RUBENS ALVES DA SILVA[1]
(orientador)
Resumo: A promulgação da Constituição Federal de 1988, amplamente fundamentada na prevalência e observância dos direitos humanos, foi responsável por introduzir, no ordenamento jurídico brasileiro, uma série de direitos e garantias fundamentais voltados, principalmente, para a preservação da dignidade humana. Com efeito, no âmbito das garantias sociais, foram introduzidas novas possibilidades de conformações familiares além da tradicional, suscitando, assim, uma série de alterações no Direito de Família, no sentido de melhor adequar o princípio da proteção à família. Nesse sentido, os novos preceitos constitucionais vieram realinhar os laços de afeto e de solidariedade na estrutura familiar, tendo em vista a plena satisfação do cidadão, incluindo sua autonomia e desenvolvimento no seio familiar, tendo em vista a sua satisfação pessoal, o que, por sua vez, acabou motivando um segundo momento, caracterizado pela facilitação das dissoluções das uniões estáveis e separações conjugais, justificadas pela observância de garantias fundamentais como o direito à liberdade, à vida e à dignidade humana. Destarte, a família brasileira passou a ser instituída a partir da existência de vínculos sociais e afetivos, tendo como base, o amor, a afetividade, o respeito e a solidariedade, diferentemente do sistema antigo, firmado, exclusivamente, com a constituição do matrimônio. Diante desse contexto, surge a necessidade contínua de se analisar os reflexos sociais e os parâmetros jurídicos de reconhecimento da filiação socioafetiva, considerando, ainda, seus efeitos em relação à isonomia filial, no âmbito do Direito Sucessório, mediante a análise doutrinária e jurisprudencial.
Palavras-chave: Reconhecimento. Filiação socioafetiva. Efeitos jurídicos.
Abstract: The promulgation of the 1988 Federal Constitution, largely based on the prevalence and observance of human rights, was responsible for introducing, in the Brazilian legal system, a series of fundamental rights and guarantees aimed mainly at the preservation of human dignity. In fact, within the scope of social guarantees, new possibilities of family configurations were introduced in addition to the traditional one, thus leading to a series of changes in Family Law, in order to better adapt the principle of protection to the family. In this sense, the new constitutional precepts came to realign the bonds of affection and solidarity in the family structure, with a view to the full satisfaction of the citizen, including his autonomy and development within the family, with a view to his personal satisfaction, which, for in turn, it motivated a second moment, characterized by the facilitation of the dissolution of stable unions and marital separations, justified by the observance of fundamental guarantees such as the right to freedom, life and human dignity. Thus, the Brazilian family started to be established based on the existence of social and affective bonds, based on love, affection, respect and solidarity, unlike the old system, established exclusively with the constitution of marriage. In this context, there is a continuing need to analyze the social reflexes and the legal parameters for the recognition of socio-affective affiliation, also considering their effects in relation to filial equality, within the scope of Succession Law, through doctrinal and jurisprudential analysis.
Keywords: Recognition. Socio-affective affiliation. Legal effects.
Sumário: 1 Introdução; 2 A evolução do instituto familiar no contexto histórico-social brasileiro; 2.1 O papel dos cônjuges na sociedade conjugal e o divórcio; 2.2 A Constituição Federal de 1988 e os princípios norteadores da instituição familiar; 2.3 A família e a importância do afeto nas relações parentais; 3 O reconhecimento da filiação socioafetiva e seus efeitos jurídicos; 3.1 Características e especificidades da filiação socioafetiva; 3.2 Do reconhecimento da filiação socioafetiva; 4 Os efeitos jurídicos gerados pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva; 4.1 Prestação de alimentos; 4.2 Direitos sucessórios decorrentes da filiação socioafetiva; 4.3 Direitos previdenciários; Considerações finais.
1 INTRODUÇÃO
Até a entrada em vigor da nova Carta Magna, o conceito jurídico de família era bastante limitado e discriminatório, tendo em vista que predominava o conceito contido no Código Civil, de 1916, cujo qual somente conferia o status familiae às conformações familiares originados do instituto do matrimônio, vetando, portanto, o reconhecimento e, consequentemente, os direitos civis dos filhos ditos “ilegítimos”.
Entretanto, esse modelo estrutural sofreu fortes impactos com a chegada da Carta Política, de 1988, que avançou, significativamente, com relação aos direitos das famílias, dos filhos, e das mulheres, inovando o ordenamento jurídico brasileiro, ao estabelecer uma nova ordem de valores, mediante o inauguração de um Estado Democrático de Direito, fundamentado na promoção dos direitos e liberdades individuais, observando princípios como cidadania, igualdade, solidariedade, liberdade e, principalmente, dignidade da pessoa humana.
Dentre as principais novidades trazidas pelo texto constitucional está a ampliação significativa do conceito de família, conforme o disposto no art. 226, admitindo outras configurações familiares, tais como a união estável e as famílias monoparentais, formadas por apenas um dos genitores e seus dependentes, garantindo-lhes, na mesma proporção, a proteção do Estado.
Além disso, a nova ordem jurídica estabelecida passou a reconhecer a isonomia entre os filhos havidos dentro e fora do casamento, incluindo, também, os adotivos, extinguindo, assim, qualquer tipo de discriminação com relação à filiação conhecida usualmente, como ilegítima, vedando qualquer distinção entre os modelos de filiação, com fulcro nos princípios da igualdade e da dignidade humana.
