DARIO AMAURI LOPES DE ALMEIDA
(orientador)
RESUMO: O presente artigo pretende abordar a respeito de uma possível interpretação extensiva da norma, de maneira que fosse possível a sua aplicação no âmbito de relações homoafetivas entre mulheres. Uma vez que existe o princípio constitucional da isonomia e o sujeito passivo do gênero feminino, não há que se falar em uma possível não aplicação da norma, uma vez que o sujeito passivo necessário se encontra presente no cometimento do delito. Além disso, inexiste limitação legal expressa a respeito da possibilidade de o agressor ser, necessariamente, do sexo masculino, uma vez que o legislador deixou essa abertura para interpretação legal. Também existem jurisprudências nesse mesmo sentido, que serão abordadas em momento oportuno durante o decorrer deste trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal; Relações Homoafetivas; Aplicação da Lei
ABSTRACT: The present article intends to approach about a possible extensive interpretation of the norm, in a way that its application in the scope of homoaffective relationships between women was possible. Since there is the constitutional principle of isonomy and the female passive subject, there is no need to talk about a possible non-application of the norm, since the necessary passive subject is present in the commission of the crime. In addition, there is no express legal limitation regarding the possibility that the aggressor is necessarily male, since the legislator left this opening for legal interpretation. There are also jurisprudences in the same direction, which will be addressed in due course during the course of this work.
KEYWORDS: Criminal Law. Homoaffective Relationships. Law Enforcement.
SÚMARIO: 1. Introdução 2. Lei Maria da penha e seus aspectos. 2.1. Origem e história da lei Maria da penha. 2.2 conceitos e tipos de violência doméstica e familiar. 2.3. Sujeito ativo e passivo. 3. Princípios que regem as relações homoafetivas perante a lei Maria da penha. 3.1 princípio da isonomia e suas vertentes. 3.2. Princípio da dignidade da pessoa humana 3.3. Princípio da liberdade e a liberdade sexual. 4.Conclusão. 5.Referências.
1.INTRODUÇÃO
No cenário atual, as relações homoafetivas vêm ganhando espaço, tendo o reconhecimento na sociedade pelas pessoas em geral, independentemente de fatos como intolerância ao olhar dos mais antigos ou pelo caráter “abominável” para religião.
As fontes do direito, tais como a legislação brasileira, a jurisprudência e a doutrina, já vinham admitindo a união homoafetiva, tendo como principais fundamentos o dever constitucional da construção de uma sociedade livre, justa e igualitária, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF/1988). Assim, evidencia-se a necessidade de instituir um estado de igualdade entre união de pessoas do mesmo sexo em face das lides patrimoniais em comparação às uniões heteronormativas, com o objetivo de evitar discriminações de natureza sexual, conforme verificamos anteriormente.
A respeito do reconhecimento da aplicabilidade da lei Maria da penha, ainda existem algumas divergências jurisprudências e entre doutrinadores. Por esse motivo, os questionamentos a respeito de sua aplicabilidade em situações que a vítima se encontra em uma relação homoafetiva serão problematizados no presente artigo. Para tentar resolver essa controvérsia, serão utilizadas as mais variadas fontes do direito, mas especialmente a doutrina e a jurisprudência.
Nesse sentido, espera-se que a contribuição módica dessa pesquisa seja levar dados bibliográficos para eventuais novos trabalhos, além de contribuir para o acesso à informação e ao entendimento de toda a coletividade a respeito de seus direitos, em especial as mulheres que estejam vivendo uma situação de vulnerabilidade social em decorrência de violência doméstica em uma relação homoafetiva.
2.LEI MARIA DA PENHA E SEUS ASPECTOS
O presente tópico pretende abordar a respeito da lei n. 11.340/2006, explicando a respeito de como se deu a sua origem, os conceitos e tipos de violência doméstica e familiar, além de verificar quem poderia ser sujeito passivo da lei e quem poderia ser sujeito ativo de acordo com as fontes do direito: doutrina, jurisprudência e lei.
