RESUMO: O abortamento se define pela interrupção de uma gravidez seja proposital ou não, sendo no Brasil uma temática controversa quando se trata da legalização do procedimento. Através de um levantamento bibliográfico e documental, com a identificação da legislação e da doutrina sobre a problemática, foi identificada a necessidade de conceituar e tipificar o aborto, assim como as bases legais que criminalizam e amparam o mesmo. Este trabalho teve como objetivo principal analisar a legalidade do aborto em caso de estupro no Brasil, sendo identificadas as peculiaridades dos casos legais de interrupção proposital de uma gestação, como os casos decorrentes de estupro, de risco de morte para a gestante e os que o feto é anencéfalo. Em consideração ao foco deste trabalho, foi observado que em caso de estupro, ainda que as leis brasileiras amparem a prática do abortamento, há uma série de questionamentos principalmente provenientes de grupos antagonistas da sociedade, os quais se dividem entre os a favor e contra, sendo necessária a intervenção legal para a prática do procedimento.
PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Aborto legal; Estupro; Brasil.
ABSTRACT: Abortion is defined by the interruption of a pregnancy, whether on purpose or not, and in Brazil it is a controversial issue when it comes to the legalization of the procedure. Through a bibliographic and documentary survey, with the identification of legislation and doctrine on the issue, the need to conceptualize and typify abortion was identified, as well as the legal bases that criminalize and support it. This work had as main objective to analyze the legality of abortion in case of rape in Brazil, being identified the peculiarities of the legal cases of deliberate interruption of a pregnancy, such as the cases resulting from rape, risk of death for the pregnant woman and those who fetus is anencephalic. In consideration of the focus of this work, it was observed that in the case of rape, even though Brazilian laws support the practice of abortion, there are a number of questions mainly from antagonistic groups in society, which are divided between those for and against, requiring legal intervention to practice the procedure.
KEYWORDS: Abortion; Legal abortion; Rape; Brazil.
A prática do aborto é uma das questões de grande debate na sociedade, sendo importante considerar diversos pontos nesta discussão, os quais abarcam desde questões religiosas até a garantia de direitos da mulher, principalmente quando a gravidez é proveniente de um caso de estupro.
As estimativas dos casos de aborto corroboram a necessidade de aprofundamento nesta discussão. De acordo com Diniz, Medeiros e Madeiro (2017), o número estimado de abortamentos realizados no mundo é de 35 para cada mil mulheres na faixa etária de 15 a 44 anos, sendo que na América Latina esta taxa se eleva para 44 a cada mil. Segundo a Organização Mundial de Saúde os dados oficiais referentes aos abortamentos realizados no Brasil não apresentam a consistência necessária para reconhecimento da situação real da problemática no país (CARDOSO; VIEIRA, 2020). Em 2016, a Pesquisa Nacional do Aborto apontou que cerca de 13% das entrevistadas já havia realizado um aborto ao longo da vida (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017).
O aborto no Brasil é considerado uma ação criminosa, com exceção dos casos respaldados na legislação, como aqueles resultantes de estupro, quando a gestante apresenta risco de morte e quando o feto é diagnosticado com anencefalia, não sendo aplicada qualquer punição para quem o praticar, tanto gestante quanto o responsável pelo procedimento (MENEZES et al., 2020).
O respaldo da realização de aborto em casos de estupro se configura como um dos cernes da discussão acerca do tema, uma vez que ao contrário dos outros casos, este não envolve diretamente um risco à saúde de à vida dos envolvidos, o que se apresenta como pauta de arguição sob diversos prismas, como o direito à vida do feto versus o direito garantido da gestante (MACHADO, 2017).
Considerando tais aspectos, a justificativa da realização deste trabalho se dá pela contribuição para a formação acadêmica e profissional de interessados na área jurídica, uma vez que se apresenta como fonte de pesquisa e aprimoramento em uma temática importante atualmente, com destaque principalmente pela relevância social das questões que envolvem o abortamento. Da mesma forma se revela crucial ao tratar da realidade das consequências conhecidas nos casos de estupro no Brasil, os quais vêm aumentando exponencialmente, sendo apresentadas como consequência uma gravidez indesejada, causando ainda mais sofrimento para a vítima, a qual em tese está amparada legalmente para a realização do procedimento.
