RESUMO: Ao longo da história, o instituto familiar passou por transformações em sua construção por conta de estar diretamente relacionado a evolução da sociedade. Diante disso, o presente trabalho irá analisar as modificações que ocorreram no conceito de família, e suas transformações, principalmente quanto a filiação. O surgimento de novos arranjos familiares frutos dessas mudanças, em que a afetividade e o amor apresentam protagonismos. Dessa forma, a filiação socio afetiva passou a ser protegida pela CRFB/88, vedando a discriminação entre os tipos de filiação e valorizando o afeto. É nesse contexto que, surge a o fenômeno jurídico da multiparentalidade que presenta como princípios fundamentais o melhor interesse da criança e a dignidade da pessoa humana de todos os envolvidos, entre os pais e filhos, afetivos e biológicos. Diante do exposto, o presente trabalho busca analisar aceitação da multiparentalidade pela doutrina e jurisprudência, assim como os seus efeitos jurídicos.
Palavras-chave: Família. Filiação. Socioafetividade. Multiparentalidade. Efeitos jurídicos.
ABSTRACT: Throughout history, the family institute has undergone transformations in its construction because it is directly related to the evolution of society. In view of this, the present work will analyze the changes that occurred in the concept of family, and its transformations, mainly regarding affiliation. The emergence of new family arrangements as a result of these changes, in which affectivity and love play a leading role. Thus, the affective socio-affiliation started to be protected by the CRFB / 88, prohibiting discrimination between the types of affiliation and valuing the affection. It is in this context that the legal phenomenon of multi-parenting emerges, which presents as fundamental principles the best interest of the child and the dignity of the human person of all those involved, between parents and children, affective and biological. In view of the above, this paper seeks to analyze the acceptance of multiparenting by doctrine and jurisprudence, as well as its legal effects.
Keywords: Family. Affiliation. Socioafectivity. Multiparenting. Legal effects.
É notório que o conceito de família sofreu uma série de transformações nos últimos tempos, em decorrência das importantes modificações advindas da evolução socioeconômica, que provocaram o surgimento de novos arranjos familiares e alterações nos valores da sociedade como um todo.
Nesse contexto, é preciso destacar que a família moderna apresenta como elementos de destaque o valor jurídico da função social dos seus membros e o afeto, desvinculando a ideia do conceito tradicional, em que o matrimônio era a base central da formação familiar.
Desta forma, busca-se caminhar pela expansão do conceito de família, analisando o seu desenvolvimento histórico com intuito de compreender os novos arranjos presentes na sociedade nos dias de hoje, em que acarretou na ampliação do conceito de filiação. É nesse cenário que surgem as novas estruturas constituídas pela parentalidade socioafetiva que podem apresentar como consequência, a multiparentalidade. Diante disso, o legislador deve se adequar à nova realidade social, se amparando na doutrina para orientar a tutela das novas relações de parentescos nascidas da afetividade respeitando os preceitos constitucionais.
O presente trabalho tem como objetivo contribuir para o entendimento a respeito do tema da filiação socioafetiva e atestar a viabilidade da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse prisma, primeiramente se tratará do desenvolvimento do conceito de família e de suas transformações até alcançar os novos modelos presentes na sociedade atual. Na sequência, serão analisados os aspectos referentes a filiação, sua da evolução histórica e os desmembramentos dentro no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, tornando possível verificar como se estruturam os novos modelos de filiação, tendo como ênfase, a filiação socioafetiva e os seus efeitos jurídicos.
O conceito de filiação, assim como todo o direito de família, sofreu grandes transformações no decorrer da história. É possível dizer que sua conceituação se expandiu dentro do ordenamento jurídico no sentido de tornar sua definição mais ampla.
Dessa forma, para que seja possível compreender a filiação em seu modelo atual, é necessário analisar a evolução histórica do instituto e suas implicações dentro do direito de família. É possível notar que antigamente a proteção legal feita pelo Estado estava atrelada diretamente ao matrimônio; a Igreja Católica apresentava grande influência, em decorrência do direito canônico, não permitindo que os filhos concebidos em relações extraconjugais fossem reconhecidos, até o próprio sistema judiciário apresentava entraves para esse reconhecimento, o que proporcionava um ambiente preconceituoso, sendo os mesmos considerados como “ilegítimos”.
Segundo o jurista Rolf Madaleno (2018, p. 658-659), o Código Civil de 1916 realizava a distinção entre filhos legítimos, ilegítimos e legitimados, de forma que os filhos legítimos eram aqueles que se originavam das núpcias e os ilegítimos poderiam vir a ser legitimados no caso de seus pais casarem, enquanto os demais filhos que apresentavam a origem fora do casamento eram considerados ilegítimos, e se subdividiam em naturais, caso seus pais não fossem casados e espúrios quando existiam motivos para o impedimento do matrimonio de seus genitores. Ainda, os filhos espúrios eram subdivididos em adulterinos e incestuosos.
