Resumo: O presente artigo trata da temática do concurso de agentes no direito penal brasileiro. Os principais objetivos deste trabalho é demonstrar que a temática do concurso de agentes deve ser interpretada à luz dos comandos da Constituição Federal de 1988 –especialmente dos princípios da legalidade e proporcionalidade –, haja vista que o filtro constitucional deve ser sempre realizado em leis penais anteriores ao texto constitucional vigente, assim como encaminhar raciocínio no sentido de que, em sendo reconhecida a possibilidade de adoção do sistema diferenciador do concurso de agentes pela legislação penal vigente, é imperioso que se reconheça igualmente a possibilidade de aplicação obrigatória da redução prevista no art. 29, §1º do Código penal a todos os partícipes.
Palavras-chave: Concurso de agentes. Autoria. Participação. Sistema unitário. Sistema diferenciador.
Sumário: 1. Introdução; 2. Breve panorama das teorias e conceitos atinentes ao tema do concurso de agentes; 3. Concurso de agentes à luz do Código Penal vigente; 4. Tomada de postura: opção pelo sistema diferenciador em razão do necessário filtro constitucional; 5. Consequência prática da opção pelo sistema diferenciador: necessidade de se reconhecer o redutor do art. 29, §1º do Código Penal para todos os partícipes; 6. Conclusão; e 7. Referências Bibliográficas
1. Introdução
Antes de tudo, vale destacar que a matéria de concurso de agentes é de difícil compreensão teórica, legislativa (GRECO e LEITE, 2014a, p. 15-16) e doutrinária, de modo que tais dificuldades são sensivelmente reforçadas pela confusão terminológica que se observa a partir do tratamento do instituto do concurso de agentes por diversos estudiosos[1].
O presente artigo não tem a pretensão de esgotar a temática do concurso de agentes. A uma porque trata-se de conteúdo denso e extenso, inviável de ser tratado em sua total extensão neste breve estudo[2]; e a duas porque o que aqui se pretende, de fato, é demonstrar não só a possibilidade de adoção do sistema diferenciador à luz da legislação penal, mas, sim, a necessidade, especialmente se realizado um cotejo penal-constitucional de tal disciplina, implicando a necessidade de aplicar o redutor previsto no §1º do artigo 29 do Código Penal para os agentes que intervém no curso delitivo na qualidade de partícipes.
Dessa forma, no item 2, tecer-se-á comentários acerca das teorias do concurso de agentes, especialmente sobre os seguintes conceitos: sistema unitário, sistema diferenciador, conceito extensivo de autor, conceito restritivo de autor, assim como as principais teorias circunscritas aos sistemas unitário e diferenciador. Já no item 3, buscar-se interpretar o Código Penal à luz de tais conceitos e teorias, especialmente dos sistemas unitário e diferenciador. No item 4, submeter-se-á o tema concurso de agentes a um filtro constitucional, de modo a confirmar a tese preliminar de que uma análise constitucional demanda a adoção do sistema diferenciador. E, por fim, no item 5, estabelecer-se-á a consequência prática em razão da opção de adoção ao sistema diferenciador, especialmente no tocante à aplicação do redutor previsto no art. 29, §1º do Código Penal.
2. Breve panorama das teorias e conceitos atinentes ao tema do concurso de agentes[3]
Comecemos esclarecendo os conceitos de sistemas unitário e diferenciador. O primeiro, sistema unitário, é aquele que não prevê a possibilidade de diferenciação entre autores e partícipes (cúmplices ou indutores), na ótica do tipo penal[4]; o segundo, sistema diferenciador, é aquele que prevê a diferenciação, na ótica do tipo penal, entre autores e partícipes.
É preciso, também, distinguir o conceito extensivo e o conceito restritivo de autor. Para o primeiro deles (conceito extensivo), autor é todo aquele que, de alguma forma, acaba por realizar o tipo. Ou seja, “todos os intervenientes realizam a ação prevista no tipo penal” (GRECO et al., 2014, p. 13); enquanto que, para o segundo deles (conceito restritivo), autor é somente aquele que realiza o tipo penal tal como descrito.
A diferença entre ambos os conceitos (extensivo versus restritivo) gera uma consequência prática importante: para o conceito extensivo de autor, a regra é o alargamento da responsabilidade penal a todos os intervenientes no delito a título de autoria, de sorte que a própria lei deveria restringir os casos nos quais a responsabilidade penal dos intervenientes restar-se-ia excluída por meio de uma norma restritiva de punibilidade; por outro lado, para o conceito restritivo de autor, a regra seria a da responsabilidade penal apenas e tão somente daquele que praticasse a conduta descrita no tipo penal, de modo que a ampliação da responsabilidade apenas e tão somente seria possível a partir de uma norma penal extensiva de punibilidade.
Por assim ser, há quem advogue a tese (cite, por exemplo, ROYO, 2008, p. 103-104) de emprego de um sentido equivalente entre sistema unitário e conceito extensivo de autor. A bem da verdade, o sistema unitário está umbilicalmente ligado ao conceito extensivo de autor, isso porque ao se afirmar que todos os intervenientes realizam a conduta descrita no tipo penal, está-se a classificá-los como autores, impossibilitando a classificação como partícipes. Dessa forma, todos que intervirem de qualquer forma no curso delitivo (conceito extensivo), respondem como autores (sistema unitário).
