RESUMO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar que a imposição legal do regime de separação obrigatória de bens para as pessoas septuagenárias por meio do artigo 1641, II, do Código Civil é inconstitucional por gerar uma situação discriminatória para os septuagenários. Essa discriminação do artigo 1641, II, Código Civil é incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana disposta na Constituição Federal. Mesmo que o estatuto do idoso tenha reconhecido a sua vulnerabilidade social, entendemos que tal proibição legislativa significa ignorar o princípio da boa-fé objetiva do negócio jurídico disposto por meio do art.113, CC/2002 – concernente ao casamento desses idosos - além de privá-los de sua liberdade para tomar suas próprias decisões em relação as escolhas de regime de casamento
Palavras-chave: família, afetividade, bens, septuagenários, violação, direitos fundamentais
ABSTRACT: The purpose of this article is to demonstrate that the legal imposition of the mandatory separation of assets for septuagenarian persons through article 1641, II, of the Civil Code is unconstitutional because it generates a discriminatory situation for septuagenarian people. This discrimination of article 1641, II, Civil Code is incompatible with the principle of human dignity provided for in the Federal Constitution. Even if the statute of the elderly has recognized their social vulnerability, we understand that such a legislative prohibition means ignoring the principle of objective good faith in the legal business provided by art.113, CC / 2002 - concerning the marriage of these elderly people - in addition to deprive them of their freedom to make their own decisions regarding marriage regime choices.
Keywords: family, affectivity, assets, septuagenarians, violation, fundamental rights
INTRODUÇÃO
O direito à liberdade é um direito fundamental a concretização da dignidade da pessoa humana, sendo que este perpassa inúmeras coisas, como a liberdade de expressão ou sexual, por exemplo.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 e as demais leis não cria entraves para que as pessoas se relacionem entre si, desde que esta relação seja consentida e dentro dos limites legais para que esta não seja considerada crime, por exemplo.
No caso dos envolvimentos entre pessoas maiores, plenamente capazes e que não tem algum tipo de parentesco entre si, a idade não deveria ser um entrave a esta união. As paixões não se resumem sempre a aspectos necessariamente físicos, como o são a aparência, a idade ou o sexo da pessoa.
Assim, entende-se possível a paixão entre pessoas de idades diferentes e que este relacionamento seja composto de confiança, respeito e amor. Estes relacionamentos podem ser sérios, que resultaria em um casamento.
Hoje, no entanto, estes casais enfrentam um problema: em sendo o idoso septuagenário, não há possibilidade de outro regime senão o de separação obrigatória de bens, espécie de “castigo” dado pelo legislador a casamentos que o Estado considera impróprios.
Assim, o presente artigo busca tratar a respeito da inconstitucionalidade da imposição legal do regime de separação obrigatória de bens aos septuagenários, da maneira que será exposta a seguir.
No item 1, o casamento no código civil, faremos inicialmente um tópico dedicando-nos a conceituação de família pela doutrina e de que maneira a família e o casamento se relacionam, falando também a respeito do conceito e natureza jurídica do casamento, além de verificar as teorias a respeito dele.
O item 2 preocupa-se com a definição dos conceitos e tipos de bens, verificando também se existem princípios que regem os regimes de bens. O item 2 também aborda a respeito dos casos em que o regime de separação de bens é obrigatório pela lei.
Após isso, pretende-se analisar da forma propriamente dita o assunto do artigo, destacando a violação do direito de liberdade da pessoa septuagenária a partir do item 3, buscando compreender a proibição e verificando se existem maneiras de resolver controvérsias judiciais em razão da imposição do regime de separação obrigatória para casamentos com pessoas septuagenárias.
Para isso, será trabalhado no item 3 a inconstitucionalidade do inciso II do artigo 1641 do Código Civil, além da existência de um remédio provisório, a aplicação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal e a sua controvérsia na doutrina.
1 O CASAMENTO NO CÓDIGO CIVIL
No presente tópico, teceremos algumas considerações a respeito do casamento no Código Civil, desde os conceitos de família e sua relação com o casamento – uma vez que a entidade familiar também pode ser formada por meio do casamento.
