A promoção ativa da igualdade requer uma discriminação através da qual, reconhecendo-se circunstâncias que alijam determinados seguimentos da igualdade de oportunidades, expurgando-os do direito de competir, busque-se um tratamento diferenciado na medida necessária a superar essas circunstancias estigmatizantes. O Estado, portanto, passa a ter a necessidade de propiciar um tratamento privilegiado em favor daqueles socialmente excluídos e carecedores da expectativa de concorrer igualmente com os demais.
Contudo, a discriminação positiva encontra limites no próprio ordenamento. Não se pode discriminar aleatoriamente e a qualquer custo sob o pretexto de salvaguardar a igualdade de oportunidades. Por isto, faz-se necessário delinear com precisão os contornos do conteúdo positivo da igualdade, a fim de saber até onde a discriminação será legitima e comportável dentro do sistema jurídico vigorante e, por conseguinte, identificar quando há uma discriminação não amparada, do ponto de vista jurídico, repita-se, pelos paradigmas constitucionais estabelecidos.
Nesta linha, veremos que o deferimento de inscrição para pessoas portadoras de necessidades especiais em concursos públicos deve passar por um rigoroso controle em função da causa limitadora apresentada pelo candidato, sob pena de se ter a destinação indevida das vagas especiais, em franca ofensa ao princípio da igualdade.
Celso Antônio Bandeira de Mello em obra singular sobre o tema, e de leitura indispensável para quem pretende sobre ele debruçar-se, intitulada Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, fornece de forma irretorquível critérios científicos para se saber qual a discriminação conforme com o princípio da igualdade e qual a que o afronta.
Desta forma, com o propósito de saber se até que ponto a reserva de vagas para Pessoas Portadoras de Necessidades Especiais respeita os limites comportados pelo princípio da igualdade, é necessário promover a investigação da discriminação positiva realizada diante dos referidos critérios.
Segundo Mello, o reconhecimento das diferenciações que podem ser feitas sem quebra da isonomia centra-se em três pontos: [1]
I – no elemento tomado como fator discriminante;
II – na correlação lógica entre o critério de discrímen e o tratamento diferenciado procedido;
III – na consonância da discriminação com valores constitucionalmente protegidos.
No primeiro ponto, pede-se que a lei não tome como critério de diferenciação características tão específicas que singularizem no presente e definitivamente, de modo absoluto, o sujeito objeto do tratamento diferenciado; e que, necessariamente, o fator discriminante esteja, na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada.
O terceiro ponto significa que nem toda diferenciação, ainda que atendido o requisito acima comentado e exista correlação lógica entre o fator de discriminação e a discriminação pretendida (tema a ser tratado em seguida), está em consonância com o princípio da igualdade. Faz-se necessário ainda que a discriminação procedida esteja em função de valores açambarcados pela ordem constitucional vigente.
Imaginemos, então, uma lei estadual que, atendendo a exigência do artigo 155, § 2, XII, g, da CF e as demais existentes, cujo detalhamento aqui não nos interessa, com o intuito de favorecer o desenvolvimento de grandes empreendimentos comerciais naquele Estado passe a prevê alíquota de ICMS reduzida pela metade para todos os produtos comercializados por empresas que tenham o faturamento anual bruto superior a 20 milhões de Reais. Neste caso, não se vê problema quanto ao elemento tomado como fator discriminante e nem na correlação lógica exigida, já que a redução de tributos que dificultam o desenvolvimento econômico em favor das grandes empresas traria como consequência o fomento de grandes empreendimentos comerciais no Estado, ou seja, atacando-se um elemento causador de um ambiente hostil à proliferação dos empreendimentos em pauta, a princípio, haveria uma justificativa racional em prol da discriminação perpetrada.
Contudo, no que tange ao terceiro dos requisitos mencionados, qual seja, a compatibilidade dos fins almejados pela diferenciação realizada com interesses acolhidos pelo sistema constitucional, a Lei ilustrativamente mencionada violaria o princípio da isonomia, já que a Carta Magna expressamente valoriza o tratamento favorecido para as micro e pequenas empresas, e não para as de grande porte.
Já em relação à reserva de vagas para portadores de necessidades especiais, pensamos nós, há o prefeito atendimento deste requisito, vez que a inserção social desse segmento populacional encontra-se em harmoniosa sintonia com interesses constitucionalmente protegidos por um Estado que tem como objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Como visto, os dois critérios acima tratados não oferecem maiores dificuldades, eis por que deles sucintamente tratamos em primeiro.
