ao Direito de Família atualmente visa à preservação da relação de afeto que existe entre os entes que compõe a entidade familiar, de modo que a paternidade socioafetiva representa uma das formas mais nítidas de aplicabilidade destes preceitos, tendo em vista que esta nasce do afeto e bem-querer mútuo, especialmente na relação pai e filho.
De fato, quando a atual Constituição Federal estabelece as bases da dignidade da pessoa humana e o afeto, por conseguinte, o constituinte opta por superar o individualismo, passando a eleger a pessoa como centro da tutela do ordenamento jurídico.
3. Paternidade Socioafetiva e os Direitos Sucessórios: Entendimento Doutrinário e Jurisprudencial
A filiação, antes da atual Constituição Federal, era discriminatória, havendo inúmeras dificuldades para o reconhecimento da paternidade, vez que o art. 337, do Código Civil de 1916, proibia o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento.
Assim sendo, os filhos ilegítimos não possuíam os mesmos direitos sucessórios, já que apenas a filiação legítima e os filhos adotivos, estes em menor escala, eram protegidos e contemplados pela legislação, afinal, o antigo Código Civil não abria largamente as portas à paternidade, instituído na paternidade jurídica decorrente da presunção.
A filiação na maior parte dos casos origina-se da relação biológica; no entanto, ela emerge da construção da cultura e afetividade permanente, que surge na convivência e na responsabilidade.
Acredita-se que uma vez reconhecida e declarada a filiação socioafetiva, deveria o filho socioafetivo possuir os mesmos direitos sucessórios que qualquer outro filho, já que, de acordo com nossa Constituição, todos os filhos são iguais e tem os mesmos direitos independente de sua origem.
O interesse da criança deverá ser o alicerce de toda decisão que disser respeito a sua vida familiar e poderá permiti-la, eventualmente, escolher entre uma filiação jurídica e uma filiação biológica, desde que para garantir seu conforto, buscando o respeito aos interesses da criança. Em algumas ocasiões, uma delas poderá ser desconsiderada em favor da outra, com a finalidade de protegê-la.
Temos desta forma, que a felicidade pessoal é o bem jurídico mais relevante.
Assim sendo, o filho socioafetivo deveria ser considerado herdeiro necessário, tal como dispõe o art. 1845 do Código Civil: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.”
Deve-se atentar para o que diz art. 1789 do Código Civil: ”Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor de metade da herança”, pois se reconhecida à paternidade e/ou maternidade, cabe ao filho socioafetivo impugnar eventual testamento, caso esse dispusesse de modo diverso do que determina a lei.
Importante observar que não podem os interesses patrimoniais ser o objeto de investigações de paternidade, como ocorre quando o pretenso genitor biológico falece, deixando razoável herança.
Ou seja, a investigação de paternidade tem por objeto assegurar o pai a quem não tem e nunca substituir a paternidade socioafetiva pela biológica.
Como já aludido antes, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, § 6º, equiparou o direito de todos os filhos. Assim, não mais acontecerá de aqueles que biologicamente eram filhos não serem juridicamente considerados como tais.
E também, quanto à filiação civil, que é aquela não biológica, dá-se o mesmo status de filho biológico, inclusive para efeitos sucessórios.
Frisa-se que ao ser decretada judicialmente a paternidade socioafetiva, não existe a possibilidade de debater em juízo a paternidade biológica. De acordo com o referido autor, existindo a paternidade socioafetiva, não se pode ingressar em juízo (tanto o pai quanto o filho) pleiteando a declaração de vínculo biológico. (WELTER, 2002, p.140)
Para dissociar os vínculos biológico do socioafetivo, o Poder Judiciário é chamado a se posicionar e o julgador deve observar de forma acurada as particularidades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões. O contexto mais utilizado por aqueles que negam o reconhecimento da paternidade socioafetiva, é o de que, se o suposto pai efetivamente reconhecesse o pretenso filho como tal, teria em vida manifestado a vontade de que esse filho fosse reconhecido, ou ainda, teria deixado testamento que beneficiasse esse filho socioafetivo.
