RESUMO: A partir da década de 1990, com o surgimento da internet, surgiram novas formas de se comunicar e de se relacionar. Esses novos relacionamentos ocorrem sobretudo nas redes sociais, espaços virtuais nos quais todo indivíduo pode produzir e compartilhar conteúdos. Essa democratização das formas de comunicar foi positiva no sentido de tornar possível a visibilidade de grupos excluídos e oprimidos, mas também teve consequências negativas, como a prática de crimes de ódio. O objetivo geral do presente artigo é analisar o comportamento de indivíduos perante a falsa impressão de proteção que o ambiente virtual traz, tipificando sua conduta e entendendo os melhores meios para se identificar o autor do delito. Os objetivos específicos são definir crimes cibernéticos, definir o marco civil. Para tanto, foi realizado um estudo qualitativo, do tipo revisão de literatura. Os resultados indicam que crimes de ódio na internet são caracterizados de diferentes maneiras pelos legisladores, dada a ausência de leis específicas para a matéria. Conclui-se que são necessárias leis que orientem os legisladores a respeito da qualificação de crimes de ódio na internet e que são necessárias também ações nas administradoras de redes sociais, que foquem na prevenção de tais crimes em suas fontes.
Palavras-chave: Crimes de ódio. Internet. Revisão de Literatura.
ABSTRACT: From the 1990s, with the emergence of the internet, new ways of communicating and relating were emerging. These new relationships occur mainly on social networks, virtual spaces in which every individual can produce and share content. This democratization of ways of communicating was positive in the sense of making possible the visibility of excluded and oppressed groups, but it also had negative consequences, such as the practice of hate crimes. The general objective of this article is to analyze the behavior of individuals before the false impression of protection that the virtual environment brings, typifying their conduct and understanding the best means to identify the offender. The specific objectives are to define cyber crimes, define the civil framework. To this end, a qualitative study was carried out, such as a literature review. The results indicate that hate crimes on the internet are characterized in different ways by lawmakers, given the absence of specific laws for the matter. It is concluded that laws are needed to guide legislators regarding the qualification of hate crimes on the internet and that actions are also needed in the administrators of social networks, which focus on preventing such crimes at their sources.
Keywords: Hate crimes. Internet. Literature review.
Sumário: Introdução. 1. Direito Penal e Crimes da Internet. 2. Direito a privacidade e liberdade de expressão. 3. Discurso de ódio na internet Conclusão. Referência.
INTRODUÇÃO
Estamos numa geração que anda cada vez mais a uma experiência de vida tecnológica mais abrangente, ou seja, uma era em que viveremos mais no meio virtual, e precisamos que o direito esteja presente de maneira efetiva nesse tipo de ambiente. Já está bem disseminado que a internet não é terra sem lei e que assim como no mundo físico, existem regramentos e limites para as nossas ações, mesmo assim, ainda é possível se deparar com situações nas quais existem conflitos e a quebra de limites de direitos. Esse trabalho visa o estudo da liberdade de expressão, de quando ela se torna um crime virtual, contra a honra, de racismo, crime de ódio entre outros que ela alcance, quais as ferramentas que podemos adotar para identificar quem está atrás daquele ambiente virtual e meios de tirar o conteúdo ofensivo da rede havendo a menor exposição possível da vítima.
O objetivo do presente artigo foi analisar o comportamento de indivíduos perante a falsa impressão de proteção que o ambiente virtual traz, tipificando sua conduta e entendendo os melhores meios para se identificar o autor do delito.
O artigo discute a tipificação dos crimes cometidos pela internet no código penal para em seguida definir a liberdade de expressão e discutir como os discursos de ódio são compreendidos pela jurisprudência brasileira e quais as penalidades aplicadas em casos que tiveram relevância midiática e social.
É um estudo relevante levando em consideração que é algo que só tende a crescer com o passar do tempo, uma vida virtual mais ativa requer meios de protegê-la com mais eficácia, garantindo os direitos fundamentais e aplicando as devidas sanções legais aos delitos que ferem direitos de outrem. Apesar de liberdade de expressão ser direito fundamental como todas as características que este possui, a nossa constituição que teve sua construção inspirada na constituição francesa que coloca a dignidade humana como o mais relevante direito a ser resguardado.