Neste sentido, este estudo tem como objetivo principal analisar a legalidade do aborto em caso de estupro no Brasil. Para tanto são considerados como objetivos específicos identificar os aspectos conceituais e jurídicos do aborto, verificar o ordenamento jurídico brasileiro acerca do aborto legal, e apresentar a jurisprudência brasileira sobre o aborto legal.
O reconhecimento conceitual do aborto se configura nas bases estruturais para a discussão de qualquer aspecto relacionado ao tema. Segundo a Organização Mundial de Saúde (Domingues et al., 2020), o aborto de define como a interrupção de uma gestação até a vigésima segunda semana, com o peso do feto inferior à 500g, sendo configurado um abortamento. Ainda de acordo com a OMS, é possível considerar o aborto como a expulsão do feto no período anterior aquele em que o mesmo pudesse sobreviver à vida fora do útero (MENEZES et al., 2020).
Menezes et al. (2020) ao esclarecer a importância de conceituar o aborto, elucida que determinar o término de uma gestação, considerando tanto uma idade gestacional quanto à impossibilidade de vida pós uterina, há uma expansão do conceito de abortamento, sendo anterior ao estágio perinatal, em que se considera o período próximo ao nascimento.
Nota-se que as definições sobre o aborto se apresentam como aquelas necessárias para a identificar quais são as questões fundamentais a serem notadas na ocasião de diagnóstico dos casos em que se confirmem a gravidez e possam caracterizar o aborto como tal.
Também reconhecido como abortamento, são tipificados como aborto espontâneo e aborto induzido, se fazendo necessário a diferenciação de ambos em consideração aos objetivos deste trabalho.
Segundo Oliveira et al. (2020), o aborto espontâneo se apresenta como aquele em que a descontinuidade da gestação ocorre sem a intervenção da gestante ou de terceiros, sendo contra sua vontade. No mesmo sentido, Correia et al. (2018) complementam ainda ao afirmar que este tipo de abortamento é considerado comum quando se trata de sua frequência, apontando uma taxa de até 25% de ocorrência. Da mesma forma, Paixão et al. (2019) afirmam ainda que tem chances maiores de ocorrer de forma precoce nas 13 primeiras semanas de gestação, seguindo em taxas elevadas até as 22 semanas.
Ainda sobre o abortamento espontâneo, faz-se necessário o reconhecimento das causas mais comum associadas a estes acontecimentos. Segundo Oliveira et al. (2020), em geral este tipo de aborto acontece em decorrência de complicações gestacionais ligadas ao feto, o qual não apresenta características compatíveis com a vida ou não se encontra no processo devido de desenvolvimento, e assim naturalmente há uma expulsão do corpo da mulher. Igualmente, Curado et al. (2018) esclarecem que tais ocorrências estão associadas a alterações cromossômicas diversas, complicações uterinas, alterações hormonais como progesterona e outros ligados à tireóide, doenças virais contraídas durante a gravidez, doenças autoimunes e ao consumo de drogas.
É observado que o reconhecimento do aborto espontâneo como aquele em que foge da intenção da gestante se revela como a principal característica do mesmo, sendo uma resposta natural do corpo da mesma que resulta na expulsão do feto.
O abortamento induzido é aquele em que a expulsão do feto do útero da gestante se dá de forma voluntária, sendo realizada através de métodos de retirada do mesmo, seja com a estimulação de contrações uterinas ou ainda com a intervenção cirúrgica (OLIVEIRA et al., 2019). De acordo com Ferreira, Verona e Wong (2019), a utilização de medicamentos induz à expulsão do feto através da administração de substâncias abortivas, assim como a curetagem se caracteriza pela retirada do feto em um procedimento que necessita de anestesia e há uma aspiração do feto e demais estruturas no útero.