Inicialmente, pretende-se trazer a história de quem é Maria da Penha Maia Fernandes, qual o papel de sua história para a edição da lei que leva o seu nome e quais os impactos da sua ação para a coletividade após o recebimento de denúncia pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e recomendações dadas pela Comissão, que contribuíram – e muito – para o debate legislativo iniciado em razão da exposição nacional e internacional do caso. Após isso, discutiremos a respeito do conceito e dos tipos de violência doméstica e familiar existentes, dando ênfase a aquelas abarcadas pela Lei Maria da Penha.
Ao fim do tópico, discorreremos a respeito do sujeito ativo e o sujeito passivo da lei, verificando de que maneira o Direito aplica a lei para os diferentes casos em que a violência ocorre ou pode ocorrer, uma vez que existem diferentes tipos de famílias e hoje a formação de casais e famílias homoafetivas não se trata mais de uma realidade distante.
2.1 Origem e história da Lei Maria da Penha
Maria da Penha Maia Fernandes é, hoje, uma ativista brasileira dos direitos feministas. Por conta de sua história de vida, luta e superação, houve a criação de uma lei – que é conhecida amplamente pelo seu nome, Maria da Penha – para que mulheres com casos como o seu pudessem ter a certeza de ter seus agressores sendo punidos.
Conhecer mais a respeito de sua história pode auxiliar a entender e interpretar a lei, para a sua correta aplicação. E, por esse motivo, esse tópico se dedicará inicialmente a uma suscinta abordagem do ocorrido, com base na exposição de motivos contida no Relatório 54/01, Caso 12.051, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Segundo o relatório 54/01, Maria da Penha foi vítima de uma tentativa de homicídio de seu marido, Marco Antônio Heredia Viveiros. Ele disparou um revólver contra ela enquanto dormia, que foi fruto de uma série de agressões anteriores contra Maria da Penha durante o seu casamento. Por conta disso, Maria da Penha ficou paraplégica:
De acordo com a denúncia, em 29 de maio de 1983, a Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, de profissão farmacêutica, foi vítima, em seu domicílio em Fortaleza, Estado do Ceará, de tentativa de homicídio por parte de seu então esposo, Senhor Marco Antônio Heredia Viveiros, de profissão economista, que disparou contra ela um revólver enquanto ela dormia, ato que culminou uma série de agressões sofridas durante sua vida matrimonial. Em decorrência dessa agressão, a Senhora Fernandes sofreu várias lesões e teve de ser submetida a inúmeras operações cirúrgicas. Em consequência da agressão de seu esposo, ela sofre de paraplegia irreversível e outros traumas físicos e psicológicos.
Havia medo por parte de Maria de Penha em separar-se, uma vez que seu marido era violento contra ela e suas três filhas durante todo o tempo que durou o seu casamento, tornando a relação insuportável e de convivência muito difícil:
Os peticionários indicam que o temperamento do Senhor Heredia Viveiros era agressivo e violento e que ele agredia sua esposa e suas filhas durante o tempo que durou sua relação matrimonial, situação que, segundo a vítima, chegou a ser insuportável, pois não se atrevia, por temor, a tomar a iniciativa de separar-se.
