THAYZ DE OLIVEIRA NASCIMENTO[1]
(coautora)
RESUMO: O presente artigo apresenta, para reflexão, a questão: a relativização do direito à inviolabilidade de domicílio em face dos crimes permanentes é legal? Isso porque, apesar de recorrente, referido questionamento ainda é objeto de constantes debates dentro do ordenamento jurídico brasileiro (doutrina e jurisprudência), pois emerge do princípio constitucional da inviolabilidade domiciliar, uma das garantias constitucionais do cidadão — ter a sua casa como seu abrigo inviolável, a qual não poderia ser invadida sob o pretexto do cumprimento da lei, salvo exceções constitucionalmente elencadas. Diante desse cenário, pretende-se realizar uma breve análise da evolução do direito constitucional, em especial, dos dispositivos que tratam da inviolabilidade do domicílio, bem como dos conceitos de domicílio, invasão e crime permanente, apresentando um debate sobre a legalidade ou ilegalidade da invasão de domicílio nos crimes permanentes, sob à luz das normas vigentes e jurisprudências. Busca-se, para além de uma melhor compreensão sobre a legalidade ou ilegalidade da invasão do domicílio nos crimes permanentes, respaldada em ações legalmente instituídas, afastar falsas noções de inviolabilidade domiciliar absoluta, demonstrando, assim, como se dá o fenômeno da relativização do direito em face dos crimes permanentes.
Palavras-chave: Inviolabilidade de domicílio; Privatividade; Garantias fundamentais; Crime permanente; Relativização.
ABSTRACT: This article presents the question to reflect: is the relativization of the right to inviolability of the home in the face of permanent crimes legal? This is because, although recurrent, this questioning is still the subject of constant debates within the Brazilian legal system (doctrine and jurisprudence), as it emerges from the constitutional principle of home inviolability, one of the constitutional guarantees of the citizen - having his home as his inviolable shelter, which could not be invaded under the pretext of compliance with the law, except for constitutionally listed exceptions. In view of this scenario, it is intended to carry out a brief analysis of the evolution of constitutional law, in particular of the devices that deal with the inviolability of the home, as well as the concepts of home, invasion and permanent crime, presenting a debate on the legality or illegality home invasion in permanent crimes, in the light of current rules and jurisprudence. It seeks, in addition to a better understanding of the legality or illegality of home invasion in permanent crimes, supported by legally instituted actions, to remove false notions of absolute home inviolability, thus demonstrating how the phenomenon of relativization of the law occurs in the face of permanent crimes.
Keywords: Home inviolability; Privativity; Fundamental guarantees; Permanent crime; Relativization.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E A EVOLUÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO. 3. A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO 4. A RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO À INVIOLABILIDADE E OS CRIMES PERMANENTES 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A inviolabilidade domiciliar é um direito fundamental previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, contudo, o próprio dispositivo que aborda essa proteção também traz a relativização do direito nos casos de flagrante delito, de desastre, para prestar socorro ou, ainda, durante o dia, mediante autorização judicial.
Sucede-se que, no que tange ao flagrante delito, quanto ao agente público, que é revestido de seu poder de polícia, embora tenha o dever legal de agir e o respaldo de violar o domicílio de qualquer cidadão para apurar possíveis condutas e atos criminosos quando há elementos objetivos que justifiquem tal excepcionalidade, em diversas situações fáticas, têm-se demonstrado o abuso de poder e de autoridade desses agentes ao violarem o domicílio de cidadãos sem mandado judicial.
Em se tratando de crimes permanentes, a necessidade de um mandado judicial que permita a violação do domicílio é patente, visto que as circunstâncias indicativas de um crime anterior ao flagrante delito são mais difíceis de serem adquiridas, porém, com frequência, agentes estatais, motivados por seu próprio estado de ânimo, acabam transgredindo a regra e produzindo provas ilícitas.
Noutro giro, diante de certas circunstâncias, as ações e as provas obtidas pelo agente policial no domicílio do infrator, aparentemente ilegais, muitas vezes acabam passando pelo crivo do Poder Judiciário para serem convalidadas ou não, de forma a se evitar possível absolvição do condenado e revisão criminal do processo judicial. Há, ainda, situações em que ocorre o fracasso do flagrante delito, deixando vulnerável o indivíduo que teve seu direito à proteção do domicílio relativizado.