Nesta seara, a jurisprudência manifesta-se afastando a possibilidade de exigir do pai biológico qualquer vantagem patrimonial, quando presente a paternidade socioafetiva. Nessa linha segue o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul na ementa abaixo transcrita:
APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA E ANULAÇÃO DE PARTILHA. AUSÊNCIA DE PROVA DO DIREITO ALEGADO. INTERESSE MERAMENTE PATRIMONIAL. Embora admitida pela jurisprudência em determinados casos, o acolhimento da tese da filiação socioafetiva, justamente por não estar regida pela lei, não prescinde da comprovação de requisitos próprios como a posse do estado de filho, representada pela tríade nome, trato e fama, o que não se verifica no presente caso, onde o que se percebe é um nítido propósito de obter vantagem patrimonial indevida, já rechaçada perante a Justiça do Trabalho. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70016362469, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 13/09/2006)
O fato de não existir uma manifestação expressa, não diminui o vínculo existente entre esse pai e seu filho. Vários podem ser os motivos pelos quais não houve o reconhecimento expresso, entretanto, isso não modifica o fato de que no decorrer da sua vida, o pai socioafetivo dispensasse amor e zelo para a criação daquele filho.
Sobre o assunto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul também já exibe posicionamento:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ALIMENTOS. INTEMPESTIVIDADE. REQUISITO DO ART. 526 DO CPC. NEGATIVA DA PATERNIDADE. [...] Negativa da paternidade. A obrigação alimentar se fundamenta no parentesco, que é comprovado pela certidão de nascimento. O agravante alega não ser o pai biológico do menor. Enquanto não comprovar, não se pode afastar seu dever de sustento. A rigor, mesmo esta prova não será suficiente, pois a paternidade socioafetiva também pode dar ensejo à obrigação alimentícia. ” (AI nº 70004965356; Rel. Des. Rui Portanova; TJRS; Órgão Julgador: 8ª Câmara Cível; Data do Julgamento: 31/10/2002).
Neste sentido surge a importância de acolhermos em nosso ordenamento jurídico a noção de paternidade socioafetiva, como forma de solução para os conflitos de paternidade que surgem no Poder Judiciário, possibilitando ao filho afetivo a prestação alimentícia, não o deixando desprotegido. Na busca pelo equilíbrio da verdade para o estabelecimento da paternidade socioafetiva e seus efeitos, é preciso adequar as normas jurídicas existentes em nosso ordenamento jurídico com a realidade vivida pala sociedade neste novo século.
O direito sucessório, portanto, decorre da filiação, e a partir da determinação do vínculo de paternidade, este será resolvido.
4. Conclusão
O Antigo Código era discriminatório, refletia uma visão estreita sobre a família, pois a limitava àquele grupo oriundo do casamento. Logo, toda a união que não estava amparada pelo casamento, era caracterizada como “extramatrimonial” e os filhos provindos desta união eram considerados ilegítimos.
Neste trabalho foi exposta a evolução da entidade familiar no plano legislativo, demonstrando a importância das transformações ocorridas neste instituto para o ordenamento jurídico e, em especial, para o reconhecimento da paternidade socioafetiva e o direito à sucessão.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 foram inseridos em nosso ordenamento jurídico, uma série de princípios e direitos fundamentais. Entretanto, uma das maiores conquistas advindas da Constituição foi, a equiparação dos filhos havidos ou não, dentro do casamento.
Tais modificações ocorridas no âmbito do Direito familiar estão nitidamente ligadas à valorização jurídica do afeto, edificadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com a ordenação de tratamento igualitário entre os filhos e a proteção ao melhor interesse da criança, legitimada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, assegurou-se o direito, a toda a criança, de conhecer suas origens e seus parentes consanguíneos.
Outra grande inovação da Constituição Federal de 1988 foi o reconhecimento das uniões familiares até então desconsideradas. A pluralidade marca o novo contorno da família contemporânea. Dessa forma, é preciso assentar um novo olhar sobre a sociedade brasileira, valorizando o afeto e a solidariedade. A família moderna valoriza um elemento abstrato que é o sentimento, o qual traduz o afeto como o alicerce da relação familiar.
Existem muitas verdades acerca da filiação, mas nem todas elas encontram-se protegidas pelo ordenamento jurídico. Em relação ao assunto, citamos a filiação baseada apenas no afeto, como sendo a verdadeira base da filiação, não podendo o filho afetivo ficar à margem da tutela jurisdicional. A filiação socioafetiva é um fato cada vez mais presente na sociedade, embora o legislador não a tenha reconhecido de forma expressa, através da posse de estado de filho.
Ressalta-se que se pretende sempre a busca pelos equilíbrios das verdades biológica e socioafetiva a fim de priorizar o interesse da criança. E sem dúvida, um dos maiores interesses e direito da criança é o de ter um “pai”, isto é, a busca por uma família feliz.
