RESUMO: O presente trabalho estuda as possibilidades da responsabilização pelos crimes de concussão ou extorsão, quando o agente público se vale da função para exigir vantagem indevida, se utilizando de violência ou grave ameaça. Essa pesquisa está inserida num contexto social de vácuo legislativo no tocante a conduta acima apresentada, de modo que existem correntes jurisprudenciais diametralmente opostas, sobretudo nos dias atuais, em que houve uma alteração no crime de concussão trazido pela Lei 13.964/2019, culminando no seu aumento de pena. A presente análise foi feita se baseando em vários princípios do direito penal, como o da proporcionalidade e da especialidade. Para chegar aos resultados, foi realizado uma pesquisa bibliográfica e documental do direito brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Concussão; extorsão; pacote anti crime; vácuo legislativo; violência ou grave ameaça.
KEYWORDS: Concussion, extortion, anti-crime package, legislative vacuum, violence or serious threat.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Sobre a Extorção. 3. Sobre o crime de Consussão. 4. Do emprego da violência ou grave ameaça na concussão. 5. O pacote anti crime a nova pena do crime de concussão. 5.1. Responsabilização pela concussão. 5.2. Responsabilização pelo crime de extorção. 6. Benefícios e possíveis medidas despenalizadoras. 7. Insegurança jurídica e eventuais ações revisionais. 8. Proposta de Intervenção. 9. Considerações Finais
Os crimes cometidos por servidores públicos contra a administração pública, são peça chave no combate à corrupção (no conceito de gênero, não de espécie). Sua punibilidade deve ser melhor pensada, na medida que as consequências naturalísticas desse tipo de delito trespassam por vezes, a de delitos comuns.
Geralmente, quando fala-se desse tipo de prática delitiva subentende-se a figura de um servidor público, que o Estado, de um modo ou de outro, confia a ele poderes públicos decorrentes de uma suposta presunção de probidade em suas ações. Acontece que nos dias atuais essa presunção se mostra através dos noticiários cada dia mais não confiável, dado a crescente galopante de inquéritos nesse sentido com o passar do tempo.
O direito penal, na qualidade de um ramo do direito que atua como ultima ratio na solução de conflitos, se apega a princípios e regras demasiadamente rígidas, sob pena de esbarrar em ilegalidades processuais e consequentemente o cometimento de injustiças.
Exatamente por isso, cabe lembrarmos da importância da adequação típica penal na Teoria Geral do Crime. Quer dizer, para que uma prática delitiva seja de algum modo punível é imprescindível uma adequação típica perfeita, entre a conduta do acusado, e a letra da lei. Sob pena de esbarrar no princípio penal da legalidade.
No entanto existem alguns vácuos legislativos no direito penal que as jurisprudências e doutrinadores fazem construções penais diversas das dispostas no Código Penal, para que de algum modo o agente seja punido. Atitudes essas que vez ou outra, funcionam ainda que não intencionalmente como um aceno para a sociedade, que cobra a punibilidade de certas condutas.
Um dos exemplos de vácuo legislativo é justamente a falta de um tipo penal que abarque o crime de concussão quando praticado com violência ou grave ameaça. O debate gira em torno do crime de concussão apesar de usar o verbo “exigir” como núcleo do tipo penal, não engloba a conduta de ser praticada com violência ou grave ameaça, de modo que quando praticado dessa maneira, a conduta violenta e a não violenta seriam punidos de igual forma.
No entanto, alguns doutrinadores entendem a possibilidade de punir o agente com o crime de extorsão, dado que este tipo penal envolve a violência ou grave ameaça. Porém aqui estaríamos ferindo o princípio da especialidade, dado que estaria-se deixando de aplicar norma especial, para aplicar uma norma geral.
E é justamente esse diapasão que este trabalho irá se voltar. Quer dizer, fazendo a análise jurisprudencial do antes e do depois das alterações advindas do pacote anti crime, e fazendo a comparação dos efeitos dessa modificação legislativa para o agente já recluso, bem como os eventuais réus no futuro.
O crime de extorsão está previsto no Art. 158 do código penal. Este, criminaliza a conduta de constranger, obrigar, coagir alguém a fazer algo, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. De modo que é elementar do tipo que a conduta se dê com o emprego de violência ou grave ameaça.