Diante do exposto, indaga-se qual o liame entre a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar e o estrito cumprimento do dever legal do agente estatal diante de um possível crime permanente? Há consequências jurídicas e legais à sociedade e aos agentes públicos quando violado esse direito fundamental? E quais são as possibilidades de o Poder Judiciário convalidar as provas obtidas? Outro destaque importante desta pesquisa refere-se ao termo ‘vulnerabilidade’, que substituiu a redação anterior da norma, que discorria sobre ‘presunção de violência’. Com isso, diante da mudança do tipo penal, da categoria de punição, para uma tipificação penal própria, justifica-se a relevância de ampliar e fomentar o debate sobre o tema ainda circundado de lacunas e entendimentos diversos no ordenamento jurídico nacional.
A metodologia escolhida para a referida abordagem foi a de caráter exploratória e descritiva, a partir da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, que permite, por meio de uma revisão literária em artigos, periódicos e livros, analisar um amplo número de informações, decisões e concepções teóricas para se alcançar uma resposta à problemática apresentada, pautada na realidade e normativas vigentes. Referida metodologia permite um aporte teórico advindo da síntese do conhecimento já produzido em pesquisas científicas por outros estudiosos da área e autores referenciados dentro ordenamento jurídico brasileiro, facilitando, dessa forma, a utilização do saber já produzido e permitindo, a partir da sua aplicação, melhorias e ampliação das discussões e entendimentos nos meios acadêmicos, jurídicos e sociais (MENDES et al., 2008).
A opção pela revisão de literatura, conforme ensinam Flogiato e Silveira (2017), deve fazer parte do cotidiano de todos os acadêmicos e cientistas, uma vez que se trata de uma das atividades que melhor promovem o processo de ensino e aprendizado e, consequentemente, a ampliação e aquisição de novos saberes. Destaca-se, ainda, que a revisão de literatura, de cunho qualitativo, como forma de aporte para a compreensão da temática, encontra sustentação nos ensinamentos de Fonseca (2002):
A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto. (FONSECA, 2002, p. 31).
Assim, a realização da pesquisa bibliográfica permitiu reunir um número significativo de conceitos e informações sobre o tema apresentado, obedecendo ao seguinte caminho: levantamento e apresentação de um breve esboço histórico da evolução do direito brasileiro, em especial, das garantias constitucionais e do domicílio; verificação dos dispositivos constitucionais que se correlacionam e garantem a inviolabilidade de domicílio, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana e à privatividade; seção especial com destaque para a legislação sobre crimes permanentes; revisão da jurisprudência que trata do tema em discussão, verificando as correntes sobre relativização do direito à inviolabilidade do domicílio em razão dos crimes permanentes e, por último, apresentação de uma reflexão crítica que buscou responder à questão-problema: qual é o liame entre a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar e o estrito cumprimento do dever legal do agente estatal diante de um possível crime permanente? .
2. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E A EVOLUÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO
Entender a evolução constitucional brasileira até alcançar a Constituição Federal de 1988 e os direitos fundamentais nela inseridos se mostra essencial para a compreensão da temática quanto à inviolabilidade do domicílio, uma vez que tal prerrogativa encontra-se contida na Constituição Federal de 1988. Para além disso, também se faz necessária a compreensão quanto à construção das concepções de domicílio e da relativização do direito à inviolabilidade domiciliar.
A partir de um levantamento nos registros históricos, verifica-se a seguinte evolução no que se refere à garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar:[2]
· Constituição Política do Império do Brasil de 1824: estabelecia, em seu artigo 179, inciso VII, que: “Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o defender de incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar;” (BRASIL, 1824).
· Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891: estabelecia, em seu artigo 72, parágrafo 11: “A casa é o asylo inviolavel do individuo; ninguem póde ahi penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a victimas de crimes, ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela fórma prescriptos na lei.” (BRASIL, 1891).
· Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934: estabelecia, em seu artigo 113, item 16, que: “A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei.” (BRASIL, 1934).
· Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937: apesar de ter inserido em seu bojo o dispositivo que garantia “a inviolabilidade do domicílio e de correspondência, salvas as exceções expressas em lei” (art. 122, item 6° – Dos Direitos e Garantias Individuais), em 1942, por força do Decreto n.º 10.358, que declarou o estado de guerra em todo o território nacional, referido direito foi suspenso. (BRASIL, 1937, 1942). .
· Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946: estabelecia, em seu artigo 141, § 15, que: “A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Ninguém, poderá nela penetrar à noite, sem consentimento do morador, a não ser para acudir a vítimas de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e pela forma que a lei estabelecer.” No entanto, em virtude do estado de sítio decretado no país, por 30 dias, em novembro de 1955, pela Lei n.° 2.654, e estendido pela Lei n.° 2.682/1955, por período indeterminado, referida garantia foi suspensa. (BRASIL, 1946, 1955).
· Constituição do Brasil de 1967: estabelecia, em seu artigo 150, § 10, que: “A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer.” (BRASIL, 1967).
· Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88): movimentou o seu capítulo dos direitos e garantias fundamentais para o início da norma, integrando-os como cláusulas pétreas[3]. Nesse sentido, a maioria dos dispositivos encontra-se elencada no artigo 5º, com pertinência à inviolabilidade, estabelecido no item XI: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.” (BRASIL, 1988).
Referida evolução merece especial destaque quanto à fixação dos direitos e garantias fundamentais, que, de acordo com Novelino (2012), representa um dos objetivos precípuos da Carta Magna vigente. E, se cada constituição reflete o momento sócio-histórico vivenciado pela sociedade da época, pode-se afirmar que a CF/88 teve o seu caráter social potencializado, uma vez que suas premissas estão voltadas ao cidadão e às necessidades sociais. Lima aponta como uma das suas conclusões no trabalho sobre A evolução constitucional brasileira (2016):
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 difere de todas as demais Constituições existentes no Brasil, em razão de sua índole humanitária, isto é, atinente ao coletivo, ao global. Por isso mesmo, é classificada quanto aos direitos fundamentais, na terceira geração, por atentar ao princípio de solidariedade e aos direitos humanos. Como Estado democrático de direito tem como fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. (LIMA, 2016, s.p.).[4]
Diante desse cenário, verifica-se que os direitos adquiridos pelo indivíduo decorrem de uma construção histórica que culminou nas garantias previstas na Constituição de 1988, também identificada como Constituição Cidadã, uma vez que possui, em seu bojo, um caráter social.
3. A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO
Conforme apontado no tópico anterior, a inviolabilidade do domicílio encontra-se prevista na Constituição Federal de 1988, que não só garante sua proteção constitucional, mas a insere como uma de suas cláusulas maiores. Diante desse contexto, observa-se o tratamento constitucional sobre o tema, justificando a importância de se ampliar os debates e estudos sobre a invasão de domicílio, no sentido de verificar o aspecto quanto à legalidade ou ilegalidade da invasão e os eventuais causadores da relativização do direito à inviolabilidade do domicílio em face dos crimes permanentes, objeto principal deste estudo.
Tal premissa decorre da compreensão de que a inviolabilidade do domicílio não se trata de um direito absoluto, visto que o próprio ordenamento jurídico já trouxe, em seu rol, situações nas quais se permite e, até mesmo, exige a violação do domicílio, que variam de flagrante delito, desastre, prestação de socorro ou determinação judicial (BRASIL, 1988).
Importante, ainda, para melhor compreensão do tema, é entender o que se configura como casa — domicílio — perante a Constituição. De acordo com Silva (2013), o texto constitucional não só apresenta o termo “casa” para dispor sobre a garantia de inviolabilidade como amplia tal concepção, ao trazer imbuído em seu sentido:
[...] o direito do indivíduo ao aconchego do lar com sua família ou só, quando define a casa como o asilo inviolável do indivíduo. Aí o domicílio, com sua carga de valores sagrados que lhe dava a religiosidade romana. Aí também o direito fundamental da privacidade, da intimidade, a vida privada[...]. (SILVA, 2013, p. 439).
Coaduna-se com o pensamento de Silva (2013), uma vez que se entende o direito à inviolabilidade como uma das mais antigas e importantes garantias individuais instituídas dentro da sociedade, tendo em vista que, para além da proteção ao domicílio, versa sobre a tutela da intimidade, da vida privada e da honra, bem como da proteção individual e familiar, do sossego e da tranquilidade.
Outro aspecto importante quanto ao termo “casa” a ser observado, de acordo com Bertolo (2003), refere-se à conceituação apresentada ao termo pelo Código Penal (CP) brasileiro, datado de 1940, que assim dispôs:
Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: (...) § 4º - A expressão "casa" compreende: I - qualquer compartimento habitado; II - aposento ocupado de habitação coletiva; III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. (BRASIL, 1940).