Mais à frente, em 2002, no propósito de melhor se adequar às previsões constitucionais, o Código Civil, de 1916, que encontrava-se extremamente desatualizado em relação às novas configurações sociais, foi reeditado trazendo outra remessa de inovações no âmbito do direito familiar, como, por exemplo, o conteúdo disposto em seu artigo 1.639, fixando o princípio da autonomia privada como reitor das relações patrimoniais no casamento.
Finalmente, aliadas a essas modificações, cabe mencionar as alterações legislativas proferidas na seara nos divórcios e das dissoluções conjugais, como a Lei Nº 11.441/2007 e a EC Nº 66/2010, que passaram a ser facilitar o processo de separação, e, por consequência, o arranjo de novas entidades familiares, que passam a ser compostas pelo aglutinamento dos dependentes das relações anteriores somados aos herdeiros conjuntos.
Dessa forma, a paternidade socioafetiva, demonstrada pela posse do estado de filho e caracterizada pela presença de elementos decorrentes do afeto, vem ganhando espaço na sociedade brasileira, principalmente no que se refere ao direito de reconhecimento à filiação socioafetiva, mediante a apreciação do valor jurídico do afeto na convivência familiar, representada na proteção civil daqueles que são tidos como filhos, mesmo sem nenhum parentesco biológico, com propósito de garantir-lhes o direito da filiação afetiva, no assento de nascimento e os efeitos jurídicos desinentes.
No entanto, mesmo com um Código Civil relativamente recente, diversos assuntos relacionados ao direito familiar não são resolvidos com base nele, mas em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), na própria Constituição Federal, ficando, ainda ao encargo da interpretação do magistrado responsável pelo processo, de modo que a reflexão contínua acerca de suas particulares de faz essencial diante do novo contexto social vigente.
2 A evolução do instituto familiar no contexto histórico-social brasileiro
O instituto familiar sempre esteve presente na história das civilizações, incluindo-se a história do Brasil, muito embora, nos tempos pré-colonização, a finalidade fosse única e exclusivamente para a procriação, sem a necessidade de qualquer vínculo afetivo. No entanto, com a chegada dos portugueses e a imposição dos costumes europeus, influenciados pela Igreja Apostólico-Romana, instituiu-se a obrigatoriedade do matrimônio religioso como base para a constituição familiar, conforme leciona o nobre Yussef Said Cahali:
A princípio, a ação da Igreja visou apenas a moralização do casamento do ponto de vista religioso. Porém, à medida que se foi desenvolvendo o direito canônico e, sobretudo, à medida que aumentava o poder espiritual e político da Santa Sé, começou a atribuir-se competência legislativa e jurisdicional. As primeiras medidas datam do século IX. Paulatinamente foi aumentando a sua ingerência até que finalmente o Concílio de Trento (1563) afirmou definitivamente sua competência." (CAHALI, 1993, p. 9)
Assim, preocupada com as transformações sociais, em virtude da proliferação do casamento clandestino, e, também, religiosas, em decorrência da reforma protestante, a Igreja Católica viu-se obrigada a convocar um concílio para definir sua doutrina a respeito de vários assuntos, inclusive o casamento, no chamado Concílio de Trento, em 1.545, ratificado por Portugal e, portanto, devendo vigorar em todas as suas colônias. (LEITE, 1991, p. 254)
No entanto, posteriormente, em razão da desvinculação do Estado e da Igreja, e a Independência do Brasil, o casamento civil passou foi inserido como uma das formas admissíveis de matrimônio, conforme nos explica Débora Vanessa Caús Brandão:
Nessa época, o Brasil contava com três formas de casamento:
a) o católico, observando todas as prescrições do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia;
b) o misto, mesclando disposições católicas e de outros credos;
c) o não católico, conforme a Lei n. 1.144 de 11.09.1861, conferindo aos juízes competência para decidir todas as questões relativas à matéria. (BRANDÃO, 2002, p. 02)
Isso significa dizer que o casamento civil, conforme disposto acima, passou a ser considerado, juntamente com o casamento católico, um dos atos formais indispensáveis para a composição familiar, até a publicação, em 24.01.1890, do decreto 181, sancionado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, enquanto um dos desdobramentos da Proclamação da República, quando passou a ser reconhecido como válido, no Brasil, somente o casamento civil, conforme disciplinava seu artigo 108:
Art. 108. Esta lei começará a ter execução desde o dia 24-05-1890, e desta data por diante só serão considerados válidos os casamentos celebrados no Brasil se forem de acordo com suas disposições.
Parágrafo único. O casamento civil, único válido nos termos do art. 108 do Dec. 181, de 24 de janeiro último, precederá sempre às cerimônias religiosas de qualquer culto, com que desejem solenizá-las os nubentes. (BRASIL, 1890)
Ainda assim, a família do século XX era essencialmente patriarcal, hierarquizada, patrimonial e matrimonializada, tendo em vista que o pai era sinônimo de autoridade, responsável por toda a família, detendo o poder sobre a vida e morte dos filhos, e ficando no topo da hierarquia, e após ele vinha os filhos e a mulher, em caráter de inferioridade.
O matrimônio, portanto, era imprescindível para validar a instituição familiar legítima, sendo requisito fundamental para o reconhecimento dos direitos da prole concebida, enquanto que os filhos nascidos por outros meios de relacionamento, eram segregados dos filhos legítimos, sendo rotulados das mais variadas formas pejorativas, sem direito de buscar sua identidade.