Com isso, pretende-se que o leitor entenda a importância da aplicação destes conceitos no caso dos casais com pelo menos uma pessoa septuagenária, vez que a aquisição de bens é consequência comum da formação de família.
Por meio dos autores apresentados e das considerações aqui feitas, gostaríamos de demonstrar de que maneira essa proibição fere o princípio constitucional da isonomia e acaba causando a discriminação para com o idoso septuagenário.
1.1 Conceito de família e sua relação com o casamento
Antes de conceituarmos o casamento, é necessário compreendermos os conceitos de família e a sua relação com o casamento. Desta maneira, faremos algumas reflexões a respeito do conceito de família e da sociedade conjugal.
Segundo Nogueira (2007), a entidade familiar inicia-se com a união dos cônjuges, aumentando conforme o casal tem filhos - vínculos sanguíneos - e esses filhos vão renovando esse ciclo, trazendo cada vez mais pessoas para o seio familiar:
A entidade familiar de início é constituída pela figura do marido e da mulher. Depois se amplia com o surgimento da prole. Sob outros prismas, a família cresce ainda mais: ao se casarem, os filhos não rompem o vínculo familiar com seus pais e estes continuam fazendo parte da família, os irmãos também continuam, e, por seu turno, casam-se e trazem os seus filhos para o seio familiar.
A partir daí, Nogueira (2007) conceitua família como um grupo formado por indivíduos que se unem por meio da afinidade ou laços de sangue:
A família é uma sociedade natural formada por indivíduos, unidos por laço de sangue ou de afinidade. Os laços de sangue resultam da descendência. A afinidade se dá com a entrada dos cônjuges e seus parentes que se agregam à entidade familiar pelo casamento.
A conceituação por Nogueira (2007) vai de encontro à jurisprudência pátria, que entende que a família tem como fundamento basilar não tão somente os laços sanguíneos, como também os de afetividade – descrita como afinidade pela autora.
Calderón (2017) entende que conforme os anos se passam e os antigos paradigmas são sendo superados, há uma tendência natural à mudança de pensamentos. Novas necessidades e realidades vão sendo criadas e com elas novas necessidades vão surgindo, sendo necessário que o Direito se adapte a essas novas necessidades em decorrência dessas realidades sociais:
A família contemporânea vivencia um processo de transição paradigmática, pelo qual se percebe um paulatino decréscimo de influências externas (da religião, do Estado, dos interesses do grupo social) e um crescente espaço destinado à realização existencial afetiva dos seus integrantes. No decorrer da modernidade o espaço conferido à subjetividade e à afetividade alargou-se e verticalizou-se a tal ponto que, no último quarto do século XX, já era possível sustentar a afetividade como vetor das relações pessoais.
(...)
O Direito, permeável à realidade que lhe é subjacente, sofreu o influxo dessa mudança, sendo cada vez mais demandado por conflitos indicadores deste outro cenário que se apresentava. A cultura jurídica brasileira, entretanto, ainda está baseada em um Direito de matriz moderna, precipuamente formal, com forte relevância da lei na definição do que se entende por Direito, em vista do que o diálogo com esta pulsante realidade em movimento não foi tranquilo.
Dessa maneira, sendo parte do ordenamento jurídico, o direito de família não é diferente: cada vez mais vemos novos tipos de formações de grupos familiares, formados em decorrência de diferentes relacionamentos afetivos e o direito de família precisa se adaptar a essas novas formações familiares.
Podemos depreender, então, que a família tida como “tradicional”, já não é mais a única possibilidade de família. Assim, houve uma mudança na interpretação legal nos conceitos dispostos previamente por lei.
Essa mudança de paradigma da família brasileira pode ser visualizada principalmente por meio da interpretação do artigo 226 da Constituição Federal, em que os juristas reconhecem a pluralidade que a família possui na realidade concreta e puderam incluir os mais variados tipos de família.
De famílias monoparentais a famílias constituídas pela união homoafetiva, essas novas formações não eram pensadas como possíveis até um passado recente, muito pela cultura conservadora da sociedade da época.
