RESUMO: O presente artigo tem como principal objetivo analisar a concepção contemporânea do princípio da igualdade na sua dimensão como reconhecimento, para além das dimensões formais e materiais, bem como, discutir o direito fundamental à educação plural como forma de superar as desigualdades fáticas existentes na sociedade, avaliando como o aparato legislativo existente pode impulsionar a concretude desses valores constitucionais. A proposta metodológica do estudo perpassa pela interpretação das normas internacionais e as incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio, bem como, da produção doutrinária sobre o tema. Para a investigação utilizam-se as normas internacionais, a legislação pátria em vigor, o pensamento doutrinário correlato, relacionando-os com as políticas públicas de educação e o exercício do direito à educação em um contexto de valorização da diversidade.
Palavras-chave: Igualdade; Reconhecimento; Discriminação; Educação; Legislação.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Direito Humano à igualdade na sua dimensão como reconhecimento 3. Direito fundamental à educação plural 4. Efetivação da legislação na valorização das diferenças no enfrentamento à desigualdade 5. Conclusão 6. Referências
1. INTRODUÇÃO
O ano de 2020 será também marcado pela problemática das questões raciais que tem sido objeto de inúmeros debates e manifestos em escala mundial, o que tornam necessários discursos mais qualificados, com estudos, pesquisas, reflexões, no Brasil e no mundo, de como se pode avançar na construção de processos sociais e educativos para uma cultura de igualdade.
Nessa senda, questionamentos sobre as relações étnico-raciais e o exercício de direitos fundamentais devem se projetar na arena acadêmica e nos mais diversos espaços de educação, de comunicação, de concepção de legislação e políticas públicas que reflitam nas ações governamentais e da sociedade civil.
Inicialmente, far-se-á uma abordagem sobre a formulação teórica do direito fundamental à igualdade, notadamente, na sua dimensão como reconhecimento, na perspectiva dos Direitos Humanos, seguindo para os fundamentos do direito fundamental à educação, efetivado de maneira plural, para então analisar os reflexos da legislação concernente existente na construção da efetividade desses direitos.
Os conflitos raciais e fenômenos sociais que trouxeram à baila o debate tendo como foco a questão racial em 2020 com repercussão mundial, dentre tantos outros exemplos, demonstram a relevância de uma correta compreensão do tema posto para reflexão na busca por soluções no enfrentamento as desigualdades.
2. DIREITO HUMANO À IGUALDADE NA SUA DIMENSÃO COMO RECONHECIMENTO
O direito humano à igualdade é tema de notável importância, por se tratar de assunto recorrente no mundo jurídico. Não obstante sua relevância jurídica, o direito à igualdade racial e suas bases teóricas ainda carece de maior destaque, tendo em vista que a raça é um fator presente na história das relações humanas e pauta o gozo e o acesso aos direitos.
Em que pese a doutrina seja vasta para dispor sobre o direito à igualdade, merece reparos quando se trata de considerações mais detalhadas, quando se trata do enfrentamento aos temais raciais, com a evolução em si do pensamento jurídico e de estudos mais específicos em relação à igualdade racial.
A doutrina de Ingo Sarlet (2017) compreende que o princípio da igualdade, assim como as proibições de discriminação e as imposições de políticas de igualdade e de ações afirmativas integram há muito uma gramática universal do direito constitucional, da dogmática dos direitos fundamentais e do direito internacional dos direitos humanos.
O enfrentamento deste tema nas Cortes do mundo, as respostas da sociedade para solver esse tencionamento e para buscar a equalização das relações raciais reclama também a própria evolução da ciência jurídica, sobretudo, para aqueles que assim a compreendem, necessitando de estudos mais específicos a respeito do direito humano à igualdade racial.
