JANE DA SILVA SILVEIRA[1]
(coautora)
RESUMO: O presente trabalho se propõe a demonstrar a incompatibilidade jurídica da vedação do exercício do poder familiar por padrastos e madrastas, contida na parte trabalho final do artigo 1.636 do código civil referente às responsabilidades expressas no artigo 1.634 e seus incisos que se mostra em desacordo com os preceitos constitucionais referentes a constituição e responsabilidade da família com os filhos, bem como demonstrar a violação ao artigo 3, inciso 1 da convenção dos direitos da criança por, ao não deixar espaço para escolher o que seria melhor para a criança, está violando a determinação do referido inciso, não priorizando o maior interesse da criança. O trabalho também busca descrever a realidade de pobreza de milhões de famílias brasileiras que em tese não teriam ou não têm condições suficientes para educar e criar seus filhos com a devida dignidade, realidade que se contrapõe a tal vedação, uma vez que, muitos padrastos e madrastas podem ter mais condições que os pais para atender o melhor interesse da criança e do adolescente.
PALAVRAS-CHAVE: Poder Familiar. Vedação. Padrastos. Incompatibilidade.
ABSTRACT: The present proposes to demonstrate the legal incompatibility of the prohibition of the exercise of family power by stepfathers and stepmothers, contained in the final work part of article 1.636 of the civil code referring to the responsibilities expressed in article 1.634 and its items that is in disagreement with the precepts constitutional provisions relating to the constitution and responsibility of the family with the children, as well as demonstrating the violation of article 3, item 1 of the convention of the rights of the child, by not leaving space to choose what would be best for the child, it is violating the determination of the mentioned item, not prioritizing the child's best interest. The work also seeks to describe the reality of poverty of millions of Brazilian families who, in theory, would not have or do not have sufficient conditions to educate and raise their children with due dignity, a reality that opposes this prohibition, since many stepfathers and Stepmothers may be better able than parents to serve the best interests of children and adolescents.
KEYWORDS: Family Power. Prohibition. Stepfathers. Incompatibility
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A INSERÇÃO DO PADRASTO E DA MADRASTA NO CONCEITO MODERNO DE FAMÍLIA. 3. A REALIDADE DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS. 4. A VEDAÇÃO DADA PELO ARTIGO 1636 DO CÓDIGO CIVIL. 5. A INCOMPATIBILIDADE COM OS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS. 6. A INCOMPATIBILIDADE DA VEDAÇÃO 3° INCISO 1 DA CONVENÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA. 7. CONCLUSÃO. 8. REFERÊNCIAS
1.INTRODUÇÃO
Abordar as relações entre padrastos/madrastas e enteados/enteadas, nunca foi tarefa das mais fáceis, visto que, os relatos cotidianos que as mídias jornalísticas costumam nos mostrar, infelizmente são de relações doentias, que revelam quase sempre, o sofrimento de enteados e enteadas através das mais variadas agressões físicas e psicológicas, destacando-se neste conjunto de crueldade, a tortura, o estupro e o infanticídio.
Contudo, apesar de corriqueiros nos noticiários, não podem ser vistos como regra geral deste tipo de relação, uma vez que em grande parte dos casos, padrastos e madrastas acabam por assumir respectivamente os papéis de pai e mãe de seus enteados. E, é em defesa dessas relações positivas que este trabalho se desenvolve no sentido de demonstrar o não cabimento da vedação da parte final do artigo 1.636 do Código Civil que proíbe que padrastos e madrastas exerçam qualquer tipo de interferência no exercício do poder familiar em relação aos seus enteados, por ser incompatível com os preceitos constitucionais e da Convenção dos Direitos da Criança relacionados à família e sua responsabilidade com os filhos.