Existe um desafio imposto às sociedades contemporâneas que diz respeito ao desenvolvimento digital de sucesso que possa resistir a ameaças cibernéticas, com o conhecimento e as capacidades para maximizar as oportunidades e, ao mesmo tempo, gerenciar os riscos com eficiência.
1 DIREITO PENAL E CRIMES DA INTERNET
De acordo com Fábio Ponte Pinheiro (2013, p.10), no Brasil não há uma legislação específica para punir quem comete crimes no meio virtual. Há um consenso em analisar a situação e enquadrar o infrator, que o autor chama de “pirata eletrônico” em outros delitos. “Por exemplo, quem rouba números de cartão de crédito numa loja virtual, comete estelionato”. O autor também explica a classificação dos crimes virtuais como próprios (são crimes que necessitam obrigatoriamente do computador para serem praticados, como roubo de dados e informações) ou impróprios (quando o computador é usado como um instrumento a mais para prática ilícita de algum crime já tipificado pela lei):
Crimes virtuais próprios: são aqueles em que o sujeito se utiliza necessariamente do computador o sistema informático do sujeito passivo, no qual o computador como sistema tecnológico é usado como objeto e meio para execução do crime. Nessa categoria de crimes, está não só a invasão de dados não autorizados, mais toda a interferência em dados informatizados como, por exemplo, invasão de dados armazenados em computador, seja no intuito de modificar, alterar, inserir dados falsos, ou seja, que atinjam diretamente o software ou hardware do computador e só podem ser concretizados pelo comutador ou contra ele e seus periféricos. Para alguns doutrinadores, como VIANA (2003), trata esse tipo de conduta como próprios: são aqueles em que o bem jurídico protegido pela norma penal é a inviolabilidade das informações automatizadas (dados), (Fundamentos de direito penal informático).
Crimes virtuais impróprios: são aqueles realizados com a utilização do computador, ou seja, por meio da máquina que é utilizada como instrumento para realização de condutas ilícitas que atinge todo o bem jurídico já tutelado. Crimes, portanto, que já tipificados, que são realizados agora com a utilização do computador e da rede utilizando o sistema de informática e seus componentes, como mais um meio para realização do crime, e se difere quanto a não essencialidade do computador para concretização do ato ilícito, que pode se dar de outras formas e não necessariamente pela informática, para chegar ao fim desejado como no caso de crimes como: pedofilia (PINHEIRO, 2013, p.11).
Também há uma classificação para determinar os sujeitos que praticam crimes na internet, como hacker e cracker. Segundo Pinheiro (2013), hacker é uma pessoa que possui amplo conhecimento em informática e sistemas de informação e que conseguem acessar sistemas privados, mas não necessariamente fazem isso de forma ilegal e antiética.
Um hacker é especialista em entrar nos sistemas de outras pessoas sem permissão, geralmente para mostrar a baixa segurança do mesmo ou simplesmente para mostrar que ele é capaz de fazê-lo. Também são conhecidos por gostar de investigar os detalhes dos sistemas operacionais e programas, procurando novas maneiras de aumentar suas capacidades. Hackers são programadores, as vezes obsessivos, que gostam de qualquer disciplina (não só de computação), mas gostam de alcançar um conhecimento profundo sobre o funcionamento interno dos sistemas, de um computador ou uma rede de computadores. Este termo é muitas vezes mal utilizado como pejorativo, quando no último sentido seria mais correto usar o termo "cracker".
O cracker, ainda segundo o autor, é um hacker com intenções destrutivas ou criminosas, um intruso. Um cracker é uma pessoa que tenta acessar um sistema de computador sem autorização. Essas pessoas muitas vezes têm más intenções, em contraste com hackers, e muitas vezes têm muitos meios para entrar em um sistema. Ou seja, é uma pessoa que entra ilegalmente em um sistema de computador para roubar ou destruir informações, ou simplesmente causar desordem. É também chamado cracker quem busca decifrar os esquemas de proteção anticópia de programas comerciais, para poder usar ou vender cópias ilegais.
No Direito Penal, a determinação do direito legal protegido cumpre, entre outros, a função de servir de limite material ao Estado e a base da interpretação jurídica da norma, além de constituir o ponto de partida sobre o qual se baseia. Ergue uma grande parte da sistematização de comportamentos criminosos, porque através dela é permitido ordenar classes e famílias de crimes. Por isso é importante determinar nesta parte quais são os direitos legais que são considerados violados quando falamos de crimes de computador e que, portanto, requerem proteção especial por lei.