Diferente do que acontece com o abortamento espontâneo, é observado que o aborto induzido abarca todas as formas de aborto que possam ocorrer de forma proposital, independente das razões que culminaram nesta ação, sendo de fundamental importância que se identifiquem quais os procedimentos que ocasionam tais situações.
Da mesma forma que a tipificação do aborto, é imprescindível a classificação dos abortamentos. De acordo com Vargas et al. (2018), é possível a ameaça de aborto, abortamento completo, ou incompleto, aborto retido, infectado, e o eletivo.
Sobre a ameaça de aborto, Aguiar e Bodanese (2019) esclarecem se tratar da ocasião em que é observada a sobrevivência do feto, porém com ocorrência de sangramento e cólicas uterinas, as quais se iniciam em baixa intensidade, mas que podem aumentar. Segundo os autores, quando há ameaça de aborto, é recomendado que haja repouso absoluto da gestante, e caso os sintomas se intensifiquem a mesma deve buscar por ajuda médica.
O abortamento completo se caracteriza pela eliminação integral de todo o conteúdo uterino, com o feto e demais partes da gestação. Nestes casos não se faz necessária a intervenção médica, apenas a observação de possíveis complicações como infecções e maiores sangramentos. Já o aborto incompleto, pelo contrário, se caracteriza pela expulsão parcial do feto, e essa manutenção de parte do conteúdo no útero, é imprescindível que haja uma intervenção médica, com o procedimento de raspagem das paredes do útero e aspiração (SANCHES, 2017).
O aborto retido se conceitua pela perda de vida do embrião no útero sem qualquer sinal de abortamento, o que segundo Kroetz et al. (2016) determinam a remissão dos sintomas de gravidez na mulher, e se faz necessária a utilização de medicação e até intervenção cirúrgica para remoção fetal. Enquanto Curado et al. (2018) esclarecem que o aborto habitual ou recorrente se configura como aquele em que há uma recorrência de abortos espontâneos ou provocados de forma consecutiva, sendo que nos casos de abortamentos espontâneos se faça acompanhamento médico.
O aborto infectado pode ser caracterizado principalmente pela ocorrência de infecções em razão de abortamentos realizados de forma ilegal e sem obedecer os princípios de saúde e normas sanitárias , ocasionando em geral abortos incompletos e acometimentos por bactérias. Já o aborto eletivo se apresenta como aquele em o abortamento provocado devidamente previsto pelas bases legais, e que não se definem como ilegais (DOMINGUES et al., 2020).
A observância destas modalidades de abortamento se apresenta como imprescindível para a tipificação posterior de uma possível prática criminosa, uma vez que através das mesmas torna-se plausível identificar as características de cada caso e resultante em cada procedimento.
De posse dos aspectos conceituais do aborto, sua tipificação e as possibilidades de classificação dos abortamentos, faz-se mister o aprofundamento em questões de ordem legal acerca desta prática, a visão jurídica sobre o mesmo e as premissas relacionadas ao direito à vida.
Juridicamente, o aborto é reconhecido como a interrupção da gravidez com o intuito de morte do feto (MIGUEL; BIROLI; MARIANO, 2017), sendo identificada a preocupação de tratamento legal desde os primórdios da sociedade. De acordo com Santos (2019), a jurisdição brasileira, através da relação entre a Constituição Federal e do Código Penal, esclarece que o aborto se configura em um atentado ao direito fundamental à vida, com exceções de casos específicos que serão tratados à posteriormente.
O direito à vida se constitui, em conformidade com o artigo quinto da Carta Magna como um direito fundamental, os quais Neto (2016) definem como aqueles
[...] considerados indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual. Não basta ao Estado reconhecê-los formalmente; deve buscar concretizá-los, incorporá-los no dia-a-dia dos cidadãos e de seus agentes (p. 119).