Por sua vez, a legitimação da paternidade era um dos efeitos do casamento e, “tinha este o condão de conferir aos filhos havidos anteriormente os mesmos direitos e qualificações dos filhos legítimos, como se houvessem sidos concebidos após as núpcias.” (GONÇALVES, 2014, p. 321).
Os filhos ditos ilegítimos não poderiam ser reconhecidos enquanto o pai fosse casado, somente depois do desquite ou da morte da esposa legítima, condenando-os ao julgamento social e à ausência de direito civis, além de impor à mãe, a carga de sustentar sozinha o filho, como forma de punição pela desonra de ter um filho bastardo. (DIAS, 2010, p. 01)
Os filhos, portanto, eram classificados em legítimos e ilegítimos. “Legítimo era o filho biológico, nascido de pais unidos pelo matrimônio; ao passo que os demais seriam ilegítimos.” (LOBO, 2011, p.48). Os filhos legítimos eram protegidos pela presunção pater is est quem nuptiae demonstrant (é o pai aquele que o matrimônio como tal indica), cuja qual preconiza que os filhos nascidos na constância do casamento tem por pai o marido de sua mãe.
Nesse sentido, posteriormente, Constituição de 1934, inaugurou um capítulo reservado a disciplinar interinamente acerca da matéria familiar, onde o casamento seria civil e gratuita a sua celebração, estendendo os mesmos efeitos ao casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, nos seguintes termos:
O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição, sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório." (BRASIL, 1934)
No entanto, o divórcio era terminantemente proibido, conforme disposto em seu art. 144:
Art. 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado.
Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio, com efeito suspensivo.
(BRASIL, 1934, grifo nosso)
Assim, conforme expresso no artigo supramencionando, a estrutura familiar estava, irrevogavelmente, condicionada ao casamento, que, por sua vez, salvo raras exceções, era indissolúvel, ficando ao encargo da lei, a discriminação das situações que possibilitariam o chamado “desquite”.
A promulgação da Constituição de 1946, reforçou, novamente, a admissão do casamento religioso para os devidos fins práticos, desde que atendidas as especificações legais:
Art 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.
§ 1º - O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público.
§ 2º - O casamento religioso, celebrado sem as formalidades deste artigo, terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente.
(BRASIL, 1946)
Nesse sentido, apesar a nova redação constitucional, o divórcio, como se pode observar no caput do artigo supracitado, continuava sendo proibido, assim como no texto constitucional anterior, dado pela redação de 1934.
Outro aspecto digno de menção, referente à Constituição em questão diz respeito ao fato de que a família continuava baseada num modelo patriarcal, uma vez que o trabalho era permitido somente aos homens e às mulheres eram impostas uma série de restrições conforme exposto abaixo:
Art. 157. (...)
XI - proibição de trabalho a menores de quatorze anos; em indústrias insalubres, a mulheres e a menores, de dezoito anos; e de trabalho noturno a menores de dezoito anos, respeitadas, em qualquer caso, as condições estabelecidas em lei e as exceções admitidas pelo Juiz competente;
(...)
(BRASIL, 1946)
Era, pois, proibido, tanto às mulheres quanto aos menores, trabalhar em condições insalubres, o que terminava por abranger uma enorme variedade de cargos, ficando sujeitos, ainda, às limitações e concessões judiciais da autoridade cometente. Tal condição só pôde ser modificada com o advento da Revolução Industrial, no Brasil, ocasião em que as mulheres começaram a ocupar diversas posições no mercado de trabalho, especialmente, após a edição do chamado Estatuto da Mulher Casada, em 1962, considerado um marco contra a hegemonia masculina e o patriarcado:
O chamado Estatuto da Mulher Casada, devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal. Mesmo tendo sido deixado para a mulher a guarda dos filhos menores, sua posição ainda era subalterna. Foi dispensada a necessidade da autorização marital para o trabalho e instituído o que se chamou de bens reservados, que se constituía do patrimônio adquirido pela esposa com o produto de seu trabalho. Esses bens não respondiam pelas dívidas do marido, ainda que presumivelmente contraídas em benefício da família. (DIAS, 2010, p. 01)
Somente com a sanção do Estatuto da Mulher Casada foi que as mulheres puderam passar à condição de colaboradoras do lar, contribuindo, substancialmente, para a manutenção e administração dos proventos do lar, uma vez que passou a ser dispensável a existência de uma autorização marital para o exercício de uma profissão. Também foram instituídos os chamados ‘bens reservados’, ou seja, o produto do trabalho da mulher, cujos quais não poderiam ser contabilizados como sendo parte do patrimônio do homem nem penhorados em hipótese alguma, para saldar quaisquer dívidas.
Infere-se, assim, diante de todo o exposto, que a família brasileira, enquanto instituição social, encontra-se em contínua mutação, de modo que o Direito deve evoluir na mesma medida, na tentativa de acompanhar essas alterações e, assim, tutelar seus deveres para com a sociedade.
2.1 O papel dos cônjuges na sociedade conjugal e o divórcio
Desde o início do período colonial até meados do século XX, a mulher era tida como incapaz de trabalhar e de tomar suas próprias decisões, estando sujeita às determinações do pai e demais familiares, antes do casamento, e às vontades do marido, após a constituição do matrimônio.
O legislador, deixou bastante evidente os papéis dos cônjuges, ao elaborar o Código Civil, de 1916. Ao marido, provedor do lar, o mundo exterior. À mulher, dona de casa, submissa ao regime patriarcal, os domínios das lides domésticas.