Em se tratando de família, não podemos deixar de relacioná-la com o casamento, principalmente levando em consideração o modelo de entidade familiar dita como “tradicional” por muitos anos, que seria predominante e favorecido pelo Direito por muitos anos, uma vez que não havia reconhecimento de outros tipos familiares.
Segundo Souza (2009), a doutrina pátria reconhece que o casamento é um dos principais fatores lembrados quando falamos em família, ressaltando, no entanto, que o pluralismo familiar rompeu com a família constituída unicamente pela união por meio do casamento:
Quando se pensa em família, lembra Maria Berenice Dias, sempre se pensa em “um homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de filhos”.
Esta realidade se modificou. É o surgimento de novos modelos de famílias. Esclarece: “O pluralismo das relações familiares – outro vértice da nova ordem jurídica – ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento, mudando profundamente o conceito de família.
A consagração da igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na família.”
Um dos principais fatores legais para mudança de paradigma legal a respeito das famílias foi o princípio da dignidade da pessoa humana, que entendeu que o casamento legalmente constituído não era, necessariamente, requisito basilar para a constituição das famílias.
Sendo, no entanto, a modalidade de família ainda mais conhecida e difundida, trabalharemos nos próximos tópicos a respeito do casamento e suas consequências patrimoniais.
Em seguida, refletiremos a respeito dos fundamentos legais que permitem que os idosos septuagenários sejam discriminados, uma vez que suas escolhas para regime de bens não são respeitadas em decorrência da imposição legal do regime de separação total de bens.
1.2 Conceito e natureza jurídica do casamento
O conceito de casamento é polêmico na doutrina. Isso porque ele tem três teorias para sua definição: a teoria contratualista, a teoria institucionalista e a teoria eclética.
Segundo Diniz (2007, p.35) o casamento pode ser definido como “vínculo jurídico entre homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família”.
Entendemos que esse conceito precisa de alguma complementação, visto as transformações da sociedade.
Nesse sentido, Gonçalves (2012, p.39) entende que “o casamento, como todas as instituições sociais, varia com o tempo e os povos”. Feito essa complementação, cabe salientarmos a importância de o casamento não ser apenas uma instituição “quadrada”, em um padrão específico de pessoas: ele abrange aqueles que dele querem se utilizar, desde que não haja algum impedimento legal.
A partir dessas considerações, é importante discutirmos a respeito das teorias que levam a compreensão do casamento no direito brasileiro. São três: a teoria contratualista, a teoria institucionalista e a teoria mista ou eclética.
O casamento, por meio da teoria contratualista – ou individualista – seria mais bem definido como um acordo de vontades, onde as partes interessadas concordam em viver uma vida juntos e ter todos os direitos e obrigações dispostos nos artigos 1565 e seguintes um para com o outro.
Segundo Garcia (2018), no âmbito da teoria contratualista, o casamento poderia ser definido como um negócio jurídico do direito de família, por possuir rito solene e autonomia de vontade:
A teoria contratualista entende a união em casamento, como um negócio jurídico de direito de família, de natureza contratual, ou seja, tem a forma escrita em lei, com um rito solene de celebração, em que os nubentes declaram a vontade em adotar um determinado regime de bens, aqui prevalece a autonomia da vontade, sendo assim a declaração dos nubentes constituem o casamento e o juiz apenas tem a função homologatória do ato.
Já na teoria institucionalista, prevaleceria a ideia de que o casamento é uma espécie de instituição social, onde não haveria tal liberdade pregada pela teoria contratualista, vez que o casamento seria a célula mater da sociedade e, por conseguinte, de interesse público.
A teoria institucionalista por adotar as normas legais, o casamento é regulado pela lei. Assenta-se na convicção de que o casamento é a “célula mater” da sociedade, e de interesse público, assim, a instituição do casamento dá-se por ação do juiz. Não cabe nenhuma interferência dos nubentes, salvo, para escolher o regime e exarar a sua declaração de vontade. (GARCIA, 2018)
Nesse teor, a teoria mista ou eclética entende que o casamento não é tão somente um negócio jurídico de direito de família nem somente uma instituição social, mas os dois.