As Declarações de Direitos como resultado das revoluções liberais do século XVIII e que precederam as primeiras Constituições tiveram a busca pela igualdade como grande marco. A igualdade perante a lei foi uma características dessas Declarações e das primeiras Constituições. Tavares (2020, pág. 427) descreve: "Nessas Declarações e primeiras Constituições, a igualdade almejada era a igualdade perante a lei, que exigia um tratamento idêntico para todas as pessoas, submetidas, então, à lei."
Essa quadra histórica, segundo o autor supra, foi demarcada pela igualdade jurídica parcial, que buscava eliminar os privilégios de nascimento e das castas religiosas, mas estava alheia a outra formas de tratamento desigual, à guisa de exemplo, o tratamento dado aos escravos, às mulheres ou aos pobres em geral.
Hodiernamente, a doutrina entende que o fundamento do direito a igualdade é a universalidade dos direitos humanos, sendo esta concretizada por aquele, em que a titularidade dos direitos é atribuída a todos e que todos são iguais e devem usufruir de condições que possibilitem a fruição desses direitos.
Sendo o direito à igualdade direito humano fundamental, gera o dever de proteção por parte do Estado de promovê-lo, não se conformando com as desigualdades fáticas existentes na sociedade.
A primeira dimensão consiste na proibição de discriminação indevida e, por isso, é denominada vedação da discriminação negativa. A segunda dimensão trata do dever de impor uma determinada discriminação para a obtenção da igualdade efetiva, e por isso é denominada “discriminação positiva” (ou “ação afirmativa”).(TAVARES, 2020, pág.428)
Conforme a citada doutrina, a primeira dimensão concretiza a igualdade formal ou liberal, exigindo-se que as normas jurídicas sejam aplicadas a todos de forma indistinta, evitando discriminações odiosas, enquanto na segunda dimensão, concretiza-se a igualdade material ou social por meio de normas que favoreçam aqueles que estejam em situações de indevida desvantagem social, em vulnerabilidade social ou imponham um ônus maior aos que estejam numa situação de exagerada vantagem social.
É nesse sentido que o autor compreende que a igualdade material deixou de ser meramente uma igualdade socioeconômica, para ganhar contornos de uma igualdade como reconhecimento com outra dimensão, a do reconhecimento de identidades próprias, distintas dos agrupamentos hegemônicos.
Ficam consagradas, então, as lutas pelo reconhecimento da igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia, entre outros critérios. A lógica do reconhecimento da identidade é a constatação de que, mesmo em condições materiais dignas, há grupos cujo fator de identidade os leva a situações de vulnerabilidade, como, no caso do gênero, a situação de violência doméstica que atinge também as mulheres de classes abastadas. (TAVARES, 2020, pág.429)
No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões, segundo leciona Luís Roberto Barroso e Aline Osório (2016): a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que na intelecção dos autores corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem estar social; e a terceira dimensão de igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras.
Salutar perceber que a terceira dimensão da igualdade como reconhecimento, assim como as consagradas igualdades formal e material, também tem amparo constitucional:
A Constituição brasileira de 1988 contempla essas três dimensões da igualdade. A igualdade formal vem prevista no art. 5º, caput: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Já a igualdade como redistribuição decorre de objetivos da República, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3o, I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3o, III). Por fim, a igualdade como reconhecimento tem seu lastro em outros dos objetivos fundamentais do país: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3o, IV). (BARROSO e OSÓRIO, 2016, pág. 208)
Essa terceira dimensão da igualdade como reconhecimento, segundo classificação na doutrina de Barroso (2016) comporta ainda suas vertentes: (i) a discriminação racial; (ii) a discriminação contra as mulheres; e (iii) a discriminação em relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Notadamente para fins desse trabalho, o enfoque será a vertente da discriminação racial.
Quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, o Supremo Tribunal Federal no voto do relator, ponderou que a igualdade como reconhecimento significa respeitar as pessoas nas suas diferenças, mas procurar aproximá-las, igualando as oportunidades, tendo, assim, um papel simbólico de incremento da autoestima dos grupos não hegemônicos. O aumento do pluralismo e da diversidade graças à busca da igualdade como reconhecimento auxilia ainda em um “ambiente melhor e mais rico”, na dicção de Barroso (ADC 41, rel. Min. Roberto Barroso, j. 8-6-2017, P, DJe de 17-8-2017)
Para Ingo Sarlet (2017) a igualdade, bem como, a justiça, são noções que guardam uma íntima conexão, que remete ao plano filosófico, ao pensamento grego clássico, com destaque para o pensamento Aristotélico, quando este filósofo associa justiça e igualdade e sugere que os iguais devem ser tratados de modo igual ao passo que os diferentes devem ser tratados de modo desigual. Ressalta que a justiça não se esgota na igualdade nem com ela se confunde.
Desde então o princípio da igualdade (e a noção de isonomia) guarda relação íntima com a noção de justiça e com as mais diversas teorizações sobre a justiça, posto que, além de outras razões que podem ser invocadas para justificar tal conexão, a justiça é sempre algo que o indivíduo vivencia, em primeira linha, de forma intersubjetiva e relativa, ou seja, na sua relação com outros indivíduos e na forma como ele próprio e os demais são tratados. (SARLET, 2017, pág. 615)
John Rawls (2000) aponta como dois princípios da justiça sobre os quais acredita que haveria um consenso na posição original, descrevendo-os como adiante alinha:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para outras.
Segundo: que as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo a) consideradas como mais vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.( RAWLS, 2000, pág. 64)
Segundo o autor, os princípios supram se aplicam primeiramente a estrutura básica da sociedade, governam a atribuição de direitos e deveres e regulam as vantagens econômicas e sociais.
Dando-se um enfoque àquele segundo princípio, que na construção teórica de John Rawls (2000), se aplica à distribuição de renda e riqueza e ao escopo de organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e de responsabilidade a distribuição de riqueza e renda não necessariamente precisam ser iguais, ressaltando o autor que a distribuição precisa ser vantajosa para todos e ao mesmo tempo, as posições de autoridade e de responsabilidade devem ser acessíveis a todos.
A igualdade como reconhecimento, portanto, contempla também o usufruto de valores sociais que comportam as bases sociais de autoestima de diferentes grupos em dada sociedade que persegue os valores da justiça.
Nessa esteira de compreensão Flávia Piovisan (2008) ressalta o caráter bidimensional da justiça: redistribuição somada ao reconhecimento. O direito à redistribuição requer medidas de enfrentamento da injustiça econômica, da marginalização e da desigualdade econômica, por meio da transformação nas estruturas socioeconômicas e da adoção de uma política de redistribuição.
De igual modo, o direito ao reconhecimento requer medidas de enfrentamento da injustiça cultural, dos preconceitos e dos padrões discriminatórios, por meio da transformação cultural e da adoção de uma política de reconhecimento. É à luz dessa política de reconhecimento que se pretende avançar na reavaliação positiva de identidades discriminadas, negadas e desrespeitadas; na desconstrução de estereótipos e preconceitos; e na valorização da diversidade cultural. (PIOVISAN apud FRASER, 2008, pág.889)
3. DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO PLURAL
O constituinte assegurou o direito público subjetivo à educação que, segundo entendimento doutrinário, consiste na faculdade de usufruir de todas as formas de ensino, transmissão, reflexão e desenvolvimento do conhecimento, voltada ao desenvolvimento físico, intelectual e moral do ser humano. Noutro giro, o direito ao ensino retrata a realização do direito à educação por meio de instrumentos institucionalizados. (TAVARES, 2020).
O Parecer CNE/CP 08/2012 das Diretrizes Nacionais para Educação em Direitos Humanos, registra em seu relatório que os Direitos Humanos são frutos da luta pelo reconhecimento, realização e universalização da dignidade da pessoa humana, asseverando que a educação é reconhecida como um dos Direitos Humanos e que a Educação em Direitos Humanos é parte fundamental do conjunto desses direitos, incluindo o próprio direito fundamental à educação.
