A Constituição Federal de 1988 previu em seu artigo 5º, inciso XXXV, que a lei não excluiria nenhuma lesão ou ameaça a direito, consagrando o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.
Em que pese essa previsão constitucional, nos dias atuais ainda se verifica uma imotivada resistência de determinados setores da sociedade a esta tarefa pelos órgãos judiciários, qual seja a de realizar o controle judicial dos atos administrativos.
Nesse sentido, frequentemente, argui-se a necessidade de que o Poder Judiciário se limite a atuar de modo comedido, num exercício de autocontenção, a fim de que os gestores públicos possam atuar no âmbito da Administração Pública de forma mais livre.
Essa crítica direcionada ao Poder Judiciário tem como fundamento um suposto excesso de atuação dos julgadores, num fenômeno que é conhecido no campo jurídico como ativismo judicial.
A par disso, a corrente que busca um esvaziamento do Poder Judiciário aduz ser necessária uma rediscussão sobre o recente papel deste na judicialização da vida pública. Afinal – afirmam – julgadores não têm o condão de administrar a coisa pública, notadamente sob a ótica da tripartição dos poderes (artigo 2º da Carta Política).
Ocorre, todavia, que cada vez mais o Brasil tem vivenciado momentos da vida pública e política onde o Poder Judiciário é chamado a realizar uma prestação jurisdicional de índole incisiva, porém necessária diante de desmandos dos administradores públicos.
Cita-se como exemplo o recentíssimo caso envolvendo o “apagão” energético no Estado do Amapá, onde a interrupção dos serviços de energia elétrica por diversos dias causou – e ainda causa – gravíssimos prejuízos à sociedade e ao próprio Poder Público.
Nem mesmo o regular calendário do processo eleitoral do ano de 2020 foi poupado naquele Estado da Federação, pois diante da falta de energia elétrica as eleições foram adiadas na referida localidade, causando, pois, instabilidade também na seara política.
E não só.
O “apagão” atingiu serviços essenciais como o fornecimento de água potável, serviços de comunicação (internet e telefonia), serviços de saúde, segurança pública, dentre outros, catalisando o avanço do contágio por coronavírus na Capital do Estado e em Municípios contíguos, onde se concentra a maioria da população amapaense. Os danos à economia foram – e são – gigantescos, inclusive com focos de desabastecimento alimentício e de outros itens essenciais ao consumo humano.
Coube, portanto, ao Poder Judiciário atender ao pleito manejado em sede de Ação Popular a qual busca encontrar uma saída para este cenário desolador, onde o magistrado federal determinou o afastamento provisório, sem prejuízo da remuneração, pelo prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência da decisão, da atual diretoria da ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica (prevista no artigo 4º da Lei Federal nº 9.427/1996), bem como dos atuais diretores do Operador Nacional do Sistema- ONS (previstos no artigo 7º do Decreto nº 5.081/2004), com vista a que não interfiram na apuração das responsabilidades pelo referido “apagão”.
Posto isso, chamam a atenção alguns dos trechos da referida decisão liminar, dado o seu caráter incisivo e de firme atuação no que tange ao controle judicial dos atos administrativos, a saber:
Em verdade, o lamentável blecaute ocorrido no Estado-membro do Amapá é reflexo de um autêntico “apagão de gestão” provocado por uma sucessão de “Governos Federais” que negligenciaram quanto ao planejamento adequado de políticas públicas de produção, transmissão e distribuição de energia elétrica, deixando o sistema entregue a própria sorte e em mãos de grupos políticos e econômicos que se unem estritamente para fins de enriquecimento ilícito, tratando o povo como “rebanho bovino” e não como sujeitos de direitos, conforme preconiza a legislação brasileira.
[...]
É de destacar, finalmente, que essa sucessão de erros, condenáveis negligências, mostram o lado triste de uma face oculta do Estado Brasileiro que, ao não se planejar e ao não se organizar adequadamente para o futuro, figurando demasiadamente conivente com a corrupção (promiscuidade entre interesses econômicos e políticos), está nos conduzindo ao “Neocolonialismo” e não ao papel de uma grande Nação que poderíamos vir a ser.
Nesse cenário, mais uma vez fica evidente que as críticas constantes ao Poder Judiciário no que tange ao seu suposto ativismo judicial desmedido não encontram terreno fértil nem sustentação na análise da realidade brasileira. Se de um lado ocorrem excessos pontuais pelos magistrados – e isso é fato – de outro há uma longa caminhada no Brasil que ainda precisa ser percorrida em prol do cumprimento da Constituição Federal, devendo o Poder Judiciário ser protagonista desta efetivação de direitos.
Assim, em todo esse contexto o Poder Judiciário ainda representa a última trincheira para a sociedade, haja vista que diante de situações inadiáveis e urgentes – como é o caso do “apagão” no Estado do Amapá – os cidadãos brasileiros depositaram a confiança na resolução dos problemas nas mãos de juízes, dada a descrença que persiste em determinadas instituições políticas e administrativas da República.
É dizer, diante do constatado “apagão” administrativo – e não só elétrico – coube ao Poder Judiciário trazer a luz.
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