RESUMO: O presente artigo objetiva identificar os principais impactos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos na justiça de transição Argentina. Para tanto, incialmente, será examinado o sistema da Convenção Americana dos Direitos Humanos, com especial enfoque para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por conseguinte, serão estudados três importantes casos acerca da responsabilização dos agentes estatais e da anulação das leis de anistia, a saber: caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras, caso Barrios Altos vs. Perú e caso Almocinad Arellano vs. Chile. Por fim, será analisada a repercussão da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos na transição política argentina sob a ótica do acesso à justiça.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema Interamericano de Direitos Humanos; Jurisprudência da Corte Interamericana; Leis de anistia; Acesso à justiça.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O sistema interamericano de direitos humanos. 2.1 Convenção americana de direitos humanos. 2.2 Comissão interamericana de direitos humanos. 2.3 Corte interamericana de direitos humanos. 3 As sentenças da corte interamericana de direitos humanos no processo transicional latino-americano. 3.1 Caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras. 3.2 Caso Barrios Altos vs. Perú. 3.3 Caso Almocinad Arellano vs. Chile. 4 O impacto da jurisprudência da corte interamericana de direitos humanos na transição política argentina. 4.1 O regime ditatorial argentino: breves considerações. 4.2 A anulação das leis argentinas de anistia pela Corte Suprema de Justicia de la Nación. 4.3 A anulação das leis argentinas de anistia e a garantia do acesso à justiça. 5. Conclusões; Referências.
1. INTRODUÇÃO
As ditaduras militares marcaram a realidade sul-americana nas décadas de sessenta e setenta, violando ferozmente os direitos humanos através da adoção institucionalizada de práticas de tortura, homicídio, perseguição política, prisão arbitrária, ocultação de cadáver e desaparecimento forçado. Após os regimes ditatoriais, os países sul-americanos, como, v. g., Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, vivenciaram um período de transição política, iniciado na década de oitenta.
Acontece, entretanto, que esses países ainda convivem com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e impunidade, com uma baixa densidade democrática e com um crescente desrespeito interno aos direitos humanos, exigindo uma dupla transição: a transição de um regime ditatorial para um Governo democrático e a transição deste Governo para a consolidação da democracia.
Em meio aos regimes ditatoriais, em 22 de novembro de 1969, foi assinada, na Conferência Interamericana Especializada sobre Direitos Humanos, em São José, Costa Rica, a Convenção Americana, que criou um subsistema regional de tutela e proteção aos direitos humanos, representando um importante marco na defesa desses direitos entre os países americanos. Dentro desse sistema, destaca-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional do sistema regional, que, por sua vez, proferiu importantes decisões no contexto transicional latino-americano.
Dessa forma, o presente artigo objetiva, incialmente, analisar o sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos, com especial enfoque para a repercussão da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos na justiça de transição de alguns países sul-americanos. Para tanto, serão estudados três emblemáticos casos acerca da responsabilização dos agentes estatais e da anulação das leis de anistia, para que, após, sejam identificados os principais impactos dessa jurisprudência na justiça de transição argentina, como a anulação das leis de anistia e a garantia do acesso à justiça.
2. O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é formado essencialmente por quatro diplomas normativos, a saber: Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Carta da Organização dos Estados Americanos; Convenção Americana de Direitos Humanos; e Protocolo de San Salvador (RAMOS, 2012, p. 185).
O Sistema Interamericano, por sua vez, como bem sublinha André de Carvalho Ramos (2012), é composto por dois sistemas de proteção: o sistema da Organização dos Estados Americanos – OEA, que utiliza preceitos da Carta da OEA e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; e o sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos, criado no bojo da própria OEA.
Com efeito, o primeiro sistema é mais amplo, sendo composto por trinta e cinco Estados, ao passo em que o segundo sistema é menos abrangente, sendo composto por vinte e cinco Estados, os quais ratificaram a Convenção Americana dos Direitos Humanos. Assim, infere-se que os dois sistemas apresentam a mesma origem, qual seja a OEA, possuindo como diferença a densidade do compromisso assumido, haja vista que o segundo sistema além de acarretar aos Estados-membros um maior comprometimento internacional, conta, inclusive, com um tribunal especializado, que é a Corte Interamericana de Direitos Humanos (RAMOS, 2012, p. 185). Nesse âmago, para a consecução do presente estudo, convém examinar o sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos.
O sistema da Convenção Americana dos Direitos Humanos encontra-se abarcado pelo sistema da Organização dos Estados Americanos. A diferença reside no fato de que os Estados signatários desse sistema, que atualmente totalizam vinte e cinco, apresentam um maior compromisso internacional com os direitos humanos. Nesse sentido, cumpre examinar os principais órgãos e documentos desse sistema.
2.1 CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, foi assinada na Conferência Interamericana Especializada sobre Direitos Humanos em São José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, entrando em vigor no plano internacional em 18 de julho de 1978.[1] Como bem observar André de Carvalho Ramos (2012, p. 186), um fato que chama atenção diz respeito ao contexto histórico da época de elaboração da Convenção Americana, uma vez que grande parte dos Estados da OEA era marcada por regimes ditatoriais.[2]
Apenas os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos têm o direito de aderir à Convenção Americana, que, uma vez ratificada, impõe aos signatários a obrigação de respeitar os direitos garantidos na Convenção e assegurar o seu livre e pleno exercício (PIOVESAN, 2006, p. 89).
Dentre os direitos assegurados pela Convenção Americana, cumpre destacar: direito à vida; direito à personalidade jurídica; direito à não ser submetido à escravidão; liberdade; direito a um julgamento justo; direito à compensação em caso de erro judiciário; direito à privacidade; liberdade de consciência; liberdade de religião; liberdade de pensamento e de expressão; direito à resposta; liberdade de associação; direito ao nome; direito à nacionalidade; liberdade de movimento; direito de residência; direito de participar do governo; igualdade perante à lei; e direito à proteção judicial (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS,1969).