O respeitável doutrinador Bento Faria conceitua a extorsão como:
Procurar alguém, para si ou para outrem, um proveito injusto, constrangendo outra pessoa mediante violência ou grave ameaça, a fazer ou omitir alguma cousa. O ataque à liberdade é um - meio - e não - um fim, vez que o delito é praticado contra o patrimônio e não contra as liberdades individuais. (FARIA, Bento de. 1943, v. 4, p. 65)
Nesse caso percebemos um crime comum, que se tutela o patrimônio da vítima bem como sua integridade física uma vez que como já dito a violência ou grave ameaça é elementar do tipo penal. É também um crime plurissubsistente, portanto a conduta é passível de tentativa.
Consideramos neste trabalho este delito como sendo formal nos filiando a Súmula nº 96 do STJ, com máxima vênia às correntes alternativas.
É um delito que tem pena compreendida entre quatro e dez anos, e por conta da pena mínima e da ocorrência de violência ou grave ameaça, não é abarcado por grande parte das medidas de não encarceramento, como a suspensão condicional do processo por exemplo.
É exemplo do crime de extorsão o agente que agride e constrange a vítima por exemplo, a ir em sua agência bancária e sacar determinada quantia em dinheiro e lhe fazer a entrega. É um crime portanto que necessita de cooperação da vítima.
O crime de concussão disposto no Art. 316 do Código Penal criminaliza a conduta de exigir vantagem indevida para si ou para outrem, que não o Estado, limitando o polo ativo da conduta à figura do funcionário público competente (no sentido amplo do direito penal). Perceba o que diz o código:
Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa (BRASIL, 1940)
Esse crime tutela principalmente a administração pública, mas subsidiariamente tutela-se também o patrimônio do particular que é afetado pelo ato ilícito do agente do crime.
Há que se considerar algumas peculiaridades do crime de concussão que os distinguem dos demais crimes com ele parecidos. A presente conduta só pode ser praticada por funcionário público, recebendo dessa forma a classificação de crime próprio. No máximo o que pode acontecer é a participação ou a coautoria de particular mas em concurso necessário com o agente público.
Outra singularidade é que o agente não solicita vantagem indevida, mas o exige, distinguindo assim do crime de corrupção passiva, disposto no mesmo diploma legal. Veja o que o consagrado doutrinador Rogério Sanches ensina sobre essa exigência:
Na exigência feita pelo intraneus há sempre algum tipo de constrição, influência intimidativa sobre o particular ofendido, havendo necessariamente algo de coercitivo. O Agente impõe, ordena, de forma intimidativa ou coativa, a vantagem que almeja e a que não faz jus. (CUNHA, Rogério Sanches, 2019. p. 846)
Perceba que apesar da exigência ser impositiva, amedrontadora, e coercitiva, não há a caracterização da violência ou grave ameaça, como em outros crimes a exemplo do roubo e da extorsão. De modo que quando essa circunstância seja comprovada, tem-se então uma eventual mudança do tipo penal, para a extorsão.
Uma característica fundamental do crime de concussão é o abuso de autoridade que pode vir através do funcionário público, ou da função pública. Mas não necessariamente o crime precisa acontecer no exercício da função, podendo acontecer antes, depois, ou até sem sequer assumi-la, como é o caso dos servidores nomeados, que antes mesmo de assumir o cargo já exige vantagem indevida.
É exemplo do crime de extorsão o médico trabalhando no sistema único de saúde (SUS) que exige pagamento em dinheiro do paciente para a realização de exames que seriam feitos gratuitamente . Tal qual o crime de extorsão, esse tipo penal necessita de cooperação da vítima.
Sempre foi muito questionado no ordenamento jurídico brasileiro qual a responsabilização penal cabível quando o agente público se utiliza da violência ou da grave ameaça para atingir o fim da concussão.
Esse questionamento se dá basicamente porque o crime de concussão não prevê em suas ações o emprego de violência ou grave ameaça, e sim a mera exigência. Ou seja, existe uma lacuna legislativa que prevê a responsabilização pelo mesmo crime, não se importando se a conduta foi praticada com ou sem violência ou grave ameaça, uma vez que reitera-se que a letra da lei não faz essa distinção. Assim a responsabilização pela concussão fere de certo modo o princípio da legalidade, uma vez que não há previsão legal para criminalização desta conduta em específico.