Pois bem. O sistema unitário vê-se cingido em duas vertentes, a saber: formal e funcional. A teoria unitária formal é aquela que não faz qualquer diferenciação entre os intervenientes para a causação do tipo penal, de modo a estabelecer um mesmo marco penal em abstrato para todos os agentes intervenientes. Já a teoria unitária funcional é aquela que faz uma diferenciação entre modalidades de autoria[5], e, ainda assim, mantém o mesmo marco penal em abstrato para todos os agentes intervenientes (GRECO et al., 2014, p. 13).
Por outro lado, o sistema diferenciador vê-se dividido em, basicamente, três vertentes teóricas que se ocupam de diferenciar autor e partícipe, quais sejam: subjetiva, objetiva e domínio do fato, as quais, em linhas gerais, a seguir se explica.
A teoria subjetiva[6] diferencia apenas e tão somente autor e partícipe a partir do plano subjetivo (daí a nomenclatura da vertente teórica). Significa dizer que o que torna um agente autor ou partícipe é o seu elemento psíquico-volitivo. Dessa sorte, autor é aquele que age com ânimo de autor (animus auctoris) e partícipe é aquele que age com ânimo de partícipe (animus socii).
Como se pode observar, a teoria subjetiva é, por assim dizer, uma redundância em si própria[7], de sorte que autor é aquele que age de modo a querer o crime como seu, com vontade independente a de qualquer outra pessoa (teoria do dolo) ou que age de modo a lhe interessar o resultado criminoso (teoria do interesse); e partícipe, por outro lado, é aquele que age em colaboração ao crime de outro, com vontade dependente a do autor (teoria do dolo)[8] ou que age no interesse delitivo de outrem (teoria do interesse)[9].
Já sob o manto da teoria objetiva abriga-se a conceituação de que autor e partícipe são distinguíveis por meio de aspectos objetivos, sem necessidade de se perquirir o elemento volitivo-psíquico dos agentes. Divide-se, ainda, basicamente em duas ramificações, quais sejam: objetivo-formal e objetivo-material.
A teoria objetivo-formal possui como principal característica a subsunção fidedigna ao princípio da legalidade, definindo autor como aquele que pratica o exato comportamento descrito no tipo penal, seja total ou parcialmente, enquanto o partícipe seria aquele que não pratica a conduta descrita no tipo penal, embora aja de modo colaborativo com fito ao sucesso da empreitada delitiva. Visto por esse ângulo, “a teoria objetivo-formal é, entre as teorias diferenciadoras ou positivas, aquela que provavelmente oferece o mais preciso critério distintivo entre autoria e participação” (ORTIZ, 2011, p. 63).
A teoria objetivo-material, por seu turno, lança mão de critérios que transcendem à remissão descritiva do tipo penal (ORTIZ, 2011, p. 68). Trata-se de critérios que buscam valorar a contribuição dada por cada agente para a consecução do crime, ou seja, para essa teoria, autor é aquele que dá a maior e decisiva contribuição objetiva, enquanto partícipe seria aquele cuja contribuição objetiva tenha caráter menos relevante que o primeiro. Em suma, tem-se como ponto de partida o sistema de contribuições mais relevantes (causas) e contribuições menos relevantes (condições).
Por fim, a teoria do domínio do fato, que foi amplamente difundida por Roxin, é a vertente mais moderna e usual das teorias que utilizam o critério do domínio[10] para diferenciar autores e partícipes, razão pela qual se situam dentro de um panorama diferenciador. A teoria do domínio do fato nos moldes desenvolvidos por Roxin é uma inovação dogmática (GRECO e LEITE, 2014b, p. 24), razão pela qual não se encaixa em classificações outras (subjetiva, objetivo-material e objetivo-formal).
O conceito de autor formulado por Roxin é aberto (2000, p. 147)[11], residindo aqui um de seus grandes méritos. Em outras palavras: foi a substituição de conceitos estáticos, fechados por conceitos descritivos, que possibilitou a flexibilidade da teoria aos fatos futuros não previstos inicialmente quando de sua formulação[12].
Dessa forma, autor[13] é a figura central do tipo penal, ou seja, é quem determina o se, como e quando o delito irá acontecer. Por outro lado, partícipe é aquele que contribui para a realização do tipo penal, mas de maneira acessória, secundária (GRECO e LEITE, 2014b, p. 24-25).
Por derradeiro, é imprescindível firmar que a teoria do domínio do fato proposta por Roxin não tem a pretensão de tratar todos os casos penais. Em verdade, a teoria do domínio do fato serve apenas e tão somente para tratar de crimes comissivos, comuns e dolosos.
Em outras palavras: Roxin (2000, p. 385-432; 434-470; 497-565), expressamente, crê que a teoria do domínio do fato não se presta a esgotar toda a temática de concurso de agentes em todos os tipos delitivos, razão pela qual houve por tratar o tema concurso de agente em outras classificações delitivas. Em verdade, nos delitos de infração de um dever (delitos próprios e delitos omissivos impróprios), delitos de mão-própria, delitos culposos e delitos omissivos, há de se utilizar critérios outros (GRECO e LEITE, 2014b, p. 31-35).
3. Concurso de agentes à luz do Código Penal vigente
Dito isso, a partir daqui, analisar-se-á, à luz da leitura dos dispositivos do atual Código Penal que tratam o tema concurso de agentes, a opção que melhor se enquadra no sistema brasileiro.