Os autores que defendem a teoria mista entendem que o casamento possui as duas características: não seria tão somente uma entidade, uma instituição social, por se tratar da célula mater da sociedade, mas também não seria apenas uma espécie de negócio jurídico, com algumas solenidades especiais.
Nesse caso, por ser a primeira instituição social a qual o indivíduo se conecta e ao mesmo tempo possui como condição de validade um rito solene legalmente instituído, a corrente mista entende que o casamento seria essa mistura entre as duas correntes anteriores, e que uma relação combinaria com a outra.
Lendo o Código Civil cominado com a Constituição Federal, percebe-se que o legislador adotou a posição da teoria mista para o casamento, por meio do art. 226 da Constituição Federal: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” e do artigo Art. 1.511 e seguintes, com a seguinte redação: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.”
É importante salientar que os próximos artigos do Código Civil tratam a respeito das incapacidades e impedimentos para se casar, trazendo também as demais exigências legais para a concretização deste casamento.
Nesse sentido, cabe a discussão do próximo tópico a cerca do regime de bens, que disciplina a consequência lógica da união e posterior constituição de família: adquirir bens.
2. Regime de bens: conceito e tipos
O regime de bens pode ser definido, de maneira muito suscinta, como a maneira que o casal encontrará para dividir os bens adquiridos no decorrer do casamento, e pode ser dividido em quatro tipos principais de regimes constituídos pela lei: o regime de comunhão parcial de bens que, diga-se de passagem, é o mais utilizado pelos casais hoje, o regime de comunhão universal de bens, o regime de separação de bens e o regime de participação final nos aquestos.
Nesse sentido, cabe apresentarmos algumas posições doutrinárias a respeito do tema. Silva Neto (2011) nos traz uma definição didática a respeito do tema em tela, além de nos demonstrar a importância do regime de bens dado o efeito jurídico de caráter patrimonial que o casamento proporciona a aquele que se utiliza desse instituto jurídico:
Os regimes de bens constituem, na concepção de Caio Mário [02], princípios jurídicos que disciplinam as relações econômicas entre os cônjuges enquanto perdura o casamento. São diretrizes que conduzem e regulam as relações pecuniárias que dizem respeito ao patrimônio dos cônjuges.
Sabe-se que o casamento apresenta efeitos jurídicos de duas ordens: uns de caráter pessoal, outros de caráter patrimonial. É com relação a este último aspecto que se encaixa a discussão sobre regime de bens, sendo imprescindível para a convivência financeiramente sadia dos consortes.
Albuquerque (2016) entende que o regime de bens seria “conjunto de regras que disciplinam domínio e administração de bens dos cônjuges ou dos conviventes.
Se aplica ao casamento e à união estável”. Albuquerque (2016) salienta, ainda, que esse conceito está diretamente ligado a dois princípios. São eles a variedade dos regimes e a liberdade de escolha dos regimes, conforme podemos ver a claramente seguir:
princípio da variedade dos regimes: o CC prevê 4(quatro) espécies de regimes. Se os noivos querem escolher um dos regimes, tem que escolher seu pacto antenupcial sob pena de, se não o fizerem, vigorar o regime legal (comunhão parcial de bens). Se quiserem os regimes de comunhão universal, separação total ou participação final nos aquestos, após o casamento registra no cartório de imóveis o seu regime matrimonial de bens. princípio da liberdade de escolha dos regimes: os artigos 1639 e 1640 permitem que o casal opte pelos regimes que o CC regula, feito no processo de habilitação (se quiserem outro que não o parcial, faz o pacto e ai leva ao cartório de registro civil informando que fez escolha de outro regime).
Assim, salienta-se a liberdade – até então - de o casal escolher o regime ao qual gostaria de reger seus bens, a partir do princípio da liberdade de escolha dos regimes, como trazido por Albuquerque (2016).
Esse princípio, no entanto, não é atingível a todos os casais. Isso porque existem alguns casos específicos onde o casal não pode ter a liberdade de escolha do seu regime, em decorrência de algum fato considerado como juridicamente relevante pelo legislador.