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (AMARAL, 2016) o direito à vida se apresenta como um direito fundamental por se apresentar como uma forma de assegurar a existência e os direitos da pessoa humana, sem qualquer distinção, sendo ainda exemplificado para além da sobrevivência em si, mas também como acesso à saúde, alimentação, educação e outros aspectos que garantam a vida em todos os sentidos.
Segundo Piovesan (2017) a compreensão mais abrangente de que o direito à vida se une aos princípios da dignidade humana, possibilita entender que a discussão sobre à vida humana perpassa não somente pela vida que se encontra em formação, mas também com a vida da gestante.
De acordo com Ferreira (2019) discutir a intersecção entre aborto e direito à vida sob a visão jurídica se apresenta como um dos cernes do direito atual principalmente por se tratar do enfrentamento direto de direitos, como o direito à vida do nascituro, o direito à vida da gestante e os ordenamentos jurídicos vigentes no país que criminalizam o aborto em casos específicos.
Desta forma, o aprofundamento nos aspectos jurídicos do aborto e da sua relação com a discussão acerca do direito à vida aponta para a necessidade ainda maior de compreensão sobre as bases legais que fundamentam a prática do direito, sendo crucial sua aplicação na observância dos casos de abortamento e consideradas na avaliação de cada episódio.
Considerando o aborto como crime em território brasileiro, faz-se necessário contemplar o que versa o Código Penal (DELMANTO, 2017). Segundo tal legislatura, o aborto é tipificado e enquanto criem e tem suas penas descritas nos artigos 123 à 127, em conformidade com suas características, sendo
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos (BRASIL, 1940).
Sobre este artigo em específico, Bittencourt (2017) esclarece que este tipo de abortamento induzido em geral de justifica pela falta de programação de uma gestação, considerando diversos fatores, como idade da gestante, questões econômicas, problemas de relacionamento, ou simplesmente o não desejo em dar continuidade à gestação.
Outro tipo de aborto considerado crime no Brasil é apresentado como
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (BRASIL, 1940)
De acordo com Hanashiro (2020) quando provocado por terceiros, o abortamento ganha ares ainda mais complicadores uma vez que infere diretamente à cumplicidade na prática criminosa, sendo possível ainda a descriminação do fator conhecimento da gestante, o que não a imputa de qualquer responsabilidade, como pode ser visto nas penas aplicadas.
Um terceiro tipo de pena é estipulado no artigo 127 (BRASIL, 1940)
Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Neste sentido, nota-se que as determinações penais para o crime de aborto, anterior à especificação das penas em cada caso, tal legislatura versa acerca da caracterização das ocorrências de abortamento, sendo observado que o fator preponderante a autoria do ato, bem como a cumplicidade no mesmo, o que se apresenta inclusive como a possibilidade de qualificação do crime, caso esse resulte em lesão ou óbito da gestante.
Ainda que seja considerado um ato criminoso no Brasil, a legislação nacional abre três exceções que permitem a prática de abortos, o que assegura, em casos específicos, que haja uma interrupção da gravidez.
A busca pela garantia do aborto no Brasil é apresentada por Martins e Goulart (2016) como uma luta por direitos que data há bastante tempo, principalmente em consideração aos números de abortamentos realizados de forma clandestina e gerando uma série de problemáticas, como a mortalidade de mulheres, por exemplo.
Segundo Miguel, Biroli e Mariano (2017) a discussão sobre a legalização do aborto se configura diante diversos aspectos, sendo possível destacar prioritariamente a vida da gestante, do feto e à possibilidade de violência e agressão que resultasse nessa gravidez. Complementam ainda que esta discussão não se baseia na autonomia da mulher ou ainda considera dos direitos sexuais e reprodutivos da mesma.
Nota-se que a questão em torno do aborto legal no país se apresenta como uma discussão necessária em consideração primeiramente ao número de casos confirmados além daqueles que não são notificados. Da mesma forma justifica-se a intensificação do debate em virtude de casos específicos em que haja risco de vida ou seja resultante de estupro.