Pois bem. A primeira interpretação que se pode fazer da leitura do caput do art. 29 c/c o art. 13 do Código Penal revela-nos a opção do legislador pelo conceito unitário de autor, solidificado em bases causais, mais especificamente na teoria da conditio sine qua non (BIERRENBACH, 1996, p. 59-61). A expressão “na medida de sua culpabilidade”, por sua vez, não é capaz de afastar a assertiva de adoção pelo sistema unitário. É que, como já dito, é característico de sistemas unitários a diferenciação entre os graus de intervenção delitiva na dosimetria da pena, e não no tipo penal, que é o exato caso aqui em tela (OLIVÉ et al., 2011, p. 540; SANTOS, 2014, p. 344; ORTIZ, 2011, p. 40; GRECO et al., 2014, p. 13; RASSI, 2014, p. 47).
Contudo, é possível uma interpretação diversa de tal dispositivo, o que conduziria à hipótese de adoção por um sistema diferenciador: ora, o caput do art. 29 não diz “quem, de qualquer modo, concorre para o crime é autor”, mas diz “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade” (RASSI, 2014, p. 54). Significa dizer que o art. 29 do Código Penal, pode ser interpretado como apenas e tão somente uma norma de equiparação de punibilidade de todos os intervenientes no delito, sejam autores ou partícipes.
Indo mais além, mais ainda nessa mesma linha de raciocínio, o caput do art. 29 do Código Penal, consistiria em uma espécie de norma extensiva de punibilidade, de modo que autor seria aquele que efetivamente pratica o crime, enquanto o partícipe aquele que colabora com a prática delitiva, de qualquer modo (GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 70)[14].
Já o § 1º do mesmo art. 29 do Código Penal, é expresso ao referenciar a “participação de menor importância”, o que nos remete automaticamente à possibilidade de distinção entre autoria e participação (sistema diferenciador), até porque a referida disposição legal trataria de “um problema de grau de conteúdo do injusto do fato” (PIERANGELI e ZAFARONI, 2004, p. 645-646). Essa seria a forma mais natural de se interpretar o referido dispositivo e conduziria a um sistema diferenciador de concurso de agentes.
Ocorre que há quem defenda o inverso, ou seja, que a “participação de menor importância” aqui retratada não se confunde com a participação em sentido estrito, haja vista seria possível que coautores de um mesmo crime dessem contribuições mais ou menos relevantes, o que ensejaria penas maiores ou menores (GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 70). Além disso, por essa visão, estar-se-ia diante de mais um problema concernente à aplicação da pena à luz das diferenças entre formas de intervir no delito (ORTIZ, 2011, p. 81), assim como exatamente ocorre com a expressão “na medida de sua culpabilidade” no caput do art. 29 do Código Penal. Essa interpretação conduziria à possibilidade de defesa da adoção do sistema unitário.
Em relação ao art. 29, § 2º do Código Penal, temos a figura da “participação dolosamente distinta”, sendo que o que se observa é, em verdade, uma forma diversa de tratar o concurso de crimes, o que nada interfere acerca de questões atinentes ao concurso de agentes (GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 72-3).
Já em relação à “comunicabilidade de circunstâncias e condições pessoais quando forem elementares do crime” (art. 30 do Código Penal) é de se dizer que essa disposição legal se reveste de uma opção legislativa por um sistema unitário, uma vez que a comunicabilidade de circunstâncias e condições pessoais nos delitos especiais apenas reforça a opção de igualar todos os intervenientes como autores, no plano do tipo penal.
Entrementes, há respeitável posição – informe-se, quase que isolada (ORTIZ, 2011, p. 202-207; GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 72-73; BATISTA, 2008, p. 170-171) – que se arvora na premissa de inconstitucionalidade do referido dispositivo no tocante específico da comunicabilidade das elementares de caráter pessoal, em razão de que seria inócuo a legislação penal prever delitos especiais se todos, em última análise, pudessem ser punidos como extraneus.
Portanto, para essa linha de raciocínio, a única interpretação possível – sem incorrer em inconstitucionalidade –, seria entender a referida disposição como uma norma extensiva de responsabilidade dos delitos especiais, na modalidade de participação (e não autoria). Tal posicionamento, em última análise, põe em xeque a legitimidade das teorias unitárias, de forma geral, visto que demonstra ser impossível compatibilizar uma punibilidade a um mesmo título (autor) àqueles que não detêm qualidades próprias, notadamente nos delitos especiais.
E, por fim, para encerrar esta breve análise da legislação brasileira no tema concurso de agentes, deve-se indicar que o art. 31 do Código Penal (“participação em delitos ao menos tentados”) adota a chamada teoria da acessoriedade limitada[15] (RASSI, 2014, p. 65), fato esse que, à primeira vista, o adequaria às pretensões do sistema diferenciador[16]. Aliás, os defensores da adoção do sistema diferenciador pelo nosso Código Penal em muito se valem da redação do art. 31 do Código Penal (RASSI, 2014, p. 59).
Mas é possível interpretar que a redação do art. 31 do Código Penal é, na verdade, uma forma de restrição ao alcance do art. 29 do Código Penal, de modo a traduzir uma espécie de correção às situações materialmente injustas que se teria com a ausência de uma norma que tal (GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 76-77). Essa posição é a utilizada para fundamentar a adoção do nosso sistema como unitário.