Por outro lado, esse crime se assemelha bastante com o crime de extorsão já explicado por esse trabalho. São tipos penais bastante parecidos, e neste há a previsão expressa da violência ou grave ameaça, e que inclusive até novembro de 2019, tinha pena mais grave qual seja, de 4 a 10 anos, contra 2 a 8 da concussão.
Por isso a questão até aquela data era bastante pacífica, uma vez que a conduta mais grave, ou seja, com a violência ou grave ameaça, teria o deslocamento do tipo penal para o crime com pena mais gravosa.
Porém cabe lembrar que se por um lado a responsabilização pelo crime de concussão fere o princípio da legalidade por falta de adequação típica, por outro a responsabilização pelo crime de extorsão fere o princípio da especialidade, uma vez que a concussão é um crime específico para o servidor público, a aplicação da extorsão nesse caso, seria uma forma de fugir de uma lei própria para outra geral. Isso sem falar nas violações do in dubio pro reo , pois diante desta dúvida se está punindo o agente pelo crime mais grave (concussão), de modo a prejudicá-lo.
No que tange à responsabilização existem correntes em todos os sentidos, e por um período considerável de tempo prevaleceu o pensamento de Fernando Capez que em sua obra se filiava à corrente que defende a responsabilização pelo crime de extorsão:
Dessa forma, o policial militar que exige dinheiro da vítima para não prendê-la em flagrante comete o delito de concussão. Contudo, não pratica esse delito, mas o de extorsão ou roubo, por exemplo, o policial militar que exige vantagem indevida da vítima utilizando-se de violência, ou ameaçando-a gravemente de sequestrar seu filho. (CAPEZ, 2018, v. IV.)
Acompanha o entendimento de Capez, o também renomado doutrinador Rogério Greco, perceba o entendimento:
A concussão pode ser entendida como uma modalidade especial de extorsão praticada por funcionário público. Uma das diferenças entre ambas as figuras típicas reside no modo como os delitos são praticados.
Assim, na extorsão, a vítima é constrangida, mediante violência ou grave ameaça, a entregar a indevida vantagem econômica ao agente; na concussão, contudo, o funcionário público deve exigir a indevida vantagem sem o uso de violência ou grave ameaça, que são elementos do tipo penal do art. 158 do diploma repressivo. (GRECO, Rogério. 2011, v. IV, p. 404)
Seguindo o entendimento de Fernando Capez, decidiu recentemente o TJ/PE ao receber uma apelação criminal que objetivava a desclassificação do crime de extorsão para o de concussão, segue o julgado:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ART. 158, § 3ª C/C O ART. 159, § 2º, AMBOS DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO. INEXISTÊNCIA DE PROVAS PARA ENSEJAR CONDENAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE GUARDA HARMONIA COM A PROVA DOS AUTOS. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO DE EXTORSÃO PARA O DE CONCUSSÃO. IMPOSSIBILIDADE. EMPREGO DE VIOLÊNCIA E GRAVE AMEAÇA NA PRÁTICA DO DELITO. CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE EXTORSÃO E NÃO CONCUSSÃO, NÃO OBSTANTE PRATICADO POR FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS, VALENDO-SE DESSA CONDIÇÃO. APELAÇÕES NÃO PROVIDAS.
DECISÃO UNÂNIME. I - Não merece reforma, a sentença que condenou o acusado em consonância com o conjunto probatório existente nos autos. II - Na concussão o agente, que é sempre funcionário público, exige a vantagem indevida valendo-se unicamente da função que exerce, sem a realização de violência ou grave ameaça (art. 316, do CP). Na extorsão, o sujeito ativo, que pode ser qualquer pessoa, inclusive o funcionário público, constrange alguém mediante violência ou grave ameaça, com o intuito de obter indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. III - O principal traço distintivo entre os dois crimes é que, na extorsão, o intuito de obter indevida vantagem econômica decorre de constrangimento causado pela violência física ou grave ameaça perpetrada contra o sujeito passivo, não exclusivamente do temor genérico que a simples condição funcional do agente inspira na vítima, como acontece na concussão. In casu, ainda que o delito tenha sido cometido por funcionários públicos (policiais militares), os quais teriam se valido dessa condição para a obtenção da vantagem indevida, o crime por eles cometido corresponde ao delito de extorsão qualificada e não ao de concussão, uma vez configurado o emprego de grave ameaça e violência. IV - O emprego de violência ou grave ameaça é circunstância elementar do crime de extorsão tipificado no art. 158 do Código Penal. Assim, se o funcionário público se utiliza desse meio para obter vantagem indevida, comete o crime de extorsão e não o de concussão. Precedente do STJ. V - Recurso não provido. Decisão unânime.