Considerar o cibercrime como especialidade da lei penal é uma necessidade diante dos novos desafios da sociedade da informação, no entanto, não significa que esta categoria de crimes viole única e exclusivamente os direitos legais que lhes são próprios e que, consequentemente, outros devem ser excluídos de sua área de atuação, uma vez que deriva das características desses crimes que, além de atentar contra o patrimônio legal da informática, também, na maioria dos casos, deve envolver outros interesses legais tradicionais, como a propriedade, privacidade, etc.
De acordo com Pinheiro (2013), a dificuldade em lidar com esses crimes cibernéticos se deve a pouca divulgação e compartilhamento das informações, ou mesmo porque muitos que foram lesados não denunciam o crime. Como exemplo, ele cita as grandes corporações que sofrem ataques ou invasões virtuais mas preferem não tornar o assunto público por medo de demonstrarem vulnerabilidade na segurança e comprometer seus negócios. Ou ainda, as pessoas físicas que por falta de informação e mesmo de canais adequados para realização de denúncias, acreditam que o crime será impune e não buscam seus direitos. Além disso, o ciberespaço é um território de alcance mundial que dificulta muito o rastreamento dos criminosos, pois essas pessoas podem estar em qualquer lugar e utilizando equipamentos variados para evitar que sejam localizados.
Contudo, o Brasil já avançou no cenário contra crimes cibernéticos com a Lei 12.737/2012, também conhecida como Lei Carolina Dieckmann, como explica Pinheiro (2013, p.14):
Tipifica como crimes infrações relacionadas ao meio eletrônico, como invadir computadores, violar dados de usuários ou “derrubar” sites. O projeto que deu origem à lei (PCL 35/2012) foi elaborado na época em que fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann foram copiadas de seu computador e espalhadas pela rede mundial de computadores. O texto era reivindicado pelo sistema financeiro, dada a quantidade de golpes aplicados pela internet.
O pesquisador também destaca o tipo de punição que os crimes recebem. Aqueles de menor gravidade, tais como invasão de privacidade em dispositivo de informática, podem receber detenção de três meses a um ano e multa. Caso essa invasão ocasione prejuízo econômico ou ainda divulgação, venda e compartilhamento das informações roubadas, a pena pode aumentar para um sexto ou dois terços do estabelecido anteriormente.
As penas também poderão ser aumentadas de um terço à metade se o crime for praticado contra o presidente da República, presidentes do Supremo Tribunal Federal, da Câmara, do Senado, de assembleias e câmaras legislativas, de câmaras municipais ou dirigentes máximos “da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal” (PINHEIRO, 2013, p.15).
Em 2014 também foi aprovado o Marco Civil da Internet, que regulamenta a utilização da internet no Brasil. Agostini (2014, p.69) ressalta que o Marco civil é essencial para a consolidação do debate público e do avanço em políticas públicas sobre segurança cibernética, ainda que não esteja ligado diretamente às estratégias de defesa nacional, porque orienta sobre os “princípios, garantias, direitos, responsabilidades e deveres para usuários e empresas, tratando de neutralidade, privacidade, retenção de informações e dados, entre outros”.
2 DIREITO A PRIVACIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade é uma das principais conquistas da sociedade. A ausência de garantia a liberdade cria uma contexto de total opressão e submissão humana aos desejos de outrem. Ela é um dos direitos fundamentais e está diretamente relacionada a dignidade humana. No entanto, é necessário que a liberdade esteja condicionada a certos limites, que incluem que ela não represente uma violação a outros direitos fundamentais.
A liberdade de expressão é fundamental para a democracia e está garantida no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, de modo a assegurar o direito de expressão de pensamento e de difusão de ideias por indivíduos de quaisquer origens étnicas, sociais e religiões. No entanto, o mesmo documento indica que a liberdade não pode ser usada como motivos para insultar, ofender ou desqualificar outrem. No mesmo sentido a Carta Magna brasileira indica, em seu artigo 220, caput, que todo cidadão tem direito a manifestação do livre pensamento e expressão, mas o parágrafo primeiro indicam que a liberdade de informação jornalística está associada ao direito de vedação do anonimato e inviolabilidade da vida privada e da honra e imagem dos indivíduos.