Diante de todo o exposto – e da variedade de posições possíveis –, ecoam na doutrina as mais diversas vozes: há quem diga que nosso sistema é unitário (BATISTA, 2008, p. 37; QUEIROZ, 2014, p. 321; SANTOS, 2014, p. 344-345; JESCHECK e WEIGEND, 2002, p. 713); há quem diga que nosso sistema é diferenciador (BITENCOURT, 2014, p. 553; GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 78, PIERANGELI e ZAFARONI, 2004, p. 633-634; DELMANTO et al., 2016, p. 171; FELICIANO, 2010; JESUS, 2002, p. 16-17; BUSATO, 2017, p. 671); e, ainda, há quem diga que o sistema é unitário temperado (MESTIERI, 1999, p. 200; PRADO, 2008, p. 485).
Portanto, forçoso reconhecer a existência de duas interpretações legítimas e possíveis de serem sustentadas: a primeira delas é compreender o sistema brasileiro como adotante do sistema unitário ou como adotante do sistema diferenciador.
4. Tomada de postura: opção pelo sistema diferenciador em razão do necessário filtro constitucional
Diante da possibilidade dogmática de interpretação do tratamento legal brasileiro do concurso de agentes como sendo aderente ao sistema unitário ou diferenciador, cabe-nos, agora, realizar uma opção por um ou outro sistema. E tal escolha se dá não só pela necessidade de tomada de postura, como também pela implicação prática que a adoção de um ou outro sistema acarretará[17].
Neste sentido, entendemos que a opção por um dos sistemas deve ser feita através de uma leitura constitucional, especialmente porque a parte geral do Código Penal vigente é anterior à Constituição Federal de 1988[18]. Por esse motivo, é aconselhável que as leis anteriores sejam submetidas a um juízo de constitucionalidade.
Dito isso, passa-se a analisar o princípio de matiz constitucional-penal que, em nossa ótica, bem dialoga com a temática em questão: a legalidade (nullum crimen sine lege).
Salienta-se que a legalidade penal é o princípio motriz que rege o sistema penal. Só há crime se houver lei (em sentido estrito e anterior ao fato) apta a abranger a conduta que se pretende criminalizar.
Nesse sentido, toda norma de alargamento de responsabilidade penal[19] há de ser feita com observância ao princípio da legalidade, sob pena de se incorrer em sua violação. Não se pode, simplesmente, considerar como agente quem “incide nas penas a este cominadas” aquele que “concorre para o crime” (art. 29 do Código Penal). Até mesmo porque o verbo “concorrer” – atrelado à interpretação conjunta com o art. 13 do Código Penal –, é por demais amplo e pode ensejar a atribuição de responsabilidade penal para uma gama infinita de pessoas que não tinham qualquer relação com o crime sob uma perspectiva ontológica[20].
Portanto, assiste completa razão aos doutrinadores Luís Greco e Adriano Teixeira (2014, p. 70) quando advogam a tese de que “defender um conceito restritivo de autor nada mais é do que interpretar os tipos em espécie de forma restritiva” [21]. É este o ponto fulcral da discussão. O filtro constitucional da legalidade implica em reconhecer, necessariamente, que os tipos penais devem ser interpretados de forma restritiva e, apenas, normas de extensão bem delineadas podem ser constitucionalmente aptas a alargar a responsabilidade penal.
Trata-se, pois, uma discussão que vai muito além do próprio tratamento legal do concurso de agentes trazido pelo Código Penal e encontra seu verdadeiro cerne na discussão acerca do próprio alcance dos tipos penais que definem os crimes em espécie.
Veja-se, pois, que interpretar os tipos penais de maneira restritiva é corolário do princípio da legalidade e, ainda, é a barreira necessária para evitar abusos acusatórios que apenas e tão somente poderiam ser corrigidos na grande vala dos elementos subjetivos (por exemplo, ausência de dolo para prática de determinada conduta), relegando discussões que tais para momentos processuais já por demais avançados.
Por assim ser, em nossa ótica, uma filtragem constitucional bem ampara a opção constitucional pela possibilidade interpretativa do tratamento legal brasileiro do concurso de agentes como sendo aderente ao sistema diferenciador.
5. Consequência prática da opção pelo sistema diferenciador: necessidade de se reconhecer o redutor do art. 29, §1º do Código Penal para todos os partícipes
Como já dito, a adoção pelo sistema diferenciador de concurso de agentes é relevante não apenas e tão somente do ponto de vistas acadêmico, mas – e principalmente – do ponto de vista prático, eis que a adoção por um ou outro sistema pode gerar a responsabilidade penal diversa para casos idênticos.
É o caso, por exemplo, da limitação de responsabilidade penal dos partícipes (GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 65-66), bem como a possibilidade de ampliação da responsabilidade penal em crimes de coautoria alternativa e aditiva, como se vê nos crimes praticados por decisões colegiadas (ZONTA, 2019; GRECO e ASSIS, 2014, p. 89) ou, ainda, nos casos de homicídios praticados através de pelotões de fuzilamento (GRECO e LEITE, 2014, p. 39).
Mas não é só. A consequência prática da distinção entre autor[22] e partícipe[23] deve, em nossa ótica, conduzir a uma necessária interpretação de diferenciação nas penas cominadas. Não porque a culpabilidade individual do partícipe é menor – o que é próprio de análise de sistemas unitários (OLIVÉ et al., 2011, p. 540; SANTOS, 2014, p. 344; ORTIZ, 2011, p. 40; GRECO et al., 2014. p. 13; RASSI, 2014, p. 47) –, mas, sim, porque se trata de uma consequência umbilical dos sistemas diferenciadores, ligada ao próprio tipo penal.