Essa situação só começou a ser modificada com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada, quando, em razão da evolução social ocorrida com o passar dos anos e a consequente valorização da mulher, a legislação começou a ser modificada, atribuindo-se às mulheres casadas direitos que antes não lhes eram assegurados. Assim, operaram-se alterações, inclusive no Código Civil, que trouxeram às mulheres casadas horizonte mais amplo e adequado à época das ditas alterações.
Nesse diapasão, o aludido diploma legal consagrou o princípio do livre exercício de profissão da mulher casada permitindo que esta ingressasse livremente no mercado de trabalho tornando-a economicamente produtiva, aumentando a importância da mulher nas relações de poder no interior da família. Este aumento do poder econômico feminino trouxe decisivas modificações no relacionamento pessoal entre os cônjuges.
Considerando que a mulher passou a assumir novas funções sociais, surgiu a necessidade de modificar algumas imposições civis e sociais, como a imposição legal acerca da indissolubilidade do matrimônio, de modo que se chegou à tão almejada permissão do divórcio, ainda que parcialmente, por meio da Emenda Constitucional Nº 9, de 1977, sendo exigido que o casal estivesse separado o judicialmente há mais de 5 anos ou, de fato, há mais de 7 anos.
No entanto, a referida emenda só fez substituir o termo desquite, contido na legislação anterior, de 1934, pela expressão “separação judicial”, não revogando o caráter matrimonial infindável, de modo que se podia proceder com a separação de bens e cessar a convivência diária, mas era impedido às partes de constituir novo matrimônio, sob a égide da proteção jurídica do casamento, fazendo com que muitos optassem por manter um casamento de aparências (DIAS, 2010, p. 01)
Em contrapartida, a nova lei trouxe alguns pequenos avanços em relação aos direitos da mulher, tornando facultativa a adoção do patronímico do marido e provocando certas modificações no regime legal de bens que, até então, era o da comunhão universal, frente ao silêncio dos nubentes, passando a vigorar o regime da comunhão parcial de bens.
2.2 A Constituição Federal de 1988 e os princípios norteadores da instituição familiar
Muito embora tenham havidos avanços no contexto histórico-social e jurídico, ao longo das décadas, o que realmente inovou o ordenamento jurídico brasileiro, foi a promulgação da Constituição de 1988, ao colocar os direitos humanos como o cerne de suas definições, ainda em seu preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL, 1988, grifo nosso)
Assim, restou manifesto, logo em suas linhas iniciais, se tratar de um dispositivo destinado à proteção dos direitos sociais e individuais, estabelecendo, dentre outros, como valores supremos de uma sociedade fraterna e harmônica, a liberdade, a segurança e o bem-estar, a igualdade e a justiça.
O artigo primeiro, da referida Carta Política, traz a configuração da República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, pautado em fundamentos como a soberania popular, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Mais à frente, o artigo terceiro, traz os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
(BRASIL, 1988, grifo nosso)
Aduz-se, consequentemente, que é dever do Estado, propiciar todos os meios para que a democracia seja exercida, no intuito de proporcionar, aos brasileiros, o bem-estar, a qualidade de vida e a harmonia social, condizentes com uma sociedade livre e solidária.
O artigo quinto, considerado como o principal dispositivo constitucional, por sua vez, versa sobre os direitos e garantias fundamentais, trazendo, em seu caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. (BRASIL, 1988)
A previsão expressa do direito à igualdade, no artigo supracitado, significou um verdadeiro marco atentatório contra a discriminação, ao reafirmar a igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher, permitindo aos cidadãos gozar de tratamento isonômico pela lei, conforme Felipe Pereira:
A Constituição garante a isonomia através do tratamento igualitário a todos os cidadãos, cumpre recordar que, sempre que falamos em igualdade, devemos lembrar que, para alcançá-la, devemos tratar desigualmente os desiguais, e igualmente os iguais, na medida de suas desigualdades, só assim conseguiremos alcançar a igualdade material. É claro que tal princípio teria repercussões e importância inestimável no direito civil e em especial no direito de família, estando este intimamente ligado ao da solidariedade entres os membros da família, como exemplo de repercussão dele temos: das diferenças entre os sexos, a desigualdade gênero, que se reflete na igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges (CC.1.511), os deveres recíprocos tanto para o homem quanto para mulher (CC. 1.566), Igualdade entre os direitos e deveres dos pai e da mãe (CC 1.631) (PEREIRA, 2017, p. 31)
Nesse mesmo sentido, o ilustre doutrinador Carlos Roberto Gonçalves aduz que:
O princípio ora em estudo não admite distinção entre filhos legítimos, naturais e adotivos, quanto ao nome, poder familiar, alimentos, sucessão; permite o reconhecimento, a qualquer tempo, de filhos havidos fora do casamento; proíbe que conste no assento do nascimento qualquer referência à filiação legítima; e veda designações discriminatórias relativas à filiação. (GONÇALVES, 2011, p. 24)
A Carta Magna, de 1988, também, ampliou, o conceito de família, ao reconhecer outras formas de constituição familiar, como a união estável e a família monoparental, em seu artigo 226:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
(BRASIL, 1988, grifo nosso)
Dessa forma, passou a não mais existir a limitação conceitual de família, como ocorria nas constituições anteriores, tendo em vista que o artigo em questão, a partir dos princípios supramencionados, avoca a proteção estatal à família, como pilar estrutural da sociedade, sem delimitá-la ou defini-la, deixando ao intérprete esta tarefa, conforme nos esclarece Paulo Lôbo:
Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não representa exclusão. (LÔBO, 2011, p. 06)
A referida Constituição, ao admitir a família para além do modelo padrão do casamento, reconheceu paulatinamente a importância das relações afetivas, e do próprio afeto como um direito a ser exercido pelos integrantes de todos os tipos de família. Sendo assim, cabe ao ordenamento garantir que pessoas ligadas por vínculos de afeto tenham o direito de viver como família, independente da forma como se organizem, sendo, portanto, o afeto fundamentalmente um vínculo jurídico, fruto do amor, da convivência, do cuidado, que se constrói no tempo.