Nas palavras de Silvio de Salvo Venosa (2017, p. 239) sobre o tema, observa-se:
O Código Civil de 1916 centrava suas normas e dava proeminência à família legítima, isto é, aquela derivada do casamento, de justas núpcias, em paradoxo com a sociedade brasileira, formada em sua maioria por uniões informais. Elaborado em época histórica de valores essencialmente patriarcais e individualistas, o legislador do início do século passado marginalizou a família não provinda do casamento e simplesmente ignorou direitos dos filhos que proviessem de relações não matrimoniais, fechando os olhos a uma situação social que sempre existiu, especialmente em nosso país de miscigenação natural e incentivada.
Dessa forma, é evidente que nesse período o casamento apresentava um grande destaque, por ser o que definia se os filhos deveriam ser considerados legítimos ou ilegítimos.
Com o advento da CRFB/88 conhecida como democrática, social e cidadã, passou a ser vedada qualquer qualificação relativa à filiação, sendo fundamental para o desenvolvimento do novo conceito tanto de filiação, como de família. Nesse contexto, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenlvad (2016, p. 567), explicam sobre o tema que
Somente com a normatividade garantista da Constituição-cidadã de 1988 é que foi acolhida a isonomia no tratamento jurídico entre os filhos. Aliás, preceito oriundo Convenção Interamericana de Direitos Humanos, apelidada de Pacto de San José Costa Rica, já prescrevia dever cada ordenamento ‘reconhecer direitos aos filhos fora do casamento como aos nascidos dentro dele’.
A Constituição de 1988, ao apresentar como um de seus princípios fundamentais a igualdade, provoca determinados confrontos com as relações familiares existentes. Com efeito, restou configurada a igualdade entre os filhos, sejam eles constituídos pela relação matrimonial ou não, contemplado no art. 227, § 6.º, da CRFB/88. A partir desse momento, não existe mais espaço para realizar uma distinção entre família legitima e ilegítima, ou qualquer outra expressão em que transmita a ideia de um tratamento diferenciado ou depreciado dos membros da família.
Diante disso, é possível destacar a igualdade de filiação garantida pela CRFB/88 como um marco no direito de família. Isso porque, as formas discriminatórias passaram a ser refutadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando o desenvolvimento do conceito de família de forma mais liberal e o surgimento dos novos arranjos familiares.
Atualmente, não há mais a vinculação do conceito de família a ideia da família matrimonializada, hierarquizada e patriarcal, gerando uma maior liberdade para formação de novas estruturas familiares. Nesse cenário, ao se constituir uma nova família, passa a ser priorizado o princípio da dignidade da pessoa humana e a igualdade dos membros, diferente de como era feito antigamente visando a proteção do patrimônio (OTONI, 2010).
O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90, em seus artigos 26 e 27, também abordou o tema da filiação priorizando a igualdade entre os filhos e o reconhecimento da filiação dos filhos advindos do casamento ou de fora do casamento, ao reconhecer o estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível.
Já o Código Civil de 2002, perpetuou em seu art. 1.596 o disposto na Constituição, no sentido de que “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Dessa forma, o ordenamento reconhece a igualdade dos filhos, independente da forma como concebidos, culminando por se desdobrar na importante noção de veracidade da filiação, regra principiológica fundamental, não devendo criar óbices para reconhecer a verdadeira vinculação entre pais e filhos (GAGLIANO, 2017).
Dentre as inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, no âmbito do direito de família, é preciso destacar o reconhecimento da união estável como entidade familiar, conforme mencionado no capítulo anterior. Além disso, com o surgimento do exame de DNA, passou a ser possível realizar a pesquisa genética para investigação da paternidade de forma mais precisa, possibilitando o reconhecimento da paternidade biológica.
Entretanto, o conhecimento da paternidade biológica não é decisivo para definir a paternidade. Nessa linha, Paulo Nader (2016) explica que
A doutrina distingue três critérios de aferição de paternidade: a biológica, a jurídica e a socioafetiva. Pelo primeiro critério, pai e mãe são os que fecundaram, com seus gametas, o embrião. Por ele, a paternidade decorre de consanguinidade; pelo segundo, define-se por presunções legais, como a pater is est, e, como observa Heloísa Helena Barbosa, correspondendo ou não à realidade. O critério socioafetivo dimana de uma situação fática, que nasce da educação, amparo, proteção, afetividade, aplicados na criação de uma pessoa e por quem não é pai ou mãe biológica.
Dessa maneira, é possível concluir que todas essas mudanças nos diplomas legais originaram novos conceitos que se enquadram de forma mais fidedigna ao atual cenário da sociedade.