A legislação brasileira garante que à imagem, honra, intimidade e a vida privada são invioláveis. A Constituição Brasileira diz em seu Artigo 5º, inciso X:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O Ordenamento pátrio garante que a privacidade é um direito basilar contudo, é justamente esse direito que muitas vezes é transgredido na internet. Muitas vezes pessoas, empresas, órgãos governamentais colocam em exposição suas informações na internet seja por falta de conhecimento e de prática no uso da mesma ou por fraudes criadas por indivíduos para roubar informações, sendo assim na maioria das vezes isso facilita a intervenção de hacker ou crackers pessoas que criam programas e outros artifícios para roubarem, fraudarem e invadirem os computadores dos usuários.
Um dos principais requisitos com a promulgação da Lei 12965/14 conhecida como Marco Civil da Internet foi em relação a privacidade das informações dos usuários. Os artigo 10º e 11º do Marco Civil tratam dos direitos relacionados à privacidade dos usuários. O artigo 10º diz, que um provedor não pode violar o direito à intimidade e vida privada dos seus usuários ou seja, não pode divulgar seus dados ou ainda monitorar os dados trafegados.
Certamente com o grande avanço da internet por todo o nosso território, a criação de regras, deveres e direitos foi de grande relevância para a proteção da privacidade das pessoas resguardando também o seu direito a liberdade de expressão.
A privacidade das pessoas é um direito fundamental, protegendo assim que sua intimidade e vida privada não sejam expostas a terceiros sem o seu consentimento. A Lei 12965/14, do Marco Civil protege esse direito no mundo virtual dos usuários que utilizam a rede online esta Lei também protege o usuário, pois proíbe que os provedores de acesso divulguem os dados dos mesmos ou fiscalizem os dados trafegados. Sendo assim, no nosso ordenamento jurídico existe a regulamentação do direito à liberdade de expressão e à proteção da privacidade na internet, tanto na Constituição, como pela Lei do Marco Civil da Internet.
3 DISCURSO DE ÓDIO NA INTERNET
O Ministério da Justiça brasileiro tem constituído um grupo de trabalho interministerial, focado no monitoramento e mapeamento dos crimes contra os direitos humanos no Brasil. Esse grupo de trabalho atua de maneira cooperativa com a Polícia Federal na identificação de indivíduos e grupos de indivíduos que atuam na disseminação de discursos de ódio em redes sociais (STEIN; NODARI, SALVAGNI, 2018).
Martins (2019) afirma que o termo discurso de ódio é conhecido desde a década de 1980 e utilizado em estudos focados na sensibilização da sociedade contra a expansão do fenômeno do discurso de ódio nas sociedades contemporâneas. O discurso de ódio é considerado pela autora como qualquer manifestação O tema passou a ser tratado mais especificamente a respeito das redes sociais a partir da década de 2010, com o crescimento das redes sociais e, no Brasil, aumentou consideravelmente em consequência dos debates políticos que se acirraram no país.
O desenrolar das recentes disputas políticas – sejam nacionais (p. ex., desde as eleições presidenciais brasileiras de 2014, de marcado antagonismo entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves, até a conflagração do processo de impeachment da presidente eleita, em 2016) ou internacionais (...) – demonstram que a arena de tais disputas está se ampliando, vindo a ingressar em território virtual. Nesse patamar, observa-se que o confronto, ora firmado sobre dimensão simbólica, traduz-se por vezes em ataques a grupos e/ou indivíduos por conta de sua religião, cor de pele, região de proveniência, enfim, por razões de identidade. Trata-se de fenômeno dia a dia mais expressivo e nocivo à convivência com a alteridade: o discurso de ódio em redes sociais (MARTINS, 2019, p. 1).
Martins (2019) dedicou a sua pesquisa a investigar o caso de M., uma estudante moradora de São Paulo que insultou nordestino no Twitter ao publicar a frase “Nordestisto ( sic ) não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado!”, em resposta a vitória da presidenta Dilma Roussef no segundo turno das eleições. A autora discute que esse tipo de discurso busca deslegitimar a existência do indivíduo, por meio de violência. Ao outro é negado o direito de existir como igual, como também a sua singularidade. Essa reação de M. não pode ser analisada somente sob o viés individual. Ela representa a ideia consolidada no país de que existe um Nordeste atrasado em dicotomia com um Sudeste desenvolvido.