Destaque-se que a igualdade de direitos e o reconhecimento e valorização das diferenças e diversidade encontram-se no rol dos princípios da Educação em Direitos Humanos, juntamente com os princípios da dignidade da pessoa humana, da laicidade do Estado e democracia da educação, transversalidade, vivência e globalidade e sustentabilidade socioambiental.
O princípio do reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades é descrito como aquele que se refere ao enfrentamento dos preconceitos e das discriminações, garantindo que as diferenças não sejam transformadas em desigualdades. Correlacionando-se com o princípio jurídico-liberal de igualdade de direitos do indivíduo que deve ser complementado, então, com os princípios dos direitos humanos da garantia da alteridade entre as pessoas, grupos e coletivos.
Nas palavras de Nancy Fraser, uma das principais teóricas da perspectiva do reconhecimento, o objetivo é constituir um mundo aberto à diferença (“a difference-friendly world”), onde a assimilação aos padrões culturais dominantes ou majoritários não seja o preço a ser pago pelo mútuo respeito. Portanto, diversamente do que se passa em relação às demandas por redistribuição, a luta pelo reconhecimento não pretende dar a todos o mesmo status por meio da eliminação dos fatores de distinção, mas pela superação dos estereótipos e pela valorização da diferença. (BARROSO e OSÓRIO, 2016, pág.215)
Dessa forma, conclui-se que igualdade e diferença são valores indissociáveis que podem impulsionar a equidade social quando concebidos na perspectiva de uma educação plural.
No âmbito externo dos Direitos Humanos o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) trás a previsão que todos têm o direito à educação, que deve ter como objetivo o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.
O direito à educação deve ainda, segundo a previsão do art. 13 do PIDESC capacitar todas as pessoas a participar de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos.
Compreender a correlação entre o direito fundamental à educação, os direitos humanos e a pluralidade como construção histórica e cultural, demonstrando que os direitos humanos são fruto da luta pelo reconhecimento e pela garantia do respeito à dignidade humana é salutar para condução dos debates e construção de políticas públicas.
Erasto Mendonça (2013) denuncia que as escolhas equivocadas no campo da gestão educacional e da formulação de propostas curriculares têm conduzido a uma confusão entre os conceitos de diversidade e de direitos humanos, ora como se tivessem o mesmo significado, ora como se fossem conceitualmente divergentes ou excludentes.
Mais especificamente, têm sido feitas escolhas na elaboração de propostas pedagógicas que consideram que os direitos humanos, como eixo organizador do currículo, comprometem, diminuem ou, até mesmo, apagam a capacidade de a escola atuar diretamente na formação de pessoas como agentes transformadores comprometidos com as diversidades, tomadas, aqui, conscientemente no plural para que a expressão represente as lutas de segmentos excluídos dos benefícios da sociedade pelo sentido de menos valia a partir de preconceito e discriminação.(MENDONÇA,2013, pág. 256)
O autor aponta ainda que cabe à educação para as diversidades e à educação em direitos humanos o desafio de construir uma sociedade fraterna, onde as diferenças sejam respeitadas como atributos da riqueza humana.
Vera Candau (2008) defende que a perspectiva intercultural quer promover uma educação para o reconhecimento do outro, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. A autora advoga por uma educação para a negociação cultural, que enfrente os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais na sociedade e que seja hábil a favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam integradas.
Assevera que a perspectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que integre as políticas de igualdade com políticas de identidade.
A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o reconhecimento do outro , para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas.(CANDAU, 2008, pág.52)
A autora aponta alguns desafios que deverão ser enfrentados para se promover uma educação intercultural em perspectiva crítica e emancipatória, que respeite e promova os direitos humanos e que interaja com as questões concernentes à igualdade e à diferença.
