Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sim. O CNJ acaba de criar a Polícia Judicial do Poder Judiciário (Ato Normativo 0006464-69.2020.2.00.0000).
De início, impende mencionar que as ideias apresentadas neste singelo texto não têm o condão de menosprezar ou impor tom pejorativo a nenhuma instituição ou classe. Apenas, faz-se necessário combater a subversão do Sistema Jurídico brasileiro que temos assistido.
Nesse prisma de ideias, serão feitos breves apontamentos a respeito da decisão do Conselho Nacional de Justiça, amplamente divulgada pela Agepoljus, que cria a Polícia Judicial do Poder Judiciário, sobretudo a respeito da sua (in)constitucionalidade e demais consequências legais. Veja um trecho da notícia [i]:
VITÓRIA DOS AGENTES DE SEGURANÇA: CNJ APROVA CRIAÇÃO DA POLÍCIA DO PODER JUDICIÁRIO
O plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, na sessão ocorrida na tarde desta terça-feira (08), a criação da Polícia do Poder Judiciário.
A proposta atende todas as sugestões apresentadas e trabalhadas pela AGEPOLJUS e Sindjus-DF quanto à matéria. Uma delas é a transformação da especialidade Agente de Segurança em Agente de Polícia Judicial, com o poder de polícia.
Desse modo, vamos às considerações pertinentes sobre o tema.
Não é de hoje que o Poder Judiciário tem rompantes de legislador, por vezes desestabilizando independência dos Poderes estabelecida pela Constituição Federal de 1988. Parece basilar até para quem está no primeiro período do curso de Direito, pois ainda nas lições preliminares de Introdução ao Direito e Direito Constitucional aprendemos a ideia do art. 2º da CF/88, in verbis:
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
É preciso lembrar, todavia, que não se quer simplificar demasiadamente a questão do ativismo judicial, que possui nuances complexas, estudadas por vários jus filósofos, de Hans Kelsen a Ronald Doworkin. Kelsen com a Teoria Pura do Direito, afastando do julgador qualquer feixe de interpretação do texto legal, enquanto o Doworkin, que se contrapõe ao primeiro, mais atento às limitações da interpretação literal da lei concebeu a ideia de teia inconsútil do ordenamento jurídico.
Mas voltemos ao Poder Judiciário. Tantas foram as ocasiões em que o Poder Judiciário, responsável pela última palavra na interpretação das leis, por vezes subjugando os outros Poderes, por vezes alheio ao próprio princípio da legalidade, sem encontrar limites (ou quem os impusessem), que o Poder Constituinte Derivado Reformador, por meio da Emenda Constitucional n. 45/04, adicionou um órgão na sua estrutura, denominado Conselho Nacional de Justiça - CNJ (CF, art. 92, I-A).
O CNJ tem função administrativa e, conforme estatuído no próprio site do Conselho[ii], trata-se de uma “instituição pública visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual.” Sua missão é “desenvolver políticas judiciárias que promovam a efetividade e a unidade do Poder Judiciário, orientadas para os valores de justiça e paz social.”
Em apertada síntese: o CNJ foi criado para fiscalizar atos não jurisdicionais do próprio Poder Judiciário. Tanto é assim que sua principal atividade tem sido receber reclamações, petições eletrônicas e representações contra membros ou órgãos do Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializado.
O § 4º art. 103-B da CF/88 apresenta mais detalhes sobre o papel do sobredito Conselho:
Art. 103-B
(...)
§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências
II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
Desse modo, é justamente o inciso I do § 4º do art. 103-B da CF/88 o dispositivo constitucional que possibilita que o CNJ expeça atos regulamentares, geralmente materializados por meio das suas resoluções, portarias, recomendações etc. O texto constitucional, porém, é expresso no sentido que tais atos devem se ater ao âmbito de sua competência.
