RESUMO: Na busca por uma plena observância ao princípio da função social da propriedade e às garantias fundamentais insculpidas na Carta Magna de 1988, o presente trabalho tem por objetivo investigar, sob as mais variadas óticas, a possibilidade de aquisição de bens públicos dominicais, isto é, aqueles não afetados a uma destinação pública, por quem preencha os requisitos postos para concessão de usucapião de bens imóveis. Em decorrência de haver disposições constitucionais e legais expressas pela impossibilidade, bem como posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais majoritários desfavoráveis à ideia, o corrente estudo embolsa salutar importância, haja vista trazer perspectiva de inovação nos planos de estudo e aplicação do Direito.
ABSTRACT: In the search for full observance of the principle of the social function of property and the fundamental guarantees inscribed in the 1988 Constitution, the present work aims to investigate, from the most varied perspectives, the possibility of acquiring no function public properties, that is, those not allocated to a public destination, by those who fulfill the requirements set for the concession of adverse possession of real estate. As there are constitutional and legal provisions expressed by the impossibility, as well as majority doctrinal and jurisprudential positions unfavorable to the idea, the current study pays salutary importance, in view of bringing a perspective of innovation in the study plans and application of Law.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da interpretação sistemática. 3. Do instituto da Usucapião. 4. Do regime jurídico dos bens públicos. 5. Dos fins a que se destina o Estado. 6. Da função social da propriedade pública. 7. Da usucapião de bens públicos dominicais. 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas.
1.INTRODUÇÃO
O art. 183, § 3º, da CF, aduz que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. Ademais, o art. 191, § único, do mesmo diploma constitucional, enuncia novamente que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. No plano infraconstitucional, o art. 102, do CC, aduz que os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Nessa toada, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento sumulado de que os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião (Súmula 340 do STF).
Depreende-se, portanto, que a usucapião de bens públicos é expressamente vedada no ordenamento jurídico brasileiro. Não obstante, o art. 5º, XXIII, da CF, dispõe que a propriedade atenderá sua função social, constituindo tal princípio uma garantia fundamental e uma limitação ao direito de propriedade. Complementarmente, o art. 6º, da CF, traz a moradia como um direito social. Adiante, em seu capítulo III, o texto constitucional proclama acerca da política agrícola e fundiária e da reforma agrária, aduzindo que o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social é passível de desapropriação para fins de reforma agrária. Desse confronto aparente de normas, surgem várias questões: o Estado tem de cumprir a função social da propriedade tal qual o particular? Pode-se dizer que essa impossibilidade de aquisição de propriedade pública inutilizada pelo decurso do tempo vai de encontro aos direitos fundamentais garantidos no bojo da CF? Essa vedação posta como absoluta estaria em conformidade com os princípios constantes do texto constitucional?
De modo a apresentar respostas para as perguntas acima, o presente trabalho se propõe a estudar os institutos da usucapião, dos bens públicos e da função social da propriedade, bem como os pressupostos de existência do Estado, por meio de uma interpretação sistemática dos ditames constitucionais e seus consequentes reflexos no ordenamento jurídico pátrio.
Por fim, o presente estudo não alça esgotar as divergências sobre o tema, tampouco oferecer uma solução final para a questão, mas sim contribuir e fomentar as discussões sobre o assunto.
2. DA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA
Antes de se dedicar a maiores elucidações acerca dos institutos jurídicos em questão, torna-se mister trazer considerações acerca do critério hermenêutico a ser utilizado no decorrer das seções.