O primeiro desafio é a desconstrução. Para que ocorra a promoção de uma educação intercultural é necessário penetrar no universo de preconceitos e discriminações que impregna muitas vezes com caráter difuso, fluido e sutil todas as relações sociais que configuram os contextos em que vivemos.
Aduz que a naturalização é um componente que faz em grande parte invisível e especialmente complexa essa problemática. Essa percepção foi também registrada por Barroso (2016, pág. 217) "os brasileiros estão acostumados a ver a população afrodescendente desempenhar determinados papéis, como os de porteiro, pedreiro, operário, empregada doméstica e também o de jogador de futebol."
Este fato é, sem dúvida, um dos estigmas deixados pela escravidão. Após a abolição da escravatura, a ascensão do negro à condição de trabalhador livre não foi capaz de alterar as práticas sociais discriminatórias e os rótulos depreciativos da cor de pele (muito embora, do ponto de vista biológico, não existam raças humanas). A falta de qualquer política de integração do exescravo
na sociedade brasileira, como a concessão de terras, empregos e
educação, garantiu que os negros continuassem a desempenhar as mesmas funções subalternas. Assim, no Brasil, criou-se um aparato apto à manutenção da exclusão e da marginalização sem que fossem instituídas leis discriminatórias propriamente ditas.(BARROSO, 2016, pág. 217)
A articulação entre igualdade e diferença no nível das políticas educativas, assim como das práticas pedagógicas é outro desafio. O reconhecimento e a valorização das diferenças culturais, dos diversos saberes e práticas e a afirmação de sua relação com o direito fundamental subjetivo à educação de todos.
O resgate dos processos de construção das identidades culturais, tanto no nível pessoal como coletivo, foi apontado com um terceiro desafio a ser superado. Um elemento fundamental nessa perspectiva são as histórias de vida e da construção de diferentes comunidades socioculturais.
Vera Candau (2008) destaca que é muito importante resgatar as histórias de vida, tanto pessoais quanto coletivas, e que estas possam ser contadas, narradas, reconhecidas, valorizadas como parte de processo educacional. Também sobre esse aspecto, adiante alinharemos a importância da legislação no campo educacional nesse processo.
Por último, aponta a promoção de experiências de interação sistemática com os outros como outro desafio a ser enfrentado. Assevera a autora que para sermos capazes de relativizar nossa própria maneira de situar-nos diante do mundo e atribuir-lhe sentido, é importante que experimentemos uma intensa interação com diferentes modos de viver e de expressar-se.
Nessa toada, entende-se que a interlocução prática dos direitos humanos, com o exercício dos direitos fundamentais à educação e da igualdade como reconhecimento torna-se imprescindível no avanço da efetivação desses direitos.
As relações entre direitos humanos, diferenças culturais e educação colocam-nos no horizonte da afirmação da dignidade humana num mundo que parece não ter mais essa convicção como referência radical. Nesse sentido, trata-se de afirmar uma perspectiva alternativa e contra hegemônica de construção social, política e educacional. (CANDAU, 2008, pág.54)
Boaventura de Sousa Santos (2009) compreende que o reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo intercultural.
O multiculturalismo progressista pressupõe que o princípio da igualdade seja prosseguido de ar com o princípio do reconhecimento da diferença. A hermenêutica diatópica pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. (SANTOS, 2009, pág. 18)
4. EFETIVAÇÃO DA LEGISLAÇÃO NA VALORIZAÇÃO DAS DIFERENÇAS NO ENFRENTAMENTO À DESIGUALDADE
A Constituição Federal em vários momentos impõe ao Poder Público a promoção de medidas normativas bem como de medidas fáticas com vistas à redução das desigualdades, o que implica um dever de adotar políticas de ações afirmativas, políticas públicas, um agir do poder público no sentido de uma imposição constitucional cujo descumprimento poderá levar a um estado de omissão inconstitucional.