No tópico a seguir, trabalharemos mais a respeito dessas situações em que o casal não pode escolher seu regime de bens, trabalhando a respeito dos regimes obrigatórios no âmbito do casamento.
2.1 Regimes obrigatórios – casos em que a separação total de bens é legalmente instituída.
No presente tópico, nos ateremos ao regime ao qual nos referimos no título do artigo: a separação total de bens. A utilidade deste tópico é o de demonstrar ao leitor as situações em que este regime é legalmente imposto aos interessados em casar-se nessas situações, espécie de “castigo” a esses particulares, conforme crítica apresentada por DIAS (2013).
Segundo o artigo 1641, Código Civil, a obrigatoriedade de casamento no regime definido por lei decorre de três situações bem específicas. São elas aqueles que não observam as causas suspensivas do casamento, aqueles que dependem de suprimento judicial para se casar e das pessoas maiores de 70 anos, conforme podemos ver a seguir:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
Ao observar o referido artigo e o inciso a que se refere o casamento de pessoa maior de 70 anos, torna-se importante destacar que este inciso foi adicionado pela lei 12.344/2010.
Antes dessa alteração legal, a idade exigida para a adoção de regime obrigatório de separação de bens era de 60 anos de idade, tendo esta exigência vigorado até 2010.
Talvez essa alteração legislativa, de 60 para 70 anos, possa nos denotar que o próprio legislador acredita em uma possível falta de razoabilidade em impor a essas pessoas um regime obrigatório de divisão de bens, indo contra a liberdade de escolha dos idosos e, indo mais além, gerando discriminação para com essas pessoas, ferindo, inclusive, preceitos constitucionais como a isonomia e o direito à propriedade dessas pessoas, por exemplo.
3. VIOLAÇÃO DO DIREITO DE LIBERDADE DA PESSOA SEPTUAGENÁRIA
A Constituição Federal, por meio do princípio da igualdade, dispõe que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Também dispõe, no artigo 5°, um rol de direitos fundamentais: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.
Como o presente artigo tem como principal objetivo discutir a respeito da liberdade de escolha da pessoa septuagenária, levando em consideração que o direito de liberdade é muito amplo e existe em vários aspectos da nossa vida, desde a liberdade de locomoção e a de escolha, tornou-se útil a
Sobre a escolha, o casamento não deixa de assim ser: a parte pode escolher a pessoa com a qual mais se identifique e queira constituir família para levar uma vida juntos e construir várias coisas, entre as quais o patrimônio.
O Código Civil, por meio do artigo 1511, estabelece o casamento como “comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.
Há discussões doutrinárias acerca da natureza jurídica deste, onde parte dos doutrinadores a consideram como negócio jurídico conjugal (teoria clássica), como instituição (teoria institucionalista) ou reconhecendo como ambas as coisas (teoria mista/ecléctica).
Adotando a teoria mista, percebe-se que o casamento é um ato complexo, pois divide-se em duas fases:
1) liberdade de escolha do cônjuge, regime de bens e forma de celebrar o contrato (civil ou religiosamente);
2) após o casamento, submissão as regras de direito.
Ocorre que, no caso de idosos, não há liberdade de escolha de regime de bens: eles devem casar-se em regime de separação obrigatória de bens, obedecendo além do disposto no Código Civil, as disposições constantes no devido regime de bens.
Aliando este conhecimento ao disposto no código civil por meio do artigo 113, caput, sobre a interpretação no sentido de supor a boa-fé do negócio jurídico conforme os costumes locais, não é razoável que o legislador, como parte do Estado, possa interferir na vontade alheia a contrario sensu dos princípios previamente dispostos.
E é justamente a respeito dessa falta de razoabilidade que discorreremos nos próximos subtópicos deste trabalho.
3.1 Da inconstitucionalidade do artigo 1641, II, Código Civil
O privilégio ao patrimônio em detrimento da liberdade de escolha nos parece uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado na Constituição Federal de 1988.