Nesse sentido, o jurista indica que o alargamento da conceituação de casa expressa no CP encontrou perfeita harmonia com a guarida dada pela Constituição de 1988, no “âmbito da liberdade individual e da privacidade pessoal”, e que tem encontrado, ainda, respaldo na jurisprudência. (BERTOLO, 2003, p. 73). De acordo com o autor, vários são os julgados do Supremo Tribunal Federal que reconhecem a extensão da garantia constitucional à inviolabilidade domiciliar, não só ao espaço de habitação, mas também ao utilizado para fins de atividade profissional (RT 214/409, RT 277/576, RT 467/385, RT 635/341).
Fernandes (2011), ao tratar do assunto, entende que:
Por domicílio, entende-se o espaço físico no qual o indivíduo goza de sua privacidade, nas suas mais variadas modalidades. É portando, criticável o termo utilizado pelo constituinte, por isso ele deve ser interpretado (de forma ampliativa à luz do conceito jurídico de casa) como qualquer compartimento habitado, até mesmo um aposento que não seja aberto ao público, utilizado para moradia, profissão ou atividade, nos termos do art. 150 § 4º do Código Penal. Com isso, temos que os consultórios, escritórios ou mesmo, os estabelecimentos comerciais ou industriais de acesso restrito ao público (locais nos quais as pessoas exercem atividade de índole profissional com exclusão de terceiros) devem ser enquadrados no conceito de domicílio previsto na Constituição. (FERNANDES, 2011, p. 323).
Diante dessa perspectiva, tem-se que a tutela constitucional, para além dos limites estatais, objetiva (res)guardar a tranquilidade e o sossego do cidadão quando este se encontra em seu domicílio — sua casa —, não devendo, portanto, ser perturbado, ou seja, tanto o Estado quanto o particular devem respeitar o espaço constitucionalmente tutelado.
4. A RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO À INVIOLABILIDADE E OS CRIMES PERMANENTES
Uma vez que não há que se falar em direito absoluto, entendimento que também se aplica ao direito de inviolabilidade do domicílio, em face das exceções presentes na Carta Magna, relevante se faz verificar o que essa relativização causa ao direito fundamental no que se refere à legalidade ou ilegalidade. Para Bertolo (2003, p. 133), “se os direitos fundamentais não podem servir de escudo aos autores de atos ilícitos, é porque, em algumas vezes, o interesse da sociedade é maior do que o individual, e sendo assim podem ser violados”, de forma que não se faz admissível a utilização de um direito fundamental — no caso o da inviolabilidade de domicílio —, para a prática de atos ilícitos, buscando escusar-se à lei.
Assim, a CF/88, da mesma forma com que garantiu o direito à inviolabilidade do domicílio, também apresentou as ressalvas em que se admite tal prática, de modo que: 1) a qualquer hora do dia, a inviolabilidade se mostra possível, independentemente de mandado judicial, nas seguintes hipóteses: a) com o consentimento do morador, b) flagrante delito, c) em casos de desastre, como incêndio, inundação etc. e d) para prestar socorro; 2) fora dessas hipóteses, só será possível o ingresso de uma pessoa, durante o dia, com apresentação de mandado judicial. Aqui, cumpre registrar que o direito à inviolabilidade do domicílio, além dos preceitos constitucionais, também é regulamentado pela legislação infraconstitucional penal e processual penal.
Diante desse cenário, verifica-se, nas normativas vigentes, que a entrada na “casa” para interromper flagrante delito não demanda ordem judicial e pode ser feita durante o dia ou à noite (AMARAL, 2017), conforme se abstrai das causas especiais de exclusão da ilicitude com relação aos delitos de violação de domicílio (artigo 150 do CP), por imposição da própria Constituição Federal (artigo 5º, XI da CF). A entrada no domicílio também pode ocorrer diante de uma das hipóteses de flagrância elencadas no artigo 302 do CPP, de forma que qualquer infração penal que esteja sendo praticada dentro da casa possa ser interrompida, ainda que se trate de contravenção penal.
Assim, adentra-se no debate a questão relativa ao flagrante de crime permanente, tipologia que se refere ao crime cuja consumação se prolonga no tempo, como é o caso do tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo etc. Para tanto, admite-se que, enquanto não cessar a permanência, será permitida a prisão em flagrante (artigo 303 do CPP), mesmo que dentro da casa do indivíduo. A questão em si não traz dúvidas aos exercitores do direito, no que se refere ao ingresso na casa em situação de flagrante, mas, sim, nos casos de crime permanente, encontra dúvida quanto ao grau de certeza de que o crime está ocorrendo naquele momento.