Para André Franco Montoro, interpretar traduz o ato de fixar o verdadeiro sentido e alcance de uma norma jurídica, em buscar seu real e mais apropriado significado bem como determinar a sua extensão, a sua abrangência.[1]
Os métodos de interpretação existentes são regras técnicas que buscam o alcance de um resultado e concorrem para a solução dos problemas de decidibilidade dos conflitos. Nos ditames de Tércio Sampaio Ferraz Jr., o método de interpretação sistemática ou orgânico, considerando o caráter estrutural do Direito, parte da ideia de que seu objeto de estudo integra um sistema normativo amplo, não podendo ser considerado fora deste, uma vez que se tem como pressuposto o ordenamento jurídico como um todo hermético.[2] Nesse sentido, o modo sistemático é responsável pela unidade e coerência do ordenamento jurídico pois, ao interpretar a norma à luz do espírito do ordenamento jurídico, compatibiliza as partes destes entre si e essas com o todo.[3]
Nesse contexto hermenêutico, insta salientar que os princípios guardam preponderância em relação às regras, pois, conforme enuncia Jorge Miranda, a ação mediata daqueles consiste, em primeiro lugar, em funcionar como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão coerência geral ao sistema. São verdadeiros alicerces, disposições fundamentais que se irradiam sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito.[4] Já as regras são formuladas respeitando os princípios, os quais vão mostrar o sentido pelo qual a regra deve agir no caso concreto.[5] Complementarmente, o intérprete deve, ainda, buscar o sentido exato dos princípios constitucionais de modo a restar explícitas ou, ao menos, explicitáveis as normas que o constituinte não quis ou não pôde exprimir cabalmente.[6]
Nos ditames desse método de interpretação, ao se debruçar no estudo de uma norma, deve-se analisá-la dentro do sistema geral do código, dos princípios orientadores do direito pátrio e na compatibilidade com o texto da Constituição Federal. [7]
3.DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO
Usucapião é o modo de adquirir propriedade por meio da posse continuada durante certo lapso de tempo desde que sejam obedecidos os requisitos estabelecidos na legislação. Para Orlando Gomes, trata-se de um modo originário de aquisição da propriedade em razão de não restar qualquer vínculo entre o antigo titular da propriedade e o possuidor que a adquire.[8] Todavia, Caio Mário da Silva Pereira afirma que consiste em uma modalidade de aquisição derivada do domínio, pois, embora falte à usucapião a circunstância da transmissão voluntária, a coisa esteve sob o senhorio de outrem, ocorrendo a perda da titularidade da relação jurídica dominial em proveito do adquirente.[9] Data Venia, o entendimento deste emérito doutrinador é minoritário, pois, assim como a maioria da doutrina, o Superior Tribunal de Justiça apresenta posicionamento reiterado no sentido de que a usucapião é modo originário de aquisição de propriedade, não havendo transferência de domínio ou vinculação entre o proprietário anterior e o usucapiente para efeitos legais.[10]
No que tange o fundamento jurídico da usucapião, a doutrina pátria se divide em duas correntes: a subjetiva e a objetiva. A teoria subjetivista entende que a razão da existência do instituto é a presunção do ânimo de renúncia ao direito por parte de um proprietário que não a exerce (renúncia presumida): se o dono demonstra desinteresse na utilização da propriedade por certo tempo, é porque ou a abandonou ou está na iminência de fazê-lo. Em contrapartida, a complexidade da natureza humana retira da negligência o status de razão determinante para a perda da propriedade, conforme critica Lafayette[11]. Nesse panorama, a corrente objetivista fundamenta a usucapião nas questões de utilidade social. Tem-se como socialmente conveniente dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como consolidar às aquisições e a facilitar a prova de domínio. Vale dizer que a tendência moderna é de cunho nitidamente objetivo, prestigiando a função social da propriedade e se inclinando no sentido de valorizar quem trabalha o bem usucapido de modo a reintegrá-lo nos valores efetivos de utilidade social.[12] Nessa toada, Orlando Gomes ainda destaca que a ampliação das espécies de aquisição mediante a usucapião, considerando especialmente a utilização do bem a ser adquirido, seja para trabalho ou para moradia, evidencia que o fundamento do instituto, atualmente, aponta para uma função social da posse.[13]