O conceito de família passou por um processo de transição de desbiologização da paternidade, deixando de ser formada exclusivamente pelos laços consanguíneos para abranger um perfil socioafetivo. A filiação passa a se relacionar de forma mais direta ao afeto do que de fato aos fatores biológicos.
A filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, em que uma é considerada filha da outra. Diante disso, o estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, que compreende um complexo de direitos e deveres recíprocos. O filho é titular do estado de filiação, assim como o pai e a mãe são titulares dos estados de paternidade e de maternidade, em relação a ele (LÔBO, 2004).
Dessa forma, em que pese a classificação entre os critérios de filiação é importante destacar que apresentam fins meramente didáticos, uma vez que é vedada pela CRFB/88 qualquer distinção entre as formas de filiação.
A filiação biológica configura o vínculo fixado por meio dos laços sanguíneos, segundo Maria Berenice Dias (2016, p. 640) “[...] até hoje, quando se fala em filiação e em reconhecimento de filho, a referência é à verdade genética. Em juízo sempre foi buscada a chamada verdade real, sendo assim considerada a filiação decorrente do vínculo de consanguinidade.”
Entretanto, com a evolução histórica, o casamento deixou de ser a referência da filiação, gerando nesse momento duas realidades. Por um lado, passou-se a reconhecer a afetividade como elemento constitutivo da família, alterando os paradigmas dos institutos familiares.
E por outro lado, o reconhecimento da origem genética passou a ser considerado um direito fundamental, acarretando no surgimento de ações de investigação de paternidade.
É preciso mencionar que outro acontecimento marcante, foi a descoberta dos marcadores genéticos, mais conhecidos como exame de DNA. Os mesmos possibilitaram a identificação da filiação biológica com maior precisão, funcionando como um meio de prova fundamental.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2016, p. 607) discorrem sobre o tema:
A importância do exame DNA, destarte, é indiscutível no âmbito da filiação, permitindo, com precisão científica, a determinação da origem biológica. Efetivamente, o exame DNA consegue, praticamente sem margem de erro (certeza científica 99,999%), determinar a paternidade."' Por isso, a probabilidade de se encontrar ao acaso duas pessoas com a mesma impressão digital do DNA é de 1 em cada 30 bilhões. Como a população da Terra não chega a 20% disso, é virtualmente impossível que haja coincidência.
Diante desse respeito, o Supremo Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 301, na qual estabelece que “a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA, em ação investigatória, induz presunção juris tantum de paternidade”.
Contudo, o exame de DNA somente apresenta capacidade de descobrir quem é o verdadeiro genitor, quem fornece o material genético. Não sendo suficiente para ser considerada de forma isolada para definir a parentalidade.
Conforme afirma Paulo Lôbo (2004), na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa humana é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência família, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos.
Dessa forma, é preciso diferenciar as duas figuras de “pai” e de “genitor’, que apesar de poderem coincidir na mesma pessoa, não são sinônimos. Uma vez que pai é quem cria e apresenta laços de afetividade, enquanto o genitor é quem proporciona o DNA.
É considerada como filiação socioafetiva a família que não é constituída pela consanguinidade e sim, pelo afeto. Isso porque, não é a derivação química que aponta quem deve apresentar a figura de pai, mas o amor, o desvelo e o serviço que alguém se entrega ao bem da criança (VILLELA, 1997 apud CASSETARI, 2015).
Dispõe o art. 1.593 do Código Civil de 2002 que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.” Dessa forma, ao se utilizar a expressão “outra origem’, também “abre espaço ao reconhecimento da paternidade desbiologizada ou socioafetiva, em que embora não existam elos de sangue, há laços de afetividade que a sociedade reconhece como mais importantes que o vínculo consanguíneo” (MONTEIRO, 2000, p. 294).
Nesse ângulo, Carlos Roberto Gonçalves (2017), explica que, no dispositivo em apreço, a doutrina tem identificado elementos para que a jurisprudência possa interpretá-lo de forma mais ampla, abrangendo também as relações de parentesco socioafetivas. Por sua vez, o jurista Belmiro Pedro Welter (2002, p. 133), ao discorrer sobre o tema, considera que
Filiação afetiva pode também ocorrer naqueles casos em que, mesmo não havendo nenhum vínculo biológico ou jurídico (adoção), os pais criam uma criança por mera opção, denominado filho de criação, (des)velando-lhe todo o cuidado, amor, ternura, enfim, uma família, ‘cuja mola mestra é o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto’.
De acordo com Maria Helena Diniz (2010), o parentesco socioafetivo está baseado em uma relação de afeto, gerada pela convivência. Nesse contexto, é possível notar que a convivência é um elemento indispensável para a configuração da filiação socioafetiva, pois faz nascer o carinho, afeto e desenvolvimento das relações. Apesar de não existir um período mínimo de convivência pré-estabelecido para sua configuração, é necessário analisar caso a caso.