Para tanto, princípios norteadores fundamentam a relevância do afeto dentro do contexto constitucional, e funcionam como corolário do princípio da afetividade. Neste contexto, o direito veio com a finalidade de reconhecer a entidade familiar e dar proteção legal definindo um conceito próprio para o que é família, devendo, o legislador, se adaptar às constantes transformações ocorridas na sociedade.
Assim, a evolução social e as transformações advindas com a Constituição de 1988 serviram de respaldo para a mudança na legislação, possibilitando a promulgação do Código Civil de 2002 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais vieram complementar os direitos já existentes no âmbito do direito de família. Dessa forma, a filiação passou a ser aceita em seus diferentes formatos, sendo vedado qualquer modo de discriminação entre filhos, independentemente de sua origem. Instituiu-se, assim, a igualdade do reconhecimento de filiação, dentro e fora do casamento, concedendo os mesmos direitos entre os filhos.
2.3 A família e a importância do afeto nas relações parentais
A repersonalização do Direito Civil, em 2002, deu à família especial proteção estatal, que, antes intervencionista, passou a pautar-se na efetivação dos direitos fundamentais, especialmente o bem-estar dos indivíduos que integram a entidade familiar, tendo em vista que o referido dispositivo incorporou, ao texto legal, os princípios constitucionais de 1988, bem como as normas esparsas de legislação infraconstitucional, passando a prever e dispor sobre as regras de direito de família de forma compilada, conforme leciona Araújo Júnior:
O novo Código Civil incorporou, no direito de família, um grande número de alterações que já vinham sendo construídas pela jurisprudência e pelas leis. Podem-se citar, por exemplo: a igualdade entre os filhos havidos dentro e fora do casamento; a igualdade dos cônjuges no casamento (v. g., idade mínima para o matrimônio, chefia da família, uso do nome de casado, direitos e obrigações etc.); possibilidade de alteração do regime de bens; o reconhecimento da união estável como entidade familiar (...) (ARAÚJO JÚNIOR, (2013, p. 19)
Verifica-se, assim, que o legislador reconheceu a importância do afeto nas relações parentais, estabelecendo, implicitamente, uma espécie de valor jurídico para o vínculo afetivo possui valor jurídico, no que se refere aos direitos equitativos existentes entre os indivíduos homólogos e hierólogos de uma prole, independentemente de vínculo biológico, não sendo somente um aspecto social ou psicológico.
3 O reconhecimento da filiação socioafetiva e seus efeitos jurídicos
3.1 Características e especificidades da filiação socioafetiva
Na seara do Direito de Família, na concepção do ilustre doutrinador Flávio Tartuce, mediante interpretação do dispositivo 1.595, é possível dizer que existem três modalidades de parentesco admitidas no Direito Civil brasileiro, são elas:
Parentesco consanguíneo ou natural: aquele existente entre pessoas que mantêm entre si um vínculo biológico, por terem origem no mesmo tronco comum. Parentesco por afinidade: existente entre cônjuge ou seu companheiro e os parentes do outro [...]. Parentesco civil: decorrente de outra origem que não a consanguinidade ou afinidade. Tradicionalmente tem origem na adoção. Todavia a doutrina e a jurisprudência admitem duas outras formas: a decorrente de técnica de reprodução heteróloga, aquela efetivada com material biológico de terceiro, e a parentalidade socioafetiva. (TARTUCE, 2017, p. 1.410)
Assim, o parentesco natural é aquele que se origina da consanguinidade, ao passo que o parentesco civil é o gerado por meio da adoção, isto é, o vínculo legal que se estabelece à semelhança da filiação consanguínea, mas independente dos laços de sangue, enquanto que o parentesco por afinidade surge em razão do vínculo matrimonial.
No entanto, a doutrina e a jurisprudência brasileiras admitem, ainda, duas outras formas de reconhecimento de paternidade: a decorrente de técnica de reprodução heteróloga, aquela efetivada com material biológico de terceiro, e a parentalidade socioafetiva.
A filiação proveniente de reprodução heteróloga é considerada, por muitos, como uma espécie de filiação socioafetiva (art. 1593 do CC), sendo caracterizada quando há a doação por terceiro anônimo de material biológico ou há a doação de embrião por casal anônimo (Resolução CFM, art. IV e art. V, inciso 3).
Cabe salientar, ainda, um dos mais recentes modelos familiares emergidos nos últimos tempos, liderado pela união pessoas do mesmo gênero, sejam homens ou mulheres, vem institucionalizado pelo casamento ou pela união estável homoafetiva, reconhecida pela Suprema Corte, em 2011.