(...) quando é mencionado que a morte de um nordestino constituiria “um favor a São Paulo”, M. está se relacionando mais estreitamente com a contribuição das antigas elites nordestinas para certo desdobramento do “discurso da seca”, qual seja, a pecha de que o Nordeste seria uma região de atraso em comparação com as demais (sobretudo, com o Sudeste). Essas elites, insatisfeitas com a diminuição de seu capital pelo desvio do foco de produção do açúcar nordestino para o café paulista, perceberam na divulgação da seca uma oportunidade de captação de novas verbas estatais (MARTINS, 2019).
O discurso de ódio não nasce de maneira espontânea, ele somente ganha maior projeção nas redes sociais devido ao maior alcance. Ele também não tem uma definição clara em termos de direitos. Os direitos humanos internacionais e as políticas nacionais divergem, refletindo tradições específicas para cada país. Um exemplo frequentemente citado, os Estados Unidos aplicam uma atitude mais "tolerante", protegendo o princípio da liberdade de expressão, consagrado na primeira alteração do Constituição dos EUA. No entanto, no Brasil, discurso de ódio abrange qualquer forma de expressão que justifique ou espalhe o ódio racial, xenofobia, o antissemitismo ou qualquer forma de ódio baseado na intolerância, incitação ou defesa.
Alguns grupos são explicitamente protegidos por lei por causa de suas características e identidades específicas: étnicas, religiosas ou sexuais. A capacidade de avaliar a periculosidade potencial de certas observações hostis ou desqualificantes às vezes dão origem a dúvidas e disputas.
O Ministério Público de São Paulo, na ocasião relatada por Martins (2019) denunciou a ré por infração ao artigo 20, parágrafo 2º da Lei n. 7.716/1989, que qualifica como crime de discriminação realizado por meio de meios de comunicação a prática ou indução a ato de discriminação de qualquer natureza. Observa-se que a decisão da juíza contribuirá com a legitimação de uma queixa relacionada ao reconhecimento do outro com indivíduos de direitos.
A proliferação desse fenômeno tem acentuado a necessidade de regulação das relações online; mas alguns contestam a legitimidade de tal abordagem, citando os aspectos do direito a liberdade de expressão. No caso de M, a defesa logo tratou de evocar o direito à “liberdade de expressão” como protetivo da livre expressão da ré, solicitando que o processo fosse extinto, tendo em vista que não houve dolo a um indivíduo específico. No entanto, o parecer da juíza foi favorável ao Ministério Público, a qual afirmou que
[...]. Se a acusada estivesse em um contexto de humor, poder-se-ia cogitar que de fato não queria ofender, mas provocar o riso com uma piada, ainda que se considerasse de mau gosto [...]. Trata-se, porém, de situação diversa da presente. No interrogatório M. disse que fez o comentário, porque estava indignada com o resultado do pleito eleitoral e é justamente este ponto que caracteriza a seriedade de sua declaração, o contexto político, no âmbito do comportamento social, a sede do preconceito (BRASIL, 2012, p. 11-12 apud Martins, 2019, p. 5).
A juíza destacou, ainda, que a acusada possuía vasto conhecimento da matéria, tendo em vista que era uma estudante de Direito que já trabalhava na área, fato que causava ainda mais gravidade ao contexto, tendo em vista que um profissional em formação necessidade de qualidades éticas que permitam a boa execução de sua atividade profissional.
M. também afetada pelo crime que cometeu. Do mesmo modo que se sentiu livre para cometer crimes de ódio por meio de redes sociais, foi vítima de tais crimes, que a induziram ao abandono do curso de Direito e do estágio e a reclusão em sua residência. A juíza tipificou o crime no artigo 287do Código Penal, considerando que a ré estimulava o homicídio culposo contra nordestinos. Mas a pena foi acentuada diante do contexto de reclusão e deslegitimação moral já vivido pela ré, de modo que ela foi condenada a pagar multa e cumprir a pena em ações sociais.
Destaca-se que a condenação penal é a última instância na qual o discurso de ódio é avaliado. Em um país no qual a população carcerária é maior do que a capacidade do sistema e no qual um número significativo de crimes não é solucionado, é necessário que sejam construídas estratégias que dificultem a possibilidade de compartilhamento desse tipo de discurso em redes sociais.