A Convenção Americana de Direitos Humanos, até o presente momento, já foi ratificada por vinte e cinco países, a saber: Argentina (1984); Barbados (1981); Bolívia (1979); Brasil (1992); Chile (1990); Colômbia (1973); Costa Rica (1970); Dominica (1993); Equador (1977); El Salvador (1978); Grenada (1978); Guatemala (1978); Haiti (1977); Honduras (1977); Jamaica (1978); México (1981); Nicarágua (1979); Panamá (1978); Paraguai (1989); Peru (1978); República Dominicana (1978); Suriname (1987); Trinidad & Tobago (1991); Uruguai (1985); Venezuela (1977). Observa-se que os Estados Unidos ainda não ratificaram a Convenção, assim como Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Canadá, Guiana, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas.
No Brasil, a adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos somente ocorreu em 22 de setembro de 1992, sendo promulgada internamente através do Decreto nº. 678, de 6 de novembro de 1992. Por outro lado, o reconhecimento da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos somente aconteceu em 11 de novembro de 2002, mediante o Decreto nº. 4.463 (COMPARATO, 2010, p. 379).
Por fim, cabe pontuar que a Convenção Americana de Direitos Humanos foi influenciada por dois importantes diplomas normativos internacionais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950).
2.2 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Primeiramente, convém esclarecer que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos possui um duplo tratamento normativo: o primeiro, com fulcro na Carta da OEA e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; e o segundo, com esteio na Convenção Americana de Direitos Humanos (RAMOS, 2012, p. 207). Assim, segundo lição de Flávia Piovesan (2006), a competência da Comissão alcança os vinte e cinco Estados-partes da Convenção Americana, em relação aos direitos humanos nela consagrados, assim como todos os Estados-membros da OEA, em relação aos direitos consolidados na Declaração Americana de 1948.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, nos Estados Unidos, é composta por sete membros, de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos, nos moldes do art. 34 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Os integrantes da Comissão Interamericana são eleitos, a título pessoal, pela Assembleia Geral da OEA, a partir de uma lista de candidatos formulada pelo Estado-membro, por um período de quatro anos, sendo possível apenas uma reeleição.
Com o objetivo de proteger os direitos humanos, a Comissão Interamericana tem a função de fazer recomendações aos governos dos Estados-membros, prepara estudos e relatórios, solicitar informações aos governos, além de submeter um relatório anual à Assembleia Geral da OEA (PIOVESAN, 2006, p. 91).
Nesse cerne, sob o enfoque procedimental, ao receber uma petição escrita, a Comissão Interamericana decidirá, primeiramente, sobre a sua admissibilidade, com base nos requisitos previstos no art. 46 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Dentre esses requisitos, destaca-se a necessidade de esgotamento dos recursos internos. Reconhecidos os pressupostos de admissibilidade, a Comissão solicitará informações ao Estado denunciado. Recebidas as informações, ou transcorrido o prazo sem resposta ou manifestação do Estado, a Comissão analisará se subsistem os fundamentos da denúncia. Caso não haja a comprovação do teor das violações relatadas, a Comissão Interamericana arquivará o expediente (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS,1969).
Entretanto, caso constatada à ofensa aos direitos humanos, a Comissão poderá realizar uma investigação, mediante prévio consentimento do Estado, buscando-se, em seguida, uma solução amistosa entre as partes. Se houver êxito nessa tentativa amistosa, segundo o art. 49 da Convenção Americana, a Comissão redigirá um relatório que será encaminhado ao peticionário, aos Estados-partes e, posteriormente, transmitido, para sua publicação, ao Secretário-Geral da OEA. Caso não haja solução amistosa, a Comissão redigirá um relatório, no qual exporá os fatos e as suas conclusões, formulando, ainda, proposições e recomendações. O relatório será encaminhado ao Estado-parte, que, por sua vez, terá o prazo de três meses para cumprir as recomendações. Caso não sejam cumpridas as referidas proposições e recomendações, a Comissão encaminhará o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS,1969).
Por fim, cumpre assinalar que as recomendações da Comissão Interamericana são meras “reprovações morais”, sem força vinculante, somente no tocante ao Primeiro Informe ou Informe Preliminar. Isso porque, como bem assevera André Ramos, caso o Estado não cumpra a recomendação preliminar no prazo de três meses, a Comissão poderá encaminhar o caso à Corte Interamericana, que proferirá uma sentença vinculante, ou a Comissão poderá emitir um Segundo Informe, cujo comando deverá ser cumprido obrigatoriamente pelo Estado denunciado.[3]
Assim, a Comissão Interamericana consubstancia um importante mecanismo de proteção aos direitos humanos, seja por meio das tentativas de solução amistosa, seja por meio das recomendações, seja por meio do encaminhamento dos casos à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
2.3 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é o órgão jurisdicional do sistema regional, sendo composta por sete juízes nacionais de Estados-membros da OEA, eleitos a título pessoal pelos Estados-partes da Convenção Americana, com mandatos de seis anos. Observa-se que, ao contrário dos membros da Comissão Interamericana, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA, os juízes da Corte Interamericana podem ser apenas indicados e eleitos pelos Estados-partes da Convenção Americana de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2006, p. 98).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi formalmente estabelecida em 3 de setembro de 1979, com o objetivo de aplicar e interpretar a Convenção Americana, com sede em São José, Costa Rica.
A Corte Interamericana possui competência consultiva e contenciosa. No plano consultivo, qualquer membro da OEA poderá solicitar parecer da Corte relativamente à interpretação da Convenção Americana ou qualquer outro tratado referente à proteção de direitos humanos nos Estados americanos, consoante art. 64 da Convenção. A Corte poderá, ainda, emitir parecer sobre a compatibilidade entre leis internas e instrumentos internacionais, a pedido de qualquer Estado-membro da OEA.