Para Cunha (2013), o argumento da inconstitucionalidade do inciso II do artigo 1641, Código Civil dá-se, principalmente, em função da aparente cópia deste inciso de um artigo do Código Civil anterior, que na visão da autora não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
Além disso, Cunha (2013) também entende que a os valores dispostos no atual Código Civil são muito diferentes daqueles dispostos no anterior, o que geraria um conflito de interesses:
O artigo 1641, II, do Código Brasileiro de 2002 é cópia do antigo artigo 258, parágrafo único, inciso II, do Código Civil de 1916. O Código de 1916 era tido como um código patrimonialista no sentido de que o código visava a preservar o patrimônio da pessoa.
Sendo assim, é correto afirmar que o patrimônio e sua preservação vinham em primeiro lugar. No entanto, o Código Civil de 2002 tem os seus maiores preceitos na ruptura com o Código Civil de 1916 e sua concepção personalista.
Dessa forma, em razão da ruptura com o Código Civil de 1916, o atual artigo 1641, II, do Código Civil de 2002 não deveria ter sido preservado. Ainda, em detrimento da concepção personalista presente no atual Código Civil, o artigo 1641, II, não deveria ter sido recepcionado, pois, com o advento desse artigo, o patrimônio é mais importante do que a pessoa.
Visa-se à preservação do patrimônio ainda que em detrimento da liberdade de pessoa com idade superior a 70 anos.
A respeito da inconstitucionalidade do inciso II do artigo 1641 do Código Civil, Bordoni (2014) traz que essa medida seria um choque à luz do direito a dignidade da pessoa humana, preceito estabelecido constitucionalmente.
Dessa forma, Bordoni (2014) entende que a imposição deste regime é manifestamente inconstitucional por, entre outros motivos, invadir por demais a privacidade do indivíduo:
Assim, à medida que o artigo 1641, II do Código Civil retira dos idosos com mais de setenta anos a possibilidade de decidir questões patrimoniais referentes ao seu casamento, entra em choque com o postulado da dignidade humana estabelecida no texto constitucional. Tal restrição, convenhamos, é manifestamente inconstitucional, pois fere o princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que comporta uma intervenção na vida íntima do indivíduo, limitando a sua autonomia privada – o que não condiz com a principiologia do Estado Democrático de Direito. (DINIZ, 2011, p.132).
De forma, é imposto o regime da separação legal de bens, que gera a incomunicabilidade absoluta. A intenção do legislador, para a restrição em análise, se sustenta na proteção do idoso contra o interesse meramente econômico de pessoas que quisessem com o mesmo contrair núpcias, como menciona Carvalho Filho (2010, p. 1641) de “uma união fugaz e exclusivamente interesseira” e, na proteção aos herdeiros.
Entretanto, não se pode presumir que o casamento se dará com pessoa de idade diferente e, apenas, por interesse econômico, como também que não haverá esforço mútuo para aquisição e conservação do patrimônio amealhado.
3.2 Remédio provisório para os casos concretos: aplicação da súmula 377, STF
A súmula 377 do Supremo Tribunal Federal dispõe que “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”
Tal súmula traz a importância da comunicabilidade dos bens obtidos durante o casamento, em decorrência do esforço comum. Atualmente, a Súmula 377 ainda tem sido aplicada, ainda que alguns questionem a sua aplicabilidade, uma vez que tal súmula data anterior a Constituição Federal e ao atual Código Civil, que dispõe sobre os regimes de bens atualmente aceitos no direito brasileiro.
A partir dela, os bens adquiridos na constância do casamento seriam divididos entre os cônjuges. Nada mais justo, uma vez que o esforço por parte dos cônjuges teria sido comum e, ao não permitir a divisão de bens, o legislador propicia aos casais dificuldades que não estariam presentes nas demais formas de união estável ou casamento.
Esses “castigos” dados pelo legislador, a fim de desestimular as uniões que o Estado considera como inapropriadas, caracteriza uma intervenção ilegal, uma vez que esta intervenção fere o princípio da mínima intervenção do Estado na formação das famílias.
Como vimos, a aplicação da referida súmula não é assunto apaziguado pela doutrina. A respeito destas controvérsias, o próximo tópico as aprofundará mais e, a partir deste debate, verificaremos qual corrente melhor se aplica, ao menos em tese, aos casos de casamento de idosos septuagenários.