O interessante deste trecho do relatório é que esse temor de colocar um “ponto final” na relação é sentido não apenas por Maria da Penha, mas também por muitas mulheres que sofrem violência doméstica. Segundo Yamamoto, Ribeiro e Colares (2020):
A violência contra as mulheres – em especial a violência doméstica – acontece porque em nossa cultura muita gente ainda acha que os homens são superiores às mulheres, ou que eles podem mandar na vida e nos desejos das mulheres, e que a única maneira de resolver um conflito é apelar para a violência. É comum os homens serem valorizados pela força e agressividade e muitos maridos, namorados, pais, irmãos, chefes e outros homens acham que têm o direito de impor suas opiniões e vontades às mulheres e, se contrariados, partem para a agressão verbal e física. (grifo nosso)
E as agressões de Maria da Penha não cessaram com a tentativa de homicídio. Houve, ainda, uma segunda tentativa de homicídio, após o início de sua recuperação, conforme nos traz o Relatório 54/01, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:
Sustenta ela que o esposo procurou encobrir a agressão alegando ter havido uma tentativa de roubo e agressão por parte de ladrões que teriam fugido. Duas semanas depois de a Senhora Fernandes regressar do hospital, e estando ela em recuperação, pela agressão homicida de 29 de maio de 1983, sofreu um segundo atentado contra sua vida por parte do Senhor Heredia Viveiros, que teria procurado eletrocutá-la enquanto se banhava. Nesse ponto, decidiu separar-se dele judicialmente (grifo nosso)
Segundo o que consta o Relatório 54/01, o crime foi premeditado. O agressor de Maria da Penha possuía uma vida pregressa que não era conhecida por sua esposa; entre as revelações, estão que seu agressor tinha um passado de delitos, era bígamo, tinha um filho na Colômbia e queria se desfazer de bens de Maria da Penha dias antes da agressão, além de tentar fazer com que ela fizesse um seguro de vida em seu favor:
Asseguram que o Senhor Heredia Viveiros agiu premeditadamente, pois semanas antes da agressão tentou convencer a esposa de fazer um seguro de vida a favor dele e, cinco dias antes de agredi-la, procurou obrigá-la a assinar um documento de venda do carro, de propriedade dela, sem que constasse do documento o nome do comprador. Indicam que a Senhora Fernandes posteriormente se inteirou de que o Senhor Viveiros tinha um passado de delitos, era bígamo e tinha um filho na Colômbia, dados que não revelara à esposa.
A partir destes relatos, podemos depreender que a violência contra a mulher, em especial a cometida em casos como o de Maria da Penha, podem causar impactos negativos em sua saúde física e mental para o resto de suas vidas.
Nesse sentido, originou-se um debate legislativo intenso a respeito de maneiras que o Estado poderia coibir essas práticas, surgindo a partir deste debate a lei n. 11.340/2006, mais popularmente conhecida como Maria da Penha, que assume o papel justamente de um mecanismo estatal de prevenção e repressão da violência no âmbito doméstico contra as mulheres.
É importante citarmos que a lei não traz apenas dispositivos legais referentes a lei penal, como único mecanismo de defesa da mulher.
Também existem outros tipos de ferramentas, tais como as medidas protetivas, que se demonstram muitas vezes eficazes nos casos em que elas são necessárias, ou seja, quando a mulher acaba de sofrer algum tipo de agressão e torna-se necessário afastá-la de seu agressor ou agressores.
2.2 Conceito e tipos de violência doméstica e familiar
A lei n. 11.340/2006, mais conhecida como lei Maria da Penha, traz cinco tipos de violência contra a mulher, que podem ser cometidas em âmbito doméstico por sua família ou por seu companheiro.
São eles: a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. Abordaremos melhor a respeito desses aspectos individualmente.
A violência física pode ser compreendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher[1]. Esta definição é a trazida por lei.
Já a violência psicológica é entendida como condutas danosas que podem ir desde a diminuição da autoestima até atos que visem controlar ações, comportamentos, crenças ou decisões mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, entre outros:
Qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação[2]
A falta de conhecimento a respeito destes aspectos legais faz com que inúmeras mulheres sofram atos de violência psicológica em seu dia a dia, desde a repressão de seus pais, irmãos e outros eventuais parceiros utilizando-se dos instrumentos aos quais a lei se refere.
Dessa maneira, podemos depreender que a lei Maria da Penha deu especial importância ao psicológico das mulheres, com a proteção contra atos que podem lhe prejudicar a curto e longo prazo, potenciais gatilhos de transtornos mentais, como a depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós traumático, por exemplo.
A violência sexual é uma conduta danosa a integridade sexual da mulher. Segundo a lei, a violência sexual iria desde presenciar, participar ou manter relação sexual não desejada, utilizando os meios os quais a lei se refere:
qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos[3]
A violência patrimonial, por sua vez, seria “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”[4].
Por último, mas não menos importante, a violência moral seria “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria[5]”. Dessa maneira, o legislador buscou proteger a mulher inclusive de ofensas que a ofendam ainda que apenas em campo moral.
2.3 Sujeito ativo e passivo
Ao longo da lei Maria da Penha, temos duas figuras: a do agressor, que seria o sujeito ativo, e a da agredida, que seria o sujeito passivo.