Mas não é isso que vem acontecendo, pois passados mais de 15 anos de sua criação o fiscal do Poder Judiciário parece desconhecer suas limitações e, não raro, inova no ordenamento jurídico legal e, mais ainda, inova em relação ao próprio texto constitucional, usurpando função exclusiva do Congresso Nacional.
O CNJ já determinou que tribunais desobedecessem (pasmem!) ordens judiciais em cumprimento às suas determinações[iii] (Recomendação n. 38/19). Em outra oportunidade, o STF declarou inconstitucional [iv](ADI 4145) a absurda decisão do CNJ (Resolução 59/2008 - § 1º do art. 13 e art. 14) ) que proibia prorrogações de interceptações telefônicas durante o plantão judiciário, em afronta ao disposto no art. 5º da Lei n. 9.296/96. Além de várias outras ADINs[v] em andamento no STF ajuizadas contra atos normativos que extrapolaram o seu poder.
Firme com seu histórico, mais uma vez, o CNJ inova no ordenamento jurídico constitucional, criando sua própria polícia. Faz-se necessário dizer que a autonomia do Poder Judiciário não lhe dar margem para criar leis, mas sim fornece a oportunidade de encaminhamento de proposta de lei relacionada à sua organização. E cabe ao STF e aos Tribunais de Justiça estaduais, não ao CNJ, tal competência (CF, art. 93 c/c art. 96).
Como se não bastasse os rompantes de constituinte reformador e legislador do órgão do Poder Judiciário responsável por sua própria fiscalização, o mais novo “ato regulamentar” resolveu criar a denominada Polícia do Poder Judiciário. Foi aprovada a transformação do cargo de Agente de Segurança em Agente de Polícia Judicial, com poder de polícia!
Em relação às polícias, principalmente, o texto constitucional é exaustivo em sua previsão, citando expressamente os corpos policiais e instituições consideradas policiais.
É preciso lembrar, no que diz respeito às polícias com poder de polícia sobre pessoas [vi], a Constituição prevê exaustivamente os órgãos responsáveis. Note:
a) Polícia Legislativa do Senado: art. 52, XIII, da CF/88;
b) Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados: art. 51, IV, da CF/88;
c) Polícia Federal: art. 144, § 1º, da CF/88;
d) Polícia Rodoviária Federal: art. 144, § 2º, da CF/88;
e) Polícia Rodoferroviária Federal: art. 144, § 3º, da CF/88;
f) Polícias Civis: art. 144, § 4º, da CF/88;
g) Polícias Militares: art. 144, § 5º, da CF/88; e
h) Polícias Penais: art. 144, § 5º-A, da CF/88.
Além dos órgãos acima descritos, o texto constitucional somente autoriza, em respeito à autonomia dos entes federados, que as Assembleias Legislativas Estaduais disciplinem sobre suas polícias (CF/88, art. 27, §3º).
Essa sistemática é tão cristalina que foi preciso uma Emenda Constitucional (n. 104/2019) transformando os Agentes Penitenciários em Policiais Penais (federais, estaduais ou distrital). Não há possibilidade de leis infraconstitucionais, tampouco atos normativos de segundo grau, como são os do CNJ, criarem novos órgãos policiais! Simplesmente porque causa uma série de consequências tanto para a população, que pode ter seus direitos violados, como para o erário.
É bom lembrar que a recente reforma da previdência prevê aposentadoria especial para os integrantes dos órgãos policiais (CF/88, art. 40, § 4º-B- com redação dada pela EC n. 103/2019), tal benefício, evidentemente, sem prévia alteração do texto constitucional, não pode ser estendido aos Agentes de Segurança do Poder Judiciária, os quais não deixaram de ter essa natureza jurídica por simples decisão administrativa.