Para demonstrar a incompatibilidade jurídica este trabalho se valerá dos artigos 205, 227, 229 e o inciso 7° do 226 da Constituição Federal de 1988 e do inciso 1 do artigo 3° da Convenção dos Direitos da Criança recepcionada e promulgada em 1990. Também se buscará demonstrar a realidade de pobreza em que vivem milhões de mulheres que criam seus filhos sozinhas, as quais, na hipótese de virem a constituir nova família com novo companheiro ou cônjuge, não terão condições de recusar ajuda de seus companheiros na criação e educação de seus filhos.
2.A INSERÇÃO DO PADRASTO E DA MADRASTA NO CONCEITO MODERNO DE FAMÍLIA.
A concepção moderna do conceito de família sofreu ampliação, não mais se limitando a formação tradicional de pai, mãe e filhos provenientes desta união. Hoje, além das famílias homoafetivas, tem sido muito comum a formação de famílias recompostas devido, em parte, a maior facilidade que tem em se divorciar ou se separar. No tocante às famílias recompostas Rolf Madaleno, em seu livro Curso de Direito de Família, nos traz a seguinte perspectiva sobre a constituição destas famílias:
Seguindo sua trajetória de vida e, sobrevindo ou não o divórcio, ela se casa novamente ou estabelece uma união estável e passa a constituir uma nova família, que não tem identificação na codificação civil, e passou a ser chamada de família reconstruída, mosaica ou pluriparental. A família reconstruída é a estrutura familiar originada em um casamento ou uma união estável de um par afetivo, onde um deles ou ambos os integrantes têm filhos provenientes de um casamento ou de uma relação precedente. (MADALENO, 2011).
Dessa forma, nota-se que o afeto tem sido o principal fator para a constituição da concepção do conceito moderno de família, deixando assim o limite sanguíneo e passando a reconhecer novas formas de constituição familiar. É nessa perspectiva que DIAS (2011, p. 49) descreve seu entendimento sobre a formação desses novos núcleos familiares:
Valendo-se da multiplicidade de vínculos e da ambiguidade de compromissos a formação dessa estruturação familiar começa pela organização dos casais, que são egressos de uniões anteriores. Eles trazem para a família seus filhos e, ainda, têm filhos em comum. É a comum expressão: “os seus, os meus e os nossos...”. (DIAS, 2011. p. 49).
Em 2009, o artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente foi expandido, inserindo a ele um parágrafo único que contempla a questão da família extensa:
“Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. (BRASIL, 1990).
Neste ponto, entendemos que a relação entre padrastos/madrastas e enteados/enteadas está contemplada nesta nova concepção trazida pelo artigo 25 do ECA, uma vez que o Código Civil em seu artigo 1.521, inciso II, reconhece o parentesco das relações de padrastos e madrastas com seus enteados, vedando desta forma, o casamento entre eles por serem parentes afins. A respeito da definição de quem estaria inserido nesse novo modelo familiar VILAS-BÔAS (2008, p. 64) comenta: “Ora, entre outros, quem seriam essas pessoas de sua convivência? Nada mais claro do que descobrir que esse parágrafo se refere ao padrasto e à madrasta.”
SARAIVA, LEVY E MAGALHÃES (2014) ao abordarem o tema fizeram a seguinte explanação:
Referindo-se à realidade brasileira, nossa legislação deixa uma lacuna expressiva no que tange a regras que possam contribuir para a legitimação do padrasto na família recomposta, de modo que, legalmente, não há qualquer compromisso deste em relação aos filhos de sua parceira amorosa. Embora participe efetivamente de cuidados diretos aos enteados e de seu processo de socialização, principalmente quando residem na mesma casa, seu papel social não se encontra definido. (SARAIVA; LEVY & MAGALHÃES, 2014. p. 83).
De forma mais incisiva Soares destaca:
Padrastos e madrastas sentem-se desamparados e confusos diante do que deles se espera. No caso de uma separação conjugal, as relações tornam-se ainda mais indefinidas, pois o padrasto não tem direitos que lhe garantam a manutenção da convivência com o enteado, tampouco possui qualquer obrigação formal em relação ao mesmo. (SOARES, 2008)
Corroboramos com as críticas dos autores pois, de fato, apesar da abertura de entendimento a respeito do conceito de família, as relações entre padrastos e madrastas com seus enteados ainda carece de regulação jurídica para que estas novas constituições familiares contem com a efetiva proteção do Estado.