De acordo com Colli e Gomes (2018) as três exceções são possíveis quando se trata de aborto no Brasil são apresentadas no Código Penal (BRASIL, 1940) e na ADPF 54/DF (AURÉLIO, 2012), sendo respectivamente os casos de risco à vida da gestante e casos resultantes de estupro, e mais recentemente nos casos de diagnóstico médico de anencefalia.
É observado que a relevância da temática se confirma ao ser tratada na legislação brasileira na lei mais importante do país nos casos de estupro e risco à vida da gestante, sendo ainda percebido uma atualização do verso da lei quando se trata de má formação do cérebro do feto.
A especificação de abortamentos legais no Brasil se dá inicialmente pelo detalhamento nas leis específicas, como o Código Penal (BRASIL, 1940) e a ADPF 54 / DF (AURÉLIO, 2012), conforme
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
É notado o artigo 128 do Código Penal versa que não deve ser considerado crime o abortamento realizado por um médico quando se trata de salvar a vida da mulher uma vez que esta se encontra em risco em razão da gravidez, da mesma forma que não apresenta punição para os abortos ocasionados em virtude de uma gestação resultante de estupro, sendo ainda necessário o consentimento da grávida ou de seu representante legal.
Segundo Costa (2017) quando se fala de aborto para resguardo da vida da gestante se caracteriza como um abortamento terapêutico ou necessário, uma vez que se apresenta como uma condição imprescindível para garantir a saúde desta mulher, pois esta gestação se apresenta como de risco.
Ferreira (2019) complementa ainda que nos casos de abortamento permitido legalmente em decorrência de risco à vida da gestante deve ser amparado por diagnóstico médico, o que aponta novamente a necessidade de intervenção externa à vontade da mulher, e ainda necessitando do atestado médico para a realização do procedimento.
Observa-se neste primeiro caso não criminalizado dos abortamentos no Brasil que há uma preocupação com a vida da gestante, sendo inclusive considerado como terapêutico, uma vez que a mulher se encontra em risco pois a gravidez se apresenta como um risco à continuidade de sua vida. Porém é importante a ressalva acerca da obrigatoriedade de apresentação de comprovante médico dos riscos eminentes da gestação para a vida da grávida, o que pode ser um fator complicador em virtude desta necessidade, uma vez que o avançar da gestação pode ocorrer.
No que tange aos casos de legalidade do aborto relacionado à casos de estupro, Reis e Freitas (2018) elucidam que ao ser constatada uma gravidez proveniente de uma violência sexual, o que se apresenta como um avanço nas questões de respeito à mulher grávida. No mesmo sentido, Romagnoli (2019) esclarece que mesmo sendo legalizado, ainda há alguns critérios para que o mesmo ocorra, uma vez que mesmo sem a necessidade de comprovação de estupro, há implicação de que em caso de incapazes, o consentimento se faz mediante consentimento à representante legal.
É notado nestes casos que, na ocorrência de uma gravidez que tenha resultado de violência sexual a criminalização não se aplica, o que é defendido em razão do resguardo da vontade da mulher e em respeito as consequências deste ato original, porém também é notado que mais uma vez se faz necessária a certificação do representante legal em casos de menores de 18 anos.
O inciso segundo do artigo 128 do Código Penal (BRASIL, 1940) esclarece as bases legais da legalidade da prática do abortamento em casos de uma gravidez decorrente de estupro, o que se apresenta como uma questão relevante a ser debatida em sociedade.
Ainda que a legislação seja clara em relação à liberação acerca do aborto em caso de estupro, é notado um cerne de discussão, com paradigmas de concordância e discordância acerca desta possibilidade, debatendo o direito à vida do feto ou o respeito à condição de violentada da mulher vítima de estupro.