Tais famílias podem constituir filhos por meio de I) reconstituição: quando um dos parceiros traz o filho já existente; II) adoção: legalizada ou não; III) co-parentalidade: quando um dos membros gera a criança com auxílio de alguém que forneça parceria biológica possível, de modo que os três métodos permitem o nascimento da paternidade (novamente utilizada em sentido amplo) socioafetiva.
Por sua vez, o parentesco socioafetivo, de fato, corresponde ao vínculo que se estabelece em virtude do reconhecimento social e afetivo de uma relação entre um homem e uma criança como se fossem pai/mão e filho, sem que haja qualquer vínculo sanguíneo ou adotivo, decorrendo, especificamente, de um ato de vontade, respeito recíproco e o amor construído ao longo do tempo, dia após dia, com base no afeto, independentemente de vínculo sanguíneo.
Portanto, a parentalidade socioafetiva tem, como o próprio nome indica, um viés fortemente sociológico e não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se baseia no campo da afetividade, ultrapassando a verdade jurídica ou genética.
A posse do estado de filho, logo, se dá pela afetividade e convivência. Dá-se quando os papeis de pai e filho são assumidos sem a necessidade do vínculo biológico entre eles. Diferente da realidade biológica que já vem pronta, a posse de estado de filiação se edifica a cada dia e se comprova pela exteriorização dessa relação (MADALENO, 2007, p. 116).
Dentre as modalidades de filiação socioafetiva existentes, destaca-se a chamada adoção “à brasileira”, que refere-se em registrar uma criança sem o devido processo legal; adoção, como ato jurídico; e filho de criação, que desponta quando alguém educa, resguarda e protege em seu lar, por mera opção, criança ou adolescente, tratando perante terceiros como se o filho seu fosse.
Para Flávio Tartuce “a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. (TARTUCE, 2017, p. 1.224)
Destarte, entende-se que o filho socioafetivo tem o direito de pleitear o reconhecimento judicial de tal filiação (e dos seus consequentes efeitos sucessórios) a qualquer tempo, seja vivo ou já falecido o pai, devendo, o respectivo Juiz, analisar as provas que evidenciem o tipo de relação existente.
3.2 Do reconhecimento da filiação socioafetiva
Considerando que o legislador constituinte de 1988 revogou qualquer distinção entre os filhos havidos ou não do casamento ou, ainda, dos decorrentes de adoção (art. 227, § 6º, CRFB), ficou consagrando, nesse diapasão, o princípio da igualdade entre os filhos, o que possibilitou, inclusive, a paternidade socioafetiva e a aquisição da posse de estado de filho.
Os autores Cristiano Farias e Nelson Rosenvald conceituam reconhecimento da filiação da seguinte forma:
O reconhecimento de filhos é um ato, voluntário ou forçado, através do qual se estabelece a relação de parentesco em primeiro grau na linha reta. Pode decorrer de um ato espontâneo praticado pelos genitores ou mesmo contra sua vontade, através de decisão do Poder Judiciário, proferida em ação investigatória de paternidade. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 679),
Esse reconhecimento, portanto, pode ser tanto judicial quanto voluntário. Será voluntário quando alguém, por iniciativa própria, reconhece e declara a filiação, seja por meio do registro de nascimento, escritura pública ou particular, por testamento ou por manifestação expressa e direta perante o juiz. Nas palavras de Maria Berenice Dias:
O reconhecimento voluntário da paternidade independe da prova da origem genética. É ato espontâneo, solene, público e incondicional. Como gera o estado de filiação, é irretratável e indisponível. Não pode estar sujeito a termo, sendo descabido o estabelecimento de qualquer condição (CC 1.613). É ato livre, pessoal, irrevogável e de eficácia erga omnes […] (DIAS, 2016, p. 388)
Ou seja, é permitido o reconhecimento voluntário de paternidade perante o Oficial de Registro Civil, na forma do art. 1.609 do Código Civil, esta possibilidade deve ser também perfeitamente estendida às hipóteses de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, já que a Carta Magna contemplou o princípio da igualdade da filiação, não podendo existir qualquer forma discriminatória entre filhos.
Em contrapartida, o reconhecimento será judicial quando derivado dos laços consanguíneos, comprovado pela prova pericial do exame de DNA, em decorrência de ação de investigação de paternidade, de iniciativa do filho (se menor, pelo representante legal) ou do juiz (nos casos em que a mãe não declara o nome do pai no assento civil), culminando na inserção do genitor no registro civil do filho e, assim, ensejando todos os direitos civis que são atinentes à condição de filho.
Ou ainda, será judicial o reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem, mediante a proposição de ação declaratória, tendo por finalidade o reconhecimento do suposto pai afetivo após a sua morte, já que o filho socioafetivo não teve sua paternidade reconhecida enquanto estava com vida.
O fundamento legal da ação está previsto no art. 42, § 6º, do ECA, que prevê que “a adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença”. No entanto, para que esse reconhecimento seja deferido, o filho que deseja ser reconhecimento como filho do suposto pai socioafetivo deverá demonstrar a relação afetiva que tinha com o mesmo, obedecendo os requisitos estabelecidos pelo Superior Tribunal de Justiça:
Na ação, deverão ser juntadas fotos, bilhetes, vídeos de celular, posts do Facebook e quaisquer outros documentos que provem a relação de afeto como pai e filho. Poderão também ser arroladas testemunhas”. (DIZER O DIREITO, 2016)
Ou seja, para as adoções post mortem, vigem, como comprovação da inequívoca vontade do de cujus em adotar, as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva: o tratamento do menor como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição.