É por esse motivo que, para os sistemas diferenciadores, a distinção entre autor e partícipe, por si só, é suficiente para influir na pena, partindo de um pressuposto que a problemática posta encontra-se no núcleo do tipo penal.
Pois bem. Se interpretarmos o concurso de agentes do Código Penal brasileiro como sendo diferenciador, aquele que colaborar com a prática delitiva de qualquer modo, sem a qualidade de autor, é, na verdade, partícipe (GRECO e TEIXEIRA, 2014, p. 70). Assim sendo, os partícipes devem ser diferenciados dos autores sob uma ótica de tipo penal, que, por consequência, também pode – e não deve – representar uma diferenciação no quantum da pena (GRECO et al., 2014, p. 13).
Diz-se pode porque, no caso dos sistemas diferenciadores, a regra é diferenciação do quantum da pena para as diversas formas interventivas no delito (autoria e participação), de modo que a equiparação é a exceção, devendo se fazer por uma norma de extensão. É o que ocorre, por exemplo, no Código Penal alemão (§26, StGB)[24].
Por isso, a pena em abstrato – no caso dos sistemas diferenciadores – pode ser igual para autores e partícipes se houver uma norma de extensão. Do contrário, as penas em abstrato devem ser diferentes. Assim não fosse, estar-se-ia equiparando, na prática e na teoria, o sistema unitário funcional e os sistemas diferenciadores, o que é de todo indevido.
Em suma: sendo o caput do art. 29 do Código penal norma de extensão para possibilitar a punibilidade do partícipe; e sendo a punibilidade equiparada entre o partícipe e o autor apenas possível por uma norma de extensão, de rigor que se interprete os partícipes devem ser beneficiados com o redutor previsto no §1º do art. 29 do Código Penal, no patamar variável entre um sexto e um terço.
Não se desconhece que já ecoam vozes[25] no sentido de que apenas a participação de menor importância pode ser agraciada com a redução de pena de um sexto a um terço, devendo o magistrado, na aplicação da lei ao caso concreto, valorar se a participação do agente é foi ou não de menor importância. E, em se constatando que se trata de participação “normal”, ou seja, que não seja de menor importância, eventual análise da culpabilidade individual deve ser feita à luz do art. 59 do Código Penal.
Em nossa ótica, tal entendimento não deve prevalecer. A posição de que apenas a participação de menor importância – e não toda e qualquer participação – poderia ser agraciada com o redutor de pena do art. 29, §1º do Código Penal, tem como equívoco científico a desconsideração de que é próprio dos sistemas unitários a distinção entre as formas de intervenção delitiva no aspecto da culpabilidade individual (OLIVÉ et al., 2011, p. 540; SANTOS, 2014, p. 344; ORTIZ, 2011, p. 40; GRECO et al., 2014. p. 13; RASSI, 2014, p. 47).
Dessa forma, dizer que a participação “de menor importância” poderá ser contemplada com o redutor do art. 29, §1º do Código Penal e que a participação “normal” poderá ser valorada favoravelmente ao acusado na fase do art. 59 do Código Penal é o mesmo que reconhecer que a interpretação dada ao concurso de agentes não é diferenciadora, mas sim unitária funcional.
E mais: é deturpar a consequência lógica dos sistemas diferenciadores, para os quais a regra é a diferenciação da pena, em abstrato, para aqueles autores e partícipes, sendo a exceção a pena igual, possível apenas e tão somente através de uma norma de extensão.
Não se está a defender que a solução aqui adotada é a mais adequada do ponto de vista de distribuição equitativa da quantidade pena, à luz do desvalor da conduta praticada. Em outras palavras: não é a opção lege ferenda[26] que seria por nós adotada.
Um exemplo apto a demonstrar a possibilidade acima aventada é o seguinte: o instigador “A” contrata o matador de aluguel “B” para que execute a vítima “V”, que é genitor de “A”. A motivação de “A” é a herança que lhe seria deixada por ocasião da morte de “V”. [27]
Do ponto de vista valorativo, não parece nenhum absurdo afirmar que a conduta de “A” fere com maior intensidade o senso de justiça do que a conduta de “B”. A nossa proposta, por outro lado – sem que seja levada em consideração a possibilidade de dimensionamento da pena na primeira fase de dosimetria da pena (art. 59 do Código Penal), eis que se trataria de análise do ponto de vista da culpabilidade individual – poderia ensejar, sob o ponto de vista quantitativo da pena, uma menor responsabilização ao instigador “A”, tendo em vista que seria mero partícipe do autor “B” e, portanto, merecedor do redutor previsto no art. 29, §1º do Código Penal.
Contudo, esse exemplo, em nossa ótica, apenas reforça a correção da posição aqui adotada, senão vejamos. Por primeiro, porque o caso hipotético em tela é uma exceção, de modo que a regra é a de que o desvalor objetivo da conduta dos partícipes seja menor que a dos autores. Assim sendo, tal constatação apenas reforça que a equiparação entre as penas abstratas do partícipe ao autor pode ser feita a partir de uma norma de extensão, e não como regra[28]. Por segundo, porque o desvalor em casos que tais é ínsito à culpabilidade subjetiva, de modo que deve ser melhor apreciada à luz do artigo 59 do Código Penal, especialmente na primeira fase de dosimetria da pena. E, por fim, por terceiro, porque caberá à discricionariedade do magistrado, analisando o caso concreto, a aplicação do percentual de redução previsto no art. 29, §1º do Código Penal entre os patamares de um sexto a um terço, podendo adequar a pena do partícipe ao caso concreto.