Para que haja usucapião é mister o concurso de alguns requisitos, quais sejam os relacionados às pessoas a quem interessa (requisitos pessoais), às coisas a que pode recair (requisitos reais) e à forma por que se constitui (requisitos formais). Quanto aos requisitos pessoais, o adquirente deve ser capaz e ter a qualidade de possuidor para adquirir a propriedade. Quanto a quem sofre os efeitos da usucapião, não há necessidade de ser capaz, bastando, apenas, ser proprietário. Todavia, há a ressalva de que os bens de pessoas jurídicas de direito público são imprescritíveis, o que inviabiliza a ocorrência de usucapião. No que toca aos requisitos reais, não são todas as coisas nem todos os direitos que se adquirem por usucapião. A priori, os bens que estão fora do comércio não podem ser usucapidos, como os bens públicos. Há, ainda, coisas que estão no comércio, mas não podem ser usucapidas pois são propriedade de pessoas contra as quais não corre a prescrição, a exemplo dos bens públicos dominicais disponíveis para alienação. Já no que tange aos requisitos formais, deve-se observar o imposto pela lei para cada espécie, uma vez que certas modalidades carecem de justo título e boa-fé por parte do possuidor. Contudo, sempre é necessário que haja posse e lapso de tempo, podendo este ser de 5, 10 ou 15 anos a depender da espécie de usucapião. Ademais, a posse deve ser mansa, pacífica, contínua e pública, bem como exercida com animus domini, isto é, com a intenção de possuir como dono, oferecendo, na aparência, a certeza de que o possuidor é o proprietário do bem.
Em que pese as elucidações acima, não se defende a adoção, necessariamente, dos mesmos requisitos para a usucapião de bens públicos dominicais caso esta reste como plausível. Por envolver, ao menos na teoria, bens que são de todos, é natural que se tenha um maior zelo no trato com a coisa pública e, por conseguinte, imponha-se condições mais rígidas para a ocorrência dessa modalidade de usucapião.
4.DO REGIME JURÍDICO DOS BENS PÚBLICOS
No livro II, capítulo III, do Código Civil resta enunciado que são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a pertencerem. A despeito de tal definição legal, doutrina e jurisprudência divergem do que realmente pode ser considerado como bem público.
Conforme destaca Alexandre Mazza[14], o conceito de bens públicos pode ser dividido em três correntes principais: a) corrente exclusivista, segundo a qual o conceito de bens públicos deve estar necessariamente vinculado à ideia de pertencerem ao patrimônio de pessoas jurídicas de direito público, sendo a visão defendida por José dos Santos Carvalho Filho e a adotada pelo Código Civil brasileiro; b) corrente inclusivista, a qual considera que são bens públicos todos aqueles que pertencem à Administração Pública direta e indireta, sendo a posição defendida por Hely Lopes Meirelles; e c) a corrente mista, a qual pode ser considerada como um ponto de vista intermediário, já que afirma que são bens públicos todos os que pertencem a pessoas jurídicas de direito público e aqueles que estejam afetados à prestação de um serviço público, ainda que os últimos pertençam a pessoa jurídica de direito privado, estatal ou não. Tal corrente parece ser a mais arrazoada, visto que reconhece como bens públicos os pertencentes a pessoa jurídica de direito privado, ainda que não estatal, mas indispensáveis para a prestação de serviços públicos, como é o caso do patrimônio de concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
O artigo 99 do Código Civil classifica os bens públicos em 3 espécies: os de uso comum do povo, como rios, estradas, ruas e praças; os de uso especial, como terrenos ou edifícios destinados a serviço ou estabelecimento da administração; e, os dominicais, que constituem patrimônio real ou pessoal das pessoas jurídicas de direito público ou das que embora também o sejam, tenham estrutura de direito privado. Depreende-se, dessa maneira, que os bens de uso comum do povo e os de uso especial estão afetados a uma destinação pública, isto é, são utilizados como instrumento para o cumprimento de determinada tarefa. Por outro lado, os bens públicos dominicais não guardam tal característica, pois não possuem destinação pública. Um grande exemplo de bens dominicais são as terras devolutas, exceto as que estão protegidas por ter importância para a preservação do ecossistema local.[15]
Para Celso Antônio Bandeira de Mello[16], a importância de se incluir um bem na definição de público refere-se à incidência ou não do respectivo regime jurídico aplicável a ele. Sendo assim, a saber, o regime jurídico dos bens públicos é composto pelos seguintes atributos: a) inalienabilidade ou alienabilidade condicionada, a qual diz respeito à impossibilidade de alienação de bens públicos de uso comum e especial e à alienabilidade de bens públicos desde que não tenham destinação pública (bens dominicais) e cujo processo obedeça aos requisitos da lei nº 8.663/93; b) impenhorabilidade, a qual consiste na vedação da constrição destes bens para satisfação de dívidas, pois, em regra, um bem penhorado é alienado; c) a imprescritibilidade, a qual se traduz pelo fato de os bens públicos não estarem sujeitos à usucapião; e d) a não onerabilidade, que decorre da inalienabilidade e se caracteriza pela inviabilidade de se dar um bem público como garantia de dívida.