Verifica-se, assim, no que tange à competência consultiva, que a Corte Interamericana amplia sua legitimidade para além dos Estados-partes da Convenção, abarcando todos os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. Amplia, também, a sua competência material, tendo em vista que emite pareceres acerca de outros tratados de direitos humanos vigentes na América. Salienta-se que os referidos pareceres não possuem força vinculante.
Com relação à competência contenciosa, a Corte Interamericana pode conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições da Convenção Americana, desde que os Estados-partes tenham reconhecido a sua competência, nos termos do art. 62 da Convenção. Em outras palavras, para se submeter à competência contenciosa da Corte, o Estado, além de ser signatário da Convenção Americana, tem que reconhecer expressamente, mediante declaração em separado, a referida competência jurisdicional.
No plano contencioso, o procedimento adotado pela Corte Interamericana apresenta duas fases: a fase contenciosa e a fase de supervisão de cumprimento de sentenças. A fase contenciosa, por sua vez, possui quatro etapas, a saber: a) etapa de apresentação do caso pela Comissão, juntamente com as solicitações, os argumentos, as provas apresentadas pelas supostas vítimas e a contestação oferecida pelo Estado demandado; b) etapa oral ou de audiência pública; c) etapa de alegações e observações finais das partes e da Comissão, e d) etapa de estudo e emissão de sentença. A fase de supervisão do cumprimento das sentenças implica na solicitação periódica de informação ao Estado sobre as atividades desenvolvidas para o cumprimento da decisão, assim como no recebimento de observações da Comissão e das vítimas ou de seus representantes (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012).
A Corte Interamericana pode decidir pela improcedência ou procedência, parcial ou total, da ação de responsabilização internacional do Estado por violação de direitos humanos (RAMOS, 2012). As suas sentenças podem determinar o pagamento de indenizações às vítimas, como também determinar à implementação de políticas públicas de combate à violação aos direitos humanos. Caso não haja cumprimento espontâneo, a Corte poderá incluir o referido caso no relatório anual submetido à Assembleia Geral da OEA, que poderá levar à condenação moral do Estado no âmbito internacional, como forma de pressionar o Estado descumpridor (SANTOS, 2010).
Além disso, caso não seja cumprida espontaneamente as decisões condenatórias, a sentença poderá ser executada no próprio país, nos moldes do art. 68 da Convenção Americana. Existe, ademais, um grande movimento nos Estados-partes que aceitaram a jurisdição da Corte em efetivar as decisões no seu âmbito interno. No Brasil, por exemplo, como sublinha Sabrina Ribas Bolfer (2010, p. 636), existe um projeto de lei (PL nº. 3.214/2000) que disciplina o cumprimento interno das respectivas decisões. De acordo com esse projeto, as sentenças de caráter indenizatório teriam eficácia imediata, prescindido da homologação pelo Supremo Tribunal Federal.
Não se pode deixar de observar, contudo, principalmente no tocante às decisões que não importam em condenação pecuniária, que o mecanismo político de coerção dos Estados descumpridores tem se mostrado insuficiente. Assim, segundo André de Carvalho Ramos (2012, p. 238-239), a implementação das decisões da Corte e da Comissão deveriam exigir uma participação mais ativa da Assembleia Geral e do Conselho Permanente da OEA, de forma a aumentar a efetividade das decisões e condenar, de fato, os Estados violadores.
No Brasil, no plano contencioso, foram proferidas as seguintes sentenças pela Corte Interamericana: caso Damião Ximenes Lopes, caso Gilson Nogueira de Carvalho, caso Garibaldi e Escher e outros e caso Gomes Lund e outros.
Dessa forma, considerando a papel da Corte Interamericana na proteção dos direitos humanos, releva examinar as suas principais decisões acerca das violações perpetradas nas ditaduras de alguns países latino-americanos.
3. AS SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO PROCESSO TRANSICIONAL LATINO-AMERICANO
Os países sul-americanos foram marcados por regimes ditatoriais, que violaram gravemente os direitos humanos, desrespeitando os preceitos da Convenção Americana de Direitos Humanos. Após o término dos regimes autocráticos, foram levados alguns casos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que impactaram nos processos transicionais desses países.
As decisões mais emblemáticas nesse tocante foram os casos Velásquez Rodriguez vs. Honduras, Barrios Altos vs. Perú e Almocinad Arellano vs. Chile, julgadas pela Corte Interamericana em 29 de julho de 1988, 30 de novembro de 2001 e 26 de setembro de 2006, respectivamente.
3.1 CASO VELÁSQUEZ RODRIGUEZ VS. HONDURAS
O caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras versa sobre o desaparecimento de um estudante universitário hondurenho, Ángel Manfredo Velásquez Rodríguez, que, durante o período ditatorial, foi violentamente preso, sem mandato judicial, por membros da Direção Nacional de Investigação e das Forças Armadas de Honduras. Após a prisão, o estudante foi vítima de tortura e desaparecimento forçado (MEYER, 2012, p. 189-190).
Em 24 de abril de 1986, o presente caso foi submetido à Corte Interamericana de Direito Humanos pela Comissão Interamericana, após o recebimento de uma denúncia contra o Estado de Honduras em 7 de outubro de 1981. Ressalta-se que a jurisdição da Corte foi reconhecida pelo referido Estado em 1981.
Na sentença, publicada em 29 de julho 1988, a Corte asseverou que o desaparecimento forçado de seres humanos é uma violação múltipla e contínua de direitos constantes da Convenção, sendo que os Estados-partes, como consequência dessa obrigação, devem prevenir, investigar e punir qualquer violação de direitos consagrados na Convenção, além de buscar a reparação dos direitos violados (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1988).