Dito assim, pelos motivos acima expostos, entendemos que, lege lata, a adoção pelo sistema diferenciador de concurso de agentes à luz do Código Penal vigente implica, necessariamente, em diferenciar autores e partícipes sob a perspectiva do tipo penal, ancorado no princípio da legalidade, aplicando-se o redutor do art. 29, §1º do Código Penal para todas as hipóteses em que a intervenção delitiva de uma gente for enquadrada como de participação.
5. Conclusão
A finalidade (ou seja: o problema a ser perquirido) do presente artigo foi investigar o tratamento penal do redutor trazido no §1º do art. 29 do Código Penal, especialmente no tocante à sua aplicação (ou não) a todos os partícipes, sem a necessidade de comprovação da participação ser de “menor importância”.
Dessa forma, no item 2, buscou-se estabelecer as premissas teóricas para que se pudesse desenvolver o tema pretendido.
Já no item 3, sob as bases teóricas do item anterior, demonstrou-se a possibilidade dogmática de duas opções interpretativas do tratamento do concurso de agentes, qual seja como sistema unitário ou diferenciador.
No item 4, tomou-se a postura pelo sistema diferenciador, especialmente porque o filtro constitucional aplicável à temática, em nossa ótica, apenas nos conduz a esta possibilidade teórica. Note-se que o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege), devidamente transportado à temática do concurso de agentes, é norteador para tal entendimento, eis que optar por um sistema diferenciador é, em última análise, dar interpretação restritiva ao tipos penais em espécie, que é de todo preferível e se coaduna com o comando constitucional em tela.
E, por derradeiro, no item 5, respondeu-se ao problema posto, a saber: toda e qualquer “participação” deve ser digna do redutor previsto no art. 29, §1º do Código Penal? Em nossa ótica, a resposta é afirmativa. Em síntese, o que sustenta esse posicionamento é a constatação de que a conduta do partícipe tem menor desvalor objetivo do que a conduta do autor, partindo-se tal constatação de uma análise do próprio tipo penal.
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ZONTA, Fernando de Oliveira. Responsabilidade penal por decisões colegiadas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 154, p. 19-54, abr. 2019.
[1] Como exemplos de dissonância terminológica, citamos as seguintes obras: a) ORTIZ, Mariana Tranchesi. Concurso de agentes nos delitos especiais. São Paulo: IBCCrim, 2011; b) GRECO, Luis et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no Direito Penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014; c) MARQUES, Fernando Tadeu. Concurso de agentes no direito penal contemporâneo. 2012. 125 f. Dissertação de (Mestrado em Direito), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2012; d) BATISTA, Nilo. Concurso de agentes: uma investigação sobre os problemas da autoria e da participação no direito penal brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; e) PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2008; e f) BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral – 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017. v. I.
[2] Para uma leitura mais aprofundada, densa e completa, sugere-se as seguintes obras: a) ROXIN, Claus. Autoría y Dominio del Hecho em Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2000; b) ORTIZ, Mariana Tranchesi. Concurso de agentes nos delitos especiais. São Paulo: IBCCrim, 2011; e c) ROYO, Elena Maria Górriz. El concepto de autor en derecho penal. Vallencia: Tirant lo Blanch, 2008.
[3] Esclarece-se, desde já, que parte do referencial teórico trazido nos itens 2 e 3 deste artigo já foram objeto de tratamento no seguinte artigo: ZONTA, Fernando de Oliveira. Responsabilidade penal por decisões colegiadas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 154, p. 19-54, abr. 2019.
Contudo, para o presente estudo, foram trazidos novos apontamentos teóricos, bem foram acrescentados novos elementos bibliográficos em relação aos lançados à época, o que sobremaneira enriqueceu tais itens específicos e, principalmente, a conclusão havida nos itens subsequentes.
[4] A consequência indissociável de toda e qualquer teoria de viés unitário é de que a pena, em abstrato, será igual a todos os intervenientes (PIERANGELLI, 1991). Por outro lado, a análise da qualidade da contribuição, para os sistemas unitários, deve ser sopesada quando da dosimetria em concreto da pena, sob o aspecto da culpabilidade individual (OLIVÉ et al., 2011, p. 540; SANTOS, 2014, p. 344; ORTIZ, 2011, p. 40; GRECO et al., 2014. p. 13; RASSI, 2014, p. 47).
[5] Podemos citar como exemplo o caso da legislação austríaca, a qual prevê três modalidades de autoria, a saber: autoria imediata, autoria por determinação e autoria por contribuição (ORTIZ, 2011, p. 42). Note-se que possibilidade de divisão em modalidade de autoria não significa em diferenciação entre autoria e participação, razão pela qual é salutar não inserir a teoria unitária funcional como sendo mais uma espécie de teoria que componha o sistema diferenciador.
[6] Muito embora a teoria subjetiva tenha viés nitidamente diferenciador, referida teoria possui um ponto de proximidade com as teorias do sistema unitário (e, consequentemente, em nossa ótica, com o conceito extensivo de autor), haja vista que partem do pressuposto teórico da equivalência de condições (conditio sine qua non). Portanto, o que se observa na prática é que a teoria diferenciadora subjetiva nada mais é do que uma primeva tentativa de se diferenciar situações materialmente distintas, consoante com os primados de justiça isonômica. Em outras palavras, é uma rudimentar evolução das teorias unitárias.