Ferreira et al. (2019) alegam que o aborto em caso de estupro se configura como um atentado à vida. De acordo com a autora a premissa de que este tipo de prática fere o direito à vida e a existência, o qual é garantido por lei. Na mesma seara, Amaral e Cordeiro (2018) elucidam ainda que as bases religiosas no país são categóricas ao discursar contra esse direito já instituído, ignorando a violência sofrida pela vítima que se encontra gestante, mas declara que uma vida não anula a outra, e que existem outras formas de superar a problemática, como a adoção, por exemplo.
Nota-se que a discussão sobre o aborto em caso de estupro se divide em grupos a favor e outros contra, sendo estes últimos defensores do direito à vida do feto, uma vez que o mesmo já deve ser considerado como ser humano, uma vez que apresentam como maneiras de contornar a questão, como a entrega à adoção.
No que tange à defesa da segurança deste direito Madeiro e Diniz (2016) afirma que é salutar a investidura legal na manutenção deste direito, uma vez que a agressão sofrida pela vítima em si já justifica sua prática, considerando principalmente o não desejo da gestante na concepção do feto. Segundo Melo (2019) ainda é possível citar a problemática da necessidade de comprovação de que a gravidez é decorrente de um estupro para que seja executado o procedimento, o que se configura como uma revitimização da mulher estuprada.
Em contrapartida aos que se apresentam contra o abortamento nestes casos, é notado que são priorizados o desejo da vítima e principalmente é considerada a agressão que a mesma sofre, sendo a gravidez ocasionada sem o consentimento da mulher e por consequência sem sua vontade.
Neste sentido, com a discussão acirrada acerca da legalização do abortamento em decorrência de estupro é importante identificação de decisões legais já tomadas pelo poder judiciário brasileiro.
O entendimento acerca da legalidade do abortamento por estupro no Brasil perpassa por inúmeros prismas, dentre os quais se destaca a relevância da análise de casos em que a sentença se fez necessária diante estes casos. A jurisdição brasileira em relação ao aborto decorrente de um estupro não se mostra extensa, sendo possível identificar poucos casos que mostrem decisões nestes casos.
A fim de interpretar um caso considerando os objetivos desse estudo, apresenta-se uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com o resultado da Apelação Cível nº 2008.001.63081, com o posicionamento de que o abortamento deve se basear no livre-arbítrio e na autonomia da vontade da gestante, pois são preenchidos os critérios estabelecidos em lei, sendo a mesma.
APELAÇÃO CÍVEL. APLICAÇÃO DE MEDIDA PROTETIVA PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM FAVOR DE MENOR VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL. GRAVIDEZ RECENTE DECORRENTE DE 13 ESTUPRO. SENTENÇA QUE JULGOU IMPROCEDENTE O PEDIDO. INCONFORMISMO DO PARQUET. ABORTO SENTIMENTAL OU HUMANITÁRIO. PREVISÃO LEGAL EXPRESSA. FIGURA TÍPICA PERMISSIVA. FATO IMPUNÍVEL E LICÍTO. AUTORIZAÇÃO QUE ENCONTRA ESTEIO NA LEI E NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
1. O princípio de proteção à vida, embora quase absoluto, comporta exceções quando em confronto interno, com si próprio, ou seja, quando uma vida humana é posta seriamente em risco por outra vida humana. 2. Por isso, na hipótese de aborto, diante da excepcionalidade de algumas situações, o legislador conferiu maior proteção à vida da mãe, em detrimento da vida do embrião ou feto. 3. De um lado o inciso I do art. 128 do Código Penal cuidou do chamado "aborto necessário", também conhecido como terapêutico, quando constitui o único meio de salvar a vida da gestante, e do outro, o inciso II do mesmo dispositivo legal cuidou do "aborto humanitário", quando a gravidez é resultante de estupro e mediante consentimento da gestante ou seu representante legal, sendo esta a hipótese dos autos. 4. Não poderia o legislador ignorar os fatos da vida e impor monstruosa carga vitalícia de sentimentos negativos à vítima da brutalidade sexual. 5. Na própria Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal o legislador ressalvou em favor da referida exceção razões de ordem social e também individual. 6. Não há qualquer conflito entre o comando legal que autoriza excepcionalmente o abordo e a Constituição Federal, já que a Carta Magna não protege a teratologia representada pelas consequências do estupro de uma criança, ao mesmo tempo em que consagra a preservação da dignidade da pessoa humana. 7. A hipótese de incidência do fato típico permissivo contemplado na lei penal encontra integral aplicação à hipótese dos autos, em que uma menina que 12 anos foi vítima de violência sexual que gerou gravidez, não tem condições de reconhecer o agressor, não encontra forças, pela ausência de maturidade, para lidar com o drama da situação e conta com a autorização do representante legal para o aborto humanitário. 8. A exemplo do legislador, não pode o julgador se apegar à estética jurídica e ignorar os fatos da vida e com isso, olvidando o permissivo legal, condenar ao sofrimento perpétuo uma criança e seu núcleo familiar. 9. Provimento do recurso. (RIO DE JANEIRO, 2008).