Com efeito, a Corte Interamericana de Direito Humanos (1988) concluiu pela violação dos artigos 4º, 5º e 7º da Convenção, conjugados com o artigo 1º, condenando o Estado de Honduras a pagar uma justa indenização aos familiares da vítima. Nesse sentido, como bem pontuado por Emilio Meyer (2012, p. 190), em que pese no presente caso a Corte Interamericana não tenha tratado especificamente sobre a problemática da “autoanistia”, exigiu expressamente que os Estados signatários da Convenção diligenciem no sentido de combater o desaparecimento forçado e as demais violações aos direitos humanos praticadas no regime ditatorial.
3.2 CASO BARRIOS ALTOS VS. PERÚ
Em 8 de junho de 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à Corte o caso Barrios Altos vs. Perú, relacionado ao massacre ocorrido, em 3 de novembro de 1991, no bairro de Barrios Altos, na cidade de Lima, Peru. No respectivo evento, seis homens fortemente armados dispararam por cerca de dois minutos contra todas as pessoas que estavam reunidas em uma festa para arrecadar fundos para a reforma de um edifício, matando quinze pessoas, ferindo gravemente outras quatro e deixando uma delas inválida. Após investigações, constatou-se que os assassinos trabalhavam para a inteligência militar e eram membro do exército peruano. Descobriu-se, ademais, que os agentes estatais atuavam no “escuadrón de eliminación” chamado “Grupo Colina”, responsável por um programa antisubversivo (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001).
Em 1995, o Congresso Nacional peruano aprovou a Lei nº. 26.479, que concedeu anistia geral aos militares, policiais e civis, e, em 1996, a Lei nº. 26.492, que dispunha sobre a interpretação e alcance da anistia, impedindo qualquer discussão sobre a lei precedente. Em seguida, com esteio nas referidas leis, a Corte Superior de Justiça de Lima arquivou o caso (MEYER, 2012, p. 188-189).
Nesse contexto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o aludido caso, asseverou que as leis de anistia peruanas, ao estabelecerem excludentes de responsabilidade e impedirem investigações e punições, violaram gravemente os preceitos da Convenção Americana de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2010, p. 459).
A Corte Interamericana (2001) assinalou ainda que as leis de “autoanistia” conduzem ao desamparo das vítimas e a perpetuação da impunidade, impedindo a identificação dos indivíduos responsáveis pelas violações aos direitos humanos, obstaculizando a investigação e o acesso à justiça, além de impedir às vítimas e seus familiares o conhecimento da verdade e a percepção da reparação correspondente.
Dessa forma, por unanimidade, em 14 de março de 2001, a Corte reconheceu a responsabilidade internacional do Estado do Peru por violação aos artigos 4º (direito à vida), 5º (direito à integridade pessoal), 8º (direito às garantias judiciais), 25 (direito à proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, o Peru foi condenado a reabrir as investigações judiciais, divulgando publicamente os resultados e punindo os responsáveis, assim como a declarar as leis da anistia (Leis nº. 26.479 e 26.492) incompatíveis com Convenção Americana, carecendo, por conseguinte, de efeitos jurídicos. Por fim, condenou o Estado peruano a reparar às vítimas e seus familiares.
A decisão da Corte Interamericana no caso Barrios Altos vs. Perú, consoante intelecção de Flávia Piovesan (2010), apresentou um elevado impacto na anulação das leis de autoanistia, em especial porque foi a primeira vez, no Direito Internacional contemporâneo, que um Tribunal internacional determinou a incompatibilidade de leis de anistia com tratados de direitos humanos.
3.3 CASO ALMOCINAD ARELLANO VS. CHILE
Finalmente, cumpre evidenciar o caso Almocinad Arellano vs. Chile, encaminhado à Corte pela Comissão Interamericana, em 11 de julho de 2005, tendo em vista a falta de investigação e punição dos responsáveis pela execução extrajudicial do Senhor Almocinad Arellano durante a ditadura militar chilena. Isso porque com a edição do Decreto-Lei nº. 2.191/1978, lei de anistia, foram perdoados todos os crimes cometidos entre 1973 e 1978, durante o regime de Pinochet, inclusive os crimes lesa humanidade.
No julgamento, a Corte Interamericana (2006) afirmou que o Decreto-Lei carece de efeitos jurídicos e não pode seguir representando um obstáculo para a investigação das graves violações aos direitos humanos, nem para a identificação e a punição dos responsáveis. Acrescentou que as leis de anistia são manifestamente incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana, afetando diversos direitos nela consagrados.
Além de ponderar que as leis de anistia perpetuam a impunidade e impedem a investigação e punição das violações aos direitos humanos, a Corte Interamericana (2006) asseverou que o ataque generalizado e sistemático à população civil, durante o período ditatorial, viola uma norma imperativa de direito internacional. Trata-se da norma de jus cogens, que proíbe a prática de crimes de lesa-humanidade, impondo a penalização obrigatória desses crimes, conforme o direito internacional geral.
A Corte Interamericana assinalou, nessa linha de intelecção, que o delito cometido contra o Senhor Almocinad Arellano, além de inanistiável, é imprescritível, haja vista que os crimes de lesa-humanidade não são toleráveis pela comunidade internacional, ofendendo toda humanidade, haja vista que o dano por eles ocasionado permanece vigente para a sociedade nacional e para a própria comunidade internacional. Assim, a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade surge como categoria de norma de Direito Internacional Geral (jus cogens), de forma que o Chile não pode deixar de cumprir essa norma imperativa.
Nesse sentido, em 26 de setembro de 2006, a Corte Interamericana reconheceu a responsabilidade internacional do Chile pela violação dos artigos 1º, 2º, 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, declarando a incompatibilidade do Decreto-Lei nº. 2.191 com os seus preceitos e concluindo pela anulação dos seus efeitos jurídicos. Declarou, ao final, que a sentença, por si só, constitui uma forma de reparação.
As decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre as leis de autoanistia e sobre as violações cometidas no período autocrático latino-americano representou, dessa forma, um importante marco no processo transicional desses países.
