A inclusão da mulher no mercado de trabalho, seja no setor público, seja no âmbito privado, constitui-se num desafio imenso para a sociedade brasileira. Desde o texto constitucional houve a preocupação com o tratamento igualitário entre homens e mulheres (artigo 5º, inciso I), passando pela licença à gestante sem prejuízo ao emprego e ao salário (artigo 7º, XVIII), pela proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos na forma da lei (artigo 7º, XX), pela assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 anos de idade em creches e pré-escolas (artigo 7º, XXV) e pela vedação da discriminação no tocante ao salário, ao exercício de funções e aos critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (artigo 7º XXX), menções estas apenas a título exemplificativo e que não têm o condão de exaurir tal proteção constitucional[1].
Particularmente no âmbito dos concursos públicos se sabe que a competitividade é cada vez mais acirrada, notadamente em função do alto índice de desemprego e da cultura de empregabilidade estatal vigente no país. Afinal de contas, o sonho da estabilidade decorrente do concurso público – hoje afetado pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020, a tal Reforma Administrativa – conduz a uma busca incessante pelo acesso aos cargos e empregos públicos.[2]
Em tempos de pandemia decorrente do COVID19 essa disputa se mostra ainda mais acentuada, pois o número de concursos públicos se reduziu drasticamente e as pessoas se digladiam – a bem da verdade – para obter êxito num certame com poucas vagas e milhares de inscritos.
Nesse contexto, a Lei Federal nº 13.872/2019 estabeleceu o direito de as mães amamentarem seus filhos de até 6 meses de idade durante a realização de concursos públicos na Administração Pública Direta e Indireta dos Poderes da União. Tal demanda era antiga e muito pleiteada pelas mulheres em razão da necessidade de garantia da isonomia material entre homens e mulheres de que trata a Constituição Federal. Também para a garantia do direito constitucional à alimentação dos seus filhos (artigo 6º, caput).
Diz a norma federal:
Art. 1o Esta Lei estabelece o direito de as mães amamentarem seus filhos de até 6 (seis) meses de idade durante a realização de concursos públicos na administração pública direta e indireta dos Poderes da União.
Art. 2º Fica assegurado à mãe o direito de amamentar seus filhos de até 6 (seis) meses de idade durante a realização de provas ou de etapas avaliatórias em concursos públicos na administração pública direta e indireta dos Poderes da União, mediante prévia solicitação à instituição organizadora.
§ 1º Terá o direito previsto no caput deste artigo a mãe cujo filho tiver até 6 (seis) meses de idade no dia da realização de prova ou de etapa avaliatória de concurso público.
§ 2º A prova da idade será feita mediante declaração no ato de inscrição para o concurso e apresentação da respectiva certidão de nascimento durante sua realização.
Art. 3º Deferida a solicitação de que trata o art. 2º desta Lei, a mãe deverá, no dia da prova ou da etapa avaliatória, indicar uma pessoa acompanhante que será a responsável pela guarda da criança durante o período necessário.
Parágrafo único. A pessoa acompanhante somente terá acesso ao local das provas até o horário estabelecido para fechamento dos portões e ficará com a criança em sala reservada para essa finalidade, próxima ao local de aplicação das provas.
Art. 4º A mãe terá o direito de proceder à amamentação a cada intervalo de 2 (duas) horas, por até 30 (trinta) minutos, por filho.
§ 1º Durante o período de amamentação, a mãe será acompanhada por fiscal.
§ 2º O tempo despendido na amamentação será compensado durante a realização da prova, em igual período.
Art. 5º O direito previsto nesta Lei deverá ser expresso no edital do concurso, que estabelecerá prazo para que a mãe manifeste seu interesse em exercê-lo.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor após decorridos 30 (trinta) dias de sua publicação oficial.[3]
Não deve ser difícil, mesmo para um homem, compreender a difícil tarefa e decisão de uma mulher em prestar concurso público estando em período de amamentação de seu filho. Ou filhos, no plural. Apenas de deslocamento de sua casa ao local de prova já se vão, em média, 1 a 2 horas. A organização do certame pede que os candidatos compareçam com 1 hora de antecedência ao início das provas. Dessa maneira, considerando o tempo de prova médio de 5 horas, uma candidata ficaria fora de casa por não menos que 10 horas, sendo extremamente difícil para uma mulher gerir e se concentrar numa prova sabedora de que seu filho está chorando com fome e precisando de sua ajuda.