5.DOS FINS A QUE SE DESTINA O ESTADO
Conforme destaca Rafael Maffini, o modelo vigente de Estado é orientado à satisfação de interesses coletivos. Tal fato resta demonstrado desde a escolha da forma de governo, a república, cuja origem etimológica traz a ideia de coisa do povo, cabendo, dessa forma, aos governantes o papel de administradores de interesses alheios, orientando as ações administrativas em favor do povo, do interesse público.[17]
A administração pública na persecução das atividades estatais se submete ao regime jurídico-administrativo, o qual se traduz pelo binômio supremacia do interesse público sobre o privado versus indisponibilidade do interesse público. Em outras palavras, pode-se depreender que a supremacia se traduz pelas prerrogativas que a Fazenda Pública tem mesmo quando atua sob a égide do direito privado, como, por exemplo, no caso das locações, tal qual é possível compreender que as sujeições consistem nas restrições impostas à administração pública, a qual não pode renunciar ao interesse público caso não haja previsão legal expressa nesse sentido, como ocorre com as isenções tributárias, a título exemplificativo.
Embora se fale muito em interesse público, os significados que tal termo pode vir a ter na seara administrativa não são cediços. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello contribuiu para a celeuma doutrinária enunciando que interesse público é o interesse de indivíduos vistos sob a ótica de membros de uma coletividade e não como a soma de interesses individuais.[18] Contudo, outros autores criticaram a definição sob o argumento de que ela supervalorizaria o interesse coletivo em detrimento do interesse individual.
Nesse contexto, a administração pública, ao invocar a supremacia do interesse público, com base no interesse público, acabou por cometer arbitrariedades e desrespeitar direitos e garantias fundamentais individuais, ignorando o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Por fim, passou-se a entender que resta contido no conceito de interesse público o interesse de cada indivíduo. Deve, dessa forma, o interesse público ser contemporaneamente interpretado como o interesse da coletividade, o qual não pode massacrar interesses individuais.
Por mais que a regra no ordenamento jurídico seja a tutela do interesse público primário, o qual coincide com o interesse da coletividade, o interesse público secundário (o da administração pública vista como uma entidade) não é ilegítimo de maneira absoluta, podendo ser levado em consideração desde que esteja de acordo com o primário. A contrario sensu, é vedado à administração guiar suas ações visando apenas o interesse público secundário, estando esse em desacordo com o interesse da coletividade.[19]
6.DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA
O constituinte de 1988 incluiu a função social da propriedade no texto constitucional como princípio da ordem econômica e social (art. 170, III) e garantia fundamental do cidadão (art. 5º, XXII). Conforme destaca Frederico Moesch, isso significa que a função é um princípio próprio e autônomo, o qual tem o condão de instrumentalizar todo o tecido constitucional, e, por derradeiro, todo o ordenamento infraconstitucional. Dessa maneira, tem-se que, no ordenamento jurídico pátrio, o direito de propriedade é garantido, desde que reste cumprida a sua função social. Ele é tratado, ao mesmo tempo, como direito individual fundamental e de interesse público, visando a atender os anseios sociais.[20]
No que tange à propriedade privada, não resta dúvidas quanto à obrigatoriedade de sua subsunção aos ditames da função social. Contudo, e quanto à propriedade pública?