Ademais, o estatuto do desarmamento delega ao CNJ e ao CNMP apenas a regulamentação do porte de arma dos servidores estejam em exercício de funções de segurança. Como se nota da leitura do dispositivo legal abaixo, funções de segurança não se confundem com funções policiais. O texto legal é claro. Confira:
Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:
XI - os tribunais do Poder Judiciário descritos no art. 92 da Constituição Federal e os Ministérios Públicos da União e dos Estados, para uso exclusivo de servidores de seus quadros pessoais que efetivamente estejam no exercício de funções de segurança, na forma de regulamento a ser emitido pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ e pelo Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP. (grifo nosso).
Para que fique claro ao leitor, Agente de Segurança, independentemente do nome que seja atribuído a ele, não têm poder de polícia sobre pessoas. Sintetizando, eles podem:
a) prender pessoas somente em flagrante delito, como qualquer pessoa do povo pode (CPP, art. 301);
b) Fazer segurança pessoal de membros da magistratura;
c) Realizar controle de acesso nos prédios do Poder Judiciário;
d) Revistar presos que seram inquiridos em audiência, nas dependências das instalações do Poder Judiciário;
e) Monitorar câmaras de vídeo de vigilância dos prédios do Poder Judiciário;
f) Escoltar presos, desde que não invada a atribuição dos Policiais Penais; e
g) Outros correlatos, sem exercício de funções relativas aos membros da segurança pública.
Por outro lado, os Agentes de Segurança do Poder Judiciário não podem:
a) Abordar e revistar pessoas em vias públicas;
b) Fazer policiamento preventivo, patrulhamento ostensivo ou congêneres, pois cabe às Polícias Militares, Rodoviária Federal e Federal (CF/88, art. 144, §§ 1º, 2º e 5º)
c) Fazer investigações policiais, instaurando inquérito policial, ou formalizando diligências em qualquer procedimento investigativo, por mais que tenham outra nonemclatura, atividade fim das Polícias Judiciárias Civis ou Federal (CF, art. 144, §§ 1º e 4º);
d) Fazer representações ao Poder Judiciário por medidas cautelares, tais como busca e apreensão, interceptação telefôncia, prisão preventiva ou temporária, infiltração etc, por total ausência de legitimidade constitucioal ou legal;
e) Cumprir medidas cautelares expedidas pelo Poder Judiciário (buscas e apreensões, interceptação telefônica etc);
f) Instaurar Termos Circunstanciados de Ocorrência; e
g) Qualquer atividade conferida aos membros da segurança pública, com exclusividade.
No que diz respeito às investigações polciais, é importante ressaltar a regulamentação ainda em vigor pela Resolução n. 291, de 23/08/2019- CNJ, a qual prevê a possibilidade o Comitê Gestor recomendar ao Presidente do CNJ que represente ao Procurador-Geral da República e aos Procuradores Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal pela designação de órgão da instituição para acompanhar inquéritos policiais instaurados para a apuração de crimes praticados contra magistrados no exercício de sua função (art. 9º). Essa sistemática reafirma a atribuição da Polícia Judiciária investigar infrações penais, mesmo que sejam praticadas contra magistrados.
Além do vício formal insanável do ato normativo do CNJ que transforma os Agentes de Segurança em Agentes de Polícia Judicial, há que se ressaltar vício também material dessa iniciativa, pois na dicção do entendimento sumulado do Supremo Tribunal Federal é vedada a transformação de cargos que possuem naturezas distintas. Veja o teor da Súmula Vinculante n. 43/ STF:
É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.
Como bem lembra Antônio Carlos Alencar Carvalho[vii] “a transformação de cargos públicos oculta desenganada inconstitucionalidade pelo desiderato menos nobre de propiciar transposição entre carreiras ou provimento derivado de cargos efetivos com clara agressão ao direito da sociedade (...)” .
Assusta que o CNJ, que tem função constitucional de fiscalização dos atos normativos do Poder Judiciário, regulamente expedientes em afronta direta ao entendimento do STF e ao disposto na Constituição Federal. Confira o teor do texto constitucional:
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(...)