4. O IMPACTO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NA TRANSIÇÃO POLÍTICA ARGENTINA
A Argentina aderiu a Convenção Americana de Direitos Humanos em 5 de setembro de 1984 e aceitou a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana no mesmo dia. Foram levados à apreciação da Corte doze casos envolvendo a Argentina.[4]Acontece, entretanto, diferentemente de outros países da América Latina, que esses casos não discutiam a responsabilização dos agentes estatais pelos crimes praticados durante o regime ditatorial, nem sobre legislações de autoanistia.
Dessa forma, mesmo não havendo a condenação da Argentina quanto às violações perpetradas no período autocrático, observa-se que este Estado adotou a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em especial nos casos acima referidos, revogando suas leis de anistia e responsabilizando os mandantes e executores das graves ofensas aos direitos humanos. Convém examinar, nesse diapasão, o processo transicional argentino e a incorporação das decisões da Corte Interamericana pela Corte Suprema de Justicia de la Nación – CSJN.
4.1 O REGIME DITATORIAL ARGENTINO: BREVES CONSIDERAÇÕES
O golpe militar argentino foi instaurado, oficialmente, em 24 de março de 1976, com a deposição da presidenta Isabel Martinez de Perón. Nesse momento, iniciado com o golpe de estado intentado pelas Forças Armadas, instalou-se a ditatura militar, que perdurou de 1976 a 1983.
A repressão dirigiu-se a setores armados dos grupos guerrilheiro, como também a toda e qualquer pessoa que apresentasse posicionamento político, ideológico, sindical, econômico, artístico, cultural, social e religioso divergente do regime autocrático instaurado. Com relação aos delitos, foram praticados os mais diversos crimes de lesa-humanidade, cabendo destacar o desaparecimento forçado e a apropriação de crianças. O desaparecimento forçado consiste na detenção ilegal de pessoas que, além de sequestradas e torturadas, terminam “desaparecendo” (YACOBUCCI, 2011, p. 24). Essas pessoas são chamadas pelos argentinos de detenidos-desaparecidos, estimando-se que houve de dezoito mil a trinta mil desaparecimentos.[5]
A apreensão, subtração e modificação da identidade das crianças nascidas em cativeiro também foi uma prática bastante comum. As gestantes presas tinham os seus filhos apreendidos pelos militares no momento do parto, que os entregavam a terceiras pessoas, que, por sua vez, modificavam suas identidades (PIOVESAN, 2010, p. 464).
Nesse contexto, antes de abandonar o poder, os militares produziram uma anistia sobre os seus próprios comportamentos, através da ley de facto 22.924. Ocorre que, no governo de Raúl Alfonsín, foi criada a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas – CONADEP, com o objetivo de coletar informações sobre o destino dos detenidos-desaparecidos e sobre os outros crimes praticados na ditadura. Essas informações foram compiladas no livro Nunca Más. Iniciou-se, nesse momento, uma forte pressão popular pela anulação da lei de fato.
Nessa senda, por meio da ley 23.040, o Congresso revogou a ley 22.924, considerando-a inconstitucional e declarando a sua nulidade. Além disso, o respectivo diploma normativo estabeleceu que as pessoas libertadas pela aplicação da ley 22.924 deveriam se apresentar ao tribunal no prazo de cinco dias a contar da sua vigência.[6] É nessa conjuntura que se iniciaram os julgamentos dos militares responsáveis pelas graves violações, como Jorge Videla, Emilio Massera e Orlando Agosti, representantes das Forças Armadas.
Acontece, contudo, que além dos militares das mais altas patentes e hierarquias, foram julgados oficiais de menor hierarquia, assim como suboficiais e policiais. Esta situação ensejou uma forte pressão política que culminou com a edição da ley de punto final (23.492) e ley de obediencia debida (23.521). Como assinala Guillermo Yacobucci (2011, p. 26-27), as aludidas legislações acarretaram a impunidade dos crimes praticados na ditadura, além de impossibilitarem o discernimento da verdade sobre o que havia acontecido. Assim, juntamente com a destruição da documentação e com o pacto de silêncio, as leis do ponto final e da obediência devida impediram o alcance da verdade e a identificação do paradeiro dos desaparecidos.
A reação da sociedade civil, das organizações defensoras dos direitos humanos, dos juristas, políticos e acadêmicos foi imediata, de forma que estas leis, posteriormente, quase vinte anos depois, foram declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema de Justicia de la Nación, bem como nulas e inaplicáveis, com base no controle de convencionalidade e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
4.2 A ANULAÇÃO DAS LEIS ARGENTINAS DE ANISTIA PELA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACIÓN
A Argentina, mediante o art. 75, inciso 22, da Constituição de 1994, reconheceu as obrigações assumidas internacionalmente, conferindo status constitucional aos tratados ratificados. É importante notar que diante das obrigações gerais assumidas na Convenção Americana de Direito Humanos, surgem obrigações específicas, dentre as quais se destaca o dever de investigar os fatos, punir os responsáveis, indenizar as vítimas e realizar a reforma das instituições que violaram os direitos humanos, como forma de garantir o direito à verdade e à memória, impedindo a repetição das atrocidades cometidas no período ditatorial.
Dessa forma, em 1994, a Argentina assumiu um importante papel na observância e consolidação dos direitos humanos, ao garantir hierarquia constitucional aos tratados internacionais.
Nessa senda, a Corte Suprema de Justicia de la Nación – CSJN, considerando as obrigações assumidas perante a Convenção Americana, como também as decisões da Corte Interamericana nos casos Velásquez Rodriguez vs. Honduras e Barrios Altos vs. Perú, proferiu importantes decisões no processo transicional argentino.
Além das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos acima referidos, datadas de 1988 e 2001, releva destacar que outro importante marco na reabertura dos processos criminais da ditadura militar argentina foi a edição do Informe nº. 28/92, no qual a Comissão Interamericana estabeleceu que a Argentina violou a Convenção Americana ao sancionar leis de anistia (GUEMBE, 2005).