A análise da decisão acima exposta aponta para a importância de considerar a vítima como principal prejudicada de todo o processo, não sendo justo e cabível que a mesma tenha que carregar a responsabilidade de uma gravidez indesejada e que resultou de uma agressão sexual sofrida, o que por si deve ser considerado como um resguardo do direito à vida da mesma.
Quando se trata do abortamento em decorrência de uma gravidez ocasionada por uma violência sexual, a legislação não é clara em relação à comprovação das causas dessa gravidez através de um documento policial ou atestado médico, sendo crucial considerar a jurisprudência acerca do assunto, conforme
Aliás, o Superior Tribunal de Justiça guarda o entendimento quanto ao valor probatório da palavra da vítima: AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. ESTUPRO. PALAVRA DA VÍTIMA. VALOR PROBANTE. ACÓRDÃO A QUO EM CONSONÂNCIA COMA JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULAS7 E 83/STJ. 1. A ausência de laudo pericial conclusivo não afasta a caracterização de estupro, porquanto a palavra da vítima tem validade probante, em particular nessa forma clandestina de delito, por meio do qual não se verificam, com facilidade, testemunhas ou vestígios. (BRASÍLIA, STJ-DF, 2012).
Assim, é notado que para a realização da interrupção da gravidez decorrente de violência sexual, não há dependência de uma autorização legal para tal, sendo considerada prioritariamente a palavra da vítima, o que torna-se imprescindível quando se trata dos cuidados necessários para a prática do aborto dentro dos prazos possíveis e seguros.
A temática do abortamento legal Brasil ainda se configura como uma questão a ser discutida em diversos aspectos, principalmente quando se trata dos casos em que a gestação se deu em virtude de uma violência sexual, o já é determinado pela legislação brasileira, mas ainda se apresenta como uma questão controversa.
Através da referida pesquisa identificou-se as bases conceituais e a tipificação do abortamento, sendo observadas inúmeras possibilidades de prática de interrupção de gravidez, o que se apresenta determinante para a análise das questões legais, principalmente quando se trata da legalidade do procedimento já estabelecida no país.
Igualmente às definições de aborto, com o levantamento das bases legais acerca dos casos de abortamento no país foi possível identificar as explicações legais e conceituais do aborto, o que possibilitou tanto o reconhecimento histórico da questão e quais são as leis que versam sobre a questão, determinando assim que os abortos em caso de estupro, os que comprovadamente são de fetos anencéfalos e com risco de vida à gestante.
No que tange aos objetivos deste estudo foi observado que os casos de aborto, ainda que estejam previsto em lei, sem a criminalização do procedimento, e sem a punição do médico, da gestante e dos envolvidos, se apresenta como uma questão controversa, pois grupos distintos compreendem o tema de formas diferentes, sendo de suma relevância que haja a análise e a intervenção de cortes superiores para tal.
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Graduando(a) do Curso de Direito do Centro Universitário CEUNI-FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, Patrícia Gabriela Assayag. O aborto legal em caso de estupro no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 out 2020, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55319/o-aborto-legal-em-caso-de-estupro-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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