3.A REALIDADE DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS.
No caso concreto, muitas famílias têm sido geridas por apenas um dos pais, em sua maioria mulheres, sem contudo, possuir condições suficientes para garantir plena dignidade na educação e criação dos filhos.
Para se ter ideia desta realidade, basta que analisemos a quantidade de mães que receberam o auxílio emergencial de enfrentamento do COVID-19 no valor de R$ 1.200,00 (Hum mil e duzentos reais) por criarem seus filhos sozinhas. Neste sentido uma reportagem publicada em 04 de abril de 2020 no site da Folha de São Paulo pelo repórter Clayton Castelani (2020) traz a seguinte informação sobre o pagamento do auxilio emergencial: “A Caixa Econômica Federal começou a pagar as cotas de R$ 1.200,00 (Hum mil e duzentos reais) para cerca de 3 milhões de mães que não possuem marido ou companheiro e são as responsáveis pelo sustento da família.”
Além do número de mulheres que criam filhos sozinhas ser tristemente alarmante, cabe ainda salientar que este grupo de três milhões de mulheres que receberam o auxílio de R$ 1.200,00 (Hum mil e duzentos reais), vivenciam uma realidade de extrema necessidade, uma vez que os critérios do governo para conceder o auxilio são para mães que realmente não possuem condições de sustentar sua família, como se constata nos critérios estabelecidos na lei 13.982 de 02 de abril de 2020:
Art. 2º Durante o período de 3 (três) meses, a contar da publicação desta Lei, será concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais ao trabalhador que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos:
I - seja maior de 18 (dezoito) anos de idade, salvo no caso de mães adolescentes;
II - não tenha emprego formal ativo;
III - não seja titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado, nos termos dos §§ 1º e 2º, o Bolsa Família;
IV - cuja renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários mínimos; § 3º A mulher provedora de família monoparental receberá 2 (duas) cotas do auxílio. (BRASIL, 2020)
Desta forma, o que temos hoje no Brasil é, de um lado, uma esdrúxula realidade de mães que não possuem condições suficientes para criar e educar seus filhos com o mínimo de dignidade e, de outro, uma vedação legal que proíbem padrastos e madrastas de exercer pelo menos em certo grau o poder familiar com o propósito de contribuir na educação e criação de seus enteados.
Neste cenário, imaginemos a situação absurda e desumana que teremos ao se aplicar a rigor a vedação expressa no artigo 1.636 do Código Civil a essas três milhões de mães na hipótese de constituírem relações com novos companheiros, erigindo então a figura do padrasto, que neste caso estará proibido de prestar qualquer ajuda aos enteados.
4.A VEDAÇÃO DADA PELO ARTIGO 1636 DO CÓDIGO CIVIL.
Para melhor compreensão quanto ao contexto da proibição de padrastos e madrastas em participarem da criação e educação de seus enteados é necessário também que se faça a exposição do inciso I do artigo 1634 do Código Civil, então temos:
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:
I - dirigir-lhes a criação e a educação; [...]Art. 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro.
Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável.
(BRASIL,2002).
Embora neste ponto, o legislador tenha pretendido proteger e direcionar o direito natural dos pais biológicos de exercer o poder familiar, acreditamos que pecou o legislador ao vedar a participação de padrastos e madrastas na criação e educação de seus enteados, visto que como veremos adiante, a Carta Magna também tem em seu artigo 229 tal direcionamento, mas não veda a participação de padrastos e madrastas.
A proibição de interferência de padrastos e madrastas não se coaduna com melhor interesse da criança, uma vez que nem sempre os pais biológicos possuem condições suficientes para garantir os deveres inerentes ao poder familiar. Nesta linha de pensamento, RIBEIRO (2009) salienta que: “alguns casos, o dever de proteção, cuidado e assistência que deve ser prestado a uma criança é insuficiente por parte da sua família, sendo expostas a uma situação de perigo.”