De acordo com o Informe nº. 28/92, a Comissão Interamericana concluiu que as leis nº. 23.492 (ley de punto final) e 23.521 (ley de obediencia debida), assim como o Decreto n. 1002/89 são incompatíveis com o artigo 18 (direito à justiça) da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e com os artigos 1, 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Recomendou, nesse cerne, que o Governo da Argentina adotasse medidas necessárias para “esclarecer los hechos e individualizar a los responsables de las violaciones de derechos humanos ocurridas durante la pasada dictadura militar” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1992).
Nesse contexto, cumpre analisar o caso Simón, Julio Héctor y otros, através do qual a Corte Suprema de Justicia de la Nación – CSJN declarou a inconstitucionalidade das leis de ponto final (23.492) e obediência devida (23.521), que, por sua vez, objetivavam anistiar os militares, principalmente os de baixa e média hierarquia, pelos delitos cometidos entre 24 de março de 1976 e 26 de setembro de 1983.
Incialmente, convém observar que a CSJN já havia examinado a validade das referidas leis em 1987. Na referida oportunidade, a CSJN asseverou que as leis de anistia resultaram de uma ponderação de interesses em jogo, exclusiva do poder político, e que, como tal, não deveriam ser atacadas pelo Poder Judiciário (GUEMBE, 2005).
Todavia, em 14 de junho de 2005, a CSJN modificou o seu entendimento, com base nos marcos apontados ao longo do presente estudo, quais sejam: a) ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1984; b) reconhecimento da hierarquia constitucional dos tratados internacionais, nos moldes do art. 75, inciso 22, na reforma da Constituição Argentina, em 1994; c) Recomendação exarada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de incompatibilidade das leis de anistia com as disposições da Declaração e da Convenção Americana, nos termos do Informe nº. 28, em 1992; d) Sentenças da Corte Interamericana nos casos Velásquez Rodriguez vs. Honduras e Barrios Altos vs. Perú, em 1988 e 2001. Trata-se do emblemático caso Simón, Julio Héctor y otros.
Julio Héctor Simón, suboficial da Polícia Federal Argentina, sequestrou, em 27 de novembro de 1978, José Liborio Poblete Rosa, sua esposa, Gertrudis Marta Hlaczik, e sua filha, Claudia Victoria Poblete. Todos eles foram levados ao centro clandestino de detenção, conhecido como “El Olimpo”, no qual foram torturados por diversas pessoas, dentre as quais Julio Héctor Simón. Permaneceram alguns meses naquele centro, até serem levados para outra localidade, sem qualquer notícia, até o presente momento, do seu paradeiro. Dentre os argumentos aventados pela defesa, insta evidenciar: as leis de anistia (ley nº. 23.492 e ley nº. 23.521); a proibição da aplicação de uma lei ou tratado posterior ao fato; a irretroatividade norma penal mais grave; e a prescrição (ARGENTINA, 2005).
Em março de 2001, o aludido caso foi julgado em primeira instância, tendo o juiz declarado a inconstitucionalidade das leis argentinas de anistia. O principal fundamento para a sua decisão foi o reconhecimento do caráter lesa-humanidade dos delitos praticados no regime ditatorial. Nesse contexto, o juiz reconheceu que as referidas leis se opõem às disposições presentes em tratados internacionais, ratificados pela Argentina, que obrigam o Estado a investigar, processar e punir as graves violações aos direitos humanos. Essa decisão recebeu forte respaldo quando, alguns dias após a sua publicação, a Corte Interamericana proferiu a sentença no caso Barrios Altos, declarando a nulidade das leis peruanas de anistia (GUEMBE, 2005).
Em novembro de 2001, a Câmara das Apelações ratificou a decisão judicial a quo, utilizando, como um dos principais argumentos, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por conseguinte, o caso foi encaminhado à Corte Suprema de Justicia de la Nación, que, em 14 de junho de 2005, proferiu sentença, declarando a inconstitucionalidade das leis argentinas de anistia.
Consoante decisão da CSJN, os beneficiários por essas leis não podem invocar a proibição da retroatividade da lei penal mais grave, nem a coisa julgada. Tais princípios não podem constituir um impedimento para a anulação das leis de anistia, nem para o prosseguimento dos processos criminais, que, em muitos casos, nem mesmo iniciaram (ARGENTINA, 2005).
Além disso, a CSJN pontuou que os delitos de lesa-humanidade estão sujeitos aos princípios do ius cogens do direito internacional, de modo que não há prescrição para os crimes dessa natureza, uma vez que esse princípio deriva tanto do direito internacional consuetudinário, quanto do direito convencional. Salienta, ademais, que o fato da Argentina ter ratificado a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade muito depois da ocorrência dos fatos a serem investigados não constitui qualquer obstáculo, em especial porque a referida Convenção apenas confirmou a imprescritibilidade, já reconhecida internacionalmente como norma de ius cogens.
Com relação aos delitos de desaparecimento forçado, a CSJN sublinhou que esses crimes contra a humanidade violam gravemente o direito à vida, tendo a comunidade mundial se comprometido a erradicar delitos dessa natureza, que, ao atentarem contra os valores humanos fundamentais, merecem tamanha reprovação da consciência universal que nenhuma convenção, pacto ou norma positiva pode revogar, esconder ou dissimulá-los (ARGENTINA, 2005). Outrossim, o desaparecimento forçado é um delito de natureza continuada ou permanente, sendo que, enquanto não se identificar o destino ou paradeiro da vítima, não corre o prazo prescricional.
Ao examinar a constitucionalidade das leis de anistia e a sua compatibilidade as normas internacionais de hierarquia constitucional, a CSJN assinalou, primeiro, que as leis nº. 23.492 e 23.521 foram sancionadas em 1986 e 1987, respectivamente, e que a Convenção Americana foi ratificada em 1984. Em segundo lugar, que as decisões da Corte Interamericana, vinculantes no Estado argentino, reconheceram a inadmissibilidade das disposições de anistia e de prescrição. Em terceiro, que a Convenção Americana possui hierarquia constitucional, sendo que a obrigação de investigar e sancionar as violações aos direitos humanos faz parte do bloco de constitucionalidade. Concluindo, por fim, que as leis de anistia são inconstitucionais (ARGENTINA, 2005).