X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 84, VI, b; (grifo nosso)
Não é demais lembrar as últimas ações do próprio STF que, usurpando atribuições do Ministério Público e da Polícia Judiciária, procedeu investigações, expediu, de ofício, mandados de buscas e apreensão, decretos prisionais etc (sobre esse tema sugerimos a leitura dos excepcionais artigos de Eduardo Cabette, intitulados: Inquérito judicial das fake news: as obviedades que precisam ser explicadas; Tempos sombrios e O julgamento “fake” news e a continuidade da ilegalidade ).
Será que a Corte Suprema deseja um aparato policial próprio destinado a cumprir suas próprias ordens judiciais, sem margem para qualquer questionamento?
Bem, é necessário cautela quando o tema é a atividade policial, na medida em que qualquer ação estatal implica necessariamente na vulneração de direitos e garantias individuais da população. Reafirma-se que, em tese, não somos contrários à criação de eventual corpo policial destinado à segurança interna do Poder Judiciário.
Todavia, para que isso ocorra, deve-se passar pelo crivo do Poder Legislativo, na forma prevista na Constituição Federal, com a necessária disciplina das atribuições dessa nova entidade a ser criada, inclusive no que diz respeito à nomenclatura, a fim de que não haja qualquer confusão com a Polícia Judiciária e outros corpos policiais, sobretudo pelos possíveis interesses subjacentes advindos.
Enfim, a natureza jurídica da atividade policial é determinada pelas funções exercidas por seus agentes, sendo irrelevantes para qualificá-la a denominação que lhe desejem atribuir. Agentes de segurança, enquanto não houver previsão expressa na Constituição Federal, não são policiais.
Dessa forma, nos termos em que se encontra, urge o ajuizamento de ADI por parte das Associações de Classe Policiais de âmbito nacional, questionando a constitucionalidade do ato do CNJ, mais uma vez.
[i] Vitória dos agentes de segurança: CNJ aprova criação da polícia do poder judiciário. Disponível em: https://www.agepoljus.org.br/p213.aspx?IdNoticia=10412&idme=546. Acesso em: 09/09/2020.
[ii] CNJ. Quem Somos. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sobre-o-cnj/quem-somos/. Acesso em 09/09/2020.
[iii] É ilegal ato do CNJ que manda tribunais desobedecerem ordem judicial, diz Ajufe. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-25/ilegal-ato-cnj-manda-desobedecer-ordem-judicial-ajufe. Acesso em 09/09/2020.
[iv] STF declara inconstitucional norma que proibia prorrogação de interceptações telefônicas durante plantão judiciário. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=376654. Acesso em 09/09/2020.
[vi] As polícias como poder de polícia sobre pessoas diferenciam-se substancialmente dos órgãos administrativos que possuem poder de polícia sobre bens e serviços, como é o caso da Vigilância Sanitária, dos órgãos de postura das Prefeituras, da própria Guarda Municipal, que possui poder de polícia apenas sobre os bens, serviços e instalações municipais (art. 144, § 8º).
[vii] Limites constitucionais da transformação de cargos públicos. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17794/limites-constitucionais-da-transformacao-de-cargos-publicos. Acesso em 09/09/2020.
Delegado de Polícia Civil, instrutor da Academia Integrada de Formação e Aperfeiçoamento do Amapá (AIFA), professor convidado da pós-graduação de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia do Amapá (ESA/AP), professor de cursos preparatórios para concursos públicos, administrador do site Justiça & Polícia (juspol.com.br), autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial pela editora Clube de Autores, coautor do livro Tratado Contemporâneo de Polícia Judiciária pela editora Umanos, autor de diversos artigos jurídicos sobre temas correlatos. Especialista em Política e Gestão em Segurança Pública pela Escola de Administração Pública do Amapá (EAP) em parceria com a Universidade Estácio de Sá.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOUSINHO, Paulo Reyner Camargo. Polícia Judicial do Poder Judiciário existe? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2020, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55297/polcia-judicial-do-poder-judicirio-existe. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
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