[7] A volatilidade e a imprecisão teórica da conceituação de animus auctoris e animus socii fez com que a jurisprudência alemã considerasse que “(...) poderiam ser partícipes a mulher que afogou o bebê da irmã, se a sua atuação estava motivada por fazer um favor a esta (“caso da banheira”, RGSt 74, 84 [1940]), e o agente do serviço secreto soviético que, a mando de um superior, assassinou uma pessoa em território alemão (caso Staschinsky, BGHSt 18, 87 [1962])” (GRECO e LEITE, 2014b, p. 23-24)
[8] De acordo com Buri (apud ROXIN, 2014, p. 71), sobre a teoria subjetiva do dolo, “la diferencia entre el autor y el cómplice sólo puede encontrarse em la independencia de la voluntad de autor y la dependencia de la de cómplice. El cómplice quiere el resultado sólo para el caso de que el autor lo quiera y, para el caso de que el autor no lo quiera, él tampoco lo quiere. Por tanto, debe dejar a criterio del autor la decisión de si el resultado debe producirse o no”.
[9] Para Roxin (2014, p. 72), a teoria do interesse “parte de la base de que la voluntad de autor se caracterizán por el interés proprio en el hecho y la de partícipe por la falta de tal interés”.
[10] Historicamente, foi Lobe, em 1933, quem utilizou pela primeira vez a terminologia “domínio do fato” nos moldes da teoria de Roxin. Contudo, a repercussão da referida teoria apenas ganhou força com Welzel, em 1939 (GRECO e LEITE, 2014b, p. 21). Curioso que há verdadeira controvérsia acerca de qual classificação se enquadraria a teoria do domínio do fato de Welzel, de sorte que há quem diga que essa é de viés objetivo-subjetiva, final-objetiva, objetivo-material e, por fim, objetiva material-final (ORTIZ, 2011, p. 87-88).
[11] Dessa forma, a conceituação descritiva amplia por absoluto a fruição da teoria do domínio do fato. Por outro lado, a inclusão de princípios orientadores acaba por restringi-la (ROXIN, 2000, p. 148).
[12] Disso se justifica o cabimento da teoria do domínio do fato ao direito penal empresarial, sem a necessidade de alterações estruturais.
[13] Em linhas gerais, há três manifestações do domínio do fato (autoria), a saber: a) domínio da ação (autoria direta); b) domínio da vontade (autoria mediata); e c) domínio funcional do fato (coautoria).
[14] Por essa linha de raciocínio, a interpretação do art. 29 em conjunto com a interpretação do art. 13, ambos do Código Penal, mais adequada é a esboçada por ORTIZ (2011, p. 80): “Nessa linha, parece absolutamente admissível a leitura segundo a qual nossa legislação disciplinou o nexo causal como limite mínimo à imputação do crime, o que não significa seja o critério exclusivo e determinante da responsabilização jurídico-penal, a qual deve ser perquirida por meio do recurso a outros parâmetros”.
[15] De acordo com a teoria da acessoriedade limitada da participação, somente haverá relevância jurídica à conduta praticada pelo partícipe se houver, por parte do autor, início das atividades executórias do crime (se não constituírem autonomamente os atos preparatórios ilícitos penais), caso contrário, estar-se-ia diante de conduta atípica do autor, o que, por si só, enseja o reconhecimento da atipicidade da conduta do partícipe.
[16] “Desde el punto de vista dogmático, la distinción entre autoría y participación es fundamental y necesaria. La participación em si misma no es nada, sino un concepto de referencia que supone siempre la existencia de un autor principal em función del cual se tipifica el hecho cometido. Es decir, aunque, por ejemplo, el inductor y el inducido puedan merecer la misma pena, es evidente que la responsabilidad de aquél viene condicionada por los actos realizados por éste y que no hay inducción em sí, sino la inducción a un hecho ajeno, que es el que sirve de base para determinar la responsabilidad del inductor. En una palabra, la participación es accesoria, la autoría principal, y ello independientemente de la pena que merezca el partícipe o el autor en el caso concreto” (MUÑOZ CONDE e GARCÍA ARÁN, 1996 apud ORTIZ, 2011. p. 83).
[17] Sobre este particular, sugere-se a leitura do seguinte artigo: GRECO, Luis; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. Autoria como domínio do fato – estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
[18] Outro critério que poderia ser utilizado para definição do sistema a ser adotado seria o de escolha político-criminal, tal como o faz Mariana Ortiz (2011, p. 83-84)
[19] “Fica clara, desta forma, a falta de respaldo da tese extensiva no atual sistema de regras penais, prescritivas e adscritivas de responsabilidade. Pois a autoria, enquanto categoria das regras de imputação, supõe a vinculação do sujeito à norma de comportamento, cuja violação imputável depende de que esteja em posição de realizar o conteúdo previsto pela norma e o faça de maneira contrária ao dever se sua observância. Primeiramente, a autoria assume o significado de responsabilidade individual pelo próprio comportamento antinormativo. Mas outras formas de responsabilização individual pelo acontecimento típico são possíveis e exigem, nessa medida, regras peculiares de imputação que ampliem a punição pelo concurso” (CAMARGO, 2018, p. 223-224).