A jurista Heloísa Helena Barboza (1999), merece destaque ao mencionar que em nome do melhor interesse da criança, deve prevalecer a paternidade afetiva, em detrimento da biológica, sempre que se revelar como meio mais adequado de realização dos direitos assegurados à criança e ao adolescente, especialmente de um dos direitos fundamentais, o direito à convivência familiar.
Segundo Luiz Edson Fachin (1996), a realidade jurídica da filiação não é, portanto, fincada apenas nos laços biológicos, mas na realidade do afeto que une pais e filhos, e se manifesta em sua subjetividade e, exatamente, perante o grupo social e família. Ainda o jurista supracitado (1992, p. 157), explica sobre a posse do estado do filho para caracterização da socioafetividade:
Apresentando-se no universo dos fatos, a posse de estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Aproxima-se, assim, a regra jurídica da realidade. Em regra, as qualidades que se exigem estejam presentes na posse de estado são: publicidade, continuidade e ausência de equívoco. A notoriedade se mostra na objetiva visibilidade da posse de estado no ambiente social; esse fato deve ser contínuo, e essa continuidade, que nem sempre exige atualidade, deve apresentar uma certa duração que revele estabilidade. Os fatos, enfim, dos quais se extrai a existência da posse do estado não devem causar dúvida ou equívoco.
Ademais, mesmo que a posse do estado do filho não esteja indicada de forma expressa no ordenamento jurídico, é possível verificá-la como um dos requisitos da filiação socioafetiva pela interpretação feita pelo art. 1.605, II do Código Civil. Dessa maneira, para caracterização da posse do filho são necessários três elementos: a atribuição de nome, o tratamento do filho e o reconhecimento perante o meio social da relação paterna de forma pública, continua e inequívoca.
Entretanto, o requisito do nome não apresenta tamanha importância, sendo suficiente para a caracterização da posse do filho, os requisitos do tratamento e a reputação. Isso porque, a construção afetiva independe de nome registral, apenas auxilia para a divulgação do status de pai e filho perante à sociedade. O entendimento de Orlando Gomes (1994, p. 311) quanto ao tema é de que
O fato de o filho nunca ter usado o nome do pai não descaracteriza a posse de estado, se concorrerem os demais elementos citados. Cabe esclarecer que não há hierarquia entre eles, pois ainda se consideram outras qualidades que devem revestir a aparência de filho. Busca-se a publicidade, a continuidade e a ausência de equívoco na relação entre pai e filho. Ainda que não seja imprescindível o fator nome, posto que outros elementos também revelam a base da paternidade, o chamamento sim, pois dificilmente se encontrará expressão mais eloquente de tratamento do que o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.
É preciso observar o enunciado nº 256 do Conselho da Justiça Federal (CJF), que afirmou que “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.” Demonstrando que o parentesco civil inclui o socioafetivo, desde que se apresente a posse, a convivência.
Diante disso, é notório que não existe uma fórmula específica para identificar a presença do mencionado vínculo de afeto. Contudo, é necessário realizar a análise de uma série de elementos para verificar sua configuração, tais como o tempo de convívio, a continuidade, a afetividade, a vontade de ser pai ou mãe, além da posse do estado de filho.
Uma vez comprovada a filiação socioafetiva, devem ser resguardados os mesmos direitos dos filhos considerados como “legítimos”, sendo proibida qualquer tipo de discriminação quanto à filiação e a garantia dos mesmos direitos e qualificações dos filhos biológicos. Além disso, importante destacar que após o reconhecimento, se torna irrevogável, irretratável e indisponível.
É possível concluir que a filiação socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco entre pessoas que não apresentam entre si um vínculo biológico, contudo vivem como se fossem parentes por conta do forte vínculo afetivo existente. Nesse prisma, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou no sentido:
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. [...] O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. - O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação socioafetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai socioafetivo. A contrário sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido.
STJ, Recurso Especial nº 878941, Rel. Min. Nacy Andrighi, Brasília, 21 ago. 2007.
Dessa maneira, uma vez comprovada, os filhos socioafetivos devem apresentar os mesmos direitos dos filhos biológicos, pelo fato da igualdade prevista na CRFB/88. Além disso, cumpre destacar que por meio da análise dos requisitos cabe verificar a existência da afetividade em cada caso concreto, porém sempre devendo prevalecer o interesse do menor. Assim, o reconhecimento da filiação é a ponte garantidora do exercício da paternidade, e como consequência, gera uma série de efeitos jurídicos que serão verificados a seguir.
O direito não é um conjunto enfaixado de normas estáticas com conceitos e definições pré-formuladas de forma imutável. Isso porque, a natureza das relações humanas apresenta um caráter dinâmico, o que acarreta constantes mudanças legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias, principalmente no que se refere ao âmbito do direito de família, uma vez que busca acompanhar as mudanças ocorridas na sociedade (ANDRIGHI; KRÜGER, 2008).