Sobre o tema, apresenta-se o apontamento feito por SARLET (2015), ao comentar sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, amplamente divulgada e que gerou posicionamentos diversos, quando afirmou que:
[...] o STF, em sede de repercussão geral, definiu que o ingresso forçado em domicílios sem mandado judicial apenas se revela legítimo, em qualquer período do dia (inclusive durante a noite) quando tiver suporte em razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto e que indiquem que no interior da residência esteja a ocorrer situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade peal, cível e disciplinar do agente ou da autoridade, ademais da nulidade dos atos praticados, decisão proferida por maioria, vencido apenas o Ministro Marco Aurélio. (SARLET, 2015, s.p.).
Referida ação versou sobre a interpretação dada à norma vigente da CF/88, artigo 5º, XI, de que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”, no caso da aplicação concreta na hipótese do ingresso forçado em domicílio, sem prévia autorização judicial (SARLETE, 2015).
De acordo com o autor, a decisão em questão (do STF) afastou a ilicitude do ingresso forçado na esfera domiciliar, uma vez que se configurava caso de tráfico de drogas, ou seja, de crime permanente, de forma que a entrada de policiais no interior do imóvel, sem a devida autorização prévia, estaria juridicamente justificada, posto que seria evidenciado o estado de flagrância (SARLET, 2015).
Nesse sentido, coaduna-se com o pensamento do estudioso quanto ao julgado do STF, visto que o crime de tráfico de drogas (hipótese comentada) se refere a um crime permanente, e, dessa forma, a prisão em flagrante pode ocorrer, em qualquer horário, independentemente de mandado ou determinação judicial. No entanto, referida prática não pode ser ancorada em mera suspeita, devendo, para tanto, contar com dados concretos que indiquem a prática do crime permanente.
Será em decorrência da análise das causas motivadoras do flagrante delito em face de crimes permanentes que as discussões sobre a relativização da inviolabilidade do domicílio ganham questionamentos sobre a sua legalidade ou ilegalidade. Assim, a importância deverá recair não sobre uma eventual atitude suspeita do indivíduo, mas, nos termos do artigo 240, § 2 do Código Penal, em uma “fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados” (BRASIL, 1940, grifo nosso), para que a relativização do direito fundamental da CF/88, art. 5º, inciso XI, possa ser entendida como legal.
Diante do exemplo da decisão do STF e do tema abordado, verifica-se que a questão da inviolabilidade domiciliar se refere a um assunto que tem enfrentado relativização e variedade da interpretação, apresentando, dessa forma, questionamentos quanto aos limites legais para tal flexibilização.
5. CONSIDERAÇÕES
O tema da inviolabilidade domiciliar se mostra importante, seja por se tratar de um direito fundamental do indivíduo, disseminado e enraizado mundialmente, seja por integrar uma das cláusulas pétreas estabelecidas pela Carta Magna em âmbito nacional. Destaca-se, ainda, que a temática possui vínculo com outros princípios fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, que permite a interpretação dos direitos e garantias fundamentais presentes no nosso ordenamento jurídico, a partir do qual se permite interpretar com efetividade os demais direitos inseridos na Constituição, evidenciando a necessidade do debate sobre o tema de forma a aclarar as possibilidades de interpretação sobre a violação do domicílio.
Por se tratar de um tema de ampla abrangência — o direito à inviolabilidade do domicílio —, verificou-se que o mesmo dispositivo que o protege também impõe limites, uma vez que não se trata de um direito absoluto, apresentando, por conseguinte, exceções em suas regras. Mediante isso, foi possível levantar que, nos casos da relativização da inviolabilidade domiciliar, muitas questões surgem sobre sua legalidade ou ilegalidade, em especial, quando da ocorrência de crimes permanentes e da prática do flagrante delito.
Em que pese a necessidade de se tratar com prudência as análises das decisões a respeito da prática da inviolabilidade nesses casos, a grosso modo, existe respaldo legal nos casos em que representantes do Estado ingressam em domicílios para a prisão em flagrante delito, em crimes reconhecidamente permanentes, mesmo que em menor potencial ofensivo ou ainda em contravenções penais, se a suspeita que leva à violação for fundada em dados concretos.