Em que pese louvável a iniciativa legislativa que corrige, em parte, um problema por que passavam as mulheres lactantes e seus filhos, a Lei Federal nº 13.872/2019 estabeleceu uma restrição etária, pois os filhos das candidatas devem ter no máximo 6 meses. Dessa maneira, o menor com 7 meses já não geraria esse direito específico.
Nesse toar, entende-se que agiu mal a legislação ao fixar um limite etário, pois o legislador não teria elementos fáticos, científicos e jurídicos para obstar a necessidade de amamentação de maiores de 6 meses de vida indistintamente. Cada criança é um ser diferenciado e possui uma relação singular com o processo de alimentação, de modo que é bastante comum haver amamentação como única fonte ou majoritária de subsistência de menores acima de 6 meses de vida.
Na pior das hipóteses, o que se admite apenas a título de argumentação, a lei deveria ter previsto a possibilidade de a candidata apresentar um laudo médico que justificasse a necessidade de amamentação do seu filho maior de 6 meses de vida. Ao revés, a lei silenciou e garantiu esse direito exclusivamente para mães de menores até essa faixa etária.
Outro fator que chama a atenção é que a lei parte do pressuposto de que toda família é composta, no mínimo, pela mãe. Em momento algum a referida norma tratou da figura paterna. É possível que o menor, seja ele com 6 meses ou mais de vida, seja criado exclusivamente por pessoa do sexo masculino de maneira que o correto deveria ser a adoção da acepção de representante legal do menor. Seja pai, mãe, adotante, tutor ou qualquer outra possibilidade legal, ao prestar concurso público e possuir menor que necessite de amamentação tal direito deveria ser conferido tanto por se tratar de direito do candidato quanto de direito do menor envolvido.[4]
Não se quer dizer com isto que os filhos iriam amamentar diretamente dos seios de homens, embora existam casos de pais que utilizam aparelhos simuladores de mamas com suporte para o recebimento de leite materno ou formulado. Mas sim que a relação de amamentação é complexa e pode se dar também entre um homem e um menor – mesmo em casais heterossexuais – pois o ato de alimentação é de uma relação intrínseca e singular. O afeto é algo que move esse momento ímpar onde muitas crianças, por exemplo, costumam se sentir à vontade para se alimentar apenas com seus genitores ou responsáveis legais. É possível, assim, que o menor simplesmente não se alimente porque a pessoa que tenta fazer a ingestão alimentar não é aquela que sempre o acompanha diariamente.
Também não se argumente que após 6 meses de vida o menor poderia fazer a ingestão de outros alimentos sólidos, pois isto varia de pessoa para pessoa e de família para família. Dessa maneira, não caberia ao Estado invadir essa particularidade de cada relação familiar, sob pena daquele passar a ditar a forma como se desenvolverá a criação de cada menor em grave ofensa ao livre planejamento familiar[5].
Essa distinção criada pela Lei Federal nº 13.872/2019 onde apenas a mulher teria direito a amamentar e, inclusive, limitada a menor de até 6 meses de vida, é inconstitucional porque viola diversas disposições constitucionais, notadamente a vida, a igualdade material, a não discriminação, a família, a proteção à maternidade, a dignidade da pessoa humana e a alimentação, rol este meramente exemplificativo.[6]
Assim, deve ser realizada uma interpretação conforme à Constituição a fim de que a aplicação de tal dispositivo federal se amolde tanto a mulheres, quanto a homens no que tange ao direito a amamentar, bem como seja extensível aos representantes legais do menor (tutores, adotantes, entre outros). Igualmente, deve ser reconhecido que a limitação etária fixada em lei de até 6 meses de vida da criança não encontra amparo na Constituição, pois tal restrição não pode subsistir sem que ofenda o texto da Carta Política a qual veda a discriminação por idade (artigo 3º, IV) e garante o direito ao planejamento familiar (artigo 226, § 7º).