O sujeito passivo é, necessariamente, ligado ao gênero feminino. Já o sujeito ativo é aquele que comete o crime contra a mulher. A lei Maria da Penha não impõe barreira de fim sexual para a lei, restringindo-se apenas aos casais heteros.
Muito pelo contrário: a lei Maria da Penha tem expressa previsão legal, no âmbito do artigo 5º, parágrafo único, que elucida que não há restrição de orientação sexual para a configuração da violência doméstica e familiar contra a mulher:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Não poderia ser diferente, uma vez que entre os objetivos fundamentais da Constituição Federal de 1988, estão o dever de construir uma sociedade livre, justa e solidária, que promoverá o bem de todos, sem preconceitos – inclusive os oriundos a orientação sexual dos indivíduos:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Assim, caso houvesse restrições no sentido de que os casais em uniões homoafetivas não poderiam acionar a lei Maria da Penha em caso de necessidade, tal restrição referente unicamente ao tipo desta união poderia ser compreendido como inconstitucional.
A jurisprudência tem entendido que é possível a aplicação da lei Maria da Penha em casos de agressões entre mulheres no âmbito das relações homoafetivas, desde que essa violência tenha sido praticada no contexto de violência doméstica, tal como ocorre nas relações heterossexuais.
O julgado que se segue é oriundo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), falando justamente a respeito desta interpretação extensiva:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. AMEAÇA. INJÚRIA. FATOS PRATICADOS POR COMPANHEIRA. RELAÇÃO HOMOAFETIVA. VIOLÊNCIA BASEADA NO GÊNERO. VULNERABILIDADE DA VÍTIMA. CONTEXTO DE DOMÉSTICO E FAMILIAR DE CONVIVÊNCIA CONFIGURADO. APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. Caracteriza-se o contexto de relação doméstica e familiar de convivência para fins da proteção especial da Lei nº 11.340/2006, quando os fatos ocorrem no âmbito de uma relação de afeto existente entre mulheres, na qual está presente situação de vulnerabilidade ou subordinação proveniente do gênero. Compete ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher processar e julgar requerimento de medidas protetivas de urgência e o respectivo inquérito policial e incidentes relacionados aos fatos caracterizadores de qualquer das formas de violência de gênero previstas na Lei Maria da Penha. Recurso em sentido estrito conhecido e provido. (Acórdão n. 983259, Relator Designado Des. SOUZA E ÁVILA, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 24/11/2016, publicado no DJe: 29/11/2016.)
Ao realizar pesquisa mais aprofundada nos bancos de dados do TJDFT, é possível encontrar mais precedentes nesse mesmo sentido, sempre salientando que a aplicação da referida lei se verifica que esta é aplicável no intuito da preservação da integridade da vítima mulher:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIMES DE LESÃO CORPORAL E AMEAÇA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. RELAÇÃO HOMOAFETIVA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
1. Havendo violência doméstica em um contexto de relação homoafetiva, presume-se aplicável a Lei Maria da Penha, com o intuito de preservar a integridade da vítima mulher, não podendo ser afastada de plano a legislação especializada por força dos art. 2º e 5º, parágrafo único, da Lei 11.340/2014.
2. Conflito conhecido, para declarar competente o juízo suscitado, no caso o Juízo do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Sobradinho-DF.
3. PRINCIPIOS JURIDICOS QUE REGEM AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS PERANTE A LEI MARIA DA PENHA
Como vimos, o Direito Constitucional veda quaisquer discriminações, sendo evitar a discriminação ao máximo um dos mais importantes fundamentos da República Federativa do Brasil. No presente caso, as disposições relativas à lei Maria da Penha devem seguir certos princípios constitucionais que deixam claras as possibilidades de aplicação da lei nos casos de uniões homoafetivas.
3.1 Princípio da isonomia e suas vertentes
O princípio da isonomia, também conseguido como princípio da igualdade, é um dos mais importantes princípios do direito brasileiro, consagrado no caput do artigo 5° “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
Inicialmente, o que se pode ver é a igualdade jurídica entre todos, independentemente de qualquer condição, como a orientação sexual, credo, gênero, ou cor dos indivíduos.