E é neste contexto que se dá a importância da participação de padrastos e madrastas na criação e educação de seus enteados e o Estado deve estar sensível estas realidades expressas na vida cotidiana das famílias reconstituídas, pois em muitos casos, não é a ausência e falta de vontade dos pais em exercer o pleno poder familiar, mas sim falta de estrutura econômica e de educação adequada, de modo que, é possível sim, se pensar no exercício do poder familiar conjunto, sem que seja necessário a destituição do poder de um dos pais.
A respeito da constituição em famílias recompostas SCHREIBER E LUTOSA (2006) dão o seguinte parecer:
O fenômeno da multiparentalidade – ou pluriparentalidade – consiste na multiplicidade de liames parentais formados por laços biológicos e/ou socioafetivos construídos por motivos anteriores ou supervenientes ao nascimento de determinada pessoa e que compartilham da vivência parental sem que seja necessária a substituição de um vínculo pelo outro. (SCHREIBER E LUTOSA, 2006. p. 247).
No tocante à vedação GOUVEIA (2011) afirma que:
Não é possível ignorar as responsabilidades dos pais afins, pois estes terão influência na socialização dos filhos e de seu cônjuge e companheiro, transmitirão valores, princípios, modelos de conduta. Por tal razão, é extremamente necessário que a lei confira aos pais afins certa autoridade, proveniente da conveniência e da responsabilidade de todo adulto sobre menor a seu encargo. (GOUVEIA, 2011).
O que está estabelecido no artigo 1.636 do Código Civil e seu parágrafo, cominado com o inciso I do artigo 1.634 é, em outas palavras, uma proibição de padrastos e madrastas poderem voluntariamente ajudar a sustentar, proteger e educar seus enteados, uma vez que, nas mais variadas situações da vida em família é praticamente impossível prestar ajuda aos enteados sem que se exerça em certo grau a direção da entidade familiar como um todo .
Além disso, mesmo que se tente justificar que o texto se refere especificamente à direção da criação e educação dos filhos, tal determinação não se coaduna com a realidade de grande parte das famílias recompostas, principalmente no tocante à famílias com padrastos, uma vez que nas camadas mais pobres da sociedade brasileira, o homem continua sendo o provedor da família de forma que, na prática, se torna inconcebível a ideia de padrastos como provedores de toda a família não exercerem algum tipo de comando sobre seus enteados. LÔBO (2008 p. 65) comenta tal vedação da seguinte forma: “Esse artigo vem em contramão ao que se almeja com relação aos interesses do menor e de sua família. Percebe-se que o Código Civil está na contramão dos ideais do Direito das Famílias e da realidade das famílias mosaicas.”
5.A INCOMPATIBILIDADE COM OS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS.
A Carta Magna traz em seu artigo 229 a seguinte redação: “Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” (BRASIL, 1988).
Neste ponto, o entendimento que se tem é o de que a intenção do constituinte foi especificamente de direcionar tal dever aos pais e não o de proibir que os filhos menores possam ser ajudados em sua criação e educação por outras pessoas na impossibilidade de dos pais para tal.
Ademais, a própria Constituição Federal ao abordar o direito à educação em seu artigo 205 a coloca como dever do Estado e também da família, vejamos:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).
No artigo 227 o constituinte amplia a responsabilidade da família com a criança, o adolescente e também com o jovem:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010). (BRASIL, 1988).