Quanto à questão da correlação lógica entre o fator discriminante e o tratamento diferenciado procedido, o olhar a ser passado deve ser um pouco mais cuidadoso, já que aí reside um valioso critério de controle para correta efetivação do princípio da igualdade.
Para que uma discriminação não agrida a isonomia assegurada constitucionalmente impõe-se que haja um fundamento racional ligando o fator em função do qual se procede a segregação e o tratamento diferenciado ministrado. É preciso que a situação de desigualdade que se quer coibir guarde nexo causal com o critério diferenciador adotado.
No caso do tratamento constitucional diferenciado em prol dos portadores de necessidades especiais em concursos públicos, o nexo causal é facilmente detectado. O deficiente físico, por possuir limitações de natureza diversas, encontra-se em efetiva desvantagem em uma concorrência com pessoas livre das barreiras em questão. Basta tentar imaginar a dificuldade um deficiente visual para deslocar-se até uma escola e acompanhar as aulas que, na maioria das vezes, não são ministradas por professores habilitados para trabalhar com essas pessoas. Seria até desleal, na disputa por um cargo ou emprego público, trata-los indistintamente. Então, o legislador constituinte, atento a esta realidade, racionalmente justificadora de uma discriminação positiva, autorizou a reserva de até 20 por centos das vagas para portadores de deficiências.
Contudo, esta ressalva do Constituinte deve ser interpretada com a devida cautela e em atenção ao nexo de causalidade necessário. Desta forma, a deficiência hábil a autorizar um tratamento diferenciado deve ser aquela que coloque quem a possui em situação desvantajosa em relação às pessoas ditas “normais”, sob pena de se transformar a aludida tutela em instrumento de privilégios odiosos. Não se justificaria, por exemplo, que uma pessoa com uma pequena deficiência usufruísse do benefício em comento, sem que a deficiência que lhe acomete comprometa nenhuma de suas funções.
Sem embargo, muitas vezes por conta das carências estruturais do Setor Público, lamentavelmente, tem sido comum pessoas que se aproveitam da situação, com pequenas deficiências que não as colocam em situação de desvantagem, valerem-se da reserva constitucional de vagas em detrimento de quem, de fato, a ela faz jus.
Nesta linha, para que a regra de reserva de vagas para pessoas portadoras de necessidades especiais e o princípio da igualdade sejam realizados em sua plenitude, é preciso que se imponha um rigoroso controle nas avaliações médicas para habilitação de inscrição de portadores de necessidades especiais em concursos públicos.
Assim, o perito médico examinador deve dedicar especial atenção às caraterísticas da “deficiência” apresentada e avaliar se esta circunstância coloca o candidato em situação de desvantagem na disputa. Em caso positivo, a discriminação positiva será juridicamente legítima; todavia, em sendo negativa, a participação no certame deverá se dar nas vagas de ampla concorrência, sob pena de se estabelecer um verdadeiro privilégio em detrimento daqueles que realmente fazem jus ao benefício legal.
Em suma, a reserva de vagas para pessoas portadoras de necessidades especiais é um instituto com assento constitucional que está a serviço do princípio da igualdade, mas, para que seja efetivado em sua plenitude, é preciso que haja a correta identificação dos seus beneficiários, partindo da premissa de que a deficiência hábil a autorizar um tratamento diferenciado deve ser aquela que coloque quem a possui em situação desvantajosa na disputa.
REFERÊNCIAS
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2005.
_______. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2003.
LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Método, 2007.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª ed., São Paulo: Ed. Atlas, 2004.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 18ª ed., São Paulo: Ed. Atlas, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2004.
[1] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. P. 21.
Procurador do Estado de Alagoas, ex-Procurador do Estado de Pernambuco, ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Cataria, Pós-Graduado em Direito Administrativo e Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDROSA, Danilo França Falcão. A reserva de vagas para portadores de necessidades especiais em concurso público diante do princípio da igualdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 nov 2020, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55436/a-reserva-de-vagas-para-portadores-de-necessidades-especiais-em-concurso-pblico-diante-do-princpio-da-igualdade. Acesso em: 23 dez 2024.
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