A CSJN declarou, assim, que as referidas leis, em qualquer caso, carecem de efeitos jurídicos, não podendo impedir a investigação, julgamento e condenação dos responsáveis pelos crimes contra a humanidade cometidos na ditadura militar argentina.
4.3 A ANULAÇÃO DAS LEIS ARGENTINAS DE ANISTIA E A GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA
A expressão “acesso à justiça” não é unívoca, haja vista que a sua dimensão e significado variam no tempo e no espaço, em virtude da presença de elementos de natureza política, sociológica, religiosa e filosófica (ENGISCH, 2001, p. 12).
Mauro Cappelletti e Bryant Garth assinalam que o acesso à justiça apresenta duas finalidades básicas: a consolidação de um sistema igualmente acessível a todos; e a produção de resultados que sejam, individual e socialmente, justos. Assim, na intelecção de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o acesso à justiça pode ser encarado como “o requisito fundamental de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 8).
Para a consecução do presente estudo, será adotada a conceituação formulada por Wilson Alves de Souza (2011, p. 26), a saber: o acesso à justiça como a porta de entrada e a porta de saída. Em outras palavras, Wilson Alves de Souza leciona que, do ponto de vista jurídico, o conceito de acesso à justiça vai muito além do sentido literal, significando tanto a porta de entrada, que é o direito de postulação perante os órgãos jurisdicionais, quanto à porta de saída, que é o devido processo em direito, isto é, o processo provido de garantias processuais, como, v. g., contraditório, ampla defesa, produção de provas por meios lícitos, ciência dos atos processuais, julgamento em tempo razoável, fundamentação das decisões, julgamento justo, eficácia das decisões, entre outros.
Com efeito, o acesso à justiça consiste não apenas na possibilidade de acesso aos órgãos encarregados da prestação jurisdicional, que é o direito de ação, mas também na possibilidade de um devido processo, ou seja, um processo com as garantias processuais a ele inerentes.
A Corte Suprema de Justicia de la Nación, em 14 de junho de 2005, ao proferir sentença declarando a inconstitucionalidade das leis argentinas de anistia, garantiu o acesso à justiça à sociedade argentina e às vítimas e familiares de mortos e desaparecidos políticos. Isso porque no julgamento do caso Simón, Julio Héctor y otros, com base no controle de convencionalidade[7], a CSJN reconheceu a obrigação de investigar, processar e punir os mandantes e executores dos crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar argentina, concluindo que as leis de anistia constituem um sério obstáculo à concretização dos direitos humanos no processo transicional. A partir desse momento, foram reabertos os processos criminais arquivados, bem como ajuizadas novas ações penais.
A Corte Suprema de Justicia de la Nación, dessa forma, garantiu o direito à verdade, o direito à memória e o direito à justiça, como também outros direitos consagrados no Pacto San José da Costa Rica, como o direito à proteção judicial.
As leis de autoanistia comprometem seriamente o acesso à justiça, em especial porque perpetuam a impunidade, garantem o esquecimento e a ocultação proposital de fatos, obstaculizam as investigações e, consequentemente, o esclarecimento das graves violações aos direitos humanos. Além disso, como muitos crimes ficam sem investigação, o paradeiro de muitos detenidos-desaparecidos fica em aberto, atormentando constantemente os seus familiares, que, ao verem desrespeitado o seu direito ao luto, convivem com uma diária tortura psicológica.
Observa-se, assim, que a CSJN, com base nos preceitos da Convenção e nas sentenças proferidas pela Corte Interamericana, garantiu o acesso à justiça da sociedade argentina, diferentemente de outros países sul-americanos, como o Brasil.
O Brasil, em que pese tenha sido condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, não anulou a sua lei de anistia (Lei nº. 6.683/79). Ademais, o julgamento da ADPF nº. 153 pelo Supremo Tribunal Federal, em total desrespeito aos tratados de direito internacional, comprometeu seriamente o acesso à justiça da sociedade brasileira. Isso porque muitas ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal, questionando, especialmente, os crimes cometidos por militares durante a ditadura militar, foram rejeitadas.[8]
Com efeito, o impacto da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi de relevância ímpar no processo transicional argentino, sendo que a incorporação da Convenção Americana e das referidas decisões pela Corte Suprema de Justicia de la Nación, representou um importante passo na consolidação dos direitos humanos na justiça de transição argentina.
5. CONCLUSÕES
Evidenciou-se, no presente artigo, que:
1. Os países sul-americanos foram marcados por regimes ditatoriais, que violaram gravemente os direitos humanos, desrespeitando os preceitos da Convenção Americana de Direitos Humanos. Após o término dos regimes autocráticos, foram levados alguns casos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que impactaram nos processos transicionais desses países.
2. As decisões mais emblemáticas nesse tocante foram os casos Velásquez Rodriguez vs. Honduras, Barrios Altos vs. Perú e Almocinad Arellano vs. Chile, julgadas pela Corte Interamericana em 29 de julho de 1988, 30 de novembro de 2001 e 26 de setembro de 2006, respectivamente.
3. Nos referidos casos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assinalou que leis de autoanistia além de desamparar as vítimas e perpetuar a impunidade, impedem a identificação dos indivíduos responsáveis pelas violações aos direitos humanos, obstaculizando a investigação, o acesso à justiça e o conhecimento da verdade. As sentenças da Corte Interamericana representaram, assim, um importante marco no processo transicional latino-americano.