O instituto familiar sofreu diversas alterações no decorrer da história no ímpeto de acompanhar a evolução da sociedade. Dessa maneira, os conceitos inerentes à família do passado, já não apresentam mais aplicação nas novas estruturas familiares, por conta da sua reestruturação. É nesse contexto que surge a multiparentalidade, que nada mais é do que o fenômeno contemporâneo que se caracteriza na possibilidade de um indivíduo apresentar uma pluralidade de vínculos paternais.
Com a evolução do conceito de família e a valorização das relações de afeto, esse cenário já é uma realidade fática presente na sociedade atual, o que exige uma acomodação no ordenamento jurídico, sendo este, o tema que trouxe uma das maiores mudanças ocorridas dentro do ramo do direito de família. Isso se deu com a inserção do envolvimento afetivo na relação familiar e no aumento do número de famílias recompostas tendo como consequência, o aumento dos casos de multiparentalidade.
Na sociedade atual, muitas madrastas e padrastos passam a exercer a autoridade parental dos filhos do seu companheiro de relações anteriores, criando um vínculo socioafetivo, o que também não exclui o vínculo afetivo do filho com seu genitor, que mantém o poder familiar.
Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Junior (2012, p. 382) foram um dos primeiros a se posicionar sob o seguinte argumento: "Parece permissível a duplicidade de vínculos materno e paterno-filiais, principalmente se um deles for socioafetivo e surgir, ou em complementação ao elo biológico ou jurídico pré-estabelecido, ou antecipadamente ao reconhecimento de paternidade maternidade biológica".
Dessa forma, no caso de coexistir os vínculos parentais afetivos e biológicos, não só é um direito, mas também uma obrigação constitucional os reconhecer para que sejam preservados os direitos fundamentais dos envolvidos, principalmente o da afetividade (DIAS, 2016, p. 656). É preciso destacar, portanto, que o reconhecimento da multiparentalidade atua no sentido de reiterar a paternidade socioafetiva, apresentando um grande efeito jurídico do seu reconhecimento.
Christiano Cassettari (2015, p. 201) se posiciona no sentido que as parentalidades devem coexistir e não uma se sobrepor a outra
As parentalidades socioafetiva e biológica são diferentes, pois ambas têm uma origem diferente de parentesco. Enquanto a socioafetiva tem origem no afeto, a biológica se origina no vínculo sanguíneo. Assim sendo, não podemos esquecer que é plenamente possível a existência de uma parentalidade biológica sem afeto entre pais e filhos, e não é por isso que uma irá prevalecer sobre a outra; pelo contrário, elas devem coexistir em razão de serem distintas.
Diante disso, é importante ressaltar que não existe uma espécie de hierarquia nos tipos de parentalidade, sendo jurídica, biológica ou afetiva com o mesmo grau de importância. Nesse contexto, o doutrinador Belmiro Pedro Welter (2002, p. 222), aponta que
Visto o direito de família sobre o prisma da tridimensionalidade humana, deve-se atribuir ao filho o direito fundamental às paternidades genética e socioafetiva e, em decorrência, conferir-lhe todos os efeitos jurídicos das duas paternidades. Numa só palavra, não é correto afirmar, como o faz atual doutrina e jurisprudência do mundo ocidental, que 'a paternidade biológica se sobrepõe à socioafetiva', isso porque ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas, exatamente porque fazem parte da condição humana tridimensional, que é genética, afetiva e ontológica.
Dessa maneira, para que seja possível compreender esse novo modelo familiar, é preciso se desvincular da ideia de que a filiação deve estar necessariamente relacionada a verdade biológica. Passando a ser fundamental para o reconhecimento da paternidade, a análise da função exercida pelo pai ou mãe na vida da criança, podendo estes serem qualquer pessoa que se enquadre na figura de autoridade parental.
Nesse contexto, o vínculo de afeto foi reconhecido pela Lei nº 11.924/09 que alterou a Lei de Registros Públicos – Lei nº 6.015/77, acrescentando o §8º ao atr. 57, para autorizar o registro de nascimento do sobrenome do padrasto ou da madrasta, sendo um marco no reconhecimento da socioafetividade.
É importante destacar que a possibilidade de inclusão do sobrenome do padrasto ou da madrasta, não representa a destituição do poder do pai biológico ou a exclusão de seu sobrenome. Apresenta o papel de fortalecer os novos arranjos familiares, no sentido de reconhecer a concomitância entre a família biológica e afetiva.
Para que as obrigações constitucionais sejam constituídas, é necessário que esteja presente no registro civil a pluralidade dos vínculos parentais, para que se concretize o reconhecimento da filiação e consequentemente, gere os direitos e deveres entre os membros da relação familiar. Isso porque é fundamental que o registro reflita de forma fidedigna a vida da criança, para que seja garantida a proteção da dignidade da pessoa humana de todos os indivíduos que fazem parte da relação.