3.2.1 Controvérsias sobre a aplicação da súmula 377, STF
Sobre a separação obrigatória de bens, a súmula de n 377 do STF de 1964 ainda vem sendo aplicada em julgados atuais. Para TOLENTINO (2018), essa aplicação refere-se porque, segundo a súmula, “no regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
Segundo TOLENTINO (2018), tal disposição ainda gera intenso debate entre a doutrina, principalmente por falta de segurança jurídica que para uns a súmula 377 pode representar. Para estes, as decisões pautadas fora do disposto no código civil poderiam ser decididas de formas muito divergentes entre os magistrados em geral.
Ainda segundo Tolentino (2018), existem dois grupos de doutrinadores: aqueles que entendem que a Súmula 377 deve ser aplicada tão somente quando existe comprovação de esforço comum por parte dos cônjuges. Outra parcela de doutrinadores, no entanto, são ainda mais radicais. Para estes, a Súmula 377 não deveria ser aplicada em nenhuma hipótese, uma vez que poderia estimular o enriquecimento ilícito:
Para parte dos doutrinadores, a súmula instiga o enriquecimento ilícito, pois tal entendimento contraria o Código Civil e impõe automaticamente a divisão dos bens adquiridos na constância do casamento, mesmo no regime da separação de bens.
Já para a outra corrente, a súmula só deverá ser aplicada se comprovado o esforço comum dos cônjuges para a aquisição de bens, justificando, desta forma, a respectiva partilha quando da dissolução do casamento ou falecimento do cônjuge, mesmo no regime da separação de bens.
Ao analisar os argumentos levantados por Tolentino (2018), entendemos por razoável a aplicação da Súmula quando comprovado o comum esforço por ambos os cônjuges, uma vez que a sua não aplicabilidade poderia até, de um certo modo, tornar uniões estáveis ou casamentos com pessoas septuagenárias cada vez mais desaconselháveis ou difíceis de serem celebrados, justamente por conta da discriminação que a lei acaba gerando com os septuagenários.
CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 trouxe várias inovações ao direito de família, como o reconhecimento de mais de um tipo de unidade familiar, diferente dos conceitos familiares a muito enraizados em decorrência do Código Civil de 1916, que refletia o caráter patrimonialista e patriarcal que o Estado e a sociedade tinham a respeito da família.
Com este reconhecimento, o Código Civil de 2002 ressaltou a importância da afetividade para as relações familiares, de maneira que esta afetividade se sobrepõe a mera forma que esta família será formada, de uma maneira geral – tal como ocorreu com a possibilidade de reconhecimento da união estável como família, a muito tempo repudiada e conhecida como “concubinato puro”.
É importante ressaltarmos também que, no silêncio do casal, o regime aplicável como regra geral pela legislação brasileira é o regime de comunhão parcial de bens, que vigorará apenas a partir do casamento e que permitirá a divisão dos bens obtidos apenas na constância do casamento, valorizando o esforço comum de ambos os cônjuges.
Embora o legislador, para algumas pessoas, tenha a intenção de não permitir que alguém se apodere dos bens dos idosos, na prática o que acontece é a discriminação para com os idosos septuagenários, que acabam não podendo gerir seus bens da maneira que bem entendem por controle do Estado.
Nesse sentido, torna-se relevante a aplicação da Súmula 377 nos casos em que é comprovado o esforço em comum, para que este idoso possa ter os mesmos direitos dos casais que o legislador não impõe esse ônus, tal como ocorre com os casamentos e uniões estáveis, por exemplo.
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Graduanda do curso de Direito da Faculdade Metropolitana de Manaus – FAMETRO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, Pamela Feitosa de Oliveira. Regime obrigatório de separação de bens para maiores de 70 anos: proteção legal ou violação de direito fundamental? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 nov 2020, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55708/regime-obrigatrio-de-separao-de-bens-para-maiores-de-70-anos-proteo-legal-ou-violao-de-direito-fundamental. Acesso em: 23 dez 2024.
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