4. Em 14 de junho de 2005, a Corte Suprema de Justicia de la Nación – CSJN, no julgamento do caso caso Simón, Julio Héctor y otros, declarou a inconstitucionalidade das leis de ponto final (23.492) e obediência devida (23.521), fundamentando o seu entendimento nos seguintes marcos: a) ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1984; b) reconhecimento da hierarquia constitucional dos tratados internacionais, nos moldes do art. 75, inciso 22, na reforma da Constituição Argentina, em 1994; c) Recomendação exarada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de incompatibilidade das leis de anistia com as disposições da Declaração e da Convenção Americana, nos termos do Informe nº. 28, em 1992; d) Sentenças da Corte Interamericana nos casos Velásquez Rodriguez vs. Honduras e Barrios Altos vs. Perú, em 1988 e 2001.
5. A decisão proferida pela Corte Suprema de Justicia de la Nación garantiu o acesso à justiça à sociedade argentina e às vítimas e familiares de mortos e desaparecidos políticos, principalmente porque ao anular as leis de anistia e reconhecer a obrigação de investigar, processar e punir os mandantes e executores dos crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar argentina, foram reabertos os processos criminais arquivados, bem como ajuizadas novas ações penais.
6. Com efeito, o impacto da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi de relevância ímpar no processo transicional argentino, sendo que a incorporação da Convenção Americana e das referidas decisões pela Corte Suprema de Justicia de la Nación, representou um importante passo na consolidação dos direitos humanos na justiça de transição argentina.
REFERÊNCIAS
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[1] Ressalta-se que o anteprojeto da referida convenção foi elaborado em 1967 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
[2] André Ramos (2012) ressalta que a elaboração da Convenção Americana de Direitos Humanos nasceu do esforço das ditaduras de demonstrar sua semelhança com os Estados Democráticos, ao contrário do que aconteceu com a Convenção Europeia de Direitos Humanos que nasceu do esforço de Estados Democráticos de demonstrarem sua diferença com as ditaduras.
[3] No Brasil, houve alguns Informes que foram cumpridos, como, por exemplo, o Caso Maria da Penha (RAMOS, 2012, p. 217-278).
[4] Juan Francisco Bueno Alves (Caso 12.425, Argentina, 31 de março de 2006), Juan Carlos Bayarri (Caso 11.280, Argentina, 16 de julho de 2007), Eduardo Kimel (Caso 12.450, Argentina, 10 de abril de 2007), Jorge Fontevecchia y Héctor D'Amico (Caso 12.524, Argentina, 10 de dezembro de 2010), Milagros Fornerón y Leonardo Aníbal Fornerón (Caso 12.584, Argentina, 29 de novembro de 2010), Jorge Fernando Grande (Caso 11.498, Argentina, 4 de maio de 2010), Carlos y Pablo Mémoli (Caso 12.653, Argentina, 3 de dezembro de 2011), Jorge Omar Gutiérrez y família (Caso 12.221, Argentina, 19 de agosto de 2011), César Alberto Mendoza y otros - Prisión y reclusión perpetuas a adolescentes (Caso 12.651, Argentina, 17 de junho de 2011), Oscar Alberto Mohamed (Caso 11.618, Argentina, 13 de abril de 2011), Sebastián Claus Furlán y familia (Caso 12.539, Argentina, 15 de março de 2011), Hugo Oscar Arguelles y otros (Caso 12.167, Argentina, 29 de maio de 2012).
[5] Segundo Flávia Piovesan, a Secretaria de Direitos Humanos da Argentina estima o desparecimento de 18.000 pessoas, ao passo em que as organizações não governamentais, como Las Madres de la Plaza de Mayo, estimam o desaparecimento forçado de 30.000 indivíduos (PIOVESAN, 2010).
[6] Art. 3º - La persona que hubiera recuperado su libertad por aplicación de la ley de facto 22.924 deberá presentarse ante el tribunal de radicación de la causa dentro del quinto (5) día de la vigencia de la presente ley. En caso contrario, será declarada rebelde y se dispondrá su captura, sin necesidad de citación previa. Si se tratare de un civil sometido a la jurisdicción militar, la presentación a que se refiere el párrafo anterior podrá hacerse efectiva simultáneamente con la impugnación dirigida contra ese enjuiciamiento y en el tribunal donde esta impugnación se radique (ARGENTINA, 1983).
[7] Segundo Ricardo Maurício, Claiz Gunça e Tiago Freitas, “o controle de convencionalidade consiste na verificação da conformidade entre as normas internas e os tratados internacionais, sendo que o Estado, assim como todos os seus órgãos, devem observar, zelar e respeitar os ditames e normas internacionais ratificados. Outrossim, pautado no controle de convencionalidade, o Poder Judiciário não deve levar em conta apenas o tratado, mas também a interpretação conferida pelas cortes internacionais” (SOARES; SANTOS; FREITAS, 2013, p. 106).
[8] A título de exemplo, podem ser citadas as denúncias formuladas pelo Ministério público Federal em face do coronel da reserva Sebastião Curió, do tenente-coronel da reserva Lício Maciel e do coronel da reserva Carlos Brilhante Ustra. As ações foram rejeitadas pela Justiça Federal sob o argumento de que a Lei de Anistia estava em vigor, conforme decisão do STF, e, portanto, não seria possível processar e punir os militares. Algumas ações foram admitidas após a interposição de recurso, mas, até o presente momento, não houve qualquer condenação (SANTOS, 2014).
Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Graduada em Direito, com Láurea Acadêmica, pela Universidade Federal da Bahia. Professora. Associada efetiva do Instituto Bahiano de Direito do Trabalho - IBDT. Primeira Presidente da Associação Baiana de Defesa do Consumidor – ABDECON. Participante do Programa de Mobilidade Acadêmica com a Universidade de Coimbra, Portugal, em 2009.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, CLAIZ MARIA PEREIRA GUNÇA DOS. Os impactos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos na Justiça de Transição Argentina Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2020, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55571/os-impactos-do-sistema-interamericano-de-direitos-humanos-na-justia-de-transio-argentina. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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