Sob outro ângulo basta se observar que outros Estados da Federação que disciplinaram tal direito à amamentação não criaram exigências etárias. É o caso do Estado de Alagoas por meio da Lei Estadual nº 7.858/2016 que estabelece normas gerais para realização de concurso público pela Administração Direta, Indireta, Autárquica e Fundacional do Estado de Alagoas. Diz a norma estadual:
Art. 97. Mediante prévia solicitação à instituição organizadora, é assegurado à candidata lactante o direito a levar acompanhante às provas, que será o responsável pela guarda da criança.
§ 1º A pessoa acompanhante somente terá acesso ao local das provas até o horário estabelecido para fechamento dos portões, ficando com a criança em sala reservada para essa finalidade, próxima ao local de aplicação das provas.
§ 2º A candidata lactante poderá se ausentar da sala para amamentar seu filho a intervalos regulares, devidamente acompanhada por fiscal de prova, o qual assegurará a manutenção das condições de sigilo e isonomia com os demais candidatos na realização da prova e a reposição do tempo despendido na amamentação, até o máximo de 01 (uma) hora.
§ 3º A relação das candidatas que obtiverem o deferimento de pedido de condição especial de realização de prova como lactante, nos termos deste artigo, será previamente divulgada, em lista separada, a todos os candidatos do concurso[7].
Note-se que a norma acima não criou qualquer limite etário, ao contrário da lei federal que limitou o exercício deste direito a mães de menores de até 6 meses de vida. No entanto, a lei estadual, de modo equivocado, também restringiu o direito à amamentação apenas a mulheres, quando se sabe que há famílias onde estas não existem e os filhos possuem homens como únicos representantes legais, entre outras possibilidades fáticas alhures citadas.
Frente ao exposto é preciso que haja uma maior sensibilidade e reflexão sobre o direito de amamentar menores durante a realização de concursos públicos, haja vista que as normas jurídicas até então editadas não solucionaram todas as dificuldades por que passam os candidatos e candidatas, bem como menores, diante de uma sociedade cada vez mais plural e multifacetada[8]. Não cabe, portanto, uma fórmula tradicional como se apenas a mãe fosse a detentora desta tarefa que é o amoroso ato de amamentar ou mesmo que um menor de 7 meses de vida – ou mais – seja independente ao ponto de abdicar deste momento especial que se constitui o ato de amamentar.
[1] BARROS, Alice Monteiro de. A mulher e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995.
[2] CARVALHO, Fábio Lins de Lessa. Igualdade, discriminação e concurso público. Análise dos requisitos de acesso aos cargos públicos no Brasil. 1. ed. Maceió: Viva, 2014.
[3] BRASIL. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13872.htmf>. Acesso em: 02 nov. 2020.
[4] ROMITA, Arion Sayão. O combate à discriminação da mulher no mundo do trabalho à luz das fontes internacionais com reflexos no ordenamento jurídico interno. In: FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa (org.). Trabalho da mulher: homenagem a Alice Monteiro de Barros. São Paulo: LTr, 2009.
[5] LIMA, Firmino Alves. Mecanismos antidiscriminatórios nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2008.
[6] GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua aplicação às relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2010.
[7] BRASIL. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE ALAGOAS. Disponível em: <https://sapl.al.al.leg.br/media/sapl/public/normajuridica/2016/1265/1265_texto_integral.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2020.
[8] MALLET, Estevão. Igualdade e discriminação em direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2013.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. A Lei federal nº 13.872/2019 e o direito à amamentação: como fica o caso dos filhos de homens e dos maiores de 6 meses de vida? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55489/a-lei-federal-n-13-872-2019-e-o-direito-amamentao-como-fica-o-caso-dos-filhos-de-homens-e-dos-maiores-de-6-meses-de-vida. Acesso em: 23 dez 2024.
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