4 Os efeitos jurídicos gerados pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva
A filiação baseada na relação afetiva merece o mesmo patamar de igualdade e reconhecimento, considerando-se a afetividade como base das relações filiais, conforme afirmam Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald:
A transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto. Seu novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para os seres humanos se complementem e se completam. Abandona-se, assim uma visão institucionalizada, pela qual a família era, apenas, uma cédula social fundamental, para que seja compreendida como núcleo privilegiado para o desenvolvimento da personalidade humana (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 38).
Entretanto, para que produza os devidos efeitos jurídicos, a socioafetividade deve ser reconhecida por sentença, mediante exposição da prova do afeto, de natureza subjetiva indubitável, e, necessariamente, dos efeitos sociais daí decorrentes, passíveis de aferição objetiva.
Vale ressaltar que a comprovação legítima dos respectivos efeitos sociais autoriza a declaração do vínculo de parentesco, mesmo sem o desejo expresso do pai (ou da mãe), que não tem mais afeto por aquele que, até então, fora seu filho.
Assim, existindo, comprovadamente, vínculos biológicos e afetivos, mais do que um direito da criança, é uma obrigação constitucional o seu reconhecimento, a fim de preservar os direitos fundamentais de todos os envolvidos, não se podendo negar, ainda, o direito do infante de ter assegurados todos os reflexos da paternidade biológica.
Na mesma linha de raciocínio, coaduna Ana Carolina Brochado Teixeira, o parentesco socioafetivo produz todos e os mesmos efeitos do parentesco natural:
O parentesco socioafetivo produz todos e os mesmos efeitos do parentesco natural. São efeitos pessoais: a) a criação de vínculo de parentesco na linha reta e na colateral até o 4 º grau), permitindo a adoção do nome da família e gerando impedimentos na órbita civil, como os impedimentos para casamento, e pública, como os impedimentos para assunção de determinados cargos públicos; b) a criação do vínculo de afinidade. Sob o aspecto patrimonial são gerados direitos (deveres) a alimentos e direitos sucessórios. O reconhecimento do parentesco com base na socioafetividade deve ser criterioso, uma vez que como demonstrado, envolve terceiros, aos necessariamente envolvidos na relação socioafetiva, mas que certamente serão alcançados pelo dever de solidariedade que é inerente às relações de parentesco. (TEIXEIRA, 2010. p.184)
Nesse contexto, elementos como alimentos, cuidado e proteção, guarda, administração de bens, educação, respeito, nome e identidade moral são considerados pela doutrina os principais efeitos obrigacionais que decorrem da filiação, incluindo-se, ainda, os direitos sucessórios e previdenciários.
Outro efeito que decorre do reconhecimento da filiação, tanto biológica quanto afetiva, é o poder familiar, conforme reza o Artigo 1.612, do Código Civil, em observância ao princípio do melhor interesse da criança, previsto no Art. 227, da Carta Magna, caput; e, no ECA, em seu Art. 4º caput e parágrafo único, conforme assegura Maria Helena Diniz:
O filho menor reconhecido ficará sujeito ao poder familiar (CC, art. 1630 e s.) do genitor que o reconheceu, formando a família monoparental, e, se ambos o reconhecerem, não havendo acordo sobre quem será o guardião, ficará sob o poder de quem melhor atender aos seus interesses (JTJ, 118: 425, 113: 326), pois não poderá haver guarda unilateral que seja prejudicial à criança ou adolescente. (DINIZ, 2012, p. 1.178)
Ainda de acordo com a nobre autora, derivado do poder familiar, surge, ainda, a previsão de alimentos, consoante prevê a norma constante no art. 229 da Constituição Federal de 1988, a saber: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice ou enfermidade”, como declara Maria Helena Diniz:
Os alimentos são prestações que visam atender às necessidades vitais, atuais ou futuras, de quem não pode provê-las por si. Os alimentos são, portanto, apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia. Com isso, exigir-se-á, na ação de alimentos, averiguação da culpabilidade do alimentando, que causou com seu ato comissivo (p. ex., gasto excessivo com viagens) ou omissivo (p. ex., vadiagem), a situação difícil em que se encontra. (DINIZ, 2012, p. 1.240),
Nas palavras de Fábio Ulhôa Coelho:
Os alimentos são devidos aos parentes, cônjuge ou companheiros que não dispõem de patrimônio ou renda suficiente para a sua manutenção (alimentados), por aqueles que dispõem de meios para custeá-lo sem prejuízo injustificado para o próprio padrão de vida (alimentantes). O alimento que não tiver sido culpado pelas suas necessidades tem o direito aos alimentos em valor que lhe permita manter o padrão de vida compatível com sua condição social, desde que o alimentante possa arcar com ele, sem ficar injustamente prejudicado. (COELHO, 2012. p. 184)
Portanto, tem reconhecido a doutrina que a filiação socioafetiva decorrente da posse do estado de filho, concede ao filho socioafetivo, portanto, tudo aquilo que também cabe às outras espécies de filiação, inclusive, a possibilidade do recebimento de pensão alimentícia pelo pai afetivo, tendo por fundamento o princípio da solidariedade familiar.
Além disso, pode, ainda, o filho socioafetivo, na impossibilidade dos pais terem recursos para atender as necessidades básicas do menor, poderá este querer que os ascendentes na linha reta assumam tal dever, onde os mais próximos excluem os mais remotos, e na ausência destes busca-se a solidariedade familiar aos colaterais.