Nesse sentido, Batalha (2020) entende que o princípio da igualdade inadmite privilégios ou outros tipos de distinções, o que
O princípio da igualdade é o princípio dos princípios, uma vez que veda qualquer forma de discriminação e inadmite privilégios. Assim, a igualdade implica no tratamento igualitário de todos os indivíduos, quer sejam hetero ou homossexuais, dando a cada um o que é seu de direito, resguardadas as desigualdades e peculiaridades de cada um. Com esta afirmação não se pretende dizer que hetero e homossexuais são iguais à acepção literal da palavra, pois é obvio que não são. O que se quer afirmar com o princípio de isonomia é que todos os indivíduos, como seres humanos que são, têm o direito de se unir com quem desejar, não importando a sua orientação sexual. Ou, por outras palavras, homossexuais possuem o mesmo direito que os heterossexuais possuem terem sua orientação sexual respeitada e seus diretos constitucionais assegurados direitos. Sendo assim, revela-se que pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. De nada adianta assegurar respeito à liberdade e à dignidade humana. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito
3.2 Princípio da Dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos mais importantes princípios que devem ser garantidos as vítimas dos crimes, quaisquer que sejam estes, em especial no caso da Maria da Penha.
Dar dignidade a estas vítimas é torná-las também sujeitos de direito daquela relação jurídica, sujeitos de direitos esses que podem resolver seus problemas com a ajuda do Estado não tão somente com os mecanismos relativos ao de prisão dos agentes, mas também com outras medidas da lei Maria da Penha, como as medidas preventivas, por exemplo.
Nesse sentido, Magalhães (2009) tem uma posição crítica sobre o posicionamento estatal unicamente de impor algumas medidas à vítima e seu companheiro ou companheira e entende que a reparação poderia se dar de outras maneiras também, além das exclusivamente em cunho de prisão do envolvido na violência doméstica ou familiar:
Deixar nas mãos da mulher o poder de deflagração da ação penal acarreta duas conseqüências importantes: a primeira, a da possibilidade de negociação com o agressor da reparação desejada (não necessariamente econômica), o que pode ocorrer, inclusive, por instâncias não formais; e a segunda, a de transformar a mulher em sujeito de direitos, que decide sua própria vida, pactua ou repactua com o agressor (independente dos estereótipos que o sistema queira lhe empregar ao não decidir pela utilização da intervenção estatal). Somente assim a mulher é capaz de despir-se do seu papel social de vítima, que deve ser, mesmo contra a sua vontade, tutelada pelo Estado, para tornar-se agente na construção de sua história. A mulher, mais que ninguém, sabe que na relação conflituosa com seu companheiro, o papel de vítima, quando ele é simplesmente aceito, sem qualquer contestação, acaba gerando uma maior submissão e, conseqüentemente, maior violência, pela passividade e resignação com que aceita a imposição machista.
Assim, cabe trabalharmos mais a respeito das medidas protetivas, que encontram fundamento dentro da lei Maria da Penha. As medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor são as dispostas no art. 22 da lei 11.3460/06:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.
§ 2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
§ 3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5º e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil)
As medidas protetivas de urgência também são destinadas as vítimas, e nesse caso, elas estão dispostas no artigo 23 da Lei Maria da Penha, que tem a seguinte redação:
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos.
Nesse sentido, entendemos que a utilização de medidas protetivas de urgência, tanto as que obrigam o agressor quanto as que protegem as vítimas, são essenciais para assegurar a aplicabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana.
3.3 Princípio da liberdade e a liberdade sexual
O princípio da liberdade é consagrado na Constituição Federal de 1988, por meio do artigo 5°, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”
O ideal do princípio constitucional da liberdade é muito bonito, uma vez que a ideia do legislador é a criação de um Estado onde não existem discriminações, sendo que a todos seriam assegurados os direitos a vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, desde que seguidos os termos legais.
O que se verifica, no entanto, é que algumas pessoas são mais livres do que outras, ou seja, que algumas pessoas conseguem usufruir mais do seu direito de liberdade, provocando, inclusive, abuso de direitos.
Isso porque algumas pessoas utilizam o princípio da liberdade para oprimir outras pessoas, como ocorre com o caso da população heterossexual que, a pretexto de liberdade de expressão, tem atitudes homofóbicas com os casais homossexuais – ou, mesmo, com pessoas homossexuais, com a justificativa de que “dão pinta demais”.