Apesar de, às vezes contestadas, as práticas de moderação das redes sociodigitais confrontam as dificuldades de avaliar sistematicamente o escopo e o significado das práticas de linguagem de seus usuários. Na verdade, essas dificuldades são de vários tipos: dificuldade em categorizar um conteúdo considerado como "Odioso", dificuldade técnica na localização deste conteúdo, dificuldade ética ou legal para enquadrá-los.
É por isso que é essencial questionar os contextos jurídicos, históricos e socioculturais que definem o significado do discurso de ódio e as modalidades de punição. Nesse contexto, as iniciativas se multiplicam para a constituição de um protocolo para identificar este conteúdo online para combater a incitação ao ódio.
Stein; Nodari; Salvagni (2018) realizaram um estudo no qual buscaram identificar as estratégias adotadas por gerenciadores de redes sociais para conter discursos de ódio compartilhados em plataformas digitais. As autoras contam que o Facebook recebe aproximadamente 1 milhão de denúncias todos os dias, associadas a conteúdos publicados na rede social que representam crimes de ódio ou informações relacionadas a negócios ilegais.
(...) os temas mais sensíveis de serem tratados são os que abordam política, religião, animais, gêneros e raça. Por serem estes os temas mais suscetíveis, os profissionais que atuam diretamente com questões ligadas a eles, tendem a ser favoráveis a penas mais rígidas aos usuários que disseminam o ódio (STEIN; NODARI; SALVAGNI, 2018, p. 10).
Em uma iniciativa voltada para a contenção dos crimes de ódio praticados na internet, as empresas Microsoft, Google, Twitter e Facebook, em 2016, ratificaram um documento no qual fazem recomendações e informações ações que serão desenvolvidas no combate a conteúdos violentos e racistas divulgados nas redes sociais de propriedade das referidas empresas.
De acordo com o documento, o objetivo da união dessas empresas, que são dependentes de comentários de usuários para manter suas redes ativas, é criar uma colaboração entre as grandes companhias de redes sociais para que o conteúdo de ódio seja controlado com mais firmeza e rapidez (STEIN; NODARI, 2018, p. 3).
No Brasil, o Facebook tem um departamento focado na prevenção dos crimes de ódio praticados na internet. O departamento atua no controle da disseminação de conteúdos de ódio por meio da rede social e também no apoio as vítimas.
Em entrevistas com social medias de empresa brasileiras, Stein; Nodari (2018) identificaram uma postura conciliadora das redes sociais diante de casos de discursos de ódio. As empresas buscam, antes da denúncia as autoridades, informar aos acusados que o conteúdo compartilhado representa um discurso de ódio e pode levá-los a problemas jurídicos. Esse tipo de advertência pode contribuir com a coibição de discursos de ódio, mas também contribui com a organização de ações de ocultação quando são repassadas para grupos especializados na divulgação desse tipo de conteúdo, dificultando assim ações de caráter punitivo ou rastreamento no âmbito da segurança pública. Advertir um indivíduo que divulga conteúdo racista em redes sociais a respeito do crime que está cometendo, o tornaria não-racista ou somente impediria a sua ação naquela rede social específica?
Escobar (2018) realizou um estudo no qual buscou analisar a Lei 13.642/2018 (Lei Lola), que modifica a lei 10.446 de 2002 para incluir a atribuição da Polícia Federal na investigação de crimes cometidos na internet, que estejam relacionados a misoginia.
A lei Lola foi criada pelo presidente Michel Temer, no ano de 2018, em resposta as denúncias que a argentina naturalizada brasileira Dolores Aronovich realizava em seu blog, de nome “Escreva Lola, escreva!” No seu website, Dolores denunciava manifestações de ódio identificadas em redes sociais e revelava os nomes dos responsáveis. As suas denúncias contribuíram com a prisão dos dois principais responsáveis pela divulgação de misoginia na internet no Brasil, Marcelo Valle Silveira Mello e Emerson Eduardo Rodrigues. Marcelo foi o primeiro brasileiro condenado pela prática de crimes de ódio na internet, em 2012. Em 2013 ele foi solto, mas foi preso novamente em 2018, acusado de cometer crimes de racismo novamente pela internet (ESCOBAR, 2018).
Schäfer; Leivas; Santos (2015) analisaram o Inquérito n. 3.590, do Supremo Tribunal Federal (STF), de modo a discutir os efeitos do discurso de ódio entre os parlamentares.