Diante do exposto, apesar da multiparentalidade não apresentar um dispositivo expresso que a regule, sua presença na sociedade contemporânea está cada vez mais frequente, sendo regulada não só pela doutrinada, mas também pelo entendimento jurisprudencial que passou a admiti-la como realidade de direito.
3.1 A MULTIPARENTALIDADE DO JULGAMENTO DO RE 898.060 E O PAPEL DO CNJ
Um grande marco para o tema da multiparentalidade, foi julgamento do Agravo Regimental do Recurso Extraordinário de nº 898.060, do STF, tendo como relator o Ministro Luiz Fux, com repercussão geral, em que reconheceu que a existência da paternidade socioafetiva não exime os pais biológicos dos efeitos legais previstos no ordenamento.
É preciso destacar que, diante do julgado, criou-se o Tema de Repercussão Geral nº 622 para aplicação em casos semelhantes que estabeleceu que “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.
Ainda que a discussão voltada à multiparentalidade seja relativamente recente na doutrina e jurisprudência, bem como inexista lei específica sobre o tema, verifica-se que as tratativas quanto ao assunto dentro do ordenamento são bastante avançadas. Não obstante, a evolução do número de casos provocou um movimento de extrajudicialização do direito privado, de forma que provocado pelo IBDFAM, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº63 do Conselho Nacional de Justiça, cujo conteúdo foi posteriormente alterado e aperfeiçoado pelo Provimento nº 83, também do CNJ.
A edição do Provimento nº 63/2017, teve como escopo retirar a restrição da temática do Poder Judiciário, para que fosse possível realizá-la também de forma extrajudicial, no intuito de promover uma desburocratização no processo de regularização do estado de filiação. Dentre os seus requisitos, estavam presentes a comprovação do intuito da posse do estado do filho, reconhecimento livre de vícios e irrevogável.
No ímpeto de aperfeiçoar o conteúdo editado pelo Provimento nº63/17, o CNJ editou o Provimento nº 83/19, que apresenta disposições mais criteriosas e restritivas para garantir maior segurança jurídica ao procedimento. Dessa forma, serão destacadas as principais para facilitar a compreensão.
Primeiramente, é possível destacar a imposição de restrição da idade superior a 12 anos, enquanto antes era permitido o reconhecimento da filiação socioafetiva e multiparentalidade em qualquer idade. Os casos que não se enquadrem a idade estabelecida, devem necessariamente recorrer ao judiciário.
Além disso, foi incluído o art. 10-A que alterou os meios de prova necessários ao reconhecimento, no intuito de buscar por uma abordagem mais objetiva, cabendo ao examinador civil analisar a idoneidade necessária para embasamento dos pedidos. Outra mudança que merece destaque é a inclusão da previsão da intervenção do Ministério Público no procedimento nos casos de tramitação pela via extrajudicial. Dessa forma, o Ministério Público deverá emitir um parecer para verificar se os requisitos foram aplicados, somente devendo o registro ser realizado após sua manifestação favorável. No caso de decisão desfavorável, o caso deve ser levado para o judiciário. É o que dispõe a nova redação do Provimento nº 63/2017.
Ademais, o Provimento nº 83/19, trouxe outra modificação no sentido de que só é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado materno ou paterno, e que no caso de inclusão de mais de um ascendente socioafetivo, é preciso que seja realizado pela forma judicial. Isso ocorre para que, não seja burlado o sistema adotivo, em atenção ao princípio do melhor interesse da criança.
3.2 OS EFEITOS JURÍDICOS DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
Conforme observado, a nova ordem jurídica consagrou como fundamental o direito à convivência familiar, sendo adotado pela doutrina o princípio da proteção integral. Dessa maneira, transformando a criança como um sujeito de direito, prevalecendo a prioridade à dignidade da pessoa humana e abandonando a visão patriarcal de família. Sendo proibida qualquer discriminação quanto a filiação, sendo assegurados os mesmos direitos e qualificações aos filhos que apresentam laços sanguíneos (CASSETARI, 2015, p. 15).
O princípio da proteção integral ou do melhor interesse do menor está previsto pela CRFB/88 de forma expressa em seu art. 277. Dessa forma, é estabelecido pelo texto legal que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao jovem e ao adolescente, com absoluta prioridade os direitos indicados, sendo um princípio que apresenta papel fundamental para a estruturação dos novos arranjos familiares.
Em um passando próximo, quando existiam conflitos entre os interesses dos familiares, eram priorizados os interesses dos pais em detrimento dos filhos, sendo as crianças consideras um mero objeto de decisão. Em contraponto, hoje em dia, a criança passou a atuar como protagonista, sendo sujeito de direito, de forma que o princípio da proteção integral passou a ser o ponto central para o reconhecimento das filiações socioafetivas e de multiparentalidade (LÔBO, 2008).