Como revela a evolução brasileira nessa seara, que abarca desde a promoção da igualdade de gênero, por orientação sexual, pessoas com deficiência, em função da idade, mas especialmente, consideradas determinadas peculiaridades, em virtude de discriminação racial (raça tomada aqui como conceito normativo), uma série de políticas de ações afirmativas (ou de discriminação positiva ou inversa, como também se costuma designar tais medidas) tem sido levada a efeito pela legislação. (SARLET, 2017, pág.635)
O autor em comento assevera que a exigência de medidas que afastem desigualdades de fato e promovam a sua compensação, ou seja, de políticas de igualdade e mesmo de políticas de ações afirmativas podem ser reconduzida à função prestacional da igualdade, que implica um dever de atuação estatal, seja na esfera normativa, seja na esfera fática, de modo que é possível falar em uma imposição constitucional de igualdade de oportunidades.
Da leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, no Eixo da Pluralidade Cultural (1997), se extrai a conclusão de que a Constituição brasileira de 1988 é uma das mais avançadas quanto aos temas que dizem respeito à diferença e ao combate à discriminação, ressaltando, contudo, a importância debater as possibilidades que se abrem com trabalho, embates e entendimentos, mediante a colocação em prática dos instrumentos jurídicos disponíveis.
A Lei nº 13.005/2014 que aprovou o Plano Nacional de Educação - PNE, com vigência por 10 anos, ou seja, até 2024, estabeleceu entre suas diretrizes para aplicação do referido plano a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação, bem como promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.
Percebe-se que o advento de um novo pensamento constitucional de direitos fundamentais, como os direitos da igualdade na sua dimensão de reconhecimento, bem como, do direito fundamental da educação enquanto direitos humanos, a construção pari passu da legislação concernente, percebendo alguns avanços, contudo, para Luís Roberto Barroso "a conclusão a que se chega é a de que percorremos, com sucesso, um longo caminho. Porém, ainda estamos atrasados e com pressa." (2016, pág.207).
Assim, temas sobre a diversidade étnico-cultural exigiram mudanças no arcabouço legal nas últimas décadas. A Lei federal nº 10.639/2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional passou a incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da Temática História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Estudo publicado nos Anais do XXIX Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação (2019, pág.20) observou coleções de obras didáticas que são parte do Programa Nacional do Livro Didático do triênio 2018-2019-2020, fazendo uma análise do seu conteúdo, concluindo que a elaboração e produção de livros didáticos de História sofreu significativas mudanças com amparo na legislação educacional.
Esses avanços também podem ser creditados a Lei nº 12.288/2010 que estabeleceu o Estatuto da Igualdade Racial, que ao tratar em específico sobre o direito à educação previu que nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos ou privados, a obrigatoriedade do estudo da história geral da África e da história da população negra no Brasil, remetendo ao disposto na Lei nº 9.394/1996.
Ao estabelecer que os conteúdos referentes à história da população negra no Brasil deverão ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, resgatando sua contribuição decisiva para o desenvolvimento social, econômico, político e cultural do país, entende-se que a legislação busca efetivar o direito à igualdade na sua dimensão ao reconhecimento.
A busca pela homogeneidade não era capaz de perceber o reconhecimento das diferenças étnicas ou culturais de diversos grupos e a necessidade de afirmação da sua identidade, o que ensejaria um tipo de injustiça cultural e simbólica
A injustiça a ser combatida nesse caso tem natureza cultural ou simbólica. Ela decorre de modelos sociais de representação que, ao imporem determinados códigos de interpretação, recusariam os “outros” e produziriam a dominação cultural, o não reconhecimento ou mesmo o desprezo. Determinados grupos são marginalizados em razão da sua identidade, suas origens, religião, aparência física ou opção sexual, como os negros, judeus, povos indígenas, ciganos, deficientes, mulheres, homossexuais e transgêneros. (BARROSO, 2016, pág. 215)
Entende-se, portanto, que o caminho da efetivação do direito fundamental à igualdade como reconhecimento perpassa por uma transformação cultural ou simbólica, sendo o aparato legislativo um importante instrumento da realização desse direito em concorrência com o exercício direito fundamental à educação plural.