(TJ-PE - APR: 4699343 PE, Relator: Daisy Maria de Andrade Costa Pereira, Data de Julgamento: 14/08/2019, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 21/08/2019)
Na decisão o tribunal entende que o delito de extorsão por ser considerado crime comum, qualquer pessoa pode praticá-lo, inclusive o funcionário público. Portanto havendo a caracterização da violência ou grave ameaça não há que se falar em concussão, e sim, em extorsão.
Há precedentes também no STJ em sede de Habeas Corpus que se filiam à mesma corrente doutrinária levantada pelos doutrinadores acima levantados também seguida pelo TJ/PE. Segue a ementa:
HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. EXTORSÃO E DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. PACIENTE POLICIAL CIVIL. FLAGRANTE FORJADO PARA OBTENÇÃO DE VANTAGEM ILÍCITA. DESCLASSIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVAS. NECESSIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 3. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, buscando a racionalidade do ordenamento jurídico e a funcionalidade do sistema recursal, vinha se firmando, mais recentemente, no sentido de ser imperiosa a restrição do cabimento do remédio constitucional às hipóteses previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Nessa linha de evolução hermenêutica, o Supremo Tribunal Federal passou a não mais admitir habeas corpus que tenha por objetivo substituir o recurso ordinariamente cabível para a espécie. Precedentes. Contudo, devem ser analisadas as questões suscitadas na inicial no afã de verificar a existência de constrangimento ilegal evidente, a ser sanado mediante a concessão de habeas corpus de ofício, evitando-se prejuízos à ampla defesa e ao devido processo legal. 2. O emprego de violência ou grave ameaça é circunstância elementar do crime de extorsão tipificado no art. 158 do Código Penal. Assim, se o funcionário público se utiliza desse meio para obter vantagem indevida, comete o crime de extorsão e não o de concussão. 3. A inversão da conclusão das instâncias ordinárias demanda necessário revolvimento do acervo fático-probatório dos autos, procedimento incabível na via estreita do habeas corpus. 4. Habeas corpus não conhecido.
(STJ - HC: 198750 SP 2011/0042598-2, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO
BELLIZZE, Data de Julgamento: 16/04/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/04/2013)
Basicamente como podemos ver o assunto estava sedimentado. A maioria maciça das jurisprudência nacional caminhava justamente no sentido de tipificar a conduta do funcionário público de exigir com violência ou grave ameaça vantagem indevida como extorsão. Em que pese os argumentos já levantados por esse trabalho.
No entanto a Lei 13.964/2019 conhecida popularmente como Pacote Anti Crime entrou em vigor e trouxe uma infinidade de alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal. Dentre elas a alteração da pena do crime de concussão, alteração essa que traz esse debate à tona novamente.
A pena do crime de concussão que antes era de 2 a 8 anos, passa então a ser de 2 a 12 anos com essa nova lei, e por isso gera alguns problemas no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao direito penal. É sabido que o sistema jurídico brasileiro funciona com um mínimo de harmonia. Portanto deve-se ter cautela com as alterações legislativas para não causar confusões ou desarmonia entre as normas.
O Pacote Anti Crime, foi uma lei muito defendida pelo Presidente à época, o Jair Bolsonaro, e pelo seu então Ministro da Justiça, Sérgio Moro. Essa proposição legislativa no começo, tinha o condão de arrochar as penas de alguns crimes, com o intuito de recrudescer o combate à corrupção.
No entanto a lei é um exemplo do que os estudiosos do direito chamam de direito penal emergencial. Que são políticas públicas que tem um caráter geralmente excepcional, e de urgência cristalina, e por isso, acabam se tornando uma espécie de combate à criminalidade à qualquer custo. Esse tipo de medida acaba na maioria das vezes sendo muito danoso para as ciências jurídicas, visto que essas proposições legislativas, por ter um caráter “urgente”, muitas vezes são aprovadas sem previamente passarem por estudos aprofundados sobre a matéria e suas eventuais consequências, e por isso tiram a harmonia das normas penais por exemplo.