Mesmo com o princípio da liberdade, a Constituição Federal de 1988 não trabalhou, exatamente, a questão dos Direitos Sexuais. Segundo Mattar (2008), mesmo em relação a discussão de direitos humanos, a discussão a respeito dos direitos sexuais são relativamente recentes, que tiveram maior relevância a partir de 1980, a partir da epidemia do HIV:
Os direitos sexuais, por sua vez, começaram a ser discutidos no final da década de 80, com a epidemia do HIV/Aids, principalmente dentro do movimento gay e lésbico, a quem se juntou parte do movimento feminista. Segundo Sonia Corrêa e Maria Betânia Ávila, o termo "direitos sexuais" foi introduzido como estratégia de barganha na CIPD, em 1994, para que os direitos reprodutivos fossem garantidos no texto final da Declaração e Programa de Ação do Cairo - a inclusão do termo "sexual" radicalizava a linguagem de forma que ao conceder sua retirada negociava-se a manutenção de "direitos reprodutivos". Com isso, o termo 'direitos sexuais' não aparece no documento final do Programa de Ação de Cairo.
Entretanto, a discussão sobre tais direitos foi retomada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Consoante previsto no parágrafo 96 da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim:
Os direitos humanos das mulheres incluem seus direitos a ter controle e decidir livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, livre de coação, discriminação e violência. Relacionamentos igualitários entre homens e mulheres nas questões referentes às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito pela integridade da pessoa, requerem respeito mútuo, consentimento e divisão de responsabilidades sobre o comportamento sexual e suas conseqüências.
Muita desinformação foi disseminada durante esta epidemia, sendo a doença AIDS colocada como uma condição inerente a homossexualidade. Assim, muitas violações de direitos e muita segregação foi feita, mesmo até os dias de hoje. Nesse sentido, é importante assegurar o direito a liberdade e a liberdade sexual, sendo a interpretação extensiva da aplicação da Lei Maria da Penha uma oportunidade para que se evidencie esse respeito a orientação sexual de cada um.
4. CONCLUSÃO
Como vimos anteriormente, a aplicação da lei, qualquer que ela seja, deve ser pautada por princípios constitucionais, que entre eles são a igualdade (ou isonomia), a dignidade da pessoa humana e, que, no caso específico do nosso artigo, acabam também respeitando o direito a liberdade de orientação sexual.
Por conseguinte, a aplicação da lei – e, portanto, a sua interpretação - também deve ser isonômica a todos, independentemente de orientação sexual, uma vez que isso não interfere no sentido da lei, apenas a estende em sua aplicabilidade para todos e todas que dela precisam.
Nesse sentido, torna-se plausível a interpretação extensiva da aplicação da lei Maria da Penha a casais homoafetivos, uma vez que, tendo a interpretação pautada em princípios constitucionais, não existe obstáculo a esta aplicação, tampouco a lei sairia de seu sentido originário. Os tribunais já vêm entendendo como aplicável esta interpretação, uma vez que inexistem óbices legais a esta aplicação e interpretação legal. Mesmo que a Constituição Federal de 1988 não tenha trabalhado de maneira explícita a liberdade sexual dos indivíduos, tornando explicito que certos tipos de lei também são aplicadas a casais homoafetivos, o princípio da isonomia, por si só, já traz em seu escopo legal esta ideia, com o objetivo de levar direitos e obrigações a todos, independentemente de quaisquer situações que poderiam gerar discriminação.
5.REFERÊNCIAS
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Acadêmico de Direito pelo FAMETRO - CENTRO UNIVERSITÁRIO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, EDITH EVEN DA FÉ BATISTA. Relação homoafetiva e a Lei Maria da Penha: uma análise da aplicação da Lei Maria da Penha no âmbito das relações homoafetivas entre mulheres Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2020, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55660/relao-homoafetiva-e-a-lei-maria-da-penha-uma-anlise-da-aplicao-da-lei-maria-da-penha-no-mbito-das-relaes-homoafetivas-entre-mulheres. Acesso em: 23 dez 2024.
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