Diante da análise doutrinaria e jurisprudencial, foi possível verificar que o melhor interesse da criança é o princípio norteador do reconhecimento da multiparentalidade, de forma que todas as discussões são formadas entorno da busca pela situação mais favorável para o desenvolvimento da criança.
Vale destacar que é preciso analisar cada caso concreto, a realidade em que a criança está inserida e suas especificidades, pois só assim será possível avaliar a viabilidade do reconhecimento da multiparentalidade, vez que não há como se estabelecer um padrão pré estabelecido para a aplicação do princípio (PEREIRA, 2012).
Diante do reconhecimento dos novos arranjos familiares que se afastam da ideia de proteção patrimonial para objetivar a proteção das pessoas e a valorização das relações, é preciso que sejam analisadas as consequências provocadas no campo jurídico.
Dessa maneira, uma vez reconhecida a presença da posse de estado de filho com mais de duas pessoas, todos devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar. Isso porque, não seria possível de resguardar de outra maneira, o melhor interesse do menor e assegurar a sua proteção integral. É estabelecido pelo o enunciado nº 9 do IBDFAM: “A multiparentalidade gera efeitos jurídicos” (DIAS; OPPERMAN, 2015).
O reconhecimento da multiparentalidade nada mais é do que legitimar o que ocorre no mundo dos fatos, afirmado pelo direito à convivência e permitindo a coexistência entre a paternidade socioafetiva e da multiparentalidade, sendo preciso analisar os efeitos gerados por este reconhecimento como veremos a seguir.
Um dos efeitos produzidos pelo reconhecimento da multiparentalidade que merece destaque é a inclusão do nome do novo cônjuge na certidão de nascimento do filho do outro companheiro. A alteração do registro para a inclusão do nome de todos os pais e mães, somente trazem benefícios aos filhos estando de acordo com o princípio do melhor interesse do menor.
O nome é um direito da personalidade que está previsto pelo Código Civil de 2002, dos seus artigos 16 a 19, sendo intransmissível, irrenunciável e vitalício, sua inclusão forma uma prova incontestável de todos os direitos inerentes a relação de parentesco (POVOAS, 2012, p. 79). Dessa forma, desde o advento da Lei º 11.927/2009, que alterou o art. 57, §8º, da Lei de Registros Públicos, já existe a possibilidade de cumulação de patronímicos, pois autoriza a averbação do nome da família do cônjuge ou companheiro do pai e da mãe, demostrando a importância do afeto na relação familiar.
O direito a alimentos é uma garantia fundamental de toda criança ou adolescente, sendo devidos pelos parentes, cônjuges ou companheiros tendo como finalidade fornecer o básico para a subsistência, abrangendo o indispensável para seu sustento como: vestuário, habitação, assistência medica, instrução e educação (GONÇALVES, 2017). Dessa forma, sendo reconhecida a multiparentalidade o menor pode requerer alimentos de qualquer um dos pais, sendo responsabilidade reciproca de todos, sempre atendendo ao princípio de melhor interesse ao menor.
É preciso destacar que o art. 1.694 do Código Civil estabelece a ideia de solidariedade recíproca entre os parentes, ou seja, no caso do reconhecimento da multiparentalidade, pode poderá ser exigido a toda família socioafetiva.
Ademais, a obrigação de prestar alimentos deriva das relações de parentesco, dessa forma, no tocante às relações socioafetivas, o Enunciado 341 do Conselho da Justiça Federal foi claro ao dispor que estas são suficientes a gerar a obrigação alimentar: “Para os fins do artigo 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar.”
Além disso, é preciso destacar que por se tratar de responsabilidade recíproca, os filhos passam a apresentar a mesma obrigação quanto todos os pais, dessa forma, os pais socioafetivos também podem pedir alimentos aos seus filhos. É possível concluir que, ao se reconhecer a multiparentalidade, tanto os filhos biológicos quanto os socioafetivos apresentam o mesmo direito a alimentos. Podendo pleitear em face de todos os pais e todas as mães, sem prejuízo das outras pessoas previstas no Código Civil, como por exemplo, os avós.
De acordo com art. 1.583 do Código Civil, a guarda pode ser compartilhada ou unilateral, devendo buscar sempre pelo melhor interesse do menor. Dessa forma, adota a guarda compartilhada, no caso do reconhecimento da multiparentalidade, os pais tanto biológicos como afetivos, irão exercer aguarda conjunta de maneira equilibrada e responsável. O jurista Christiano Cassettari (2015, p. 126) esclarece:
Assim sendo, verifica-se que tanto o pai quanto a mãe socioafetivos terão direito à guarda do filho, pois não há preferência para o exercício da guarda de uma criança ou adolescente em decorrência da parentalidade ser biológica ou afetiva. Pois o que deve ser atendido é o melhor interesse da criança.