Habitualmente, as consequências jurídicas da obrigatoriedade da observância do princípio da função social são mais significativas no que tange à propriedade privada, fato o qual rechaça a ideia desta como espaço no qual o proprietário é autorizado a fazer tudo aquilo que bem entende sem qualquer controle. Em contrapartida, a propriedade pública, já se relaciona, ao menos na teoria, ao atendimento dos interesses de todos e, em consequência, meditar acerca de sua função social soa como uma atividade sem função, pois se baseia em algo que já é tido como intrínseco ao instituto. Não obstante, é preciso lembrar que a propriedade pública por ser um bem do Estado é, como já estudado, dirigida não à busca do interesse social, mas sim do interesse público. Dessa maneira, para que se possa falar que uma propriedade pública cumpre sua função social é mister que se verifique a consonância existente entre os dois interesses (público e social), conforme destaca Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber.[21]
Há quem afirme, assim, que o Estado não exerce sobre os bens públicos um direito de propriedade tal como ocorre no Direito Privado, pois o que vincula estes ao Estado tem outra natureza, definida constitucionalmente, uma vez que os bens públicos estão vinculados ao atendimento de finalidades públicas confiadas à administração da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal e tão somente para a consecução dos respectivos fins que se encontram disponíveis.[22]
Nesse mesmo sentido, assevera Sílvio Luís Ferreira da Rocha que o princípio da função social da propriedade ganhou contornos nítidos no ordenamento jurídico e que os seus efeitos incidem, também, sobre o domínio público, embora, ás vezes, haja a necessidade de harmonizar o princípio da função social com outros princípios e com o interesse público. [23]
7.DA USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS DOMINICAIS
Para Juliana Binhote, a vedação da aquisição por usucapião de bens parte da presunção de que todos os bens públicos estão sempre cumprindo sua função social.[24] Contudo, Maria Sylvia Zanella de Pietro ensina que não se pode dizer que bens dominicais, por sua própria natureza, desempenham uma função social, pois caso assim o fosse, eles não seriam classificados desse modo, mas sim como bens de uso comum do povo ou de uso especial. [25]
Sílvio Luís Ferreira da Rocha entende que no caso dos bens dominicais, o princípio da função social da propriedade inclui o efeito de submetê-los à força aquisitiva da posse contínua e pacífica, não sendo suficiente para impedir a sua incidência uma proposição normativa que subtrai os bens públicos do raio da prescrição aquisitiva.
Dessa maneira, por mais que hajam disposições expressas pela impossibilidade de usucapião de bens públicos dominicais, não há interesse público, genérico ou específico, (pressuposto básico da atuação administrativa) que justifique a insubmissão da classe de bens dominicais a todos os efeitos do princípio da função social, diante da semelhança que eles guardam com os bens privados. Há, assim, necessidade de se interpretar a proibição da usucapião dos bens públicos para adequá-la somente em relação dos bens considerados de uso comum do povo e aos bens considerado de uso especial.[26]
Como visto, o ordenamento pátrio permite que os bens dominicais sejam alienados, ou seja, se o Estado tem um bem inutilizado, é lhe facultado vender este. Mas, se ele não o faz, independentemente de quanto tempo dure a inércia, nada acontecerá com o bem, o que corrobora, de certa forma, com uma postura negligente por parte dos agentes estatais.
Nesse contexto, a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens público é errônea, pois vai de encontro ao princípio da função social da propriedade e, em última instância, ao da proporcionalidade. Defendendo tal posicionamento, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves[27] dividem os bens em formalmente e materialmente públicos, sendo os primeiros aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, mas excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva, enquanto que os materialmente públicos consistem naqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, uma vez que são dotados de função social. Assim, a imprescritibilidade dos bens públicos constante no bojo da Constituição se refere tão somente aos bens materialmente públicos, pois caso sejam bens formalmente públicos, é possível falar em usucapião se satisfeitos os demais requisitos legais, uma vez que se trata de instrumento hábil a fazer com que a função social seja cumprida pelo Estado, promotor máximo do bem-estar social.