Com esta redação, fica ainda mais clara a incompatibilidade da vedação contida no artigo 1.636 com o texto constitucional. VILAS-BOAS (2008) assim define tal incompatibilidade:
A parte final do artigo 1636 do CC não se encontra em consonância com o art. 227 da Constituição Federal. [...] Sendo dever da família, e como o novo par do genitor/genitora encontra-se inserido no conceito de família, seja por força do conceito de família extensa ou ampliada do Estatuto da Criança e do Adolescente - art. 25, conforme exposto anteriormente, ou em decorrência da relação de parentesco, expressa no Código Civil, artigo 1.595 CC45, ele não pode eximir-se desse dever. Tratando-se de uma determinação constitucional não poderia deixar de agir de outra forma, porém, em contrapartida como o citado artigo 1.636 coloca de forma expressa que não pode haver interferência do novo par do progenitor/progenitora. Isso significa que não está em consonância com a Constituição Federal e, portanto, não foi recepcionado pela nossa Carta Magna. (VILAS-BOAS, 2008. p. 66).
Dessa forma, constata-se que a vedação contida no referido artigo não se harmoniza com os preceitos constitucionais relativos às responsabilidades e deveres da família com relação aos descendentes, ainda que se trate de parentesco afim como é o caso da relação de padrastos e madrastas com seus enteados.
A vedação também se revela incompatível com o § 7° do artigo 226 da Constituição Federal, uma vez que dá plena liberdade ao casal para planejar sua família e proíbe qualquer forma coercitiva estatal ou privada que restrinja a liberdade de planejamento familiar:
Art. 226[...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 1988).
O texto constitucional é claro ao declarar que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, de modo que, é inconcebível a ideia de se pensar em planejamento familiar de famílias recompostas sem inserir enteados e enteados no projeto familiar, mostrando mais uma vez que a vedação do artigo 1636 também viola preceito constitucional.
No tocante ao planejamento familiar em famílias recompostas ALMEIDA (2018) lembra que:
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) fixou tese de repercussão geral que assume caráter histórico no direito brasileiro ao julgar o Recurso Extraordinário n. 898.060, em 22 de setembro de 2016. A suprema Corte afirmou que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (Repercussão Geral 622). Com isso, reconheceu definitivamente o fenômeno da multi parentalidade no sistema jurídico brasileiro5, minando as resistências jurídicas e culturais calcadas no modelo bi parental orientador da família nuclear – constituída pelo pai, pela mãe e pelo(s) filho(s). (ALMEIDA, 2018).
Neste ponto, verifica-se que o entendimento da Suprema Corte tem sido no sentido de cada vez mais ampliar o entendimento do conceito de família, quebrando a barreira do tradicionalismo patriarcal que limita a núcleo familiar as relações de parentesco sanguíneo, buscando se amoldar desta forma, as mudanças ocorridas na sociedade ao longo do tempo. A respeito dessa decisão, ANDERSON SCHREIBER (2018) teve o seguinte posicionamento:
A decisão da corte permitiu ainda o reconhecimento do instituto da paternidade socioafetiva mesmo à falta de registro – tema que ainda encontrava resistência em parte da doutrina de direito de família, bem como afirmou que a paternidade socio afetiva não representa uma paternidade de segunda categoria diante da paternidade biológica. (SCHREIBER, 2018).
SCHREIBER (2018) também chama a atenção para a importância desta decisão no que se refere à necessidade de o direito de família acompanhar as transformações sócias:
Nesse particular, avulta como importante avanço na aproximação entre o Direito de família e a realidade social, que andaram durante tanto tempo afastadas. O fenômeno da multiparentalidade finalmente deixou de ser um fato social ignorado pelo direito, eis que se reconheceu a existência de múltiplos laços parentais aptos a gerar os efeitos jurídicos decorrentes do vínculo paterno-filial, sem o estabelecimento de prévia hierarquia entre os critérios de parentalidade e sem a exclusão dos vínculos já existentes, que somente podem ser examinados à luz das circunstâncias do caso concreto de modo a estabelecer se é hipótese ou não de pluriparentalidade. (SCHREIBER, 2018)
Assim, mais uma vez, a vedação do artigo 1.636 do CC mostra-se incompatível com os preceitos constitucionais, uma vez que, além do dever de lei infraconstitucional estar em harmonia com a Constituição Federal, as normas jurídicas devem também acompanhar as mudanças do contexto social.