4.2 Direitos sucessórios decorrentes da filiação socioafetiva
O direito de herança é garantido, constitucionalmente, no inciso XXX, do artigo 5º, assim como o direito de propriedade, previsto no inciso XXII, do mesmo artigo, estando os dois, intimamente ligados, considerando que sem a propriedade de bens nos fosse negada, não haveria herança a ser relegada. E, uma vez que o direito sucessório é uma decorrência da filiação, os filhos consanguíneos, assim como os filhos socioafetivos possuem os mesmos direitos sucessórios, ocupando a posição de herdeiros necessários.
O doutrinador Fábio Ulhôa Coelho, ao tratar dos direitos sucessórios, estabelece que:
O direito das sucessões trata da transmissão do patrimônio da pessoa física em razão de sua morte. Aproxima-se, de um lado, do direito das coisas, por versar sobre a propriedade dos bens deixados; de outro, do direito de família, porque os sucessores são, normalmente, familiares do morto. (COELHO, 2012, p 246.)
A ordem de vocação hereditária, prevista no art. 1.829 do Código Civil, de 2002, estabelece os descendentes e os ascendentes, os cônjuges e companheiros, considerados herdeiros necessários (CC 1.845), fazendo jus ao que se chama de herança legítima, ou seja, a pelo menos metade da herança deixada pelo morto, tendo sido estabelecida conforme as relações de parentesco, onde os descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro, figuram na primeira classe de chamamento à sucessão.
Desta forma, reconhecida e declarada a filiação socioafetiva, este filho passa a ter todos os direitos sucessórios. Vale relembrar que, em consonância com o dispositivo constitucional (art. 227, § 6º), os filhos – sejam eles consanguíneos ou não, concorrem com igualdade e devem ter a partilha em quotas iguais.
No tocante dos fins previdenciários, o filho será beneficiário de ambos os pais, uma vez que o artigo 16, inciso I, da Lei Nº 8.213/91 determina que:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente. (BRASIL, 1991)
O mesmo artigo, em seu inciso II, ainda determina que os pais também são considerados beneficiários, de modo que, assim como em qualquer relação de filiação, os pais, biológicos ou afetivos, e o filho, recebem a condição de dependentes do segurado.
Assim, uma vez constatada parentalidade socioafetiva, haverá, também, a necessidade de se reconhecer direitos previdenciários, uma vez que os filhos, tanto biológicos como afetivos não podem ser tratados de forma desigual, respeitando o princípio da dignidade humana, assegurado o direito relativo a todos os filhos sem prevalência.
Frente às significativas mudanças ocorridas no contexto histórico-social, ao longo dos últimos anos, assim como as alterações do conceito de família sofridas no âmbito do direito interno, verifica-se que existe necessidade de aprimoramento e atualização constante da legislação brasileira.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que positivou uma série de direitos e garantias fundamentais, com vistas à preservação dos direitos humanos e de uma existência digna e solidária, passaram a ser percebidas novas configurações familiares distintas do modelo tradicional, fundamentando na arbitrariedade do casamento.
As conformações familiares passaram a apresentar as mais distintas conformações, uma vez que passaram a ser fundamentadas em relações de amor, afeto e solidariedade, dando azo ao reconhecimento de outros tipos de paternidade, que não a consanguínea e a civil.
Conforme visto no decorrer deste estudo, o ordenamento jurídico brasileiro, fundamentado na Lei Maior, de 1988, não admite diferenciação entre os filhos, sejam eles consanguíneos, adotivos, ou socioafetivos, sendo a tutela jurídica dada à afetividade, por vezes, maior do que a disponibilizada para o direito consanguíneo, já que, por muitas vezes, há mais afeto, amor e reconhecimento daquele que não é parente do que daquele que gerou o indivíduo.
Surgiu, assim, a filiação socioafetiva, aquela consistente na relação entre pai e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexiste liame de ordem sanguínea entre eles, baseada, unicamente, em laços de afeto e na manifestação inequívoca da vontade, intimamente relacionado com a convivência familiar e com o princípio da igualdade entre os filhos, constitucionalmente assegurado.
Por conseguinte, do estado de filiação socioafetiva decorrem os efeitos jurídicos previstos nos artigos 39 e 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre eles a guarda e sustento dos filhos, bem como pagamento de alimentos, os direitos sucessórios e previdenciários.
Nesta mesma senda, o reconhecimento do vínculo de filiação socioafetiva gera o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito e se legitima no interesse do filho. Se menor, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, que não admite um parentesco restrito ou de “segunda classe”.
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[1] Autor de livros e advogado. Mestre em Direito pelo Instituto Nacional de Ensino Superior e Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM/MG, Pós-Graduação em Processo Judiciário pela FIC/SERGIPE, Pós-Graduação em Docência e Gestão em Ensino Superior pela Universidade Estácio do Amazonas, Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus -CEULM/ULBRA. Contato: [email protected]
Graduando do Curso Superior de Direito do Centro de Ensino Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTINHO, Helen de Araújo. O reconhecimento da filiação socioafetiva e seus efeitos legais no ordenamento jurídico pátrio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55476/o-reconhecimento-da-filiao-socioafetiva-e-seus-efeitos-legais-no-ordenamento-jurdico-ptrio. Acesso em: 23 dez 2024.
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