Contudo, nos casos em que se pretende fixar a guarda de forma unilateral, é preciso verificar quem apresenta maior afinidade com a criança, assim como condições para cria-la, com o intuito de resguardar melhor interesse da criança.
Por sua vez, os pais que não apresentarem a guarda dos filhos, podem visitá-los, de forma acordada entre os pais ou conforme fixado pelo juiz, assim como fiscalizar sua manutenção e educação (CASSETARI, 2015, p. 127). Nesse sentido, uma vez reconhecida a multiparentalidade, todos os pais terão direitos sem distinção entre biológicos e afetivos, conforme mencionado por Christiano Cassettari (2015, p. 127):
Não há preferência para o exercício do direito de visita de uma criança ou adolescente em decorrência da parentalidade ser biológica ou afetiva, pois o que deve ser atendido é o melhor interesse da criança, lembrando que tal direito é extensivo, também, aos avós, não apenas biológicos, mas também, socioafetivos.
Conforme previsto pelo art. 1.589 do Código Civil, “o pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordem com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.
No que se refere ao direito sucessório, aplicasse aos filhos socioafetivos as mesmas regras aplicáveis aos filhos biológicos, em consonância com a ordem hereditária prevista pelos dos artigos 1.829 a 1.847 do Código Civil em que os descendentes figuram na primeira classe de chamamento. Nessa perspectiva, as linhas sucessórias devem ser estabelecidas em conforme o número de genitores, não devendo existir preferências perante os biológicos e os afetivos.
É importante destacar que a multiparentalidade deve sempre caminhar junto com os princípios constitucionais, por conta disso, jamais poderá existir distinção no tratamento entre os filhos, uma vez que é previsto de forma expressa no texto constitucional a igualdade jurídica entre todos os filhos.
Isso posto, não há como falar em distinção no tratamento da filiação socioafetiva ou da multiparentalidade no direito sucessório, devendo ser respeitados os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, assim como do melhor interesse do menor. Assim, os filhos consanguíneos, bem como os filhos socioafetivos, apresentam os mesmos direitos sucessórios e ocupam a posição de herdeiros necessários.
Por todo exposto, é possível compreender que o instituto familiar sofreu e ainda sofre alterações em sua estrutura interna e externa, pois está diretamente relacionado a própria evolução social.
Dessa forma, o modelo patriarcal e matrimonial em que os interesses patrimoniais se sobrepunham a qualquer outro, foram sendo substituídos por um novo vínculo agregador, deslocando-se do matrimônio para dar espaço para o afeto como ponto central para determinação da filiação.
Nesse contexto, é essencial destacar o papel da CRFB/88, que consagrou dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais, levando essa conquista para refletir em todo o ordenamento brasileiro. A afetividade passou a despontar como um dos elementos norteadores para o reconhecimento de laço familiar, de modo que, independente das formas de família, é fundamental que os vínculos afetivos estejam presentes, visando salvaguardar o bem estar emocional e identidade do menor. A filiação socioafetiva é caracterizada na posse do estado do filho, quando existe o comportamento de pai e mãe com o filho em uma convivência estável e afetiva. Diante disso, a filiação deixa de ser apenas biológica e atrelada aos laços sanguíneos, passando a ser consolidada nos laços de afeto.
Além disso, cumpre mencionar que uma vez comprovada a filiação socioafetiva, devem ser resguardados todos os direitos e qualificações dos filhos biológicos, sendo proibida qualquer tipo de discriminação quanto a filiação.
O reconhecimento da filiação socioafetiva, deu espaço para um novo fenômeno jurídico, denominado como multiparentalidade, que nada mais é do que uma só pessoa ter, concomitantemente, mais de um vínculo parental paterno e/ou materno. A multiparentalidade é um instituto utilizado para preservar o direito de todos os envolvidos na relação, assim como garantir o melhor interesse do menor e a igualdade entre as filiações, uma vez que não existe hierarquia entre as classificações, sendo viável a coexistência de forma harmoniosa entre os múltiplos elos.
Nesse prisma, conforme observado no presente trabalho o julgamento do Recurso Extraordinário 898.060 pelo STF, foi fundamental para o tema, uma vez que fixou a tese de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. Por fim, é importante destacar que os reflexos jurídicos decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade gerarão efeitos igualitários para todos os filhos, sendo vedada qualquer distinção, conforme previsto no art. 1.596 do Código Civil. Diante do exposto, é possível concluir que o reconhecimento da multiparentalidade é perfeitamente viável e embasado nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse do menor.
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Acadêmica do 9º período do curso de Direito no Centro Universitário São Lucas Ji-Paraná – UniSL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARREIRO, VALERIA BATISTA. Direito de família: multiparentalidade e seus efeitos jurídicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2020, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55698/direito-de-famlia-multiparentalidade-e-seus-efeitos-jurdicos. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
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