6.A INCOMPATIBILIDADE DA VEDAÇÃO 3° INCISO 1 DA CONVENÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.
A Convenção dos Direitos da Criança é a norma Direito Internacional com mais adesão no mundo. A UNICF (2020) ao celebrar os trinta anos de sua ratificação salientou que: “É o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal. Foi ratificado por 196 países. Somente os Estados Unidos não ratificaram a Convenção. O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 24 de setembro de 1990.”
No que tange ao status de Tratados e Convenções de Direitos Humanos, o ministro do STF Celso de Melo no Recurso Extraordinário n° 466343 ressaltou o status constitucional das normas internacionais de direitos humanos:
[...]No que respeita à atribuição de status supralegal aos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, afirmou terem estes hierarquia constitucional. No ponto, destacou a existência de três distintas situações relativas a esses tratados: 1) os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CF/88, revestir-se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nessa condição pelo § 2º do art. 5º da CF; 2) os que vierem a ser celebrados por nosso País (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o iter procedimental do § 3º do art. 5º da CF; 3) aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso País aderiu) entre a promulgação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade. RE 466343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 12.3.2008. (RE-466343). (BRASIL, 2008)
Assim, conforme explanação do ministro, a Convenção dos Direitos da Criança se insere no item 3, sendo desta forma, forma hierarquicamente superior ao Código Civil Brasileiro. A convenção dos Direitos da Criança ratificada e promulgada no ano de 1990, traz em seu artigo 3° inciso 1 a seguinte redação:
Artigo 3 1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.” (BRASIL, 1990).
A parte final do texto traz uma determinação clara para os órgãos legislativos dos países signatários que devem considerar na elaboração de leis pertinentes aos direitos das crianças, primordialmente, o interesse maior da criança, o que, à luz da realidade brasileira constata-se que, a vedação contida no artigo 1.636 e seu parágrafo não observa o que determina a convenção, uma vez que, proibir padrastos e madrastas de contribuírem na criação e educação de seus enteados, dentro do contexto de pobreza por que passam milhões de mães que criam seus filhos sozinhas como já descrito acima é, diametralmente oposto ao maior interesse da criança.
Sara Emanuela Vieira de Castro (2018, p. 13), ao analisar em sua dissertação de mestrado a relação de padrastos e enteados no direito de família português, também encontra fenômeno semelhante do que ocorre no Brasil em relação à falta de regulamentação de alguns pontos da relação entre padrastos e enteados e ao lhe dar com esta lacuna jurídica, também se remete ao inciso 1 do artigo 3° da Convenção dos Direitos da Criança: “Na concorrência entre os laços de sangue e os laços afetivos deve prevalecer o supremo interesse da criança”. Assim, constata-se que não se pode haver uma regra abstrata relativa ao exercício do poder familiar, sem que se tenha uma abertura jurídica para, no caso concreto, atender o melhor interesse da criança.
Para ilustrar, imaginemos novamente mais uma hipótese absurda, levando a rigor a vedação do referido artigo: Imaginemos que o padrasto ou madrasta tenha condições suficientes tanto intelectuais como financeira para garantir com dignidade a criação e educação de seus enteados e imaginemos também que ambos os pais de seus enteados sejam podres e não tenham tido acesso suficiente à educação para possuírem a devida compreensão de como garantir estas condições aos seus filhos. A pergunta que se faz nesse contexto é: Como os pais, mesmo que presentes, poderão dirigir a criação e educação dos filhos sem interferência nenhuma de padrastos e madrastas se esses pais não possuem as mínimas condições intelectuais e financeira para estar a frente da criação e educação de seus filhos? Neste cenário fica evidente que no caso concreto, tal vedação viola o princípio o maior interesse da criança. A esse respeito LÔBO (2011) propõe:
Sem delimitar o poder familiar do pai ou mãe da criança, ao padrasto ou madrasta devem ser atribuídas situações e decisões de cunho protetor ou que envolva o interesse da criança, como em matéria educacional, legitimidade processual para defesa do menor, direito de adoção do nome, direito de visita em caso de divórcio, preferência para adoção, cuidados inerentes à saúde, atividades relacionadas com o lazer, e até mesmo responsabilidade civil pelos danos causados pelo menor, por fim, a nomeação como beneficiário de seguros ou de planos de saúde. (LÔBO, 2011. p. 97).