É frequente observar que as matérias afetadas pelo direito penal emergencial, geralmente trespassam limites antes estabelecidos e bastante respeitados, como por exemplo garantias individuais, e princípios penais e processuais penais. Então, essas violações têm custos sociais altíssimos, e consequências nefastas, que por vezes chacoalham até a própria democracia, bastando para entender melhor, nos remetermos às origens do direito penal emergencial, que é a Itália dos tempos de máfia.
No caso do Pacote Anti Crime, a legislação ao aumentar a pena do crime de concussão, trouxe um debate que estava sedimentado novamente à tona. Qual seja, a responsabilização penal do agente público que investido no cargo se utiliza de violência ou grave ameaça para exigir vantagem indevida de terceiro. Anteriormente à essa lei, a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, como já anteriormente mencionado, era pela responsabilização pelo crime de extorsão, uma vez que tinha pena mais grave.
No entanto como o crime de concussão passou a ter pena máxima de 12 anos, e por isso, tendo pena mais gravosa, tornou novamente esse debate ativo.
No caso da responsabilização pelo crime de concussão estaríamos assim afastando a aplicação do princípio da legalidade, uma vez que a violência ou a grave ameaça não são características da concussão, portanto aproximaria-se do absurdo de defender a falta de adequação típica perfeita da conduta à norma penal. Além disso cabe ressaltar, que neste caso, a reprimenda seria basicamente a mesma, quando o crime for cometido com, ou sem violência ou grave ameaça. Tornando-se a integridade física então, um bem dispensável.
Além disso nas situações anteriores ao Pacote Anti Crime, o crime de extorsão funcionava, como uma espécie de figura qualificada da concussão, nas hipóteses de violência ou grave ameaça. Uma vez que a pena sairia de 2 a 8 anos, para ir de 4 a 10 anos. Perceba então que se o magistrado optar por responsabilizar o agente pelo crime de concussão, qualquer que tenha sido a conduta, poderia-se arbitrar um simbólico aumento de pena decorrente da existência da violência ou grave ameaça. Tem-se aqui então um abrandamento penal, uma vez que se houvesse a responsabilização pela extorsão, haveria-se um deslocamento da pena base, funcionando a grosso modo, como uma qualificadora da concussão. Punindo dessa forma mais adequadamente o agente.
No caso dos doutos magistrados optarem por se socorrerem ao crime de extorsão nos casos em que ocorrer violência ou grave ameaça estaria-se cometendo punindo desproporcionalmente o agente, uma vez que privilegiaria-se o agente que cometeu o crime com violência. Perceba, se cometido com violência, o agente será penalizado com a extorsão, que tem pena máxima de 10 anos, porém se cometido sem violência ou grave ameaça, a responsabilização é pelo crime de concussão, que tem pena máxima de 12 anos. Quer dizer, a conduta mais grave é punida com pena mais leve, e a conduta mais leve é punida com pena mais grave.
Como consequência desse impasse legislativo entre a responsabilização pelo crime de concussão e o crime de extorsão é interessante salientar as peculiaridades de cada um para que os entendimentos se esclareçam e as punições sejam melhor ponderadas.
Antes da análise, cumpre salientar que o crime de extorsão tem uma parte que é considerada crime hediondo, que é basicamente quando há a morte como resultado preterdoloso, ou quando há a restrição de liberdade da vítima. No entanto, essas duas hipóteses fogem bastante da linha de desdobramento causal da conduta que este trabalho aborda. Assim sendo, apesar da Lei de Crimes Hediondos trazer um recrudescimento considerável no cumprimento de pena, toda a análise aqui será voltada para a extorsão em sua forma simples.
Tanto a concussão como a extorsão não cabem qualquer medida despenalizadora da Lei 9.099/1995, como exemplo a transação penal e a suspensão condicional do processo. Isso por conta da pena disposta pelos dois crimes. Porém somente no caso da concussão cabe a suspensão condicional da pena, caso o agente seja condenado à pena mínima, qual seja, dois anos, e não seja reincidente em crime doloso.