8.CONCLUSÃO
Embora se apresente como majoritária a corrente doutrinária e jurisprudencial que entende como impossível usucapião de bens públicos dominicais, não é possível defender tal posição em um contexto de déficit habitacional e de problemas agrários tal qual o Brasil enfrenta.
Nessa toada, a letra fria da lei que não se aproxima da realidade social e das necessidades de um povo retira do Estado a legitimidade que este tem como representante do interesse público.
Nesse sentido, a persistência de bens dominicais no acervo patrimonial estatal não constitui prática administrativa correta, pois a propriedade que deixa de cumprir sua função social deveria ser tida como malbaratamento do patrimônio público. Assim, é mister que sejam criadas ferramentas, a exemplo da usucapião de bens públicos dominicais, que tenham como escopo limitar o número de bens dominicais integrantes do patrimônio dos entes públicos, os quais em nada contribuem para o bem de todos.[28]
9.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS:
[1] MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25ª ed. São Paulo: Revista dos Tribuns, 2000. P. 369.
[2] SAMPAIO JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2015. P 283.
[3] MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica Jurídica Clássica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. P. 45.
[4] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2013. P.629.
[5] DIAS, Marco Aurélio. Princípios e regras como elementos conflitantes e definidores do direito administrativo. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/princ%C3%ADpios-e-regras-como-elementos-conflitantes-e-definidores-do-direito-administrativo> Acesso em 08 ago 2015.
[6] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. II: “ Constituição e Inconstitucionalidade”. 3ª ed. Coimbra: Coimbra editora, 1991. P. 226.
[7] RAMOS, Chiara. Hermenêutica jurídica: conceitos iniciais. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4069, 22 ago. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/29254>. Acesso em: 15 jun. 2015
[8] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. P. 180.
[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil Vol. IV – Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 2012. P. 127.
[10] STJ - AgRg no REsp: 647240 DF 2004/0029738-0, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 07/02/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/02/2013 e STJ - REsp: 118360 SP 1997/0007988-0, Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), Data de Julgamento: 16/12/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/02/2011
[11] PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas, t. I. Editora Russell. P.169.
[12] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. Vol.5. 3ª ed. São Paulo: Atlas. 2003. P. 197.
[13] GOMES, Orlando. Ob. cit.
[14] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: ed. Saraiva. P. 1560.
[15] MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo: Impetus, 2013. P. 240.
[16] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. P. 895.
[17] MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. P 36.
[18] Ibidem. P. 87.
[19] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob. Cit. P. 35.
[20] MOESCH, Frederico F. O princípio da função social da propriedade e sua eficácia. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/7645/o-principio-da-funcao-social-da-propriedade-e-sua-eficacia#ixzz3eIHPyNy9> Acesso em 10 jun 2015.
[21] TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A Garantia da Propriedade no Direito Brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 6 - Junho de 2005. P.105.
[22] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014. P. 1037.
[23] ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da Rocha. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo: Malheiros, 2005. P. 153.
[24] BINHOTE, Juliana Molina. Usucapião em bens públicos: a função social da propriedade pública. Disponível em: < http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2007/relatorios/dir/relatorio_julianamolina.pdf> Acesso em 17 ago 2015.
[25] PIETRO, Maria Sylvia Zanella de. Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. P 453.
[26] Ibidem. P. 160.
[27] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. P. 150.
[28] CARVALHO, Wesley Corrêa. Bens dominicais: o imperdoável paradoxo da Administração Pública. Disponível em:< http://jus.com.br/artigos/23663/bens-dominicais-o-imperdoavel-paradoxo-da-administracao-publica> Acesso em 17 ago 2015.
Conciliadora no Tribunal de Justiça de Pernambuco. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2014). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp (2016). Pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Elpídio Donizetti (2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEMOS, Milena Tenório de. Da impossibilidade de usucapião de bens públicos: interpretação sistemática à luz da Constituição Federal de 1988. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2020, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55347/da-impossibilidade-de-usucapio-de-bens-pblicos-interpretao-sistemtica-luz-da-constituio-federal-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
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