Nesse víeis, entende-se que pela dinâmica das mudanças sociais, hoje não é mais possível limitar o exercício do poder familiar aos pais, uma vez que as novas constituições familiares vem se tornando cada vez mais abertas onde em muitos casos se observa uma convivência harmônica entre a família recomposta com seus enteados e enteadas e também com os ex-cônjuges ou ex-companheiros(as), de forma que, o mais adequado nesses casos seria o compartilhamento múltiplo do poder familiar, como de fato muitos já o fazem, mesmo que a lei proíba.
7.CONCLUSÃO
Diante do que foi demonstrado, fica evidente a incompatibilidade da vedação do artigo 1.636 com preceitos constitucionais referentes à família e suas responsabilidades com os filhos, bem como a sua não adequação à determinação do inciso 1 do artigo 3° da Convenção dos Direitos da criança que de forma categórica afirma que o maior interesse da criança deve ser primordialmente considerado pelos órgãos legislativos.
Embora hoje se tenha a possibilidade jurídica de se reconhecer a paternidade socio afetiva, este instituto não põe fim à incompatibilidade jurídica contida no artigo 1636 do Código Civil no que se refere à proibição de padrastos e madrastas de participar da criação e educação de seus enteados.
Esse instituto é pouco utilizado e depende da construção de real vínculo afetivo, sentimento este que só se constrói ao longo do tempo, ao contrário da prática de criar e educar que começa desde o início da nova constituição familiar e, além disso, o reconhecimento de paternidade socio afetiva está normalmente atrelada a destituição do poder familiar de um dos pais ou de ambos.
Neste sentido, se faz necessária a mudança de entendimento que limita o exercício do poder familiar a apenas um pai e uma mãe, uma vez que este modelo tradicional de família não mais contempla a realidade de boa parte das famílias brasileiras.
8.REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Vitor. Planejando a família in vitro: o direito ao planejamento familiar e as famílias monoparentais. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br. Acesso em: 17/10/2020.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 15/10/2020
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 16/10/2020.
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BRASIL. Lei n° 13.982, de 02 de abril 2020. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm. Acesso em: 14/10/2020.
SOARES, L. C. E. C. A família com padrasto e/ou madrasta: um panorama. In: BRITO, L. M.B. (Org.). Famílias e separações: perspectivas da psicologia jurídica. Rio de Janeiro : Ed. UERJ, 2008.
UNICEF. Convenção sobre os Direitos da Criança: 30 anos Convenção sobre os Direitos da Criança. 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da crianca#:~:text=A%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20os%20Direitos,mais%20aceito%20na%20hist%C3%B3ria%20universal.&text=O%20Brasil%20ratificou%20a%20Conven%C3%A7%C3%A3o,24%20de%20setembro%20de%201990. Acesso em: 29/10/2020.
[1] Professora do Curso de Direito da Universidade Estadual do Amazonas, Advogada, Especialista em Direito Processual Civil, Bacharel em Direito, , Bacharel em Estatística.
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, PAULO HENRIQUE RODRIGUES. A vedação do exercício do poder familiar por padrastos e madrastas e sua incompatibilidade com preceitos constitucionais e com a convenção dos direitos da criança Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55511/a-vedao-do-exerccio-do-poder-familiar-por-padrastos-e-madrastas-e-sua-incompatibilidade-com-preceitos-constitucionais-e-com-a-conveno-dos-direitos-da-criana. Acesso em: 23 dez 2024.
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