Como se sabe, por exigência constitucional, a contratação de obras, serviços, compras e alienações da Administração Pública serão precedidas de processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, ressalvados os casos especificados na própria legislação, conforme expresso no artigo 37, XXI, da Constituição Federal, que assim dispõe:
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
De seu turno, a Lei Geral de Licitações, de forma genérica, em seu artigo 15, passou a prevê o Sistema de Registro de Preços, sem fazer qualquer referência à possibilidade de adesão à Ata de Registro de Preços.
No mesmo toar, a Lei 10.520/2002, que instituiu o Pregão como modalidade licitatória, apenas fez referência à possibilidade de se utilizar esta modalidade de licitação para formação do Sistema de Registro de Preços, sem, contudo, mencionar o mecanismo de adesão à Ata.
Vale frisar que o Sistema de Registro de Preços – SRP permite que a Administração Pública, a partir do registro, em ata, do menor preço proposto no certame licitatório, contrate, futura e eventualmente, durante o período de validade daquela Ata (não superior a 01 ano), com base no preço registrado.
No âmbito Federal, o Sistema de Registro de Preços é regulamentado pelo Decreto nº 7.892/2013, que, em seu artigo 22, possibilita que órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais adiram à Ata de registro de preços da Administração Pública Federal, nos seguintes termos.
Art. 22. Desde que devidamente justificada a vantagem, a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da administração pública federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador.
(...)
§ 9º É facultada aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais a adesão à ata de registro de preços da Administração Pública Federal.
Não obstante a previsão normativa acima indicada, a possibilidade de adesão por órgão não participante da Ata, comumente conhecida como “carona”, sobretudo quando a Ata é gerenciada por outra esfera de governo, tem sido objeto críticas e vista com bastantes ressalvas por parte da doutrina especializada.
Não obstante a figura da “Carona” esteja prevista em decreto, com a devida vênia aos que pensam de forma diversa, tal figura parece extrapolar os limites do poder regulamentar, inovando na ordem jurídica sem suporte legal da lei regulamentada.
A generalidade com que o Sistema de Registro de Preços foi tratado na Lei 8.666/90 não autoriza que a regulamentação infralegal crie figura não prevista no dispositivo regulamentado, especialmente em um campo tão deligado quanto o das exceções ao dever de licitar. A adesão à Ata de Registro de Preços de outro ente federado representa forma direta de contratação, em que o órgão contratante deixa de realizar procedimento licitatório para contratar fornecedor vencedor de licitação realizada por pessoa diversa. Não obstante renomados juristas não vejam maiores problemas nesta forma de contratação, a outra conclusão não podemos chegar senão a de que se trata de uma forma de contratação direta sem previsão legal.
Desta forma, a adesão à Ata de registro de preços por órgão não participante, especialmente em se tratando de esferas de governo distintas, representa grave ofensa ao princípio da legalidade, já que representa a criação, por decreto, forma de contratação direta sem amparo no dispositivo regulamentado.
De toda forma, ainda que, por esforço hermenêutico, se quisesse entender que a figura da “Carona” não se trata de forma de contratação direta, em função da licitação ter sido realizada pelo órgão gerenciador da Ata, o que parece não ser a melhor interpretação, estar-se-ia estabelecendo um tratamento diferenciado em benefício do fornecedor que possui preço registrado em ata, o que, por certo, não se harmonizaria com o disposto no artigo 37, XXI, da Constituição Federal, que prescreve que nas licitações públicas deve ser assegurada igualdade de condições a todos os concorrentes.
Diante destas premissas acima aventadas, apenas dois caminhos se desenham: ou temos uma contratação direta sem previsão em lei ou o estabelecimento de condições diversas para os concorrentes. Assim, de uma forma ou de outra, tem-se que a figura do “Carona” finda por ofender disposições da Constituição Federal.
Não bastasse isso, a “Carona” tem gerado problemas de ordem prática que podem comprometer os princípios da moralidade e probidade administrativa. Já se tem percebido a menção à existência a um “mercado de atas” que, à evidência, é fator com potencial significativo para fraudes e corrupção.
Atendo a isto, o Douto Advogado Ramon Alves de Melo, em artigo publicado no site “Âmbito Jurídico”, pontuou o seguinte:
O “carona” propicia lucro extraordinário ao detentor de determinada ata que com a elevação dos quantitativos nela previstos para atendimento a outros órgãos, sem que haja redução de preços unitário pago pela Administração favorecido pela economia de escala que atua em seu favor.
Dificulta a fiscalização do administrado e dos órgãos de controle em virtude da insuficiência de regulamentação pelo Decreto de forma de divulgação, contratação e execução contratual especial do “carona”, cria um mercado paralelo às aquisições de bens e serviços pela Administração Pública desvirtuando a regra de oferta e procura e levando o Administrador a adaptar o interesse público às soluções encontradas neste mercado, sem que faça os estudos e o planejamento necessário visando o melhor atendimento ao interesse público.
O “carona” subverte a ordem dos procedimentos atinentes às aquisições e contratações públicas beneficiando aos lobistas de plantão que estão a oferecer, planejar e direcionar os negócios da Administração Pública, atendendo a interesses escusos em detrimento aos cofres e aos interesses públicos.[1]
Neste viés, pelo que se percebe, a adesão à Ata de Registro de Preço por órgão não participante, conhecida como “Carona”, embora muito utilizada e aceita por boa parte da doutrina, deixa vulnerável valores basilares da nossa ordem constitucional, mitigando os princípios da legalidade e da competitividade, e ainda abrindo espaço para contratações desvantajosas para o poder público.
Assim, em que pese haja forte doutrina em sentido contrário, em atenção aos princípios da legalidade, moralidade e competitividade, o melhor caminho parecer ser evitar o uso da “Carona” em Ata de Registro de Preço, sobretudo e especialmente quando a adesão é realizada por órgãos de esferas governamentais distintas da do órgão licitante.
De todo modo, não obstante nossas ressalvas, acaso se insista em utilizar a “Carona”, devem os gestores e advogados públicos terem redobrada cautela antes de autorizar a adesão, já que, como restou acima apontado, esta forma de contratação, além de mitigar os valores constitucionais antes mencionados, deixa a Administração vulnerável a fraudes e contratações desvantajosas.
Referências Bibliográficas:
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Sistema de Registro de Preços e Pregão Presencial e Eletrônico, 10ªed, Belo Horizonte: Fórum, 2015.
_______ . Contratação Direta Sem Licitação, 10ªed, Belo Horizonte: Fórum, 2016.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 20ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008.
Procurador do Estado de Alagoas, ex-Procurador do Estado de Pernambuco, ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Cataria, Pós-Graduado em Direito Administrativo e Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDROSA, Danilo França Falcão. A adesão à Ata de Registro de Preço por “Carona” Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 out 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55330/a-adeso-ata-de-registro-de-preo-por-carona. Acesso em: 23 dez 2024.
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