Assim, importante salientar a noção da paternidade socioafetiva quando da existência de conflitos de paternidade, pois não raras vezes haverá conflito entre as três linhas de paternidade existentes: a jurídica, a biológica e a socioafetiva, surgindo a paternidade embasada em laços de afeto como solução deste conflito.
Deve-se frisar que a verdade biológica deve ser vista com cautela, pois embora a existência de técnicas avançadas da medicina, as quais trazem em seus exames elevado grau de certeza em relação à descendência genética, o laço biológico jamais conseguirá impor que o genitor se torne o pai. A paternidade está acima dos laços sanguíneos, ela revela laços de afeto entre pai e filho.
Salienta-se que quando o filho afetivo buscar a desconstituição da sua filiação, estabelecida por vários anos, com finalidade puramente patrimonial, não deve ser reconhecido o direito ao patrimônio do pai biológico, pois a verdade socioafetiva não pode ser afastada para se alcançar vantagens econômicas. Desse modo, somente é admitido o conhecimento de sua origem genética, pois se trata de um direito que diz respeito a sua identidade como ser humano.
Uma vez configurada a filiação socioafetiva, observa-se que esta tem prevalecido sobre a verdade biológica, pois a verdadeira relação paterno-filial é emergente da construção afetiva, convivência diária, do carinho e cuidados dispensados à pessoa.
Dentre vários pedidos de reconhecimento, alguns podem eventualmente ter caráter meramente patrimonial, no entanto, não podemos aqui generalizar.
É difícil para o direito embrenhar-se nesta temática e “mensurar” o sentimento de alguém que já faleceu e que no decorrer de sua vida poderia ter buscado proteger o seu filho socioafetivo, mas não o fez. Por isso torna-se de extrema importância o reconhecimento da filiação socioafetiva, principalmente em se tratando de um vulnerável, sem voz ativa. Em caso de morte, reconhecido como filho socioafetivo, este não sofrerá qualquer forma de discriminação, possuindo todos os direitos relacionados à relação de filiação, independente se filho legítimo ou não.
A filiação socioafetiva é um fato cada vez mais presente, logo, faz-se necessária uma reforma em nosso ordenamento jurídico, a fim de que se possa responder às demandas atuais da nossa sociedade, pois enquanto não houver reconhecimento expresso por parte do ordenamento jurídico, caberá ao magistrado identificar e proteger essa relação de filiação.
A norma insculpida na Carta Constitucional tem como maior propósito encerrar as discriminações, concedendo de forma uniforme os direitos advindos da relação paterno-filial. Uma ausência de regulamentação não deve servir de argumento para a não proteção da família, pois a falta de previsão legislativa não deve implicar na impossibilidade de tutela
Tendo em vista o exposto, sustenta-se o surgimento de um direito para todos, numa vasta tutela social, capaz de atender à realidade brasileira, tornando o direito efetivo e útil em sua aplicação. O que se observa ainda é que na lei existem muitos espaços vazios a respeito do tema, embora a doutrina e jurisprudência estejam se aprimorando no reconhecimento desta modalidade de filiação, afiançando àqueles que efetivamente preenchem as condições de posse do estado de filho a transferência de bens, direitos e obrigações, quando da abertura da sucessão, no caso de enquadramento como herdeiro, conforme ordem de sucessão hereditária.
Consequentemente entende-se ser plenamente possível a legitimação do filho para a sucessão dos bens deixados pelo pai socioafetivo, por ter os mesmos direitos que o filho biológico.
REFERÊNCIAS
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Advogada (ULBRA), pós-graduada em Advocacia Cível (UNA) e Direito do Trabalho (UNA). Membro da Comissão de Direitos Humanos e do Grupo de Violência de Gênero da OAB Santa Maria-RS. Engenheira Agrônoma (UFSM), Mestre em Ciência e Tecnologia Agroindustrial (UFPel). Graduanda em Formação Pedagógica em Pedagogia (UNIASSELVI).Doutoranda em Educação (UNIT). https://orcid.org/0000-0003-3492-8512
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARIA, Vanessa Andriani. O Reconhecimento da Paternidade Socioafetiva e os Princípios Norteadores no Âmbito Sucessório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2020, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55261/o-reconhecimento-da-paternidade-socioafetiva-e-os-princpios-norteadores-no-mbito-sucessrio. Acesso em: 22 dez 2024.
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