Da perspectiva do controle de convencionalidade e da importância do diálogo entre as jurisdições, é possível notar a relevância da Convenção Interamericana contra Todas Formas de Discriminação e Intolerância, diga-se, já assinada pelo Brasil a fim de harmonizar a legislação interna sobre discriminação e intolerância, bem como evitar uma futura responsabilização internacional em caso de descumprimento do pacto. Quanto ao seu conteúdo, o instrumento internacional aponta caminhos jurídicos seguros, indicando soluções adequadas para os problemas atinentes aos efeitos negativos acarretados pelo discurso do ódio, e importará em sensível aprimoramento de um conceito jurídico capaz de descrever o fenômeno de acordo com a realidade social (SCHAFER; LEIVAS; SANTOS, 2015, p. 149).
No ano de 2018 o Ministério Público denunciou o deputado Marcos Feliciano por ter divulgado em redes sociais afirmações discriminatórias, que indicavam preconceito e induzia o ódio entre grupos distintos, com foco nos homossexuais e transgêneros. A mensagem foi divulgada no Twitter do deputado e dizia “A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, a (sic) rejeição” (SCHAFER; LEIVAS; SANTOS, 2015).
O Supremo Tribunal Federal identificou uma atipicidade no fato, determinando que o ordenamento jurídico repudia e condena esse tipo de manifestação. O voto do Ministro Luís Roberto Barroso indicou que o ato fere o princípio da dignidade humana, embora não existam leis específicas para esse tipo de conduta. Considerando que esse tipo de conduta não é passível de tipificação, o STF decidiu não aceitar a denúncia (SCHAFER; LEIVAS; SANTOS, 2015, p. 149).
Note-se que a substituição dos critérios de proibição mantém as características identificadoras do fenômeno. São manifestações de caráter discriminatório, intolerantes ao diferente, que induzem ao ódio a um determinado grupo. A inferiorização provocada pela fala coloca o grupo na condição de inimigo e, mais que isso, resulta em fato criminoso, como se o fato de pertencer a tal grupo conduzisse naturalmente ao crime. A mensagem, mesmo que substituídos os critérios de proibição, continua a indicar uma situação caótica, motivada por ideologias racistas, sexistas, antissemitas ou homofóbicas (SCHAFER; LEIVAS; SANTOS, 2015, p. 151).
Quando um parlamentar utiliza dos meios oficiais para proferir esse tipo de discurso, observa-se uma legitimação do ódio pelo Estado, de modo que a incerteza a respeito do posicionamento do estado em relação a esse tipo de violência, caracterizando insegurança jurídica. Também não havia lei específica para crimes de ódio quando M. cometeu xenofobia. No entanto, ela foi condenada com base no Código Penal. Por que ao parlamentar não foi aceita a denúncia junto ao STF?
Observa-se que os crimes de ódio nas redes sociais representam a sociedade brasileira. Infelizmente, tais crimes contam com a omissão do Estado, quando cometidos pelos seus representantes, e com a proteção da própria sociedade, que tende a minimizar seus efeitos em relação as vítimas, ou até mesmo negar que tais efeitos existam.
CONCLUSÃO
O presente artigo buscou caracterizar os crimes de ódio praticados na internet no Brasil, bem como as possibilidades de punição e suas consequências. Verifica-se que cada tipo de crime de ódio é passível de uma aplicação, relacionada a caracterização do crime (misoginia, xenofobia, racismo) e a legislação a partir da qual ele pode ser interpretado.
O fato de não existir uma lei específica para qualificar todos os tipos de crimes de ódio praticados na internet torna a punibilidade subjetiva, cabendo ao legislador definir a sua configuração.
Em relação aos crimes de ódio praticados por autoridades públicas, verifica-se uma certa omissão dos legisladores, sob o argumento de que não existe norma específica para a matéria.
Dado o contexto estudado, conclui-se que é importante e urgente a construção de uma lei focada na prevenção e aplicação de pena para aqueles que cometem crimes de ódio pela internet. Além disso, é necessário regular as empresas que atuam na oferta de redes sociais no Brasil, de modo que elas assumam a responsabilidade pela construção de filtros que impeçam esse tipo de crime e atuem de maneira solidária as instituições de investigação para identificar os praticantes de tais atos.
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Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário - Fametro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Mariane Borges dos. Crimes virtuais e os limites da liberdade de expressão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2020, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55797/crimes-virtuais-e-os-limites-da-liberdade-de-expresso. Acesso em: 23 dez 2024.
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