5. CONCLUSÃO
As relações étnico-raciais e o exercício de direitos fundamentais devem se projetar na arena acadêmica e nos mais diversos espaços de educação, de comunicação, de concepção de legislação e políticas públicas que reflitam nas ações governamentais e da sociedade civil na valorização da diversidade.
A formulação teórica sobre o direito fundamental à igualdade, notadamente, na sua dimensão como reconhecimento, está presente na visão contemporânea do princípio universal dos Direitos Humanos, devendo ser bem compreendido na busca pela sua efetivação.
As diretrizes para implementação do direito fundamental à educação, efetivado de maneira plural e os reflexos da legislação concernente existente na construção da efetividade desses direitos demonstram a relevância de uma correta compreensão do tema posto para reflexão na busca por soluções no enfrentamento as desigualdades e avanços sociais.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto; OSÓRIO, Aline. "Sabe com quem está falando?": Notas sobre o princípio da igualdade no Brasil contemporâneo. Direito & Práxis Revista. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, 2016, p. 204-232.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; Coelho, Inocêncio Mártires; Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, de 23 de dezembro de 1996. Seção 1, página 27883.
BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.3747, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, de 21 de julho de 2010. Seção 1, página 1.
BRASIL. Lei nº 13.005 de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União- Edição Extra, Brasília , DF, de 26 de junho de 2014. Seção1, página. 1.
BRASIL, Ministério da Educação, (1997). Parâmetros Curriculares Nacionais –Pluralidade Cultural. Brasília, MEC/SEF.
BRASÍLIA, Diretrizes Nacionais para Educação em Direitos Humanos. Ministério da Educação. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/educacao-em-direitos-humanos/DiretrizesNacionaisEDH.pdf
CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação. 2008; 13 (37): 45-56. ISSN: 1413-2478. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=275/27503705. Acesso em: 16 Jun. 2020.
MENDONÇA, Erasto Fortes. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 7, n. 13, p. 255-263, jul./dez. 2013. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> Acesso em: 27 jun. 2020.
OLIVEIRA, João Ferreira de; SOUZA, Ângelo Ricardo de. Educação e direitos humanos, diversidade cultural e inclusão social. -Série Anais do XXIX Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação, Organização: João Ferreira de Oliveira, e Ângelo Ricardo de Souza [Livro Eletrônico]. -Brasília: ANPAE, 2019. Página 20-24.
PIOVISAN, Flávia. Ações Afirmativas no Brasil: Desafios e perspectivas. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 424, setembro-dezembro/2008. Acesso em: 28 jun. 2020
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. – 7. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. – 6. ed. – São Paulo : Saraiva, 2017.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2009), Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista Direitos Humanos, 2, Páginas 10-18. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/Direitos%20Humanos_Revista%20Direitos%20Humanos2009.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020
STF. Plenário. ADC 41 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 12/04/2018.
Doutoranda em Políticas Sociais e Cidadania. Mestra em Políticas Sociais e Cidadania - UCSAL. Especialista em Direito Público e Graduada em Direito pela Universidade Salvador- UNIFACS. Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Bahia- FEBA. Docente de Direitos Humanos, Direito e Legislação Social e de Educação de Jovens e Adultos. Advogada. Aprovada concurso Promotor de Justiça MP-PI. Aprovada concurso Promotora de Justiça MP-SE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REIS, LICIA FERREIRA. Direitos humanos à igualdade como reconhecimento e ao direito fundamental à educação plural: a efetivação das leis nº 13.005/2014, nº 12.288/2010 e nº 10.639/2003 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2020, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55641/direitos-humanos-igualdade-como-reconhecimento-e-ao-direito-fundamental-educao-plural-a-efetivao-das-leis-n-13-005-2014-n-12-288-2010-e-n-10-639-2003. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Precisa estar logado para fazer comentários.