Sobre o instituto da substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos, prevalecerá o entendimento da impossibilidade para os dois crimes. Isto porque, normalmente, no crime de concussão, caso a pena do agente seja inferior a 4 anos, seria possível tal substituição. No entanto todo o debate gira em torno da concussão praticada com violência ou grave ameaça, circunstância objetiva esta, que é um fator impeditivo da aplicação desta benesse. Portanto para os fins deste trabalho, não será considerado o benefício da pena restritiva de direitos para qualquer dos crimes.
Em sentido diametralmente oposto, o instituto do livramento condicional pode ser aplicado a ambos os crimes, desde que a pena da concussão seja maior do que 4 anos (em caso diverso, não seria possível a aplicação). Isso acontece porque o livramento condicional é uma das pouquíssimas benesses que a prática delitiva com violência ou grave ameaça não obsta sua concessão. Aqui os requisitos são geralmente mais subjetivos do que objetivos, e por isso não se entrará no mérito aqui neste trabalho.
Entretanto, uma das grandes diferenças entre as duas tipificações é justamente a pena mínima. É de conhecimento popular dentre os operadores do direito que o sistema de cálculo de pena no Brasil é tripartido, de modo que o seu cálculo começa a ser contado da pena mínima. Portanto, as diferenças entre as penas cominadas a cada conduta são bastantes significativas. Reconheça que iniciar-se o cálculo de pena em 2 anos, ou 4 anos, dependendo da escolha do magistrado, pode prejudicar ou ajudar bastante o acusado, uma vez que quanto menor for a pena mínima, maior a chance do acusado ser condenado a uma pena menor.
Sobre o regime inicial de cumprimento de pena, cabe destacar que considerando o agente como primário, caso seja responsabilizado pelo crime de concussão poderá iniciar seu cumprimento de pena no regime aberto, caso seja condenado a uma pena inferior a 4 anos. No entanto, caso o agente seja responsabilizado pelo crime de extorsão a possibilidade de início de cumprimento de pena em aberto é praticamente nula, uma vez que a pena mínima atrelada à conduta é de 4 anos, que prevê regime inicial semi aberto, ou seja em cárcere, mas em colônias agrícolas ou industriais.
Percebe-se então de modo latente que usando o princípio do in dubio pro reo, seria bastante vantajoso que o acusado fosse processado pelo crime de concussão. Uma vez que tem pena mínima menor, que possibilita o ingresso no cárcere em regime aberto, e pela pena mínima é possível que a condenação seja menor.
Proposições legislativas como estas, aprovadas em curto espaço de tempo e sem um estudo aprofundado, podem ter consequências severas para o sistema jurídico como um todo.
É fácil imaginar a insegurança jurídica que isso traz. Em suma, tem-se uma tese que funcionava na medida do possível, e com certa harmonia com os demais artigos do Código Penal, no entanto, essa alteração muda completamente o entendimento sobre o assunto, e força os nobres magistrados a elaborarem novas teses para um problema que estava praticamente resoluto.
Outro ponto que também tangencia a insegurança jurídica é a quantidade ações revisionais que se podem ser protocoladas, abarrotando todo o Poder Judiciário, novamente com lides que já transitaram em julgado.
Resta então evidente que a uma das formas de evitar esse tipo transtorno ao judiciário brasileiro, seria a criação de um tipo penal mais grave, para a conduta mais grave da concussão, que é a utilização de violência ou grave ameaça. Isso porque, com a conduta mais grave força-se o que o direito penal chama de “novatio legis in pejus” ou seja, nova lei pior (para o acusado).
Assim recrudesceria-se as penas com o intuito do combate à corrupção, sem que haja brechas para uma infinidade de ações revisionais, que com certeza abarrotariam o já lotado, Poder Judiciário.
Notadamente várias soluções são possíveis para a presente demanda, uma vez que basicamente para dar a segurança jurídica esperada será imprescindível uma proposta legislativa que emende o Código Penal. Deste modo resta evidente que deve ser proposto uma lei ordinária, em decorrência da matéria que será atacada.
No entanto a proposta legislativa que este trabalho defenderá, deve ser no sentido de criar o crime de concussão qualificada pelo emprego de violência ou grave ameaça. Com a “concussão qualificada” estaria-se aumentando a pena mínima para essa conduta, ou seja, iniciando o cálculo de pena de uma conduta mais grave, com uma pena mais severa.