Assim, conclui-se que a inviolabilidade do domicílio, inserida desde a primeira Constituição (1824) e garantida pela atual Constituição Cidadã, possui caráter fundamental e, dessa forma, não pode ser afrontada, salvo por um bem jurídico fundamental que vise à manutenção da ordem e da pacificação social. O que se infere, pois, é a necessidade de se analisar caso a caso, em conjunto com as demais normativas vigentes, buscando dirimir as dúvidas que se levantam quanto à sua legalidade e relativização.
Portanto, no tocante aos casos permissivos, que excluem a ilicitude da violação domiciliar, esses devem estar imbuídos de razões que façam da invasão domiciliar uma prática pertinente, respaldada nos preceitos constitucionais, em especial, no disposto no artigo 5º, inciso XI (BRASIL, 1988).
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 2 mar. 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 10 mar. 2020.
BRASIL. Lei n.° 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 22 mar. 2020.
BRASIL. Lei n.° 8.072, de 25 de julho de 1990. Lei dos Crimes Hediondos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm. Acesso em: 22 mar. 2020.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n.° 253, de 2004. Justificação. Diário Oficial da União de 14 de setembro de 2004. Brasília: Senado Federal, 2004. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3638945&ts=1571776545951& disposition=online. Acesso em: 22 mar. 2020.
BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Brasília: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm. Acesso em: 2 mar. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Súmula nº 593. Crime de estupro de vulnerável. DJe: Brasília, DF, ano 2017, 6 nov. 2017. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2017_46_capSumulas593-600.pdf. Acesso em: 23 mar. 2020.
BRASIL. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Brasília: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13718.htm. Acesso em: 22 mar. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 101.456, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 9-3-2010, Segunda Turma, DJE de 30-4-2010. Disponível em: http://www.criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/crimescontraadignidadesexual.pdf. Acesso em: 15 mar. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 102.473, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 12-4-2011, Segunda Turma, DJE de 2-5-2011. Disponível em: http://www.criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/crimescontraadignidadesexual.pdf. Acesso em: 15 mar. 2020.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 3, parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual a dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359-H). 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 736p.
COUTO, Cleber. Estupro de vulnerável menor de 14 anos: presunção absoluta ou relativa? Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4411, [n.p.], 30 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41151. Acesso em: 10 mar. 2020.
FILÓ, Mauro da Cunha Savino. O desafio da hermenêutica jurídica diante do crime de estupro de menor vulnerável. Dissertação (Mestre em Direito). 2012. 106f. Universidade Presidente Antônio Carlos. Faculdade de Direito. Juiz de Fora, Minas Gerais. Disponível em: https://www.unipac.br/site/bb/teses/dir5.pdf. Acesso em: 02 mar. 2020.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 10. ed. Niterói–RJ: Impetus, 2013. 769p.
GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 11. ed. Niterói–RJ: Impetus, 2017. 1312p.
HOUAISS, ANTONIO. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetivo Ltda., 2001 [verbete vulnerável].
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, arts. 213 a 359-H. – 4. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. 1132p.
NUCCI, G. De S. Manual de direito penal: parte geral, parte especial. 6. ed., rev., atual. E ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 574p.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: de acordo com a Lei 12.015/2009. 2. Ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 125p.
OLIVEIRA JUNIOR, Eudes Quintino de. O conceito de vulnerabilidade no direito penal. Disponível em http:// www.lfg.com.br - 08 de abril de 2010 [n.p]. Acesso em: 22 mar. 2020.
[1] Graduanda em Direito no Centro Universitário São Lucas, da cidade de Ji-Paraná, estado de Rondônia.
[3] Dispositivo constitucional que não pode ser alterado nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC). As cláusulas pétreas inseridas na Constituição do Brasil de 1988 estão dispostas em seu artigo 60, § 4º. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. (Agência Senado, grifo nosso).
[4] Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/da-evolucao-constitucional-brasileira/. Acesso em: 21 set. 2020.
Acadêmica do 9º período em Direito pelo Centro Universitário São Lucas de Ji-Paraná e Pós Graduanda em Ciências Forense e Perícia Criminal pela Faculdade Panamericana de Ji-Paraná -Unijipa, RO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUAITA, Leiva Dos Santos Ferreira. A relativização do direito à inviolabilidade do domicílio em face dos crimes permanentes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 out 2020, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55322/a-relativizao-do-direito-inviolabilidade-do-domiclio-em-face-dos-crimes-permanentes. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.