[20] “Essa falta de determinação legal é particularmente problemática quando se considera que a doutrina majoritária no Brasil se ampara na redação do art. 29 para definir o concurso de pessoas como criação de uma condição causal para o resultado. Isso poderia significar que, segundo o nosso ordenamento jurídico, seria legítima a extensão da punibilidade para outras formas de comportamento que não somente a realização individual do crime, mas que, contudo, não seria possível uma predeterminação de quais sejam essas formas de concorrer para o crime. Dito de outro modo: autoria mediata, coautoria, instigação e auxílio poderiam ser enquadradas na modalidade ‘causação do resultado’, sem, contudo, esgotar essa categoria, que seria muito mais ampla” (CAMARGO, 2018, p. 225).
[21] “Forma distinta de tentar contornar a abertura do art. 29 do Código Penal é apresentada por Nilo Batista quando sugere, em contrapartida, que a regra é tão ampla, que a ausência de uma determinação dos conceitos fere o princípio da legalidade no que tange a taxatividade da lei penal. Assim, interpretar o verbo ‘concorrer’ como sinônimo de ‘autoria direta, mediata, co-autoria, instigação, cumplicidade’ seria uma maneira de restaurar o princípio nullum crimen sine lege” (CAMARGO, 2018, p. 226).
[22] Autor é “quem lesa ou coloca em perigo o bem jurídico de forma direta” (OLIVÉ et al., 2011, p. 540).
[23] Partícipe “quem perseguir esse objetivo [lesar ou colocar em perigo o bem jurídico] de forma indireta” (OLIVÉ et al., 2011, p. 540).
[24] Em sentido relativamente semelhante, confira-se: “Consoante se teve a oportunidade de afirmar, um sistema diferenciador entre autoria e participação, embora não necessariamente dependa da fixação de patamares distintos para cada intervenção no delito, deve, em alguma medida compreender que o fenômeno delitivo se apresenta mediante uma conduta principal de autor que, apenas eventualmente, pode ser favorecida por outra conduta acessória, a do partícipe. A primeira deduzir-se-ia diretamente do tipo de delito, e a segunda decorreria de uma norma de extensão prevista na Parte Geral dos Códigos Penais. A simples admissão da acessoriedade da participação em relação à autoria parece implicar uma necessária distinção no nível de injusto ínsito a cada modalidade de intervenção para o delito. Afinal, a autoria independe de qualquer participação, mas, sem a contribuição principal, não há lugar para a acessória.” (ORTIZ, 2011, p. 208)
[25] “A participação aqui referida diz respeito exclusivamente ao partícipe e não ao coautor, tratando-se, por conseguinte, de participação em sentido estrito. Ainda que a participação do coautor tenha sido pequena, terá ele contribuído diretamente na execução propriamente do crime. A sua culpabilidade, naturalmente superior à de um simples partícipe, será avaliada nos termos do art. 29, caput, do Código Penal, e a pena a ser fixada obedecerá aos limites abstratos previstos pelo tipo penal infringido. Já o partícipe que houver tido “participação de menor importância” poderá ter sua pena reduzida de um sexto a um terço, podendo inclusive, ficar aquém do limite mínimo cominado, nos termos do art. 29, §1º. No entanto, o partícipe que teve uma atuação normal de partícipe na prática da infração penal (instigador ou cúmplice) deverá ter sua pena base graduada nos termos do art. 59, devendo, naturalmente, ser considerada elo julgador que sua culpabilidade é inferior a de um autor ou coautor, nos termos do art. 29, caput, in fine.” (BITTENCOURT, 2014, p. 572)
[26] Em sentido similar, é a conclusão de Beatriz Corrêa Camargo (2018, p. 232)“Isso não significa dizer, porém, que o nosso sistema do concurso de pessoas possui uma configuração adequada aos seus propósitos. Seria aconselhável, no mínimo, uma formulação dos modos de comportamentos que dão ensejo à lesão do dever no concurso de pessoas, cumprindo estabelecer igualmente sob quais condições isso deve ocorrer, isto é, se a ação deve ser dolosa, antijurídica, culpável, etc.”
[27] “A contrata B, para que este mate C, o amante de sua esposa. Após anos de maus-tratos nas mãos de P, M pede ao filho F maior de idade que mate o pai tirano. A e M são ‘mandantes’, mas não autores, e sim partícipes, instigadores. Isso com ou sem a teoria do domínio do fato, mais até com ela, do que sem ela. Porque sem a teoria, o natural entender, arrimado na letra do art. 29, caput, CP que A e M, já por terem concorrido para o crime, são autores. Só teorias que conectam a autoria à realização do tipo, como a teoria forma-objetiva ou a teoria do domínio do fato, farão de A e M partícipes.” (GRECO e LEITE, 2014, p. 37-38)
[28] Como já dito, é o caso, por exemplo, do Código Penal alemão (§26, StGB).
Mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-Graduado (lato sensu) em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado. [email protected].
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZONTA, Fernando de Oliveira. Análise constitucional do concurso de agentes no direito brasileiro: a aplicação do redutor previsto no art. 29, §1º do Código Penal aos partícipes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2020, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55346/anlise-constitucional-do-concurso-de-agentes-no-direito-brasileiro-a-aplicao-do-redutor-previsto-no-art-29-1-do-cdigo-penal-aos-partcipes. Acesso em: 23 dez 2024.
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