Se a pena mínima dessa figura for de quatro anos, já se inicia-se o cumprimento de pena em regime semiaberto, solucionando outro problema do regime inicial, visto que a concussão é crime menos gravoso.
E como fator também deveras importante, a figura da “concussão qualificada” sedimenta o argumento da especialidade, uma vez que o agente ainda responderia por crimes contra a administração pública, ou seja, figura especial.
Por outro lado, como opção legislativa alerta-se a criação de uma majorante para o crime de concussão, atende parcialmente os questionamentos feitos em decorrência do vácuo legislativo. Isso porque basicamente apesar de sedimentar o argumento da especialidade, como no caso da “concussão qualificada”, a simples majoração do crime não interfere nas penas em abstrato, deixando o crime de extorsão com pena ainda maior. Outro ponto negativo da simples majoração é a possibilidade do agente cumprir pena em regime aberto, mesmo que o crime seja cometido com violência ou grave ameaça. Deixando uma desproporcionalidade muito grande em relação ao crime de concussão, que é um crime comum, e mesmo assim o inicial será semi aberto.
Nota-se portanto que existe um vácuo legislativo no tocante à conduta de concussão quando cometido com violência ou grave ameaça. A omissão sempre existiu, e com o Pacote Anti Crime, apesar de ter havido um recrudescimento na pena de concussão, a omissão legislativa não só, não foi sanada, como gerou ainda mais insegurança jurídica.
Resta evidente que as alterações legislativas do Pacote Anti Crime esbarram no direito penal emergencial, e sua capacidade de sanar problemas acaba escorrendo pelas mãos dos legisladores. Isso, porque o projeto foi proposto e aprovado de forma precipitada, e bastante ligeira, sem que se fizessem estudos aprofundados acerca das consequências de sua eventual aprovação.
Apesar de anteriormente termos tido posições jurisprudências majoritárias no sentido da possibilidade da responsabilização pela extorsão, sempre houveram problemas no tocante à adequação típica, de modo que não raro, os processos relacionadas à este tipo de conduta se esbarravam em princípios penais bastante caros não só ao judiciário, mas à população, como o da legalidade, especialidade e do in dubio pro reo.
Este trabalho então, observando os princípios penais e constitucionais vigentes em nosso ordenamento jurídico, propõe que a forma menos lesiva ao ordenamento jurídico, para a resolução deste conflito é a criação da figura da concussão qualificada. Assim estaria aumentando a pena mínima de uma conduta mais gravosa, respeitado assim o princípio da proporcionalidade, e por ser uma qualificadora de um crime disposto no capítulo dos “dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral” não haveria que se falar em não observância ao princípio da especialidade. E indo mais além, sanaria o problema com o princípio da legalidade, uma vez que a norma estaria disposta. Não haveria também ações revisionais uma vez que seria uma novatio legis in pejus.
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FARIA, Bento de. Código Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Niterói: Impetus, 2011
PEREIRA. C.B. Direito Penal de Emergência e a base constitucional do sistema jurídico penal e processual penal. Conteúdo Jurídico, v. 858, 2018. Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51899/direito-penal-de-emergen cia-e-a-base-constitucional-do-sistema-juridico-penal-e-processual-penal. Acesso em: 09 jun. 2020.
É acadêmico de Direito na UniCatólica/TO.É pesquisador nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Direito Previdenciário. Foi estagiário da Procuradoria Geral Federal, na Advocacia Geral da União, na área da previdência social. E atualmente é estagiário no Escritório de Advocacia Rodrigues & Garcia. Apresentou no XXVIII Congresso Nacional do CONPEDI o trabalho intitulado: "A regulamentação da condução coercitiva como uma medida cautelar menos incisiva que a prisão temporária na investigação criminal."
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTA, Fellipe Matheus Guimarães. Uma análise sobre a adequação típica perfeita da conduta de concussão quando praticado mediante violência ou grave ameaça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 out 2020, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55382/uma-anlise-sobre-a-adequao-tpica-perfeita-da-conduta-de-concusso-quando-praticado-mediante-violncia-ou-grave-ameaa. Acesso em: 23 dez 2024.
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